Um
caso de variação linguística
A marcação de plural no
sintagma nominal
“A
começar do nível mais elementar de relações com o poder, a linguagem constitui
o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder”
(Maurizio
Gnerre)
O tema deste texto recobre um fenômeno linguístico do qual se
ocupa, com especial interesse, a sociolinguística. Tenciono dar a saber e
discutir um caso de variação linguística a partir da análise da manifestação de
concordância no interior do sintagma nominal.
Inicialmente, contudo, considerarei alguns conceitos
sociolinguísticos pressupostos pela análise. Antes de apresentá-los, refiro um
passo do linguista Marcos Bagno (2011), com o qual, na sua Gramática
Pedagógica do Português, nos adverte que a reação à mudança
linguística é uma característica comum a todas as culturas humanas.
“A reação
à mudança linguística é um traço universal das culturas humanas. A língua está
de tal forma entranhada em cada um de nós que imaginar que ela um dia deixará
de ser o que é se revela uma ideia insuportável, uma noção capaz de causar, em
muitas pessoas, mesmo que inconscientemente, um medo quase semelhante ao medo
de morrer. Porque a mudança da língua é, de fato, a morte da língua tal como
uma geração de falantes a conhece (muito embora a língua esteja também, a todo
instante, além de morrendo, renascendo) (...)”. (Bagno, 2011, p. 116)
Malgrado o exagero com que chega a comparar o medo da morte com o
medo de uma suposta depravação da língua, Bagno permite-nos dizer que, se a
reação à mudança linguística é um fato universal atestado em todas as
sociedades, a variação e a mudança linguísticas também o são. Nenhuma língua
natural permanece inalterável ao longo do tempo. Todas as línguas do mundo são
perpassadas, essencialmente, pela diversidade de usos. Variação e mudança são
fenômenos inerentes à realidade linguística. As línguas são dinâmicas, porque
dinâmicas são as sociedades em que elas são usadas; as línguas variam e mudam,
porque também variam e mudam as sociedades das quais aquelas são a base
fundamental. A mesma ideia pode expressar-se na observação de que as línguas
são fenômenos históricos, instituições culturais. Ora, nem a história, nem as
culturas humanas permanecem inalteráveis. As línguas, portanto, não só
acompanham as transformações histórico-culturais (também sociais, políticas,
econômicas...), como também as expressam.
A sociolinguística é uma das subáreas da
Linguística e se ocupa com o uso social da língua no interior das comunidades
de fala. A sociolinguística concentra sua atenção na correlação entre fatores
linguísticos e fatores sociais que influenciam o uso da língua. Ela se situa no
espaço interdisciplinar, na fronteira entre língua e sociedade, procurando dar
conta, de modo especial, das ocorrências linguísticas concretas que comportam
um caráter heterogêneo.
1. A noção de
“erro” linguístico
Do ponto de vista sociolingüístico, o que, vulgarmente, se chama
de “erro linguístico” baseia-se numa avaliação negativa que, não sendo de ordem
linguística, é estritamente calcada sobre o valor social atribuído
ao falante, considerando sua classe socioeconômica, seu grau de escolarização,
seus antecedentes geográficos, sua maior ou menor participação nas esferas de
poder, seu sexo, sua cor de pele e outros preconceitos culturais e
socioeconômicos.
O suposto “erro” linguístico desencadeia, infelizmente, uma série
de avaliações negativas sobre o falante e supõe uma cadeia de causas e
consequências que, por ser de natureza ideológica, é, necessariamente, falsa:
quem fala errado, pensa errado, age errado, não é estimável e confiável, etc.
Uma lição elementar da sociolinguística é que não há variação
linguística sem alguma avaliação social. Numa sociedade tão fortemente
hierarquizada como a sociedade brasileira, todos os valores culturais e bens
simbólicos se situam também em escalas hierárquicas que se organizam segundo
valorações como “bom”, “ruim”, “certo”, “errado”, “feio”, “bonito”, etc. A
língua é o bem simbólico mais importante de uma sociedade, e seu uso, portanto,
é submetido àquelas escalas hierárquicas de valoração.
