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quarta-feira, 21 de outubro de 2015

"Mermo quano falamo assim sabemo falá" (BAR)

            
                      

          A influência de aspectos fonéticos na ortografia


Aspectos fonológicos e fonéticos do português brasileiro e ortografia este foi o tema de uma prova do processo de admissão de professores de língua portuguesa da UFF. Os pleiteantes à vaga deveriam, pois, dissertar sobre esse vasto tema, sem que lhes fosse dada qualquer indicação sobre quais  critérios seriam utilizados pela banca na avaliação dos textos. Como se pode ver, tal como se apresenta o enunciado do assunto ao qual os candidatos deveriam dispensar sua atenção, as possibilidades de abordagem são inumeráveis. Quais os aspectos deveriam ser privilegiados? De que modo se deveria considerar a questão ortográfica? De minha parte, a ortografia só poderia ser abordada pontuando as influências de certos fenômenos fonéticos na produção escrita dos usuários da língua. O candidato que decidisse tratar das regras do Novo Acordo Ortográfico não conseguiria estabelecer a unidade de sentido pressuposta pelo tema. Se o tema da ortografia se apresenta coordenado ao tema dos aspectos fonéticos e fonológicos, é lícito supor que se está esperando que o candidato correlacione os dois temas.
Há muitos fenômenos fonéticos que influenciam na produção escrita dos usuários do português brasileiro. Em outros termos, há muitos fenômenos fonéticos que explicam por que os usuários do português, mormente nas fases iniciais de alfabetização, tendem a grafar erroneamente certas palavras. É preciso, pois, ter em conta o fato de que tais erros são, em última instância, decorrentes de fenômenos regulares que se dão na fala dos usuários do português brasileiro. Esses fenômenos podem ser divididos, a título metodológico, em dois grupos: 1) os que pertencem ao grupo dos mais estigmatizados; 2) os que pertencem ao vernáculo geral brasileiro, a saber, que ocorrem na língua falada por todos os brasileiros. Vejamos alguns exemplos de fenômenos em cada grupo.
Comecemos por examinar os fenômenos fonéticos inclusos no grupo 1. O fenômeno do rotacismo carreia, sem dúvida, um alto grau de estigmatização social. O rotacismo consiste na permuta do fonema /l/ por /r/ nos encontros consonantais /bl/, /cl/, /fl/. Os pares bloco > broco; claro > craro; flauta > frauta são exemplos de rotacismo. O rotacismo, nesse ambiente fonológico – em encontro consonantal – é estigmatizado em todo o Brasil. Pode ocorrer também o rotacismo em final de sílaba, como no par tal-co > tar-co. Essa forma de rotacismo é característica de algumas regiões onde se usa o vulgarmente chamado “dialeto caipira” (interior de São Paulo, Sul de Minas Gerais, etc.). Os falantes dessa variedade linguística usam uma consoante retroflexa em sílabas travadas, como em “porta” (o /r/ retroflexo é pronunciado com o levantamento e o encurvamento da ponta da língua em direção ao palato duro).
Outro fenômeno bastante estigmatizado é o da monotongação de ditongos átonos crescentes em posição final. Palavras como notícia, paciência, imundície são, por força desse fenômeno, pronunciadas como notiça, paciença, imundice. Um personagem de televisão ficou conhecido por usar, de forma caricatural, a variante poliça por polícia. Sucede, contudo, que os usuários da língua que se utilizam dessas formas monotonganizadas seguem uma deriva histórica da língua. Na história do português, há muitos exemplos da mesma tendência. A forma latina prigritia deu origem à forma portuguesa “preguiça”; “pretiu”  deu origem à forma “preço”, etc.
Passemos a considerar alguns fenômenos que se situam no grupo 2. Eles caracterizam usos linguísticos comuns a todos os brasileiros. Por exemplo, todos nós, falantes nativos de português brasileiro, independentemente de classe socioeconômica, grau de escolarização, faixa etária, sexo, etc., apagamos o /r/ em final de palavra, sobretudo em final de verbos no infinitivo. Assim, pronunciamos “cantar”, “falar”, “vender” como “cantá”, “falá” e “vendê”. Também alguns substantivos perdem o /r/ final, como “professô”, “dotô” (cf. “doutor”), etc. No caso de “dotô”, ocorre ainda a redução do ditongo /ow/. Casos como este são gerais na fala do brasileiro. A monotongação dos ditongos /ey/ e /ay/ são, particularmente, gerais diante de consoantes palatais ou da vibrante simples (/r/). Vejam-se os exemplos “chêro”, “bêjo”, “pêxe” e “caxa” correspondentes às formas grafadas “cheiro”, “beijo”, “peixe” e “caixa”. Esse fenômeno interfere no processo de alfabetização, dado que a tendência do aprendiz é escrever a vogal simples e não o ditongo. Portanto, não nos devemos surpreender se uma criança, nessa fase de escolarização, escrever “bêjo” em vez de “beijo”, o que não significa dizer que não se deve ensiná-la a grafia correta. O mesmo fenômeno está na origem das formas escritas “carangueijo”, “bandeija” e “prazeiroso”, por exemplo, as quais indicam uma hipercorreção por influência do processo de monotongação na fala. Nesse caso, o falante, por analogia, escreve com ditongo as formas que não têm ditongo. Por um processo de indução, julga que também aquelas palavras têm grafia diferente do modo como se pronunciam, tal como sucede com as formas “cheiro”, “beijo”, “peixe”. A hipercorreção se realiza como processo inverso da monotongação: usa-se ditongo onde não há, nem na fala, nem na escrita, ditongo.
Por fim, veja-se outro caso típico de variação linguística no domínio fonético que influencia na forma como se grafam as palavras. A consoante lateral /l/, quando em final de sílaba ou de palavra, é pronunciada, na maior parte do território brasileiro, como a semivogal [w] (é o nosso “u” de “incauto”). Daí resultam certas dificuldades de escrita, como a grafia das palavras “mal” e “mau”, que se pronunciam de modo indistinto. A vocalização da lateral, comum em formas como “Brasil” (Brasiu), “barril” (barriu), “alto” (auto), “esbelto” (“esbeuto”), leva o falante a produzir, na escrita, frases em que “mau” aparece no lugar de “mal” e vice-versa. Assim, é comum grafar “mau” em “ele se veste mau” e “mal” em “Ele é mal”, malgrado o esforço despendido pelo professor de português na insistência com que diz que “mau” corresponde a “bom” e “mal” corresponde a “bem”, o que significa dizer que “mau” é adjetivo, portanto, que se usa para modificar substantivo, e “mal” é advérbio e que, portanto, se usa para modificar verbo (cf. Ele se veste mal/ Ele canta mal).
No tocante ao apagamento do /r/ em final de palavra, que vimos anteriormente, é importante lembrar, nas formas infinitivas, esse fenômeno nos permite explicar por que são possíveis grafias como “você estar em casa” e “ele dar um bom partido”. Esses casos patenteiam a hipercorreção por influência da tendência geral de apagamento do /r/ em final de palavra, na língua falada.
De tudo que foi exposto, depreende-se facilmente que vários erros de ortografia se elucidam quando compreendemos a influência de certos fenômenos fonéticos na produção escrita dos usuários da língua. Tais fenômenos podem ser gerais, caracterizando o vernáculo brasileiro, ou podem ser característicos de variedades linguísticas bastante estigmatizadas. Mais uma vez, tais fenômenos dão testemunho de um aspecto geral e inerente a todas às línguas conhecidas: a variação e mudança das formas como são usadas pelos seus falantes.

quinta-feira, 12 de março de 2015

A marcação de plural no sintagma nominal - "Olha os caderno novo que eu ganhei"

                
                                   


                          Um caso de variação linguística
                      A marcação de plural no sintagma nominal


“A começar do nível mais elementar de relações com o poder, a linguagem constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder”

(Maurizio Gnerre)


O tema deste texto recobre um fenômeno linguístico do qual se ocupa, com especial interesse, a sociolinguística. Tenciono dar a saber e discutir um caso de variação linguística a partir da análise da manifestação de concordância no interior do sintagma nominal.
Inicialmente, contudo, considerarei alguns conceitos sociolinguísticos pressupostos pela análise. Antes de apresentá-los, refiro um passo do linguista Marcos Bagno (2011), com o qual, na sua Gramática Pedagógica do Portuguêsnos adverte que a reação à mudança linguística é uma característica comum a todas as culturas humanas.


