quinta-feira, 22 de março de 2018

"(...) quando uma pessoa se dedica à filosofia no sentido correto do termo, os demais ignoram que sua única ocupação consiste em preparar-se para morrer e estar morto!" (Sócrates).


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A polissemia da morte no Fédon



Este texto constitui o trabalho final, avaliado com a nota máxima, da disciplina Filosofia Geral – Problemas Metafísicos III


1. Introdução

Resultado de imagem para Fédon  Constitui um corolário não só da Análise do Discurso, mas também das teorias linguísticas que tomam o texto para objeto de análise a afirmação de que, em face de um texto, muitas leituras são possíveis, muitos sentidos estão virtualmente disponíveis e podem ser construídos, embora nem todas as leituras, nem todos os sentidos sejam possíveis. Assim, embora a polissemia seja uma marca característica do discurso em geral, há tipos de discursos em que se percebe um controle maior dela, como sucede com os tipos polêmico e autoritário de discurso. No tipo autoritário, por exemplo, a polissemia tende a ser contida, estancada, uma vez que o enunciador se pretende único responsável pelo sentido e procura ocultar o referente por trás do que diz. São exemplos do tipo autoritário os discursos religiosos. Não obstante a variação do controle da polissemia, que, no tipo lúdico de discurso, chega a praticamente inexistir (no tipo lúdico, observa-se a expansão da polissemia e seu referente é mais transparente aos interlocutores), é ponto pacífico entre os estudiosos do discurso e do texto que não existe uma única leitura possível para um dado texto, mas muitas leituras. É com base nesse postulado teórico que nos propomos discutir duas formas de leitura que nos parecem autorizadas pelo texto de Fédon no tocante ao significado da morte. Em outras palavras, assumimos que a morte de que nos fala Platão, dando voz a Sócrates, nesse diálogo, pode ser interpretada de duas maneiras: a) como morte simbólica[1], ou seja, como uma experiência de negação da realidade vigente, ou de separação com relação aos hábitos e opiniões do homem comum[2]; b) como morte corporal ou metafísica, isto é, como separação entre a alma e o corpo. Chamamo-la de morte metafísica porque ela supõe a crença na sobrevivência da alma depois da sua separação do corpo. Trata-se também – se o preferirmos - de uma morte corporal, porque supõe que apenas o corpo perecerá.
Na discussão que, doravante, desenvolveremos sobre a conveniência dessas duas maneiras de interpretar o significado de morte no Fédon, buscaremos evidenciar não só que as duas leituras são autorizadas pelo texto, como também não são mutuamente excludentes. Ao contrário, pretendemos mostrar que elas são conciliáveis entre si. O modo como elas se conciliam esteia-se na hipótese de que a morte simbólica é uma experiência necessária e preparatória para a morte corporal; é uma experiência acessível apenas aos que se dedicam à filosofia (ao filósofo, portanto). A ser suficientemente provada esta nossa hipótese, a própria compreensão de filosofia como “um exercitar-se para a morte” significa mais do que um exercício de preparação para a fruição dos excelentes bens, dos quais se destaca como o mais elevado a conquista da sabedoria, depois de que a morte liberte a alma do cárcere corporal; significa também que a morte para a qual tende esse exercitar-se na filosofia é o estado de ruptura, de separação radical, de negação incondicional em que o filósofo deve encontrar-se relativamente ao modus vivendi dos homens em sociedade.



2. A doutrina da imortalidade da alma


Com a apresentação da doutrina da imortalidade da alma, pretendemos fornecer um enquadramento de sentido à luz do qual a leitura canônica da morte em Fédon se descerre de tal modo, que não seja confundida com a outra forma de leitura desse tema já por nós referida.
 É a dimensão místico-religiosa do pensamento de Platão que trataremos de pôr a descoberto. Os temas da imortalidade da alma, da metempsicose e do destino das almas têm sua origem no pensamento órfico-pitagórico de que Platão foi um herdeiro.[3] Mas dizer que Platão foi um herdeiro não significa afirmar que ele não foi responsável por imprimir um caráter próprio na recepção do pensamento órfico-pitagórico. O ponto de partida para o que poderíamos chamar inovação platônica na doutrina órfica da imortalidade da alma prende-se ao fato de Platão conferir a essa doutrina um lugar de importância no tratamento da ética e da política. Sócrates disse que o homem é a psyché (a alma), mas dizer isso apenas era insuficiente para Platão, pois que seu mestre deixou por resolver o problema que consiste em saber se a psyché é imortal ou não.
A cosmovisão órfico-pitagórica assenta numa clara oposição entre a alma e o corpo: o corpo está destinado a morrer; a alma está destinada a viver eternamente. Quem vive em função do corpo vive para aquilo que está destinado a perecer; quem vive em função da alma vive para aquilo que está destinado a viver para sempre, logo viver tendo em vista a purificação da alma, mediante um contínuo progresso de desapego do corpo.  As injustiças sofridas pelos justos só afetam o seu corpo e podem, em casos extremos, levar à morte este corpo; mas, sendo justo, o que ele perde é apenas o corpo; a alma é salva para gozar da eternidade. Novamente, deve-se enfatizar que essa visão da vida não foi simplesmente apropriada por Platão, “ela alcança um novo significado depois da “segunda navegação”, isto é, depois da descoberta do mundo inteligível” (Reale, 2007, p. 183). Platão se encarregou de demonstrar racionalmente a imortalidade da alma, crença sem qual a visão órfica da vida deixa de ter sentido. Consoante ensina Reale a respeito da inovação platônica, entendida como uma ressignificação da doutrina órfico-pitagórica,


No orfismo tratava-se de uma simples doutrina misterosófica; nos pré-socráticos que tinham aceitado a visão órfica, era um pressuposto em contraste com seus princípios físicos; em Platão, ao contrário, está fundamentada e apoiada perfeitamente sobre a metafísica, isto é, sobre a doutrina do supra-sensível, da qual se torna como que um corolário (...). (ib.id., ênfase no original).