Não menos importante é levar em consideração o fato de que, entre
as formas de uso valoradas como “erradas”, há formas que se consideram mais
“erradas” do que outras. A medida da gravidade desses “erros” é inversamente
proporcional à escala de prestígio social: quanto menos
prestigiado socialmente é o usuário da língua; quanto menor é seu nível
socioeconômico, maior é a gravidade atribuída aos supostos “erros” de sua fala.
Não custa insistir em que as valorações positivas ou negativas que
recaem sobre os usos linguísticos assentam em pressupostos, orientados
ideologicamente, sobre a origem sócio-cultural e econômica dos falantes.
Ademais, a classificação das variedades linguísticas em “certas” e “erradas” se
faz com base em critérios políticos e ideológicos. Quem detém o poder dispõe
das condições pelas quais pode impor (e impõe) a sua variedade linguística como
aquela pela qual se deve pautar o comportamento linguístico de todos os membros
da sociedade.
Como toda seleção implica exclusão, todas as demais variedades
linguísticas dos grupos dominados serão tomadas como variedades “erradas”,
“imperfeitas”, “inadequadas” e serão designadas com termos que carreiam grande
teor de pejoratividade.
Destarte, quando os linguistas observam que não há usos
linguísticos “certos” e “errados” em si, estão chamando a atenção para o fato
de que “certo” e “errado” não são defeitos das formas linguísticas, mas efeitos
da valoração socioideológica a que não só elas são submetidas, como também,
mormente, seus usuários. Quem discrimina o modo de falar de alguém está
discriminando, na realidade, a pessoa que fala e, por extensão, a classe social
a que ela pertence. Por isso, o preconceito linguístico é,
fundamentalmente, um preconceito social.
1.1. Heterogeneidade e unidade na língua
Todas as sociedades são constituídas por segmentos que atuam como
forças em direção à mudança ou em direção à conservação do status quo.
Os segmentos dominantes social, política, econômica e ideologicamente adotam a
segunda direção: estão interessados na conservação do status quo. A
língua, na medida em que é uma realidade social, encontra-se, permanentemente,
suscetível à pressão dessas duas forças: uma que impulsiona a variação e a
mudança; outra que pressiona no sentido de manter a unidade, refreando a
variação. Há, portanto, uma tensão constante e interação entre essas duas
forças antagônicas, donde resulta que as línguas exibem inovações, conservando,
contudo, sua coesão interna.
A noção de comunidade linguística é dependente da convergência de
padrões estruturais e estilísticos. Portanto, a comunidade linguística deve sua
existência ao impulso que conduz à manutenção da unidade.
A variação ocorre em consonância com as propriedades sistêmicas da
língua e se efetua porque é contextualizada e regular. Todas as línguas
mantêm-se numa espécie de equilíbrio instável, porque, de um lado, exibem,
fundamentalmente, uma pluralidade de usos, uma diversidade de formas de
expressão que se realizam segundo padrões regulares; de outro lado, conservam
padrões, que, por não variarem, se dizem categóricos, e que contribuem para
produzir a coesão interna do sistema linguístico, sem a qual não haveria
possibilidade de intercomunicação entre os falantes de comunidades de fala
diferentes. Além disso, insisto em que a variação é ordenada, ela se submete a
regras previstas pela gramática da língua.
1.2. Sistematicidade, legitimidade e estigmatização
Do ponto de vista da ciência linguística, todos os usos
linguísticos são legítimos e se prestam à previsibilidade, em que pese às
variações estilísticas.
É importante reconhecer que todos os padrões linguísticos se
prestam à avaliação social, que pode ser positiva ou negativa, o que os torna indicadores do tipo de inserção social do falante. As formas que recebem maior
valor social são aquelas que se fazem acompanhar de um alto grau de
monitoramento e de letramento. Às formas de maior prestígio se associam maior
sensibilidade, percepção e planejamento linguístico.