“A reação à mudança linguística é um traço universal das culturas humanas. A língua está de tal forma entranhada em cada um de nós que imaginar que ela um dia deixará de ser o que é se revela uma ideia insuportável, uma noção capaz de causar, em muitas pessoas, mesmo que inconscientemente, um medo quase semelhante ao medo de morrer. Porque a mudança da língua é, de fato, a morte da língua tal como uma geração de falantes a conhece (muito embora a língua esteja também, a todo instante, além de morrendo, renascendo) (...)”. (Bagno, 2011, p. 116)


Malgrado o exagero com que chega a comparar o medo da morte com o medo de uma suposta depravação da língua, Bagno permite-nos dizer que, se a reação à mudança linguística é um fato universal atestado em todas as sociedades, a variação e a mudança linguísticas também o são. Nenhuma língua natural permanece inalterável ao longo do tempo. Todas as línguas do mundo são perpassadas, essencialmente, pela diversidade de usos. Variação e mudança são fenômenos inerentes à realidade linguística. As línguas são dinâmicas, porque dinâmicas são as sociedades em que elas são usadas; as línguas variam e mudam, porque também variam e mudam as sociedades das quais aquelas são a base fundamental. A mesma ideia pode expressar-se na observação de que as línguas são fenômenos históricos, instituições culturais. Ora, nem a história, nem as culturas humanas permanecem inalteráveis. As línguas, portanto, não só acompanham as transformações histórico-culturais (também sociais, políticas, econômicas...), como também as expressam.
sociolinguística é uma das subáreas da Linguística e se ocupa com o uso social da língua no interior das comunidades de fala. A sociolinguística concentra sua atenção na correlação entre fatores linguísticos e fatores sociais que influenciam o uso da língua. Ela se situa no espaço interdisciplinar, na fronteira entre língua e sociedade, procurando dar conta, de modo especial, das ocorrências linguísticas concretas que comportam um caráter heterogêneo.



1. A noção de “erro” linguístico



Do ponto de vista sociolingüístico, o que, vulgarmente, se chama de “erro linguístico” baseia-se numa avaliação negativa que, não sendo de ordem linguística, é estritamente calcada sobre o valor social atribuído ao falante, considerando sua classe socioeconômica, seu grau de escolarização, seus antecedentes geográficos, sua maior ou menor participação nas esferas de poder, seu sexo, sua cor de pele e outros preconceitos culturais e socioeconômicos.
O suposto “erro” linguístico desencadeia, infelizmente, uma série de avaliações negativas sobre o falante e supõe uma cadeia de causas e consequências que, por ser de natureza ideológica, é, necessariamente, falsa: quem fala errado, pensa errado, age errado, não é estimável e confiável, etc.
Uma lição elementar da sociolinguística é que não há variação linguística sem alguma avaliação social. Numa sociedade tão fortemente hierarquizada como a sociedade brasileira, todos os valores culturais e bens simbólicos se situam também em escalas hierárquicas que se organizam segundo valorações como “bom”, “ruim”, “certo”, “errado”, “feio”, “bonito”, etc. A língua é o bem simbólico mais importante de uma sociedade, e seu uso, portanto, é submetido àquelas escalas hierárquicas de valoração.
Não menos importante é levar em consideração o fato de que, entre as formas de uso valoradas como “erradas”, há formas que se consideram mais “erradas” do que outras. A medida da gravidade desses “erros” é inversamente proporcional à escala de prestígio social: quanto menos prestigiado socialmente é o usuário da língua; quanto menor é seu nível socioeconômico, maior é a gravidade atribuída aos supostos “erros” de sua fala.
Não custa insistir em que as valorações positivas ou negativas que recaem sobre os usos linguísticos assentam em pressupostos, orientados ideologicamente, sobre a origem sócio-cultural e econômica dos falantes. Ademais, a classificação das variedades linguísticas em “certas” e “erradas” se faz com base em critérios políticos e ideológicos. Quem detém o poder dispõe das condições pelas quais pode impor (e impõe) a sua variedade linguística como aquela pela qual se deve pautar o comportamento linguístico de todos os membros da sociedade.
Como toda seleção implica exclusão, todas as demais variedades linguísticas dos grupos dominados serão tomadas como variedades “erradas”, “imperfeitas”, “inadequadas” e serão designadas com termos que carreiam grande teor de pejoratividade.
Destarte, quando os linguistas observam que não há usos linguísticos “certos” e “errados” em si, estão chamando a atenção para o fato de que “certo” e “errado” não são defeitos das formas linguísticas, mas efeitos da valoração socioideológica a que não só elas são submetidas, como também, mormente, seus usuários. Quem discrimina o modo de falar de alguém está discriminando, na realidade, a pessoa que fala e, por extensão, a classe social a que ela pertence. Por isso, o preconceito linguístico é, fundamentalmente, um preconceito social.




1.1. Heterogeneidade e unidade na língua


Todas as sociedades são constituídas por segmentos que atuam como forças em direção à mudança ou em direção à conservação do status quo. Os segmentos dominantes social, política, econômica e ideologicamente adotam a segunda direção: estão interessados na conservação do status quo. A língua, na medida em que é uma realidade social, encontra-se, permanentemente, suscetível à pressão dessas duas forças: uma que impulsiona a variação e a mudança; outra que pressiona no sentido de manter a unidade, refreando a variação. Há, portanto, uma tensão constante e interação entre essas duas forças antagônicas, donde resulta que as línguas exibem inovações, conservando, contudo, sua coesão interna.
A noção de comunidade linguística é dependente da convergência de padrões estruturais e estilísticos. Portanto, a comunidade linguística deve sua existência ao impulso que conduz à manutenção da unidade.
A variação ocorre em consonância com as propriedades sistêmicas da língua e se efetua porque é contextualizada e regular. Todas as línguas mantêm-se numa espécie de equilíbrio instável, porque, de um lado, exibem, fundamentalmente, uma pluralidade de usos, uma diversidade de formas de expressão que se realizam segundo padrões regulares; de outro lado, conservam padrões, que, por não variarem, se dizem categóricos, e que contribuem para produzir a coesão interna do sistema linguístico, sem a qual não haveria possibilidade de intercomunicação entre os falantes de comunidades de fala diferentes. Além disso, insisto em que a variação é ordenada, ela se submete a regras previstas pela gramática da língua.