No Fédon, é possível distinguir entre três provas da imortalidade da alma.[4] A primeira delas, que não irá nos interessar aqui, tem base heraclitiana e, por isso, envolve a percepção da realidade como atravessada pelos contrários (justo/injusto; belo/feio/ vida/morte, etc.). Essa prova encontrará seu bom termo na doutrina da reminiscência. Vamo-nos deter na apresentação das duas outras provas oferecidas por Platão e que ele mesmo julgava mais importantes.
A primeira das duas provas que devemos elucidar começa pela asserção segundo a qual a alma humana é capaz de conhecer as coisas imutáveis e eternas. Todavia, para a alma poder apreender essas coisas imutáveis e eternas, ela deve possuir como conditio sine quo non uma natureza que lhes seja afim. Em outras palavras, a alma deve ser também imutável e eterna, para que possa conhecer as coisas imutáveis e eternas.
Essa prova assenta na premissa de que há duas instâncias de realidade, a saber, o mundo sensível (visível) e o mundo inteligível (invisível). O mundo inteligível é imutável, suas condições não variam; mundo sensível, por outro lado, é mutável. Platão estabelecerá uma correlação do corpo e da alma com esses dois domínios do real. Ora, notará Platão que o corpo é visível e passível de sofrer mudança e, por isso, assemelha-se ao mundo visível ou das coisas sensíveis; a alma, porque é invisível e imutável, assemelha-se ao mundo inteligível, que é invisível e imutável.
Uma vez que se oriente pelas percepções sensíveis, a alma incorre, facilmente, em erro e se confunde, porquanto as percepções sensíveis são mutáveis tanto quanto os objetos a que elas se referem. Quando, entanto, a alma se eleva para além do domínio das coisas sensíveis, recolhendo-se em si mesma, ela não erra mais e pode contemplar as Ideias puras, bem como o objeto que lhes é correspondente no mundo inteligível. Uma parte fundamental desse argumento consiste em ver que, conhecendo no mundo inteligível o objeto adequado das Ideias, a alma reconhece também que é afim a essas Ideias e, dado que pensa as coisas imutáveis, a alma permanece, ela mesma, imutável.
A alma, portanto, é imutável e eterna assim como imutáveis e eternas são as Ideias por ela contempladas e às quais ela é afim. Resta demonstrar que a alma também é dotada de um caráter divino. Para tanto, argumentará Platão que, quando unida ao corpo, a alma comanda o corpo, e o corpo lhe deve obediência. Ora, uma característica importante do divino é comandar, e do que é mortal é ser comandado. Por conseguinte, a alma é afim ao divino; e o corpo, ao mortal. Acompanhemos o testemunho desta primeira prova:

- Admitamos, portanto, que há duas espécies de seres: uma visível, outra invisível.
-Admitamos.
- Admitamos, ainda, que os invisíveis conservam sua identidade, enquanto que com os visíveis tal não se dá.
-Admitamos também isso.
- Bem, prossigamos – tornou Sócrates. – Não é verdade que nós somos constituídos de suas coisas, uma das quais é o corpo e a outra, a alma?
- Nada mais verdadeiro!
- Com qual dessas duas espécies de seres podemos dizer, pois, que o corpo tem mais semelhança e parentesco?
- Eis uma coisa que é clara para toda a gente: com a espécie visível.
- Por outro lado, que é a alma? Coisa visível ou coisa invisível?
- Não é visível, pelo menos aos homens, Sócrates!
- Todavia, quando falamos do que é visível e do que não o é, fizemo-lo com relação à natureza humana? Ou talvez creias que foi a propósito de qualquer outra coisa?
- Foi a propósito da natureza humana.
- Portanto, que diremos da alma? Que ela é coisa visível, ou que não se vê?
- Que não se vê.
- Vale dizer, por conseguinte, que ela é uma coisa invisível?
- Sim.
- Logo, a alma tem com a espécie invisível mais semelhança do que o corpo, mas este tem, com a espécie visível, mais semelhança do que a alma?
- Necessariamente, Sócrates.

(...)

- Penso não haver ninguém, Sócrates, por mais dura que tenha a cabeça, que seja capaz de não concordar, seguindo este método, em que, em tudo e por tudo, a alma tem mais semelhança com o que se comporta sempre do mesmo modo, do que com as coisas que não o fazem.
- E o corpo, por seu lado?
- Com a outra espécie.
- Tomemos agora um outro ponto de vista. Quando estão juntos a alma e o corpo, a este a natureza consigna servidão e obediência, e à primeira comando e senhorio. Sob este novo aspecto, qual dos dois, qual dos dois, no teu modo de pensar, se assemelha ao que é divino, e qual o que se assemelha ao que é mortal? Ou acaso pensas que o que é divino existe, por sua natureza, para dirigir e comandar, e o que é mortal, ao contrário, para obedecer e ser escravo?
- Penso como tu.
- Com qual dos dois, portanto, a alma se assemelha?
- Nada mais claro, Sócrates! A alma, com o divino; o corpo, com o mortal.
- Bem, examina agora, portanto, Cebes, se tudo o que foi dito nos conduz efetivamente às seguintes conclusões: a alma se assemelha ao que é divino, imortal, dotado da capacidade de pensar, ao que tem uma forma única, ao que é indissociável e possui sempre do mesmo modo identidade: o corpo, pelo contrário, equipara-se ao que é humano, mortal, multiforme, desprovido de inteligência, ao que está sujeito a decompor-se, ao que jamais permanece idêntico. Contra isso, meu caro Cebes, estaremos em condições de opor uma outra concepção e provar que as coisas não se passam assim?
- Não, Sócrates.
- Que se segue daí? Uma vez que as coisas são assim, não é acaso uma pronta dissolução o que convém ao corpo, e à alma, ao contrário, uma absoluta indissolubilidade, ou pelo menos qualquer estado que disso se aproxime?
- E por que não, com efeito?[5]