Não se ignore o fato de que a diversidade linguística se distribui
num continuum. Assim, os falantes adquirem primeiro as variantes
informais e, num processo sistemático e gradativo, vão apropriando-se de
registros mais formais, que se aproximam das variedades de maior prestígio.
Todas as línguas, portanto, apresentam variantes mais prestigiadas
do que outras. E entre as formas desprestigiadas, algumas são mais
estigmatizadas do que outras, em virtude da classe social de seus usuários, os
quais já são alvo de estigmatização em termos socioeconômicos e culturais.
1.3. Variação linguística: variantes e variáveis
A variação linguística, conforme deve ter ficado claro, é um
fenômeno universal. A variação se manifesta por meio de formas linguísticas alternativas
denominadas de variantes.
Variantes são, portanto, grosso modo, as diversas
formas alternativas de se dizer a mesma coisa. Essas formas alternativas
constituem um fenômeno variável.
Existem variáveis dependentes sempre que o
uso das variantes for influenciado por variáveis, quer de natureza interna à
língua, quer de natureza social (externa). Essas variáveis ou grupo de fatores
que podem ser de natureza estrutural (interna à língua) ou de natureza social
chamam-se variáveis independentes. Elas exercem pressão
sobre os usos acarretando o aumento ou a diminuição de ocorrência das variantes.
Cumpre enfatizar que as variáveis recobrem tanto o fenômeno em
variação quanto o grupo de fatores. Esses grupos de fatores são parâmetros
reguladores dos fenômenos variáveis e condicionam positiva ou negativamente o
uso das formas variantes.
2.
A marcação de plural no
sintagma nominal
2.1. O Sintagma nominal: definição e estrutura
O sintagma nominal é um constituinte
oracional formado, necessariamente, de um substantivo ou palavra suscetível de
ocupar a posição própria do substantivo, que é a de núcleo do
sintagma nominal. Doravante, usarei a abreviação SN para representar o
sintagma nominal. Todo SN é, portanto, uma unidade significativa da oração e
terá como núcleo uma palavra de natureza morfológica substantiva. O SN pode
constituir-se de seu núcleo apenas, ou pode, além do núcleo, encerrar outras
unidades articuladas a ele. Vejam-se dois exemplos que ilustram as duas formas
de estruturação do SN: em (1), com apenas o núcleo; em (2), com elementos
articulados ao núcleo.
(1) São Paulo é a maior cidade brasileira.
SN
núcleo
(2) Este meu anel de ouro.
Núcleo
Em (2), toda a unidade “Este meu anel de ouro” corresponde ao
sintagma nominal, cujo núcleo é “anel”. A esse núcleo, se acham articulados os
elementos “este”, “meu” e “de ouro”. Em (1), a extensão do SN se reduz ao seu
núcleo.
As unidades que se articulam ao núcleo do SN cumprem a função
sintática de determinantes ou de modificadores. Os
determinantes se dispõem à esquerda do núcleo; e os modificadores podem
prender-se à esquerda (no caso dos adjetivos que admitem anteposição ao
substantivo), mas, frequentemente, se articulam à direita do núcelo.
Considerem-se os exemplos abaixo (o asterisco marca a
inaceitabilidade da construção e a interrogação a dúvida quanto à sua
aceitabilidade):
(3) Este meu anel dourado
* Este meu dourado anel
(4) Este excelente artigo histórico
* Este excelente histórico artigo
(5) Os três meninos simpáticos
Os três simpáticos meninos
(?)
Urge definir os determinantes e os predicadores. Começo por
responder à questão: o que são determinantes? A função
sintática dos determinantes é desempenhada por unidades que se articulam à
esquerda do substantivo, quer para identificar sua referência tendo em vista a
situação espaço-temporal, quer para fixar-lhe o estatuto informacional, quer
ainda para delimitar seu número. O grupo dos determinantes abriga: os artigos (definidos
e indefinidos), os pronomes possessivos, demonstrativos, indefinidos e
os numerais ordinais e cardinais. Nesse grupo,
também devemos incluir o pronome relativo “cujo”, que não nos interessará na
presente discussão.
