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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Décadence - uma degeneração da vontade

                              


As duas negações do imoralista


Nietzsche não pretendeu destruir toda e qualquer moral, tampouco preconizou que devemos viver sem moral. Nietzsche edificou uma crítica corrosiva contra uma espécie de moral e um tipo de homem produzido por ela. Uma passagem emblemática de Ecce Homo dá-nos a conhecer a espécie de moral e o tipo de homem que estavam na mira da crítica destrutiva nietzschiana:

No fundo são duas negações que a minha palavra imoralista encerra. Eu nego, por um lado, um tipo de homem considerado até agora como supremo, os bons, os benévolos, os benéficos; nego, por outro lado, uma espécie de moral que, por sua autoridade e supremacia, apareceu como a moral em si– a moral de decadência, em termos mais precisos, a moral cristã.[1] (ênfases nossas).


Nietzsche foi, portanto, um crítico mordaz da moral cristã, que viria a entronizar em Deus todos os valores assumidos como superiores, e de um tipo de homem por ela produzido, o tipo decadente. A forma fatigada do niilismo já estava prefigurada nessa tradição moral. O tipo cristão é um tipo de homem cansado da vida. Seu ideal de salvação pressupõe que este mundo não deve ser aprovado, que sua existência só pode valer, ter algum sentido enquanto se pode crer no ‘em si’ que lhe fornece o fundamento.
Devemos também atentar para o fato de que Nietzsche, ao insurgir-se contra a moral cristã cujos valores foram (e ainda são hoje, em grande medida, em muitas partes do mundo) determinantes da formação cultural do homem ocidental, não pretendeu negar a possibilidade de viver segundo algum conjunto de valores morais. Lembremos que Nietzsche reconhece que nós, enquanto viventes, somos obrigados a valorar, a interpretar, a significar o mundo, uma vez que a vida, sendo essencialmente vontade de poder, é interpretação. No aforismo 114 de A Gaia Ciência, escreve Nietzsche: “não existem vivências que não sejam morais no âmbito da percepção sensível”. Como se pode ver, se a moral é um conjunto de sentidos que servem para nortear o viver, então não pode deixar de ser ela um fenômeno intrínseco à vida.
Nietzsche  mobiliza todo um arsenal crítico poderoso para derribar os alicerces de um tipo de moral que se desenvolveu como antítese da vida, para enfraquecê-la enquanto vontade de poder, enquanto jogo de relações de forças que querem dominar, expandir-se. Atacando essa espécie de moral, Nietzsche ataca o niilismo e a metafísica que lhe estão atrelados.
Nietzsche – o contrário de um niilista –esforçou-se por descortinar ao homem as formas pelas quais ele poderia recuperar a pujança de que o adoecimento moral o privou. Nietzsche encontrou valor, sentido onde o niilista não via senão um abismo intransponível, um vácuo de sentido que condenava o homem a existir sem que lhe fosse possível divisar qualquer referencial balizador. O filósofo de Röcken ensinou seu amor fati – seu “engajamento moral alegre”, subsumido na fórmula “eu quero” – como o grande remédio contra o mal do niilismo. Seu além-do-homem está na origem de uma moral ascendente, que surge como consequência do imperativo “sim à vida”. O além-do-homem é o tipo de homem, que sendo criador de valores afirmadores, pode expandir suas forças e intensificar o poder de sua vontade de viver. A nova moral desse homem dionisíaco, liberto da tirania do “Tu-deves”, grande possuidor do mundo, revigorado pelo fortificante “eu quero” não pretende ser mais uma moral universal ou metafisicamente fundada. Essa nova moral acena com o reconhecimento da individualidade fisiológica desse novo homem. Ela se afina com as especificidades fisiológicas de cada indivíduo. Corporificação da vontade de poder, essa nova moral valoriza o prazer como antípoda do dever. Nietzsche contra o kantismo: o “eu quero” substitui o imperativo categórico. Uma moral que se desenvolve em favor da singularidade não se esquiva a abominar toda tentativa de igualação, de nivelamento dos homens e dos valores.
Em suma, Nietzsche não se furtou a oferecer uma moral que viesse a cumprir o papel que a moral tradicional não conseguiu cumprir. Sua moral é própria dos homens livres, criadores; ela preconiza o prazer, a alegria, o riso, o excesso de vida, de força, de poder.