1.2. Sistematicidade, legitimidade e estigmatização


Do ponto de vista da ciência linguística, todos os usos linguísticos são legítimos e se prestam à previsibilidade, em que pese às variações estilísticas.
É importante reconhecer que todos os padrões linguísticos se prestam à avaliação social, que pode ser positiva ou negativa, o que os torna indicadores do tipo de inserção social do falante. As formas que recebem maior valor social são aquelas que se fazem acompanhar de um alto grau de monitoramento e de letramento. Às formas de maior prestígio se associam maior sensibilidade, percepção e planejamento linguístico.
Não se ignore o fato de que a diversidade linguística se distribui num continuum. Assim, os falantes adquirem primeiro as variantes informais e, num processo sistemático e gradativo, vão apropriando-se de registros mais formais, que se aproximam das variedades de maior prestígio.
Todas as línguas, portanto, apresentam variantes mais prestigiadas do que outras. E entre as formas desprestigiadas, algumas são mais estigmatizadas do que outras, em virtude da classe social de seus usuários, os quais já são alvo de estigmatização em termos socioeconômicos e culturais.



1.3. Variação linguística: variantes e variáveis

A variação linguística, conforme deve ter ficado claro, é um fenômeno universal. A variação se manifesta por meio de formas linguísticas alternativas denominadas de variantes.
Variantes são, portanto, grosso modo, as diversas formas alternativas de se dizer a mesma coisa. Essas formas alternativas constituem um fenômeno variável.
Existem variáveis dependentes sempre que o uso das variantes for influenciado por variáveis, quer de natureza interna à língua, quer de natureza social (externa). Essas variáveis ou grupo de fatores que podem ser de natureza estrutural (interna à língua) ou de natureza social chamam-se variáveis independentes. Elas exercem pressão sobre os usos acarretando o aumento ou a diminuição de ocorrência das variantes.
Cumpre enfatizar que as variáveis recobrem tanto o fenômeno em variação quanto o grupo de fatores. Esses grupos de fatores são parâmetros reguladores dos fenômenos variáveis e condicionam positiva ou negativamente o uso das formas variantes.



2. A marcação de plural no sintagma nominal

2.1. O Sintagma nominal: definição e estrutura



sintagma nominal  é um constituinte oracional formado, necessariamente, de um substantivo ou palavra suscetível de ocupar a posição própria do substantivo, que é a de núcleo do sintagma nominal.  Doravante, usarei a abreviação SN para representar o sintagma nominal. Todo SN é, portanto, uma unidade significativa da oração e terá como núcleo uma palavra de natureza morfológica substantiva. O SN pode constituir-se de seu núcleo apenas, ou pode, além do núcleo, encerrar outras unidades articuladas a ele. Vejam-se dois exemplos que ilustram as duas formas de estruturação do SN: em (1), com apenas o núcleo; em (2), com elementos articulados ao núcleo.

(1) São Paulo é a maior cidade brasileira.
       SN
     núcleo


(2) Este meu anel de ouro.
            Núcleo

Em (2), toda a unidade “Este meu anel de ouro” corresponde ao sintagma nominal, cujo núcleo é “anel”. A esse núcleo, se acham articulados os elementos “este”, “meu” e “de ouro”. Em (1), a extensão do SN se reduz ao seu núcleo.

As unidades que se articulam ao núcleo do SN cumprem a função sintática de determinantes ou de modificadores. Os determinantes se dispõem à esquerda do núcleo; e os modificadores podem prender-se à esquerda (no caso dos adjetivos que admitem anteposição ao substantivo), mas, frequentemente, se articulam à direita do núcelo.
Considerem-se os exemplos abaixo (o asterisco marca a inaceitabilidade da construção e a interrogação a dúvida quanto à sua aceitabilidade):

(3) Este meu anel dourado
   * Este meu dourado anel

(4) Este excelente artigo histórico
  * Este excelente histórico artigo

(5) Os três meninos simpáticos
    Os três simpáticos meninos  (?)



Urge definir os determinantes e os predicadores. Começo por responder à questão: o que são determinantes? A função sintática dos determinantes é desempenhada por unidades que se articulam à esquerda do substantivo, quer para identificar sua referência tendo em vista a situação espaço-temporal, quer para fixar-lhe o estatuto informacional, quer ainda para delimitar seu número. O grupo dos determinantes abriga: os artigos (definidos e indefinidos), os pronomes possessivosdemonstrativosindefinidos e os numerais ordinais e cardinais. Nesse grupo, também devemos incluir o pronome relativo “cujo”, que não nos interessará na presente discussão.
A classe dos determinantes é sintático e semanticamente heterogênea. Veja-se, a título de exemplificação, o comportamento semântico-pragmático do artigo definido e do pronome demonstrativo, nos sintagmas nominais destacados, nas frases abaixo:



(6) Dois homens encapuzados roubaram uma joalheria, mas os bandidos foram presos assim que deixaram o local.

(7) Nunca mais vi aquela moça que conheci naquela festa.


Em (6), o sintagma “os bandidos” comporta uma informação já dada, ou seja, faz remissão ao segmento “dois homens encapuzados”, anteriormente expresso. O artigo definido cumpre aí a função de indicar que a informação veiculada no sintagma que introduz é já conhecida do interlocutor/leitor. Por ocasião da leitura, o leitor constrói um modelo textual, que é uma representação mental que toma forma com base no texto e que funciona como uma memória partilhada e publicamente alimentada pelo próprio texto. Assim, uma vez introduzido no modelo textual do leitor um referente (ainda não mencionado), este passa a ter o estatuto “ativo”, porque sob o foco da memória de trabalho, é o que sucede em (6). A introdução do referente “dois homens encapuzados” torna-o passível de reativação, situação que se dá com a introdução do sintagma encetado pelo artigo definido “os bandidos”. O primeiro referente introduzido passa a preencher um “nódulo” no modelo conceitual do mundo textual construído. Nesse sentido, o artigo definido, que preenche a função sintática de determinante do SN “os bandidos”, é índice de identificabilidade do referente, ou seja, ele marca o estatuto informacional do referente como “identificável” ou acessível no modelo textual. Esse estatuto é garantido pelo compartilhamento de conhecimentos entre o locutor e o seu interlocutor. Em suma, o artigo definido é usado, sistematicamente, em sintagmas nominais que fazem remissão anafórica, ou seja, que devem ser interpretados em dependência com algum segmento anteriormente expresso no texto. Esses sintagmas introduzidos por artigo definido comportam, então, informação velha ou dada (isto é, já conhecida, ou acessível a partir de um segmento precedente, ou mesmo inferível a partir dos contextos sociocognitivos partilhados).
Em (7), o demonstrativo “aquele” é um dêitico memorial ou recognitivo, visto que sua interpretação referencial pressupõe o acesso a um tipo de conhecimento experiencial e socioculturalmente compartilhado (Roncarati, 2010, p. 65). Em outras palavras, o uso do demonstrativo recognitivo pressupõe a seguinte condição: o interlocutor deve compartilhar com o locutor algum tipo de conhecimento calcado na experiência que, em última instância, é de base sociocultural. A compreensão do sintagma encetado por esse demonstrativo depende de que o interlocutor possa acessar em sua memória o saber a respeito do referente categorizado.
Necessário será identificar as posições ocupadas pelos determinantes relativamente ao núcleo do SN. Como podem ocorrer mais de três elementos à esquerda do núcleo, a posição 1 será ocupado pelo elemento mais afastado do núcleo; e a posição quatro, pelo elemento mais próximo. As posições 2 e 3 seguem a ordem numérica. Assim, temos



(8) Todos os últimos bons alunos foram aprovados no vestibular.
     P1   P2   P3    P4




A identificação das posições será importante quando da investigação do fenômeno de concordância no interior do SN. Considere-se, agora, a função de modificador.
No interior do SN, o modificador é o adjetivo ou um substantivo que preencha a função do adjetivo. A função de predicador pode também ser desempenhada por um grupo formado de preposição (em geral, “de”) e substantivo. Esse grupo é um sintagma preposicional (SP) encaixado no SN. Chamamos modificadores, portanto, as unidades que, articuladas ao núcleo de um SN, lhe acrescentam um ingrediente semântico. Semanticamente, os modificadores qualificam ou classificam o referente designado pelo substantivo que preenche a posição de núcleo do SN. Seguem-se os exemplos abaixo, nos quais se destacaram as duas formas de manifestação do modificador nominal: em (9), na forma de adjetivo; em (10), na forma de SP (sintagma preposicional).