A classe dos determinantes é sintático e semanticamente
heterogênea. Veja-se, a título de exemplificação, o comportamento
semântico-pragmático do artigo definido e do pronome demonstrativo, nos
sintagmas nominais destacados, nas frases abaixo:
(6) Dois homens encapuzados roubaram uma joalheria, mas os
bandidos foram presos assim que deixaram o local.
(7) Nunca mais vi aquela moça que conheci naquela
festa.
Em (6), o sintagma “os bandidos” comporta uma informação já dada,
ou seja, faz remissão ao segmento “dois homens encapuzados”, anteriormente
expresso. O artigo definido cumpre aí a função de indicar que a informação
veiculada no sintagma que introduz é já conhecida do interlocutor/leitor. Por
ocasião da leitura, o leitor constrói um modelo textual, que é uma
representação mental que toma forma com base no texto e que funciona como uma
memória partilhada e publicamente alimentada pelo próprio texto. Assim, uma vez
introduzido no modelo textual do leitor um referente (ainda não mencionado),
este passa a ter o estatuto “ativo”, porque sob o foco da memória de trabalho,
é o que sucede em (6). A introdução do referente “dois homens encapuzados”
torna-o passível de reativação, situação que se dá com a introdução do sintagma
encetado pelo artigo definido “os bandidos”. O primeiro referente introduzido
passa a preencher um “nódulo” no modelo conceitual do mundo textual construído.
Nesse sentido, o artigo definido, que preenche a função sintática de
determinante do SN “os bandidos”, é índice de identificabilidade do referente,
ou seja, ele marca o estatuto informacional do referente como “identificável”
ou acessível no modelo textual. Esse estatuto é garantido pelo compartilhamento
de conhecimentos entre o locutor e o seu interlocutor. Em suma, o artigo
definido é usado, sistematicamente, em sintagmas nominais que fazem remissão
anafórica, ou seja, que devem ser interpretados em dependência com algum
segmento anteriormente expresso no texto. Esses sintagmas introduzidos por
artigo definido comportam, então, informação velha ou dada (isto é, já
conhecida, ou acessível a partir de um segmento precedente, ou mesmo inferível
a partir dos contextos sociocognitivos partilhados).
Em (7), o demonstrativo “aquele” é um dêitico memorial ou
recognitivo, visto que sua interpretação referencial pressupõe o acesso a
um tipo de conhecimento experiencial e socioculturalmente compartilhado
(Roncarati, 2010, p. 65). Em outras palavras, o uso do demonstrativo
recognitivo pressupõe a seguinte condição: o interlocutor deve compartilhar com
o locutor algum tipo de conhecimento calcado na experiência que, em última
instância, é de base sociocultural. A compreensão do sintagma encetado por esse
demonstrativo depende de que o interlocutor possa acessar em sua memória o
saber a respeito do referente categorizado.
Necessário será identificar as posições ocupadas pelos
determinantes relativamente ao núcleo do SN. Como podem ocorrer mais de três
elementos à esquerda do núcleo, a posição 1 será ocupado pelo elemento mais
afastado do núcleo; e a posição quatro, pelo elemento mais próximo. As posições
2 e 3 seguem a ordem numérica. Assim, temos
(8) Todos os últimos bons alunos foram
aprovados no vestibular.
P1 P2
P3 P4
A identificação das posições será importante quando da
investigação do fenômeno de concordância no interior do SN. Considere-se,
agora, a função de modificador.
No interior do SN, o modificador é o adjetivo ou um substantivo
que preencha a função do adjetivo. A função de predicador pode também ser
desempenhada por um grupo formado de preposição (em geral, “de”) e substantivo.
Esse grupo é um sintagma preposicional (SP) encaixado no SN. Chamamos modificadores,
portanto, as unidades que, articuladas ao núcleo de um SN, lhe acrescentam um
ingrediente semântico. Semanticamente, os modificadores qualificam ou
classificam o referente designado pelo substantivo que preenche a posição de
núcleo do SN. Seguem-se os exemplos abaixo, nos quais se destacaram as duas
formas de manifestação do modificador nominal: em (9), na forma de adjetivo; em
(10), na forma de SP (sintagma preposicional).