1. Décadence: uma degeneração da vontade

O conceito de decadência é apresentado na forma de um projeto teórico por Nietzsche em Vontade de Potência (2011). A seção Para uma teoria da decadência é principiada com a colocação do problema da decadência.  Nietzsche observa aí que o fenômeno da decadência é necessário “como o desabrochamento e o progresso da vida”[2]. Nietzsche nega haver meios de suprimi-la. Em seguida, censura os teóricos do socialismo por cuidarem haver condições sociais “nas quais o vício, a doença, o crime, a prostituição, a miséria não mais se desenvolvam... Isso seria condenar a vida”.[3] Devemo-nos acautelar de concluir que Nietzsche seja partidário do conformismo: ele não está comprometido com alguma tendência sociopolítica que visa a manter os homens resignados. Parece-nos que seu alvitre encaminha-se na direção de nos chamar a atenção para o fato de que a degenerescência é um fenômeno inevitável e inerente à dinâmica vital. Mais adiante, Nietzsche notará: “a própria decadência não é algo que se deva combater: é absolutamente necessária e peculiar a cada época, a cada povo”[4]. Agora, a decadência, sendo parte inerente do processo vital, é necessária à constituição da vida social. Por que o é? Porque a ela devemos a possibilidade do “desabrochamento e do progresso da vida”.
O que se costumou entender como causas da decadência – o vício, o crime, a doença, o pessimismo, o anarquismo, etc. – é, para Nietzsche, a sua consequência. Entendamos bem: Nietzsche não vê o vício e o crime, por exemplo, como causas da decadência de uma sociedade, mas como sintomas de sua decadência. Se a decadência é inerente ao processo vital, se é necessária à dinâmica social, que devemos, pois, combater? Segundo Nietzsche, “o que devemos combater com todas as forças é a importação do contágio para as partes sãs do organismo”.[5]
A corrupção dos costumes encontra sua origem na decadência. Como podemos, então, definir a decadência? Podemos defini-la como esgotamento do instinto, como desagregação da vontade. Ao referir os tipos gerais de decadência, Nietzsche nos lembra que o cristianismo prima entre os tipos que levam ao adoecimento do espírito. Os tipos decadentes são tipos esgotados. Seus valores são “virtude”, “desinteresse”, o “sofrer junto” (moral altruísta), a negação da vida, etc. Os tipos decadentes aspiram a uma condição na qual não mais sofram; mas isso significa negar a vida, dado que o sofrimento é inerente aos modos de conformação do tecido vital. Para os tipos decadentes, “a vida é considerada a causa de todos os males”[6]. Para eles, o enfraquecimento é tomado como sua verdadeira missão. O que eles querem? O enfraquecimento dos desejos, das sensações de prazer e desprazer; o enfraquecimento da vontade de poder, do sentimento de altivez, etc.
Consoante mostra Nietzsche, Deus é o nome para aquilo que enfraquece, para aquilo que ensina a fraqueza. Ora, Deus é, portanto, antítese da vida. Se vida, enquanto vontade de poder, é aumento de poder, Deus, enquanto nome para o que enfraquece, é impedimento desse aumento de poder.
Para Nietzsche, o tipo forte age e pretende, em sua ação, aumentar seu poder, expandir suas forças, a fim de alcançar, com a expansão da vontade (poder), mais alegria, mais prazer. O tipo fraco, por seu turno, aspira à inação, quer permanecer impassível. Assim, prejudica a si mesmo. Autodestruição – eis um tipo de decadência.

Todas as práticas das ordens religiosas, dos filósofos solitários, dos faquires, são inspiradas por uma justa avaliação do mundo que afirma que uma certa espécie de homem é mais útil a si mesma quando se abstém, tanto quanto possível de agir.[7]