A segunda prova de que trataremos no Fédon exige que consideremos um aspecto da teoria da alma que se nos apresenta indispensável, já que se trata de um saber pressuposto por essa segunda prova. Tomemos, então, a segunda prova que se acha no Fédon e que nos interessa dar a saber. Essa prova se estrutura em torno da proposição: as Ideias contrárias não podem combinar-se entre si nem permanecer juntas. Daí se segue que elas são mutuamente excludentes. Da impossibilidade de elas se combinarem resulta também a impossibilidade de elas se combinarem com as coisas sensíveis que delas participam essencialmente. Platão observará, então, que entrando a fazer parte de uma determinada coisa, uma Ideia leva a desaparecer a Ideia que lhe é contrária e que até então estava nessa coisa. Em outras palavras, se uma Ideia entra numa coisa, a Ideia contrária que estava na coisa anteriormente à entrada dessa Ideia é “expulsa” da coisa onde estava. As duas Ideias, por serem contrárias, não podem coexistir na mesma coisa. Assim, por exemplo, o Grande em si e o Pequeno em si se excluem mutuamente; a mesma exclusão mútua é necessária quando tais Ideias entram a fazer parte das coisas. Assim, uma coisa grande não pode ser pequena e vice-versa. O mesmo princípio de exclusão mútua é extensivo às coisas que, não sendo contrárias entre si, apresentam atributos que são contrários uns aos outros. Por exemplo, o fogo e a neve, embora não sejam contrários entre si, apresentam atributos essenciais que são contrários entre si; sejam: [quente] e [frio]. Ora, o fogo não é compatível com a Ideia do frio, nem a neve é compatível com a Ideia do quente. A presença do quente faz a neve dissolver; a presença do frio faz o fogo apagar-se.
Procuremos, agora, estender esse argumento ao caso da alma. A alma, conforme se depreende da teoria da alma, é vida. Psykhé encerra a Ideia de vida. Ela é que dá vida ao corpo. Justamente porque, para um grego, a alma tem como marca essencial a vida, jamais poderá admitir em si a morte ou tornar-se mortal. A morte, portanto, não pode afetar a alma; a morte só corromperá o corpo. A alma, por sua vez, por ocasião da morte do corpo, se desprende deste e se dirige para outro lugar.
Podemos, então, compreender, a título de conclusão, que a alma, na medida em que essencialmente encerra a vida, sendo a vida seu atributo estrutural, não pode abrigar a morte, visto que a Ideia de vida e a Ideia de morte, segundo o princípio da exclusão mútua dos contrários, são totalmente excludentes. É por essa razão que um grego recusa como absurda uma combinação como “alma morta”. Trata-se de um sintagma tão antitético, para um grego, quanto a combinação “neve quente”.



3. A morte como separação da alma e do corpo


Tendo em mente a teoria da imortalidade da alma, não podemos nos esquivar a aceitar a conclusão de que o significado mais transparente de morte em Fédon é o da morte como separação da alma com relação ao corpo. Trata-se do que chamamos morte metafísica, uma vez que, tendo se libertado do corpo, a alma não se extingue. A morte como separação da alma com relação ao corpo está assentada na crença de que, tendo ela habitado o corpo de um filósofo, poderá fruir no Hades “excelentes bens”, conforme nos afirma Sócrates: “(...) considero que o homem que realmente consagrou sua vida à filosofia é senhor da legítima convicção no momento da morte, possui esperança de ir encontrar para si, no além, excelentes bens quando estiver morto”[6]. A compreensão da morte como separação da alma com relação ao corpo aparece em diversos momentos no diálogo. Num desses momentos, Sócrates a apresenta após indagar a Símias sobre ser a morte alguma coisa:


- Segundo nosso pensar, é a morte alguma coisa?
- Claro – replicou Símias.
- Nada mais do que a separação da alma e do corpo, não é? Estar morto consiste nisto: apartado da alma e separado dela, o corpo isolado em si mesmo; a alma, por sua vez, apartada do corpo e separada dele, isolada em si mesma. A morte é apenas isso? (ênfase nossa)[7]


Notemos que Sócrates termina seu turno de fala com a pergunta “A morte é apenas isso?”. Símias concorda que é apenas isso, mas Sócrates prossegue fazendo considerações sobre como deve ser a vida própria de um filósofo. À medida que vamos acompanhando Sócrates na descrição de como deve viver um filósofo, conseguimos, com uma atenção redobrada em nossa leitura, ‘pinçar’ aqui e ali uma compreensão de morte não redutível à anteriormente apresentada, sem bem que, de modo algum, divorciada daquela. Antes, porém, de discorremos sobre o modo como essa outra compreensão de morte vai-se iluminando ao longo do diálogo, devemos não perder de vista o fato de que a compreensão da morte como “separação da alma com relação ao corpo” dá sustentação à doutrina do destino das almas e assegura ao filósofo sua condição de amante da sabedoria. Sendo amante da sabedoria, o filósofo, em vida, jamais poderá conquistá-la. Porque é amante da sabedoria, ele a persegue obstinadamente; ele a deseja, sem jamais possuí-la. A sabedoria só poderá ser conquistada, segundo crê Platão, após a morte corporal – a da separação da alma com relação ao corpo. Somente a alma em si, a alma liberta daquilo que a estorva, poderá conhecer as Ideias em si, a Verdade em si:



Inversamente, obtivemos a prova de que, se alguma vez quisermos conhecer puramente os seres em si, ser-nos-á necessário separar-nos dele e encarar por intermédio da alma em si mesma os entes em si mesmos. Só então é que, segundo me parece, nós há de pertencer aquilo de que nos declaramos amantes: a sabedoria. Sim, quando estivermos mortos, tal como indica o argumento, e não durante a nossa vida! Se, com efeito, é impossível, enquanto dura a união com o corpo, obter qualquer conhecimento puro, então de duas uma: ou jamais nos será possível conseguir de nenhum modo a sabedoria, ou a conseguiremos apenas quando estivermos mortos, porque nesse momento a alma, separada do corpo, existirá em si mesma e por si mesma – mas nunca antes.[8]


É evidente aí que a morte de que nos fala Sócrates é a morte corporal. Enquanto está vivo, enquanto sua alma está atada ao corpo, o filósofo jamais poderá conquistar a sabedoria, pois que o corpo constitui um empecilho para a conquista do conhecimento verdadeiro, para a contemplação da Verdade: “durante todo o tempo em que tivermos o corpo, e nossa alma estiver misturada com essa coisa má, jamais possuiremos completamente o objeto de nossos desejos!”[9]. É que, já o sabemos,

Não somente mil uma confusões nos são efetivamente suscitadas pelo corpo quando clamam as necessidades da vida, mas ainda somos acometidos pelas doenças – e ei-nos às voltas com novos entraves em nossa caça ao verdadeiro real! O corpo de tal modo nos inunda de amores, paixões, temores, imaginações de toda sorte, enfim, uma infinidade de bagatelas, que por seu intermédio (sim, verdadeiramente é o que se diz) não recebemos na verdade nenhum pensamento sensato; não, nem uma vez sequer! (...).[10]