(9) O anel dourado.
(10) O seu trabalho de história.
2.2. A marcação do plural no SN
Principalmente a partir de 1980, foram produzidos muitos estudos
sobre a concordância de número no SN. Esses estudos apontam uma significativa
variedade de padrões de concordância, não só em função do diversificado número
de unidades que podem preencher o sintagma nominal, como também em função de
fatores linguísticos e societários condicionantes.
Com vistas a examinar a questão, vou-me ater apenas às três
primeiras, se bem que dispensarei especial atenção à primeira e à segunda,
dentre as cinco variáveis consideradas pelos estudos. Essas cinco variáveis são
as que se demonstraram mais relevantes na marcação do plural no SN. Seguem-se
as variáveis:
1) alterações morfofonológicas decorrentes do mecanismo de
flexão;
2) estruturação do SN;
3) características dos falantes (sexo, idade, nível de
escolarização, origem urbana ou rural);
4) tipos de registro (formal ou informal);
5) modalidade da língua (falada ou escrita).
2.3. Alterações morfofonológicas e estruturação do SN
A classe de palavra e sua posição na estrutura do SN são variáveis
importantes para o estabelecimento de padrões de concordância nominal. Não
menos importante para a compreensão do referido fenômeno é considerar o
princípio de saliência fônica, que se caracteriza pela maior
ou menor identidade entre as formas singular e plural nos vocábulos.
Com base no princípio de saliência fônica, observou-se que as
formas menos marcadas fonologicamente, ou seja, aquelas em que a diferença
fônica entre singular e plural repousa apenas na presença do morfema de número
[s], seriam mais suscetíveis de não apresentar a marca de número. Por outro
lado, as formas mais marcadas para o plural tenderiam a apresentar a ocorrência
da marca de plural. Considerem-se os seguintes exemplos que ilustram essa condicionante
fonológica para a marcação de plural no SN:
(11) Ela levou os menino pra escola.
(12) Desenhou uns corações no caderno.
Em (11) e (12), destacou-se em negrito o núcleo do SN. Em (11), a
marca de plural foi cancelada no núcleo (aparecendo apenas no determinante), em
virtude de a marcação de plural no substantivo “menino” ser menos saliente, ou
seja, essa marcação se faz apenas com o acréscimo da desinência de número [s].
Nesse caso, a tendência é pluralizar apenas o determinante e deixar no singular
o núcleo do SN. Em (12), tanto o determinante quanto o substantivo núcleo foram
pluralizados, porque, nesse caso, há maior saliência fônica na marcação de
plural no substantivo, dado o fato de formas terminadas em “ão”, muita vez,
sofrerem uma mudança morfofonológica maior quando flexionadas para o plural. No
caso da palavra “coração”, o plural modifica a configuração fonológica da
última sílaba “-ção”, que passa para “-ções”. O princípio de saliência fônica
mostra que, nesse caso, quando se marca o plural, o que se ouve é outra
configuração fonêmica.
Outro princípio, igualmente relevante, que tem sido levado em
consideração por diversos estudos é o do paralelismo formal.
Reza esse princípio que marcas acarretam marcas, e ausência de marca
(marca-zero) leva à ausência de marca.
Assim, estando presente o morfema de plural [s], ele poderia
condicionar a presença dessa marca nos demais elementos do SN. Analogamente, a
ausência da marca num elemento do SN acarretaria a ausência da marca nos demais
elementos. Senão, vejamos:
(13) TodoS oS meuS livroS são
novos.
Sintagma nominal
(14) Comprei oS livro didático.
O exemplo (13) ilustra a situação em que a presença da desinência
[s] em todos os determinantes acarreta a sua presença no núcleo do SN “livros”.