(9) O anel dourado.

(10) O seu trabalho de história.



2.2. A marcação do plural no SN

Principalmente a partir de 1980, foram produzidos muitos estudos sobre a concordância de número no SN. Esses estudos apontam uma significativa variedade de padrões de concordância, não só em função do diversificado número de unidades que podem preencher o sintagma nominal, como também em função de fatores linguísticos e societários condicionantes.
Com vistas a examinar a questão, vou-me ater apenas às três primeiras, se bem que dispensarei especial atenção à primeira e à segunda, dentre as cinco variáveis consideradas pelos estudos. Essas cinco variáveis são as que se demonstraram mais relevantes na marcação do plural no SN. Seguem-se as variáveis:

1) alterações morfofonológicas decorrentes do mecanismo de flexão;
2) estruturação do SN;
3) características dos falantes (sexo, idade, nível de escolarização, origem urbana ou rural);
4) tipos de registro (formal ou informal);
5) modalidade da língua (falada ou escrita).



2.3. Alterações morfofonológicas e estruturação do SN


A classe de palavra e sua posição na estrutura do SN são variáveis importantes para o estabelecimento de padrões de concordância nominal. Não menos importante para a compreensão do referido fenômeno é considerar o princípio de saliência fônica, que se caracteriza pela maior ou menor identidade entre as formas singular e plural nos vocábulos.
Com base no princípio de saliência fônica, observou-se que as formas menos marcadas fonologicamente, ou seja, aquelas em que a diferença fônica entre singular e plural repousa apenas na presença do morfema de número [s], seriam mais suscetíveis de não apresentar a marca de número. Por outro lado, as formas mais marcadas para o plural tenderiam a apresentar a ocorrência da marca de plural. Considerem-se os seguintes exemplos que ilustram essa condicionante fonológica para a marcação de plural no SN:

(11) Ela levou os menino pra escola.

(12) Desenhou uns corações no caderno.




Em (11) e (12), destacou-se em negrito o núcleo do SN. Em (11), a marca de plural foi cancelada no núcleo (aparecendo apenas no determinante), em virtude de a marcação de plural no substantivo “menino” ser menos saliente, ou seja, essa marcação se faz apenas com o acréscimo da desinência de número [s]. Nesse caso, a tendência é pluralizar apenas o determinante e deixar no singular o núcleo do SN. Em (12), tanto o determinante quanto o substantivo núcleo foram pluralizados, porque, nesse caso, há maior saliência fônica na marcação de plural no substantivo, dado o fato de formas terminadas em “ão”, muita vez, sofrerem uma mudança morfofonológica maior quando flexionadas para o plural. No caso da palavra “coração”, o plural modifica a configuração fonológica da última sílaba “-ção”, que passa para “-ções”. O princípio de saliência fônica mostra que, nesse caso, quando se marca o plural, o que se ouve é outra configuração fonêmica.
Outro princípio, igualmente relevante, que tem sido levado em consideração por diversos estudos é o do paralelismo formal. Reza esse princípio que marcas acarretam marcas, e ausência de marca (marca-zero) leva à ausência de marca.
Assim, estando presente o morfema de plural [s], ele poderia condicionar a presença dessa marca nos demais elementos do SN. Analogamente, a ausência da marca num elemento do SN acarretaria a ausência da marca nos demais elementos. Senão, vejamos:

(13) TodoS  oS meuS livroS são novos.
                   Sintagma nominal

(14) Comprei oS livro didático.



O exemplo (13) ilustra a situação em que a presença da desinência [s] em todos os determinantes acarreta a sua presença no núcleo do SN “livros”. Esse é o padrão de flexão adotado pelos falantes das variedades de prestígio da língua, nas quais a marcação de plural se faz por redundância: marca-se o plural em todos os determinantes passíveis de flexão, o que leva a necessidade de pluralizar também o núcleo do SN. No exemplo (14), entretanto, ainda que a marca de plural ocorre no determinante, ela é cancelada no núcleo, o que implica seu cancelamento no modificador também. Os falantes que seguem esse padrão de concordância nominal não sentem a necessidade de operar com o princípio de redundância; eles apenas sinalizam que o SN está no plural marcando com [s] o primeiro elemento do sintagma. É importante dizer que eles não erram; apenas seguem outra regra ou padrão.
Conquanto variáveis como tonicidade do item no singularcontexto fonológico subsequente possam ser consideradas na compreensão da variabilidade dos padrões de concordância no SN, as que foram anteriormente mencionadas têm se demonstrado mais relevantes.
Voltarei a considerar aspectos estruturais do SN que se apresentam como fatores importantes na marcação de plural em seu interior. Agora, no entanto, refiro o resultado de um estudo que levou em conta variáveis sociais.





2.4. Variáveis sociais

Quando se consideram as variáveis sociais, é notável que, no Brasil, sobressaia o nível de escolaridade do falante, que é um marcador de sua classe social.
Almeida (1997) e Brandão & Almeida (1999), desenvolvendo pesquisas que coletavam registros de fala de indivíduos analfabetos com baixo nível de escolaridade (tendo no máximo a quarta série do ensino fundamental), em zonas rurais do Rio de Janeiro, constataram que chega a 87% a frequência com que se dá o cancelamento da marca de plural no núcleo do SN. Por outro lado, o cancelamento dessa marca nos determinantes e modificadores é menor: 4% naqueles; 21% nestes.
É necessário certo cuidado na interpretação desses dados, pois que uma série de condicionamentos se entrecruzam, do que resultam diferentes combinações de itens marcados/ não-marcados quanto ao número.

2.5. Revisitando aspectos estruturais

Volvendo olhares para a estruturação do SN novamente, é necessário considerar, em primeiro lugar, a complexidade da estruturação do SN, o qual pode se constituir de mais de três elementos suscetíveis de flexão, chegando a cinco, como se pode ver em (15):

(15) Todos os nossos últimos bons alunos ingressaram em universidades públicas.

No corpus de Almeida, figuram SNs com apenas dois elementos. Sendo estruturalmente mais simples, esses SNs ou apresentam todos os seus elementos flexionáveis com marca de plural, ou apenas o primeiro deles. Ressalte-se, todavia, que, uma vez ocorrendo o numeral no SN, é sistemático o cancelamento da marca de plural no núcleo. Os exemplos (16), (17) e (18), a seguir, ilustram casos de SN com um elemento apenas articulado ao núcleo ou com um numeral:

(16) As espadas são de ouro.

(17) A gente pesca em outraS lagoa.

(18) Ele tem três barco.

Os SNs que exibem mais de dois elementos, quer encerrem três, quer encerrem quatro, são, deveras, mais interessantes. A variedade dos padrões demanda nossa atenção.
Atendo-me aos elementos que se topam à esquerda do núcleo, há que destacar os seguintes padrões de concordância nominal:

a) havendo um e apenas um elemento flexionável antes do núcleo, esse elemento recebe a marca de plural. O núcleo, por sua vez, pode recebê-la ou não.