No seu desprezo pelo corpo, Sócrates o considera a sede das concupiscências, das paixões, as quais são suficientemente poderosas para “provocar o aparecimento de guerras, dissenções, batalhas”; ademais, é o corpo que nos incita à posse de bens e ao acúmulo deles, tornando-nos seus “míseros escravos”. Teria o filósofo o mesmo destino dos demais homens, qual seja, o de tornar-se escravos das necessidades do corpo? Não! Porque o filósofo se distingue dos demais homens por um modo de ser que lhe é próprio: o da vida filosófica. Ao dedicar sua vida à filosofia, o filósofo vive tanto quanto possível afastado dos bens e dos prazeres do corpo, e volta-se para os bens da alma, quais sejam, a virtude e a verdade. É preciso dizer mais: o filósofo se distingue dos demais homens e, portanto, não tomará parte no destino destes, porque, dedicando-se à filosofia, é o único capaz de realizar plenamente a ascese filosófica: “a alma do filósofo, alçando-se ao mais alto ponto, desdenha o corpo e dele foge, enquanto por outro lado procura isolar-se em si mesma”[11]. É consabido que a ascese passou a designar, com os pitagóricos, cínicos e estoicos, a forma da vida moral que visa à realização da virtude por meio da limitação dos desejos e da renúncia. A ascese tal como proposta em Platão para o filósofo é – parece-nos- a noção-chave que nos permite conciliar os dois significados à luz dos quais podemos compreender a morte em Fédon. Esclarecer esse ponto de nossa discussão será a tarefa desta última parte.


4. A morte como morte simbólica


Antes de buscarmos testemunho no diálogo de Fédon da compreensão da morte como morte simbólica e antes mesmo mostrar de que modo a ascese permite que as duas formas de ler a morte em Fédon podem-se articular, gostaríamos de dizer que a vida ascética que deve ser vivida pelo filósofo é condição necessária para a sua purificação. Essa purificação lhe garantirá uma boa sorte depois que chegue ao Hades. A maneira de atingir a purificação é pelo exercício de uma vida virtuosa orientada pela temperança, coragem e justiça e, sobretudo, orientada para a busca da verdade. O filósofo sendo o tipo humano, por excelência, que se ocupa de viver virtuosamente e de perseguir a verdade terá, depois de morto, o privilégio de morar junto aos Deuses. A sorte daqueles que viveram contrariamente à virtude é muito diferente: “Todo aquele que atinja o Hades como profano e sem ter sido iniciado terá como lugar de destinação o Lodaçal, enquanto aquele que houver sido purificado e iniciado morará, uma vez lá chegado, com os Deuses”.[12]
Retomemos aqui a ideia de que “estão se exercitando para morrer todos aqueles que, no bom sentido da palavra, se dedicam à filosofia”[13]. Sócrates insiste em que a única ocupação daqueles que se dedicam à filosofia “consiste em preparar-se para morrer e estar morto”.[14] Esse trecho é importante porque nos chama atenção para a ambiguidade desse preparar-se para morrer e estar morto. Mas a percepção dessa ambiguidade só é suscitada em nós quando topamos com outros trechos em que fica patente que a morte de que Platão fala não é a morte metafísica, mas a morte enquanto renúncia ao modus vivendi típico do homem comum. Numa dessas passagens, Sócrates indaga a Símias se não lhe parece que um homem a quem não interessa os prazeres do corpo não está próximo da morte:



- Sem dúvida, a opinião do vulgo, Símias, é que um homem, para o qual não existe nada de agradável nessa espécie de coisas e que com elas não se preocupa, não merece viver, mas, pelo contrário, está muito próximo da morte quem assim não faz nenhum caso dos prazeres de que o corpo é instrumento?[15]



Embora a “morte” de cuja proximidade Sócrates fala aqui possa ser a morte como separação da alma com relação ao corpo, o “estar próximo da morte” não é estar propriamente morto, é viver como se estivéssemos mortos; por conseguinte, é viver sob o modo da separação, da renúncia a certo modo de viver ocupado com os prazeres do corpo. Entendemos, portanto, que, nesse excerto, já podemos, ao menos, entrever a concepção de morte como morte simbólica. Vejamos, contudo, se há outros trechos que nos autorizem a fazer essa leitura. Noutra passagem do diálogo, Sócrates fala de como a purificação era experienciada no Orfismo.

- Mas a purificação não é, de fato, justamente o que diz uma antiga tradição? Não é apartar o mais possível a alma do corpo, habituá-la a evitá-lo, a concentrar-se sobre si mesma por um refluxo vindo de todos os pontos do corpo, a viver tanto quanto puder, seja nas circunstâncias atuais, seja nas que se lhes seguirão, isolada por si mesma, inteiramente desligada do corpo e como se houvesse desatado os laços que a ele a prendiam?
- É exatamente isso.
- Ter uma alma desligada e posta à parte do corpo, não é esse o sentido exato da palavra “morte?”
- É exatamente este o sentido.[16]


Ora, Sócrates fala em purificação como uma forma de morte, de sorte que aquele que se tornou purificado atingiu um estado de vida onde a alma já não se deixa perturbar pelas necessidades e/ou paixões do corpo. O purificado vive como se a alma estivesse separada do corpo. Esse estado vital assemelha-se à própria morte propriamente dita; mas não é a morte metafísica. Portanto, parece-nos indubitável dizer que também nesse excerto “morte” significa “morte simbólica”. Ora, o filósofo, na medida em que se exercita na filosofia, se prepara para essa forma de morte, que consiste na renúncia ao modus vivendi do homem comum, sempre ocupado com as necessidades do corpo, sempre ávido de fruir prazeres fugazes. Mas o exercitar-se para essa forma de morte constitui uma etapa da preparação para a morte como desligamento da alma em relação ao corpo – portanto, para a morte propriamente dita. 
Finalmente, vale referir outra passagem da qual é possível inferir a compreensão da morte como morte simbólica. Nesse trecho, Sócrates fala sobre o manter-se afastado tanto quanto possível da sociedade (bem como do corpo) se quisermos nos aproximar do conhecimento verdadeiro.