Esse é o padrão de flexão adotado pelos falantes das variedades de prestígio da
língua, nas quais a marcação de plural se faz por redundância: marca-se o
plural em todos os determinantes passíveis de flexão, o que leva a necessidade
de pluralizar também o núcleo do SN. No exemplo (14), entretanto, ainda que a
marca de plural ocorre no determinante, ela é cancelada no núcleo, o que
implica seu cancelamento no modificador também. Os falantes que seguem esse
padrão de concordância nominal não sentem a necessidade de operar com o
princípio de redundância; eles apenas sinalizam que o SN está no plural
marcando com [s] o primeiro elemento do sintagma. É importante dizer que eles
não erram; apenas seguem outra regra ou padrão.
Conquanto variáveis como tonicidade do item no singular, contexto
fonológico subsequente possam ser consideradas na
compreensão da variabilidade dos padrões de concordância no SN, as que foram
anteriormente mencionadas têm se demonstrado mais relevantes.
Voltarei a considerar aspectos estruturais do SN que se apresentam
como fatores importantes na marcação de plural em seu interior. Agora, no
entanto, refiro o resultado de um estudo que levou em conta variáveis
sociais.
2.4. Variáveis sociais
Quando se consideram as variáveis sociais, é notável que, no
Brasil, sobressaia o nível de escolaridade do falante, que é
um marcador de sua classe social.
Almeida (1997) e Brandão & Almeida (1999), desenvolvendo
pesquisas que coletavam registros de fala de indivíduos analfabetos com baixo
nível de escolaridade (tendo no máximo a quarta série do ensino fundamental),
em zonas rurais do Rio de Janeiro, constataram que chega a 87% a frequência com
que se dá o cancelamento da marca de plural no núcleo do SN. Por outro lado, o
cancelamento dessa marca nos determinantes e modificadores é menor: 4%
naqueles; 21% nestes.
É necessário certo cuidado na interpretação desses dados, pois que
uma série de condicionamentos se entrecruzam, do que resultam diferentes
combinações de itens marcados/ não-marcados quanto ao número.
2.5. Revisitando aspectos estruturais
Volvendo olhares para a estruturação do SN novamente, é necessário
considerar, em primeiro lugar, a complexidade da estruturação do SN, o qual
pode se constituir de mais de três elementos suscetíveis de flexão, chegando a
cinco, como se pode ver em (15):
(15) Todos os nossos últimos bons alunos ingressaram
em universidades públicas.
No corpus de Almeida, figuram SNs com apenas dois
elementos. Sendo estruturalmente mais simples, esses SNs ou apresentam todos os
seus elementos flexionáveis com marca de plural, ou apenas o primeiro deles.
Ressalte-se, todavia, que, uma vez ocorrendo o numeral no SN, é sistemático o
cancelamento da marca de plural no núcleo. Os exemplos (16), (17) e (18), a
seguir, ilustram casos de SN com um elemento apenas articulado ao núcleo ou com
um numeral:
(16) As espadas são de ouro.
(17) A gente pesca em outraS lagoa.
(18) Ele tem três barco.
Os SNs que exibem mais de dois elementos, quer encerrem três, quer
encerrem quatro, são, deveras, mais interessantes. A variedade dos padrões
demanda nossa atenção.
Atendo-me aos elementos que se topam à esquerda do núcleo, há que
destacar os seguintes padrões de concordância nominal:
a) havendo um e apenas um elemento flexionável antes do
núcleo, esse elemento recebe a marca de plural. O núcleo, por sua vez, pode recebê-la
ou não.
(19) As espinhas miúdas.
(20) Uns barco novo.
(21) Aquelas onda perigosa.
É claro que (19) ilustra o padrão que governa a concordância
nominal nas variedades de prestígio da língua. Nas variedades de menor
prestígio, o padrão é outro: marca-se o plural apenas no determinante, deixando
no singular o núcleo.
b) ocorrendo dois constituintes pré-nucleares
flexionáveis, o que ocupa a posição 1 recebe a marca, e o que ocupa a posição 2
pode recebê-la ou não:
(22) Todos os prato
(23) Todos esses dia.