(19) As espinhas miúdas.
(20) Uns barco novo.

(21) Aquelas onda perigosa.

É claro que (19) ilustra o padrão que governa a concordância nominal nas variedades de prestígio da língua. Nas variedades de menor prestígio, o padrão é outro: marca-se o plural apenas no determinante, deixando no singular o núcleo.

b) ocorrendo dois constituintes pré-nucleares flexionáveis, o que ocupa a posição 1 recebe a marca, e o que ocupa a posição 2 pode recebê-la ou não:

(22) Todos os prato
(23) Todos esses dia.
(24) As própria rede.

Nos três exemplos, o núcleo é mantido no singular. A despeito da variabilidade da macação de plural nos determinantes, via de regra, a marca de plural aparece sempre no primeiro elemento. Pode-se estipular uma regra que parece estar sendo seguida, que se formaliza como: havendo dois determinantes flexionáveis no SN, é suficiente marcar o plural apenas no primeiro elemento. Note-se que a marca [s] pode ser cancelada no segundo elemento, como mostra o exemplo (24).

c) se o elemento pré-nuclerar se acha na posição 3, o cancelamento da marca é a norma.

(25) Os dois melhor mês.

Em (25), há três elementos antes do núcleo, e a regra parece prever o cancelamento da marca [s] apenas no terceiro elemento, o que ocupa a posição 3, a mais próxima do núcleo.

Quando se consideram os modificadores que se dispõem à direita do núcleo, ou seja, os elementos pós-nucleares, o padrão é o cancelamento da marca de número no modificador. Vejamos os exemplos abaixo:

(26) Uns barco novo.

(27) Umas nuvens cinzenta.

(28) Uns vinte ano passado.

Esses casos também ilustram a variabilidade comum à marcação de plural no interior do SN. Note-se que todos os determinantes aparecem no plural. Essa é uma regra que já vimos: havendo um elemento flexionável antes do núcleo, esse elemento é pluralizado. O núcleo, conforme vimos também, pode ou não receber a marca de plural: em (26) e (28), ele não apresenta a marca; apenas em (27), apresenta-a. Como, no entanto, estamos levando em consideração o que ocorre com o modificador, ou seja, com o adjetivo posposto ao núcleo do SN, inferimos daí que os falantes parecem estar seguindo um padrão bastante regular: o cancelamento sistemático da marca de plural no modificador pós-nuclear.
Cumpre ainda observar que a ocorrência de um numeral em qualquer das posições pré-nucleares é condição para o cancelamento de plural no elemento seguinte, conforme atestam os seguintes exemplos:


(29) Esses três tipo.

(30) Três outro garoto.

Outros estudos, levando em conta o cruzamento de variáveis tais como distribuição dos constituintes do SN e o tipo de marcas precedentes, atestaram que os elementos pré-nucleares tendem a ser atualizados com a marca de número, e os constituintes nucleares e pós-nucleares tendem a não apresentar a marca, muitas vezes, de modo categórico e independentemente de haver ou não marcas formais e/ou semânticas anteriormente enunciadas.
Considerando-se tão-só a distribuição dos constituintes, isto é, a ordem em que ocorrem, o cancelamento de marca verificou-s em 6,5% dos casos nos elementos pré-nucleares, 82% nos nucleares e 89% nos pós-nucleares.
Os casos visitados, nesta exposição, não esgotam a complexidade do fenômeno de concordância no SN. Outras estruturas oracionais, em que figuram SNs, como as construções predicativas e passivas com “ser” tiveram de ser colocadas fora do escopo de minhas preocupações, dadas as limitações de espaço. Não obstante, os casos examinados aqui revelam que o mecanismo de concordância nas variedades desprestigiadas da língua é extremamente complexo; é mais complexo do que o padrão seguido pelos falantes cultos, que tendem a estender a marca de plural a todos os elementos flexionáveis do SN.
Tendo em vista tudo que foi exposto, é importante frisar que os falantes que não seguem a marcação de plural por redundância, a que se verifica nas variedades formais da língua, não estão cometendo erros, mas seguindo outros padrões. Nas variedades desprestigiadas da língua, a operação de concordância depende não só da noção de conjunto extensiva ao SN, mas também da noção de subconjuntos que do SN se infere. Assim, ao conjunto de elementos que se acham à esquerda do núcleo, aplica-se, normalmente, a marca de plural; aos que se acha à direita, essa marca não é aplicada.










                    

segunda-feira, 27 de maio de 2013

"Amanhã, nós vamos se falar"


A gente não sabemos
O erro que ninguém vemos

Esta é uma cena que se repete todos os dias em nossa sociedade:

A – Eu tinha trago o caderno ontem.
B – (risos) Não se diz tinha trago. É errado. O certo é tinha trazido.

Nesta amostra representativa de uma situação de comunicação comum em nosso dia-a-dia, o falante A usa uma forma participial negativamente avaliada pelo falante B. A forma participial “trago” é classificada de “errada” pelo falante B, que enuncia a forma que acredita ser a certa – “tinha trazido”.
O que nem um nem outro sabem é quais as condições históricas que tornaram possível a eles acreditar que existem formas linguísticas certas e formas linguísticas erradas. Esses falantes, que representam a maioria esmagadora de nossa sociedade, acreditam que valores como “certo” e “errado” são intrínsecos às expressões linguísticas. Na verdade, como me esforçarei por mostrar, eles não fazem senão reproduzir uma tradição que, tendo mais de dois mil anos, congrega atitudes e práticas que visaram a estabelecer um padrão linguístico ideal calcado sobre a língua em que foram escritas as grandes obras literárias da Antiguidade Clássica. Vou apresentar, a seguir, sem pretender a exaustão, os desdobramentos históricos que levaram à constituição do que ficou conhecido por Gramática Tradicional (doravante, GT) entre nós, ocidentais.


Contando a História

1. A gramática tradicional

No Ocidente, foram os antigos gregos os primeiros a desenvolver reflexões sobre a linguagem. No século V a.C, as sementes de tal empreendimento encontraram no pensamento de Platão um terreno fértil. A ele coube a distinção entre ónoma (nome) e rhéma (verbo). Posteriormente, Aristóteles acrescentou a essas partes do discurso os syndesmoi (unidades gramaticais); mas foram os estóicos quem separou, nesse grupo, as formas variáveis (artigos e pronomes) das invariáveis (advérbios e conectivos). Mais tarde, no século II-I a.C, Dionísio da Trácia estabeleceu as oito categorias gramaticais, que compõem as classes de palavras de nossas gramáticas hoje (substantivo, adjetivo, advérbio, artigo, conjunção, preposição, numeral e verbo).
A gramática, como disciplina, surgiu entre os gregos para atender a dois propósitos: um, filológico, que consistia em estudar as produções literárias de grandes poetas e prosadores, para preservá-las, e em identificar as regras de uso da língua em que foram escritas; o outro, pedagógico, que consistia em estabelecer um padrão de língua que deveria ser ensinado aos cidadãos e seguido por eles (que eram homens (seres do sexo masculino) que tinham direito à educação e acesso à cultura letrada). Em sua obra A Vertente Grega da Gramática Tradicional (1987), a linguista Maria Helena de Moura Neves nota o seguinte:

“Toda uma situação cultural cerca esses fatos. A exigir a instalação de uma disciplina estão as condições peculiares da época helenística, marcada pelo confronto de culturas e de línguas, e pela consequente exacerbação do zelo pelo que então se considerava a cultura e a língua mais puras e elevadas”.
(p. 243)