(...) por todo tempo que durar nossa vida, estaremos mais próximos do saber, parece-me, quando nos afastarmos o mais possível da sociedade e união com o corpo, salvo em situações de necessidade premente, quando, sobretudo, não estivemos mais contaminados por sua natureza, mas, pelo contrário, nos acharmos puros de seu contato, e assim até o dia em que o próprio Deus houver desfeito esses laços. E quando dessa maneira atingirmos a pureza, pois que então teremos sido separados da demência do corpo, deveremos mui verossimilmente ficar unidos a seres parecidos conosco; e por nós mesmos conheceremos sem mistura alguma tudo o que é. E nisso, provavelmente, é há de consistir a verdade. Com efeito, é lícito admitir que não seja permitido apossar-se do que é puro, quando não se é!”. Tais devem ser necessariamente, segundo creio, meu caro Símias, as palavras e os juízos que proferirá todo aquele que, no correto sentido da palavra, for um amigo do saber. (...).[17]


Esse afastamento tanto quanto possível da sociedade e da união com o corpo significa perfazer aquilo para o qual se destina a vida do filósofo: a morte simbólica, sem a qual a busca da verdade se lhe torna inviável. Todavia, a condição para atingir esse estado de renúncia, de separação é o exercício da ascese, é viver de tal modo desinteressado, apartado, desocupado das solicitações do corpo, dos seus anseios desmedidos, moderando suas paixões. A ascese funciona, pois, como um registro semântico ou conector de isotopia[18], que possibilita conciliar os dois significados de morte em Fédon. Essa conciliação é possível porque a vida ascética preconizada para o filósofo tanto atende à necessidade de ele permanecer vivendo enquanto tal, ou seja, enquanto amante da sabedoria, em cuja busca persiste sem ser desviado dela pelas intransigências excessivas do corpo, pela desmesura de suas paixões, quanto atende à esperança que nutre em tomar posse da sabedoria quando do definitivo desligamento da alma em relação ao corpo.






REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHAUÍ, Marilena. Introdução à filosofia – Dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise de Discurso. São Paulo: Contexto, 2005.
 PLATÃO. Coleção Os pensadores. Diálogos: O Banquete, Fédon, Sofista, Político. São Paulo: Abril Cultural, 1972.
REALE, Giovanni. Platão. São Paulo: Loyola, 2007.




[1] A expressão “morte simbólica” foi sugerida pela professora Izabela Bocayuva como parte da leitura que ela mesma faz do significado da morte em Fédon.
[2] Usamos a expressão “homem comum” para designar o gênero de homem que vive imerso na cotidianidade, assumindo as crenças, os preconceitos, os comportamentos, os significados partilhados por todos os demais com quem convive num espaço sócio-político-cultural.
[3] Excederia os limites deste trabalho o pretender discorrer sobre o que foi a tradição órfica. Bastar-nos-á enfatizar que as doutrinas das quais Platão dará uma demonstração racional se situam na esteira da tradição órfico-pitagórica.
[4] Considerando-se Fédon, Fedro, República e Leis, o número das provas podem aumentar para cinco (Chauí, 2002).
[5] Fédon,79a-80b.
[6] Fédon, 64a.
[7] Ibid., 64b.
[8] Ibid., 67d-e.
[9] Ibid., 66b.
[10] Ibid., 66c-d.
[11] Ibid., 65d.
[12] Ibid., 69c.
[13] Ibid., 68a
[14] Ibid., 64a
[15] Ibid., 65a.
[16] Ibid., 67d.
[17] 67a.
[18] “Um conector de isotopias é um termo que possui dois ou mais significados, isto é, um termo polissêmico, presente no texto, que possibilita sua leitura em dois planos distintos, que permite a passagem de uma isotopia a outra”. (Fiorin, 2005, p. 115).

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

"A ideia do suicídio é uma grande consolação: ajuda a suportar muitas noites más." (Nietzsche)

                     
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                     Diálogos sobre o tema do suicídio
          Ou sobre se a vida vale ou não a pena ser vivida