(24) As própria rede.
Nos três exemplos, o núcleo é mantido no singular. A despeito da
variabilidade da macação de plural nos determinantes, via de regra, a marca de
plural aparece sempre no primeiro elemento. Pode-se estipular uma regra que
parece estar sendo seguida, que se formaliza como: havendo dois determinantes
flexionáveis no SN, é suficiente marcar o plural apenas no primeiro elemento.
Note-se que a marca [s] pode ser cancelada no segundo elemento, como mostra o
exemplo (24).
c) se o elemento pré-nuclerar se acha na posição 3, o
cancelamento da marca é a norma.
(25) Os dois melhor mês.
Em (25), há três elementos antes do núcleo, e a regra parece
prever o cancelamento da marca [s] apenas no terceiro elemento, o que ocupa a
posição 3,
a mais próxima do núcleo.
Quando se consideram os modificadores que se dispõem à direita do
núcleo, ou seja, os elementos pós-nucleares, o padrão é o cancelamento da marca
de número no modificador. Vejamos os exemplos abaixo:
(26) Uns barco novo.
(27) Umas nuvens cinzenta.
(28) Uns vinte ano passado.
Esses casos também ilustram a variabilidade comum à marcação de
plural no interior do SN. Note-se que todos os determinantes aparecem no
plural. Essa é uma regra que já vimos: havendo um elemento flexionável antes do
núcleo, esse elemento é pluralizado. O núcleo, conforme vimos também, pode ou
não receber a marca de plural: em (26) e (28), ele não apresenta a marca;
apenas em (27), apresenta-a. Como, no entanto, estamos levando em consideração
o que ocorre com o modificador, ou seja, com o adjetivo posposto ao núcleo do
SN, inferimos daí que os falantes parecem estar seguindo um padrão bastante
regular: o cancelamento sistemático da marca de plural no modificador
pós-nuclear.
Cumpre ainda observar que a ocorrência de um numeral em qualquer
das posições pré-nucleares é condição para o cancelamento de plural no elemento
seguinte, conforme atestam os seguintes exemplos:
(29) Esses três tipo.
(30) Três outro garoto.
Outros estudos, levando em conta o cruzamento de variáveis tais
como distribuição dos constituintes do SN e o tipo de
marcas precedentes, atestaram que os elementos pré-nucleares tendem a ser
atualizados com a marca de número, e os constituintes nucleares e pós-nucleares
tendem a não apresentar a marca, muitas vezes, de modo categórico e
independentemente de haver ou não marcas formais e/ou semânticas anteriormente
enunciadas.
Considerando-se tão-só a distribuição dos constituintes, isto é, a
ordem em que ocorrem, o cancelamento de marca verificou-s em 6,5% dos casos nos
elementos pré-nucleares, 82% nos nucleares e 89% nos pós-nucleares.
Os casos visitados, nesta exposição, não esgotam a complexidade do
fenômeno de concordância no SN. Outras estruturas oracionais, em que figuram
SNs, como as construções predicativas e passivas com “ser” tiveram de ser
colocadas fora do escopo de minhas preocupações, dadas as limitações de espaço.
Não obstante, os casos examinados aqui revelam que o mecanismo de concordância
nas variedades desprestigiadas da língua é extremamente complexo; é mais
complexo do que o padrão seguido pelos falantes cultos, que tendem a estender a
marca de plural a todos os elementos flexionáveis do SN.
Tendo em vista tudo que foi exposto, é importante frisar que os
falantes que não seguem a marcação de plural por redundância, a que se verifica
nas variedades formais da língua, não estão cometendo erros, mas seguindo
outros padrões. Nas variedades desprestigiadas da língua, a operação de
concordância depende não só da noção de conjunto extensiva ao SN, mas também da
noção de subconjuntos que do SN se infere. Assim, ao conjunto de elementos que
se acham à esquerda do núcleo, aplica-se, normalmente, a marca de plural; aos
que se acha à direita, essa marca não é aplicada.