Esse caráter da gramática se manteve entre os romanos, a quem coube divulgá-la. A situação não mudou na Idade Média. O latim era a lingua em que se escreviam as grandes obras da Europa medieval até o século XIII. A gramática passou a compor o trivium das instituições acadêmicas, ao lado da dialética e da retórica. Um abade, à época, escreveu a gramática “prepara a mente para entender tudo que possa ser ensinado por meio das palavras” (Azeredo, 2000: p. 17). O passo de Neves (1987), a seguir, lança luzes sobre as motivações que subjaziam ao trabalho dos gramáticos:

“Era para facilitar a leitura dos primeiros poetas gregos que os gramáticos publicavam comentários e tratados de gramática, que cumpriam duas tarefas: estabelecer e explicar a língua desses autores (pesquisa) e proteger da corrupção essa língua “pura” e “correta” (docência), já que a língua quotidianamente falada nos centros do helenismo era considerada corrompida. E, servindo à interpretação e à crítica, realizava-se o estudo metódico dos elementos da língua e compõe-se o que tradicionalmente seria qualificado como gramática”.
(pp. 104-5)


Como se pode ver, havia um sentimento elitista a guiar o trabalho desses gramáticos. A produção das gramáticas era impulsionada pela crença de que a língua falada pelas camadas populares era considerada “errada” ou “estropiada”.
Quando nos debruçamos sobre a GT, a primeira coisa que devemos reconhecer é que ela remonta à gramática grega. A GT é um fato da cultura helenística e representa os esforços para a preservação dessa cultura.
Desde sua origem, a GT se preocupou com o estabelecimento das regras consideradas as melhores para a língua escrita, para o que se baseou no uso que dela faziam aqueles que tinham prestígio na sociedade à época; eram eles, especialmente, os grandes escritores da literatura, entre os quais poetas e prosadores. O uso da lingua escrita literária serviu, portanto, originalmente, de modelo para uso “correto”, “adequado”, “bom” do grego.
Essa tradição, preocupada em estabelecer um padrão na base do qual o comportamento linguístico dos indivíduos deveria se modelar, começa a ganhar corpo entre os filólogos-gramáticos alexandrinos, no século III a.C. Nesse período, a Alexandria (que tinha esse nome devido ao seu fundador Alexandre, O Grande), era o principal centro irradiador da cultura clássica. Foi entre esses filólogos que a preocupação em estabelecer um padrão de uso calcado sobre a língua escrita e em eleger uma determinada variedade da língua como exemplar da língua “correta”, encontrou origem. A GT, portanto, tem clara orientação elitista. Ela reforça a variedade linguística da elite, que passa a ser valorada como boa e correta, silenciando, em contrapartida, as variedades usadas pelas camadas populares, que, por sua vez, eram consideradas “ruins” ou “erradas”.
Lyons chama de “erro clássico” a um acontecimento que envolveu os filólogos alexandrinos, ou melhor, pelo qual eles foram responsáveis: privilegiar a língua escrita dos grandes escritores, em detrimento da língua falada pelas camadas populares. Os filólogos alexandrinos opunham a fala à escrita de modo radical. Eles eram grandes apreciadores da produção literária do passado glorioso da Grécia clássica. Acreditavam que somente a língua escrita literária merecia atenção, análise, descrição e estudo e que somente ela poderia servir de modelo para a prescrição de normas do bem falar e escrever. Para esses estudiosos, a fala era caótica e desregrada, era lugar de erro e equívoco, ao passo que a escrita, vista como uma realidade homogênea, era clara e regulada. Duas línguas eram, então, contrapostas: a língua falada no dia-a-dia da Alexandria do século III a.C e a língua escrita literária da Atenas do século V a.C.
Foram os gramáticos alexandrinos, portanto, quem definiu o destino dos estudos gramaticais e da pedagogia das línguas por mais de dois mil anos – uma pedagogia ainda muito em voga em nossa sociedade atual. É com esses gramáticos que foi introduzido no pensamento linguístico ocidental as noções de “certo” e “errado”, com as quais são avaliados os usos da língua.
Dentre os discípulos dos gramáticos alexandrinos, destaque-se Varrão (séc. I a.C), cuja contribuição foi aplicar a gramática grega ao latim. Ele propôs uma gramática do latim padrão, chamado latim clássico, que se opunha ao latim vulgar – a variedade latina falada pelas classes populares da República e do Império Romano. Para ele, a gramática “é a arte de escrever e falar corretamente e compreender os poetas”.
Terminamos, pois, esta seção, referindo o seguinte passo de Weedwood, em História concisa da Linguística (2002), em que a autora esclarece-nos sobre o que é a GT:

“(...) a Gramática Tradicional, expressão que engloba um espectro de atitudes e métodos encontrados no período anterior ao advento da ciência linguística. A “tradição”, no caso, tem mais de 2000 anos de idade, e inclui os trabalhos dos gramáticos gregos e romanos da Antiguidade clássica, os autores do Renascimento e os gramáticos prescritivistas do século XVIII.”
(pp. 9-10)


É preciso insistir em que os estudos compreendidos pela GT são de orientação descritivo-prescritivista e tinham finalidade pedagógico-filológica. Na esteira dessa tradição, surge e se desenvolve a partir do século XX, com a publicação do Curso de Linguística Geral, de Ferdinand de Saussure, a Linguística, uma disciplina descritiva de orientação científica, cuja preocupação única é descrever e explicar o funcionamento e a estrutura da língua/linguagem. É bem verdade, entretanto, que as sementes de uma cientificidade na abordagem dos fenômenos linguísticos já se faziam presentes nas reflexões dos gramáticos histórico-comparativistas do século XIX.


2. Gramática normativa

Se, por um lado, a GT é o espírito, a mentalidade, a doutrina, o sistema de crenças, de valores, de reflexões que deram ensejo ao surgimento de uma disciplina e pedagogia de orientação prescritivo-normativista; por outro lado, a gramática normativa dá corpo à GT (Bagno, 2010). A gramática normativa constituirá um conjunto de regras que se destinam a fixar uma variedade ideal de excelência (a variedade padrão) da língua. A gramática normativa prescreve as regras dessa variedade, que devem ser seguidas pelos usuários que pretendam falar/escrever “corretamente”.
A gramática normativa se ocupa apenas com os fatos da língua padrão, da norma culta de uma língua. Essa norma se tornou oficial e prestigiosa para indivíduos num dado contexto sócio-histórico. A gramática normativa, de que nossas gramáticas escolares são exemplares, constitui um manual de regras para o bom uso da língua. Acompanhemos o que nos ensina Bagno, em sua Dramática da Língua Portuguesa (2010), ao nos esclarecer sobre o fato de a gramática normativa ter-se tornado um instrumento ideológico de poder e controle sociais:

“(...) Com a instrumentalização da gramática normativa em mecanismo ideológico de poder e controle de uma camada social sobre as demais, formou-se essa “falsa consciência” coletiva de que os usuários de uma língua é que precisam da gramática normativa, como fonte mística, invisível da qual emana a língua “bonita”, “correta” e “pura”. A língua ficou subordinada á gramática. O que não está na gramática normativa “não é português”, assim como as palavras que não estão no dicionário simplesmente não existem...”.
(p. 27)