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1ª hipótese

Sim, não podemos esquecer que nosso tema é o suicídio e que a partir dele decidimos desenvolver, conjunta e confrontantemente, nossas reflexões. E quero, em outros momentos de minhas intervenções, tornar a considerar o suicídio, principalmente sob duas perspectivas: a da condenação pela Igreja cristã e da patologização pela psicanálise. Mas a questão do suicídio – concordamos nesse ponto – nos conduz para a questão que consiste em determinar se a vida vale ou não a pena ser vivida. Acho que é o momento, então, de começarmos a refletir sobre o tema do sentido, sem perder de vista sua articulação com o tema do desespero. Já apresentei uma definição de desespero a partir de Rosset que pode nos servir de “âncora” para nossas reflexões. Cito-a aqui novamente: o desespero é “uma disposição absolutamente refratária a tudo que se assemelhe à esperança ou à expectativa”. Essa definição expressa um dos dois sentidos com que o vocábulo desespero deve se apresentar como objeto de nossas reflexões. O outro sentido, típico do senso comum, é o do desespero como perda dos esteios que davam sustentação à existência, como experiência de desorientação perturbadora, de ruína dos alicerces (ilusórios?) de nossa existência. A definição de desespero proposta por Rosset se inscreve no horizonte de uma filosofia trágica, ao passo que a definição do desespero como ‘experiência de desorientação perturbadora' pode ser vista como representante de uma filosofia pessimista.
Gostaria que esta primeira etapa seja vista como minha primeira hipótese a respeito da natureza do sentido (que, aliás, conforme procurarei mostrar, nos escapa tão logo pretendemos dar a conhecê-la). Como primeira hipótese, o que faço é uma tentativa de esclarecer o que acredito estar em jogo na problemática do sentido. O que direi do sentido é produto de reflexões já feitas e apresentadas em outro lugar, e as reconsiderando agora, estou convencido de que há outros elementos que precisam ser observados no tratamento dessa questão. Por enquanto, espero que o início de minha abordagem da questão do sentido nos inspire para fazer novos sobrevoos de reflexão!
Sem mais delongas, eis como decidi iniciar minhas reflexões sobre a questão do sentido. Aí está você, lançado no mundo, tendo a morte como seu acontecimento futuro principal. Sem nenhuma razão para encontrar-se neste meio sociocultural em vez de outro. Você mesmo, um ser humano trêmulo, habitante de um universo indiferente aos seus anseios, objetivos... Para evitar que você sucumba ao desespero total, sua cultura lhe molda um caráter (uma espécie de proteção), lhe constrói uma armadura que o/a impede de sofrer a invasão de intuições perturbadoras sobre a natureza verdadeira do mundo, sobre a crua condição humana. E tendo sido doutrinado(a), ainda de modo informal, numa tradição religiosa e aprendido que a vida tem sentido, porque existe um Deus que o garante, você receberá, na escola, algumas lições sobre biologia. Uma lição de que, provavelmente, você jamais se esqueceu é a que lhe ensina sobre a cadeia alimentar, que distribui num sistema de produtores, os consumidores e os decompositores. A cadeia alimentar constitui a base do ecossistema. Ao longo da cadeia alimentar, os organismos produtores transferem energia e nutrientes aos consumidores. Essa transferência é cíclica, pois se completa quando do retorno dos nutrientes aos produtores. O retorno é possível pela ação dos decompositores que transformam a matéria orgânica dos cadáveres e os excrementos em compostos mais simples, num ciclo ininterrupto de transferência de nutrientes. A energia é um bem indispensável à sobrevivência de todo organismo, por isso todos os organismos, independentemente do lugar que ocupam na cadeia alimentar, a utilizam para a manutenção de sua vida.  Essa breve e bastante superficial descrição da cadeia alimentar ajuda-nos a compreender que o metabolismo, isto é, o processo geral pelo qual os organismos vivos se apropriam e se utilizam da energia de que precisam para desempenhar suas funções vitais, constitui um aspecto fundamental da definição da vida. São muitas as definições propostas para o termo vida nas ciências da natureza (e eu não tenho a pretensão de adotar alguma delas). Mas uma lição igualmente importante de nossas aulas de biologia é que um ente só pode ser considerado um organismo vivo se exibir todos os seguintes fenômenos: a) desenvolvimento: passagem por etapas sequenciais que vão da concepção à morte; b) crescimento: acumulação e reorganização de matéria proveniente do meio natural; excreção dos produtos indesejáveis; c) movimento, acompanhado ou não de locomoção no ambiente; d) reprodução: capacidade de gerar indivíduos semelhantes; e) resposta a estímulos: capacidade sensitiva e de reação às possíveis mudanças no meio natural; f) evolução: capacidade de transformação de sucessivas gerações e de adaptação delas ao meio ambiente.
O que aprendemos sobre a cadeia alimentar nos foi transmitido com os termos técnicos consagrados na ciência biológica.  E a tecnicidade desses termos nos impede de ter uma experiência de assombro diante do fato de a cadeia alimentar não passar de uma cadeia de carnificina incessante durante a qual a necessidade de matar é condição indispensável à manutenção do processo de viver nas condições naturais. A vida, nessa perspectiva, não é mais que um sistema autorregulador cujo desenvolvimento se realiza por meio dos processos de reprodução e de destruição de organismos que, por sua vez, não são mais do que máquinas de sobrevivência programadas por seus genes para satisfazer o “interesse” do conjunto desses genes, qual seja, a perpetuação nas gerações futuras. ( De modo algum, - preciso lembrar - entendo serem os animais “máquinas de sobrevivência”; em relação ao sofrimento dos animais, estou afetivamente próximo de Schopenhauer).
Conforme nos ensina Dawkins, em seu O Gene Egoísta, toda máquina de sobrevivência tem como objetivo a sua sobrevivência individual e a reprodução. Por isso, ainda segundo Dawkins: “Os animais (...) não medem esforços para encontrar e capturar alimento, para evitar serem eles mesmos capturados e comidos, para evitar doenças e acidentes, para proteger-se das condições climáticas desfavoráveis, para encontrar membros do sexo oposto e persuadi-los a acasalar-se, e para conferir aos seus descendentes vantagem semelhantes àqueles que eles próprios desfrutam”.
Os esforços dos animais descritos por Dawkins no trecho acima são, penso, evidências que dão sustentação à visão da vida como um esforço contínuo de resistência dos  organismos à tendência intrínseca da vida ao aniquilamento, isto é, à morte (Freud soube bem ver isso no seu conceito de pulsão de morte, e antes dele Empédocles). A morte não é uma simples circunstância consequente do processo de viver; ela é um dos momentos constitutivos da dinâmica do processo de viver (no sentido de que, enquanto vivo, carrego em mim a possibilidade sempre aí da minha morte). Essa compreensão do processo da vida pode ser ampliada com a observação de que a extinção é o destino de todas as espécies. Ora, a vida na Terra começou há cerca de 4 bilhões de anos e evoluiu em milhões de milhões de direções diferentes, e está destinada a findar em entropia máxima muito antes do resto do universo. Também o Sol, sem o qual a vida na Terra não seria possível, explodirá ou se consumirá em cerca de 5 bilhões de anos, reduzindo a cinzas tudo que gira à sua volta. As estrelas não terão destino diferente. Olhar o universo a partir dessa perspectiva niilista, a qual nos mostra que a tendência de tudo que existe é desaparecer no Nada absoluto, não é adotar uma visão pessimista sobre a vida; é, na verdade, atingir uma compreensão radical do caráter deveniente de tudo que há.  Por alguns instantes, vamos considerar o que significa ser no tempo. Ou seja, o que significa a experiência do tempo, para nós, humanos? Não te parece que ela significa a experiência do fluxo incessante de todas as coisas, do passar, do fugaz, do aniquilamento, da dissolução, donde resulta a experiência de nulidade de tudo que fazemos? Marcel Coche soube bem ver qual é a pergunta mais radical que está, por assim dizer, prevista na clássica pergunta “Por que existe alguma coisa em vez de nada?”. A pergunta mais radical é outra, diz o filósofo. Trata-se de perguntar “Por que fazer alguma coisa em vez de nada?” Se a destinação de tudo que há é o aniquilamento, se a experiência do tempo, que é a do devir, é a própria experiência de estarmos rodeados pelo nada (já que tudo que é deixa de ser, num fluxo contínuo), por que fazer alguma coisa em vez de nada fazer?
O que Sartre disse a respeito da condição do homem frente a sua indeterminação radical (“O homem está condenado a ser livre”) penso ser possível dizer da condição do homem em relação à necessidade de dar sentido, de produzi-lo: o homem está condenado a produzir sentido. Essa é uma condição inescapável ao homem dada a sua natureza de ser de linguagem, ser de discurso (homo loquens). O acontecimento do sentido é um acontecimento de linguagem, ou seja, não é possível conceber, falar de sentido sem levar em conta a linguagem como capacidade humana que  não só serve para estruturar as nossas experiências de mundo, mas também para dar sentido a elas.
Mas a própria experiência de construção de sentido, por força da consciência que tem o homem de ser no tempo, está, em última instância, destinada ao fracasso. Vou explicar por que a entendo como destinada ao fracasso. Sentido é um termo difícil de definir (quero dizer mais precisamente que, ao tentarmos responder a questão “qual é o significado de significado?”, já estamos produzindo um ato de significar; somos como que enclausurados no domínio daquilo que pretendemos revelar). Não podemos “sair” da linguagem para, de um ponto de vista externo à prática de significação, dizer o que é o significado. Dizer é já significar. Além disso, o sentido é marcado por uma ‘ausência de si’. Quando nos perguntamos sobre o sentido da palavra “casa”, queremos saber qual é o significado da palavra “casa”, ou seja, o seu conteúdo semântico, o seu significado denotativo, ou ainda a ideia associada a ela. Não vou aqui entrar em discussões sobre a distinção entre significado e sentido, como a estabelecida por Frege, nem tecer considerações sobre o que significa falar em “sentido” nas diversas teorias da Linguística. Não farei distinção entre “sentido” e “significado”. Sentido e significado serão tomados como termos sinônimos. Espero que fique claro que os significados que atribuímos às nossas experiências de mundo são sempre humanos, demasiado humanos e, portanto, frágeis, efêmeros tal como é frágil e efêmera a vida humana num Universo que carece de ordem, de sentido em si; num Universo que é indiferente ao nosso trabalho cotidiano de produção de sentido.
 O sentido da palavra “casa” não é nem a estrutura sonora ou, em termos saussureanos, a imagem acústica /kaza/ nem o referente concreto que o signo “casa” designa no mundo. O sentido está de permeio, por assim dizer, entre o significante (a imagem acústica) e a coisa significada. Notemos que o sentido tem um papel de articulação, de relação. Todavia, diferentemente do que pensava Saussure, vou assumir que essa articulação feita pelo sentido (ou significado) não é a da imagem acústica com a coisa designada pelo signo, mas a da imagem acústica, ela própria “a imagem psíquica do som” (Saussure), com o conceito, que é também um componente de ordem mental. Mas o sentido só pode atualizar-se através de outros signos (Peirce). Se eu forneço o sentido da palavra “casa”, o faço através de uma definição que resulta da combinação de outros signos. Assim, o sentido de “casa” é “edifício destinado à habitação”. Evidentemente, este é um dos sentidos de “casa”, já que as palavras são polissêmicas. Mas o aspecto polissêmico das palavras não tem relevância aqui.
Disse que o sentido “está de permeio”, mas como poderia “estar entre duas coisas”, se o sentido é ‘ausência de si’, é um ‘lugar vazio’? Como poderia ‘uma ausência’ ocupar um lugar? É que o sentido é a determinação de uma ausência que significa na combinatória de outros signos. Nunca encontramos, de fato, o sentido em si (veja “eis o sentido!). O sentido de um signo é outro signo ou combinatória de signos (Peirce). Evidentemente, esse outro signo significante ou combinatória de signos só pode atualizar o sentido por convenção, ou seja, são os membros de uma comunidade linguística que se colocam de acordo quanto ao sentido que vão atribuir às palavras. Ou seja, são os membros de uma comunidade linguística, compartilhando experiências de mundo, que acordaram que uma estrutura sonora como /kaza/ significará ‘edifício destinado à habitação’. Mas a relação entre a estrutura sonora (significante) /kaza/ e o significado é arbitrária, ou seja, fixada por convenção, como ensina Saussure (tese aliás que tem seus predecessores na história do pensamento filosófico).
A tradição semiológica nos habitou a pensar no sentido como um componente do signo, ou seja, uma das duas faces do signo. Saussure chama as duas partes do signo de “significante” e “significado” e toma o “significado” como sinônimo de “conceito”. Mas o que merece ser aprofundado, até onde eu consigo ver, é a distinção ontológica entre significante, que tem caráter sensível, material (é uma combinatória de sons articulados), e o significado (ou sentido) que não é um ente do mundo, que não é um componente material. Só tenho acesso ao significado ou sentido por meio de outros signos, que, por sua vez, são entidades dicotomicamente divididas em um significante (estrutura sonora, embora não puramente segundo Saussure) e um significado (conceito, conteúdo mental?). Mas só posso acessar o conteúdo mental (ideia, conceito) que o meu interlocutor associa a um signo por meio de outros signos. Eis a “mágica” do símbolo! Ele nos faz vir à mente uma ideia sobre a coisa. A palavra “pássaro” não nos mostra um pássaro (ente sensível) diante dos olhos, mas supõe que somos capazes de representar no espírito a coisa designada.
Por que a experiência humana de construção de sentido está destinada ao fracasso? Se não sabemos o que é o sentido (na verdade, parece que ele é o próprio vazio, é ausência de si), então devemos evitar abordá-lo como se ele pudesse nos revelar sua natureza própria. O sentido envolve, entre outras noções, a de continuidade. Se produzo um texto como “Joana voltou para casa, mas agora minha mãe está doente”, esse texto, aparentemente, estranho, só fará sentido se meu interlocutor conseguir estabelecer uma continuidade (de sentidos) entre os conhecimentos ativados pelas expressões do texto. No exemplo em questão, o leitor precisa conseguir estabelecer alguma relação entre o evento ‘Joana voltou para a casa’ e ‘minha mãe está doente’ com base em conhecimentos de que já disponha previamente. O enunciado não nos fornece todos os conhecimentos necessários para a sua compreensão. Boa parte desses conhecimentos deve ser partilhada entre os interlocutores. Se meu interlocutor sabe que “Joana” é minha irmã, que ela fugiu de casa, que minha mãe estava aflita e que a família estava preocupada com a possibilidade de minha mãe adoecer em virtude da preocupação com a ausência de minha irmã, então lhe será possível reconstruir o sentido pretendido por mim ao produzir o enunciado. Considerando-se todos os conhecimentos que se espera sejam partilhados e a estrutura sintática do enunciado, formado por duas orações articuladas pelo operador “mas”, que contrapõe um estado-de-coisas a outro, o meu interlocutor pode construir para o enunciado o sentido: ‘Joana não voltou a tempo para evitar que minha mãe adoecesse’.  Ora, nesse caso, o locutor pretende que seu interlocutor aceite a interpretação que ele, locutor, faz do ocorrido: Joana agora nos causou outra preocupação, a saber, a preocupação com o estado de saúde de nossa mãe. Novamente, estamos diante de um fato bastante interessante: mesmo que o sentido possa ser compreendido como construção de relações, apreensão de uma continuidade, como um efeito dependente de princípios de inteligibilidade e de interpretabilidade, o sentido só se materializa por meio de um complexo sígnico, ou seja, de uma frase ou texto. Parece que, ao pretendermos capturar o sentido em sua transparência, como algo que, emergindo das palavras, se pudesse “visualizar”, ele nos lança novamente para outras palavras, para outros signos e assim sucessivamente. Acredito ter encontrado uma saída para a dificuldade em que me envolvi na problematização do sentido, mas não desenvolverei tudo que ela envolve.