Bagno nos ensina que, por um efeito ideológico, as pessoas, em geral, passam a acreditar que quem não domina as regras de uso prescritas pela gramática normativa não sabe falar português. Essas pessoas acreditam também que precisam da gramática para falar “corretamente” a sua língua materna. Daí que os usos não contemplados e abonados por essa gramática não são considerados pertencentes à língua portuguesa. Essas pessoas não se percebem mais como os verdadeiros agentes e construtores linguísticos; a língua não pertence à gramática, tampouco aos seus supostos guardiães; mas a todos os seus falantes nativos que dela se servem não só para interagir socialmente, mas também para construir, definir e reafirmar sua identidade (individual, linguística, social e cultural).
Carlos Franchi (2006) dá-nos a conhecer uma definição de gramática normativa bastante concisa e lúcida, que vale referir aqui:
“(...) é o conjunto sistemático de normas para bem falar e escrever, estabelecidas pelos especialistas, com base no uso da língua consagrado pelos bons escritores”.
(p. 16)


É importante perceber, na definição de gramática normativa, o valor assumido pelo uso da língua feito pelos considerados “bons escritores” da literatura tomados para modelo a partir do qual se determina uma língua padrão ou “correta”.
Quais são as razões por que determinadas formas e usos linguísticos são inseridos ou excluídos da norma de prestígio? Vejamo-las a seguir.
A primeira é de ordem estética. Nesse caso, são incluídas na norma as formas linguísticas consideradas elegantes, belas, eufônicas; e dela são excluídas as formas cacofônicas (boca dela), os pleonasmos viciosos (hoje em dia/ subir para cima), o eco, etc. A segunda é de ordem elitista. Esta está na base do preconceito e discriminação linguísticos. Nesse caso, contrapõe-se o uso da língua feito pelos indivíduos pertencentes às classes dominantes ao uso feito pelos indivíduos das classes dominadas. A terceira é de ordem política. Nesse caso, combatem-se os neologismos e os estrangeirismos. Valoriza-se a pureza do idioma e a vernaculidade. A quarta é de ordem comunicacional. Nesse caso, deve-se evitar a ambiguidade, o hermetismo, a imprecisão. Valoriza-se a busca pela clareza, a precisão, a fim de facilitar a compreensão. A quinta é de ordem histórica. Aqui tem peso a tradição. Deve-se evitar as inovações e valorizar as formas consagradas pelo uso feito pelos usuários da língua (escritores literários clássicos) considerados de excelência. Por essa razão é que se proscrevem formas como “vende-se carros” ou “custei a acreditar nele”.
Antes de por termo a esta seção, gostaria de distinguir aqui entre norma padrão e norma culta, com base em Bagno (2007, p. 107). A norma padrão não pertence à língua. É um modelo, uma entidade abstrata, uma forma ideológica que exerce grande poder simbólico no imaginário coletivo, mormente sobre o imaginário dos indivíduos mais escolarizados. A norma culta é a norma real que compreende as variedades linguísticas de prestígio, ou seja, as que são usadas pelos membros das camadas socioeconomicamente favorecidas da população. Seus usuários são definidos por critérios mais próximos à noção de cientificidade, quais sejam, antecedentes biográfico-culturais urbanos e grau de escolarização superior. No entanto, atento à problemática suscitada pelo uso do termo “culto” relativamente à “norma”, Bagno (p. 105) prefere falar em variedades de prestígio e variedades estigmatizadas. Assim, há diferentes normas, dentre as quais a norma de prestígio.


3. Linguagem, ideologia e discriminação


No trecho de Bagno, anteriormente citado, lemos sobre a transformação da gramática normativa num mecanismo ideológico de poder e controle sociais. Nesta seção, irei descer a pormenores sobre o papel desempenhado pela ideologia na legitimação de práticas e atitudes que visam a avaliar os padrões linguísticos em termos de noções como “certo” e “errado”. Ademais, examinarei, sem, contudo, ser exaustivo, as consequências sociais desse patrulhamento linguístico generalizado em nossa sociedade.
Assumirei a visão marxista de ideologia. Por ideologia entenderei, pois, um conjunto de crenças, valores e atitudes culturais que servem para justificar e legitimar o status quo. As ideologias, em geral, refletem os interesses de grupos dominantes e servem de meio para perpetuar sua dominação e privilégios. Elas produzem uma “falsa consciência”; são ilusões, abstrações e inversão da realidade. Na ideologia, a realidade assume a forma de aparecer social. No modo de representação ideológica, os indivíduos consideram o aparecer social como se fosse a realidade social mesma. A ideologia oculta à consciência dos indivíduos as verdadeiras causas de suas condições de existência.
Acrescente-se também que a ideologia consiste no processo pelo qual as ideias das classes dominantes se tornam as ideais dominantes numa dada conjuntura social. As ideias das classes dominantes se tornam, por força da ideologia, as ideias de todas as classes sociais. Isso é particularmente verdade quando observamos que avaliar o comportamento linguístico de outrem é prática comum aos indivíduos de todas as classes sociais. Essa prática, que expressa os interesses das classes dominantes, torna-se também uma prática dos indivíduos das classes subalternas. Sob o embotamento da consciência provocado pela ideologia, os indivíduos não se reconhecem mais como agentes responsáveis pelos processos sociais. Eles não percebem que a realidade de sua classe decorre da atividade de seus membros.
Na ideologia, dá-se a inversão entre as ideias e o real. Ao invés de o real explicar as ideias produzidas pela consciência (que é produto socioideológico) de indivíduos que se relacionam em condições de existência concretas, são as ideias que explicam o real. As ideias são decalcadas do real e passam a ter existência independentemente das condições sociais em que foram produzidas. Os indivíduos não mais percebem as condições sócio-históricas como a verdadeira causa de suas ideias. Eles imaginam que suas ideias independem de tais condições e que valem para todo o sempre. Na ideologia, a realidade aparece à consciência do sujeitos como algo dado, já pronto, acabado, para que seja simplesmente ordenado, classificado e julgado.
É, portanto, a ideologia que nos ajuda a explicar por que os indivíduos costumam avaliar as formas e usos linguísticos uns dos outros na base de noções como “certo” e “errado”. Em primeiro lugar, a ideologia mascara as condições sócio-históricas que explicam por que eles tendem a avaliar os padrões linguísticos em termos de “certo” e “errado”. Também é por meio dela que eles buscam, sem estar conscientes disso, justificar tal prática. A ideologia cristaliza a crença de que existem formas linguísticas essencialmente certas e formas linguísticas essencialmente erradas, mascarando o fato de que as noções de “certo” e “errado” tomam a forma de valores com que é julgado o comportamento linguístico dos indivíduos numa sociedade. Considerar certo um determinado uso e errado outro resulta de valoração social, em cuja origem se acha um forte sentimento de estratificação social.
Cumpre dizer algumas palavras sobre a noção de valor cultural. O valor, entendido no âmbito da da Antropologia Social, é uma ideia comum que sinaliza o modo como alguma coisa é classificada, tendo em conta desejabilidade, perfeição e mérito. Valorar é atribuir valores (bom, ruim, aceitável, desejável, etc.) a qualquer coisa. Valores podem servir virtualmente para classificar qualquer coisa, desde abstrações (lógica acima de intuição), a experiências e comportamentos. O que torna uma ideia um valor é seu uso para categorizar coisas em relação a outras. Portanto, quando se valora uma expressão linguística como errada, faz-se em relação a outra que é avaliada como “correta”.
A autoridade dos valores transcende o indivíduo, existe fora dele. Valores são partes importantes de todas as culturas, porquanto influenciam a maneira como as pessoas escolhem e como os sistemas sociais se desenvolvem e mudam.
É preciso, então, insistir, para o que serei enfático: as formas e usos linguísticos NÃO SÃO INERENTEMENTE certos ou errados; é a sociedade como um todo que atribui os valores de certo e errado às expressões linguísticas e, ao fazê-lo, refletem e reforçam os interesses das camadas sociais dominantes.
Outra lição importante: uma forma não é errada porque a gramática normativa diz que é errada; o que essa concepção mascara é que uma forma só é errada porque é produzida por membros de camadas sociais desprivilegiadas. Disso se segue que a avaliação é negativa apenas porque as formas linguísticas usadas por uma pessoa não correspondem ao ideal de correção atribuído ao comportamento linguístico de usuários mais prestigiados. As gramáticas normativas legitimam isso fazendo-nos crer que toda forma que não seja agasalhada pela norma avalizada por elas é “errada” e deve, por isso, ser evitada.
Uma política e pedagogia linguísticas comprometidas com o combate ao preconceito e a discriminação sociais, quase nunca percebidos nas práticas de uso da linguagem, devem orientar-se pelo reconhecimento de que a avaliação é essencialmente social e incide sobre o sujeito social. Não é propriamente a língua que está sendo avaliada, mas a pessoa que está usando a língua. Repito: os juízos de valor feitos sobre os usos linguísticos não são imanentes aos usos, mas resultam de relações sociais ou sócio-políticas marcadas por conflitos entre classes e que expressam interesses antagônicos. Assim é que, quando se avalia negativamente uma forma linguística como “trabaio” (típica de falantes da zona rural), avalia-se negativamente o seu usuário e, por extensão, toda a sua classe e origem sociocultural. Infelizmente, a grande maioria das pessoas ignora o fato de que toda palavra é uma arena de conflitos sociais e de que a língua é um lugar onde se encenam as lutas de classe com mais ou menos clareza.
Uma consciência clara do papel que desempenha o uso da língua no robustecimento do preconceito e da discriminação social está intrinsecamente ligada à percepção de que a língua é um poderoso instrumento de controle social, de manutenção e ruptura de vínculos sociais, de inclusão e exclusão, de constituição, legitimação, preservação e destruição de identidades individuais (Bagno, 2007).
A ideologia também ofusca a percepção do fato de que o uso da linguagem é inseparável das esferas de poder. Em Linguagem, Escrita e Poder (2003), Gnerre nos lembra o seguinte:

“A começar do nível mais elementar das relações com o poder, a linguagem constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder”.
(p. 22)
(ênfase minha)



O autor nos chama atenção para o papel desempenhado por certas linguagens especializadas, tais como a linguagem jurídica. Essas formas de linguagem excluem da comunicação as pessoas de comunidades linguísticas externas ao grupo que as usa. Além disso, elas servem para reafirmar a identidade dos membros desse grupo reduzido que tem acesso a elas. Segundo Gnerre,


“A linguagem pode ser usada para impedir a comunicação de informações para grandes setores da população. Todos nós sabemos quanto pode ser entendido das notícias políticas de um jornal Nacional por indivíduos de baixo nível de educação (...)”.
(p. 21)



Nesse caso, apenas os indivíduos já familiarizados com a linguagem usada e capazes de reconhecer os conteúdos associados às informações conseguirão compreender alguma coisa. Gnerre nos ensina que a variedade de prestígio incorpora conteúdos ideológicos que podem ser facilmente manipulados, uma vez que as formas às quais se ligam ficam imobilizadas (vejam-se as palavras democracia e ditadura), o que favorece a restrição da comunicação entre grupos que sabem a que domínio conceitual se prendem as palavras. Disso se segue que fica garantida a impossibilidade das grandes massas, não obstante estarem familiarizadas com a forma das palavras, não terem acesso ao significado delas atualizado contextualmente.


4. Há erros mais errados que outros

Gostaria de acrescentar algumas palavras, antes de pôr termo a este texto. Bagno nos mostra que, nas múltiplas práticas de valoração e discriminação de usos da língua, há erros que carreiam mais desaprovação do que outros. Em outras palavras, há erros que são mais percebidos do que outros, o que contribui para gerar uma situação sociolinguística de valoração e discriminação bastante hipócrita, visto que a mesma pessoa ou grupo que acusa “erros” na fala do outro, muita vez, não se dá conta de que também comete “erros”, embora sutis ou não reconhecidos como tais. É também com base nesse ideal de língua que muitas pessoas apreciam apontar erros na fala de personalidades públicas de quem esperam um comportamento linguístico adequado à norma de prestígio. O que essas pessoas não percebem é que, se tais personalidades fazem uso de formas desaprovadas pela gramática normativa é sinal de que tais formas já encontram abrigo na norma de prestígio, pois que quem faz a norma são os próprios usuários da língua (evidentemente, no caso da norma de prestígio, os que gozam de acesso à educação plena e à cultura letrada).
Ontem, assistindo ao RJ TV, uma repórter da Globo, durante uma reportagem, empregou, várias vezes, o verbo ter, no sentido de existir (tinha muitos buracos nesta rua). Se a repórter usa o verbo “ter” em tal caso, é porque esse uso já é parte da norma entre os falantes mais escolarizados. Ou seja, é já um uso abonado na norma de prestígio, em que pese os resmungos desabonadores de gramtiqueiros de plantão. O uso do verbo “ter”, no sentido de “existir”, é normal no português brasileiro e figura na fala de muita gente bem educada de nosso país. Não há razões para condená-lo. A língua varia e muda, segue sua deriva. É claro que os usos linguísticos sofrem pressões que vão na direção da inovação, que tende à mudança, e da conservação, que tende a refrear a mudança. Lembro novamente que a língua é palco de conflitos.
A mesma pessoa que condena uma forma como “Eu preocupo com você” ou uma forma como “Nós se vemos amanhã” usará, normalmente, “Custei a acreditar que isso era verdade” ou “O ônibus que eu entrei estava lotado”. São justamente as formas usadas por indivíduos que não pertencem à sua classe social, que não gozam dos privilégios dessa classe, que ela condena. São formas que ela não usa; no entanto, usa também formas que, se estivesse realmente preocupada em basear seu comportamento linguístico pelo padrão prescrito pela gramática, deveria evitar. Em “custei a acreditar...”, reza a tradição que o verbo “custar” tem de ser construído com sujeito “oracional” e que deve preservar seu sentido original de ‘ser dificultoso’ (cf. Custa-me acreditar...). Em “custa-me acreditar”, o sujeito é a oração de infinitivo “acreditar” e o “me” é o objeto indireto (a mim, a alguém). Já em “custei a acreditar”, uso corrente, embora ainda mal avaliado por vários indivíduos das classes dominantes (e, certamente, por professores e profissionais da linguagem antiquados e ultra-conservadores), o verbo “custar” tem a acepção de “demorar para”, “levar tempo”. Sintaticamente, ele rege a preposição “a” e se acompanha, portanto, de um objeto indireto. Já em “O ônibus que eu entrei estava lotado”, temos uma forma chamada de “cortadora”, já que, com a supressão da preposição “em” regida por “entrar”, a função sintática correspondente a “o ônibus” na oração introduzida por “que” não é atualizada (O ônibus estava lotado / Eu entrei (que)). Analogamente, é possível ocorrer “O ônibus que eu entrei nele estava lotado”, caso em que figura o constituinte “nele”, introduzido para retomar a forma “ônibus” na função de adverbial locativo. O “que” é destituído de sua função como pronome relativo e passa a funcionar como conectivo apenas. A função anafórica é desempenhada pelo constituinte “nele” que “copia” o sujeito “o ônibus” da oração principal na função adverbial na oração introduzida por “que”.
Outros exemplos:

O carro que eu andei nele era um fusca.
O menino que eu falei era irmão de minha amiga

O homem que o filho dele falou comigo conhece meu pai.