Quando pensamos no conceito de “continuidade”, vem à nossa mente a ideia de ‘caráter ou qualidade do que é contínuo’. “Contínuo, por sua vez, diz-se do que não é dividido na extensão ou não é interrompido na duração. Continuidade também se imbrica com a ideia de estabilidade, já que “estabilidade” supõe também a ideia de “permanência”. Transpondo o conceito de continuidade, subjacente à compreensão do sentido, para o domínio ontológico-fenomenológico, pense sobre o que significa dizer que “minhas atividades fazem sentido”. Se eu digo que minhas atividades fazem sentido, quero dizer que consigo estabelecer entre elas uma ligação, uma continuidade (e continuidade implica, nesse caso, estabilidade). Mas preciso acrescentar a essa compreensão do sentido um componente fundamental do homem: o desejo. As atividades que realizo fazem sentido se elas estiverem em harmonia com o meu desejo, se eu puder representá-las como meios para a satisfação de meu desejo. E nós não desejamos senão bens, e o sumo bem que desejamos é, como nos ensinara Aristóteles, a felicidade. Logo, as atividades que eu realizo só fazem sentido, em última instância, se a continuidade que posso estabelecer entre elas, as ligações que elas mantêm entre si me encaminham para a realização de minha felicidade. Ela é – concordando com Aristóteles - o sumo bem a que tende todo homem. Independentemente da forma como cada pessoa entende o que é uma “vida feliz”, o que estou tentando mostrar é que o sentido é o efeito de minha capacidade de estabelecer ligações entre minhas experiências, entre meus atos, minhas atividades, de modo tal que essas ligações assegurem a ou me encaminhem para a realização de meu desejo de felicidade. Uma vida humana da qual se pode dizer que é dotada de sentido é uma vida em cuja destinação (isto é, cujo modo como a dinâmica de seus eventos me afeta) se pode estabelecer ligações entre seus momentos e/ou eventos constitutivos, as quais, por sua vez, devem encaminhar-me para a realização de minha felicidade.
Por que a experiência de construção de sentido está destinada a fracassar? Lembro que essa questão se nos apresenta em função do reconhecimento de que o tempo é o passar incessante de todas as coisas, é a impossibilidade de que as coisas durem. O tempo nos revela esta grande verdade: tudo que é torna-se o seu contrário, ou seja, deixa de ser. Ora, o tempo não nos pode dar a continuidade, a estabilidade, no sentido de ‘permanência’, exigida pela necessidade que temos de construir sentido. Assim, por exemplo, quem extrai sentido para a sua vida da experiência do trabalho, porque esse alguém é um ‘ser no tempo’, está sempre sujeito a perder aquilo que faz sentido. Essa pessoa pode deixar o cargo que ocupa e que lhe dá certo status e poder para ocupar um cargo de menor representatividade. Isso pode significar a redução de seu salário e dos poderes de que antes gozava. Ou, em caso de uma grave crise econômica, pode vir a perder o emprego. Como diz a canção, “tudo muda o tempo todo no mundo”. Como não há vida possível senão no tempo e como o homem é um ser que tem consciência de que vive no tempo, como “o tempo “segue na mesma marcha”  - em nós, mas independente de nós” (Coche, 2000, p. 182, ênfase minha), somos presas da lei do tempo que tudo encaminha para o nada, e a própria vida torna precária nossa tarefa de atribuir sentido às nossas experiências, às nossas atividades. Como a vida não pode garantir a continuidade, a estabilidade exigida pelo sentido por força do fato de ser uma vida temporal, o homem sente a necessidade de produzir, na imaginação, uma ligação que transcenda o tempo, uma ligação que o contente na esperança de existir no mundo do ser, que é o oposto do mundo do devir, onde a lei é a impermanência de tudo que existe. A experiência do tempo revela ao homem que ele é também um ente impermanente, destinado a não durar como tudo o mais. A fugacidade ou a impermanência constitui o modo como a vida se destina para o homem e essa destinação da vida torna frágil a experiência do sentido. Enquanto o homem “habita” o tempo, o sentido continua sendo uma experiência precária, destinada a não resistir à inexorabilidade da lei do tempo. A religião produz no homem a esperança de que o sentido último de sua vida consista numa ligação que transcenda o tempo. Por isso, o sentido da vida só pode ser entendido como sentido transcendente. Esse sentido quer dizer: minha vida extrai sua coerência, sua coesão, de uma outra vida, de uma vida fora do tempo - a vida eterna, ou a eternidade -, garantidora da estabilidade, da continuidade exigidas pela minha necessidade de sentido.
O que a língua nos ensina acerca do sentido é que ele exige ordem, ordenação, organização (as palavras precisam se organizar numa ordem fixada pelos padrões da gramática de uma língua para que a frase tenha sentido). Uma sequência como “O na janela viu pousar o menino o passarinho” é desprovida de uma ordem gramaticalmente aceitável e, portanto, carece de sentido; sequer é uma frase em português. Não há sentido no caos, assim como não há sentido  na sequência que não obedece a nenhum padrão regular  previsto pela gramática de uma língua. Assim também a atribuição de sentido ao viver depende de que nossas experiências, nosso mundo fático seja dotado de ordem, de organização. A expressão “minha vida está uma bagunça” confirma que a vida é uma experiência que supõe ordem, ordenação, organização, e o sentido é produto dessa ordem. O sentido do viver cotidiano é garantido por esquemas cognitivos pelos quais ordenamos cada ação que realizamos. Esses esquemas se chamam rotinas. A forma do destinar-se da vida cotidiana é a da rotina. E rotina implica ordenação e é ela que nos dá a ilusão de sustentabilidade do sentido. Se a rotina sofre uma quebra profunda, por exemplo, com a descoberta de um câncer que nos forçará a frequentar hospitais, a submeter-se a sessões de quimioterapia e a suportar estados intensos de debilidade, que envolvem dor, anemia, diarreia, náusea, vômito, etc., somos lançados numa perturbadora crise de sentido. O sentido da vida, em circunstâncias como esta, é colocado em questão, o sofrimento nos expõe à fragilidade da vida, à fragilidade do sentido e à compreensão do ser, que, em circunstâncias como esta,  nos desvela o caráter dramático da finitude do ser-aí que cada um de nós é. Finitude não significa o caráter mortal do homem, mas seu modo próprio de existir marcado pela antecipação da “totalidade de sua existência que se estende como um arco do nascimento à morte”. (Stein, 1976, p. 71). Essa consciência e antecipação do modo finito de existir são estruturadoras do modo de ser do ente que somos.