Para Nietzsche, a configuração do modo de ser do tipo cristão é perversão do caráter criador da vida; não porque ele não é criador de valores, mas porque cria valores decaídos, valores que levam à deterioração da vontade de poder. O esgotamento desse tipo decadente empobrece o valor; torna-o nocivo à própria vida. Por isso, é necessário combater a moral cristã e seu tipo decadente de homem. E Nietzsche o fez da seguinte forma: “ensino o não em face de tudo quanto torna fraco – de tudo quanto esgota. Ensino o sim em face de tudo quanto fortifica, do que acumula forças, do que justifica o sentimento de vigor”.[8]
Concluímos esta segunda parte de nosso estudo, referindo uma passagem de Ecce Homo, em que Nietzsche nos conta como veio a se tornar o contrário de um decadente. Ao apresentar essa passagem, gostaríamos de que não passassem despercebidos os seguintes ensinamentos de Nietzsche, que ela nos permite entrever: 1) a filosofia de Nietzsche é uma filosofia inteiramente interessada na criação de um modo de ser; 2) a filosofia de Nietzsche é a expressão de sua própria vontade de poder que se quer a si mesma como vida que se afirma incondicionalmente; 3) a filosofia de Nietzsche é um processo vital consequente dos modos como ele foi afetado pela vida. Por isso, pode-se dizer, seguramente, que o modo como Nietzsche viveu sua filosofia é consequência necessária de um modo próprio de experimentação feita por ele do destinar-se da vida. O destinar-se da vida se encarregou de cunhar um modo de ser nietzschiano, e Nietzsche, por sua vez, soube apropriar-se desse modo de ser para convertê-lo em sabedoria de vida; em uma palavra, em filosofia fortificante e combatente de todas as forças debilitantes da vida.

A parte o fato de que sou um decadente, sou também o contrário disso. Minha prova a respeito é, entre outras coisas, que instintivamente sempre escolhi os remédios adequados para as piores situações: enquanto que o decadente sempre escolheu os remédios mais nocivos a si próprio. Como summa summarum, eu era saudável; como detalhe, como especialidade, eu era decadente (...). Tomei-me a mim mesmo em minhas próprias mãos, recobrei a saúde por mim mesmo: a condição para chegar a isso – todo fisiologista deve admiti-lo – é a de estar fundamentalmente sadio. Um ser tipicamente mórbido não pode tornar-se saudável, muito menos recobrar ele próprio sua saúde; inversamente, para um ser tipicamente saudável, estar doente pode até mesmo constituir enérgico estimulante da vida, de mais vida. Assim, é que vejo agora, de fato, esse longo período de enfermidade: descobri, por assim dizer, novamente a vida, a mim mesmo inclusive, apreciei todas as coisas boas e até as pequenas, como não é fácil que os outros possam apreciá-las – construí minha vontade de saúde, de vida, minha filosofia (...): o instinto do auto-restabelecimento me proibiu uma filosofia de pobreza e de desânimo...[9] (grifos nossos).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRAGA, Antonio C. Nietzsche: o filósofo do niilismo e do eterno retorno. São Paulo: Lafonte, 2011.

BRUCKNER, Pascal. A Euforia Perpétua: ensaio sobre o dever de felicidade. Trad. Rejane Janowitzer. São Paulo: Difel, 2010.

CABRAL, Alexandre Marques. Niilismo e Hierofania: Nietzsche, Heidegger e a tradição cristã – Nietzsche, cristianismo e o deus não-cristão, vol. 1. Rio de Janeiro: Mauad, Faperj, 2014.

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São Paulo: Loyola, 2000.

COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 129.

FOGEL, GILVAN. O que é Filosofia? – Filosofia como exercício de finitude. Aparecida, SP: Ideia e Letras, 2009.

GAARDER, Jostein. et.al. O livro das religiões. Trad. Isa Maro lando. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

LYTOARD, J.F. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olimpyo, 2008.
                                                
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

________________ Vontade de Potência. Trad. Mario Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

________________ Além do Bem e do Mal. Trad. Mario Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

________________ Assim Falou Zaratustra. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

________________ Aurora. Trad. Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2013.
_________________ Ecce Homo. Trad. Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2013.
_________________ O Anticristo. Trad. Renato Zwick. Porto Alegre, RS: L&PM, 2012.
_________________ A Gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

________________ Crepúsculo dos Ídolos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

_________________ Humano Demasiado Humano. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.


PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Martins Fontes, 2005.


ROSSET, Clément. A Anti-natureza: elementos para uma filosofia trágica. Trad. Getulio Puell. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.


ROSSET, Clément. Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.

SOUSA, Mauro A. A morte de Deus em Nietzsche: fim da metafísica? In: Maraschin, Jaci; Pires, Frederico Pieper (Orgs.). Teologia e Pós-modernidade: novas perspectivas em teologia e filosofia da religião. São Paulo: Fonte Editorial, 2008. p. 61-90.

VOLPI, Franco. O Niilismo. São Paulo: Edições Loyola, 1999.












[1] Por que sou um destino, § 4.
[2] § 72.
[3] Ibid.
[4] § 73.
[5] Op.cit.
[6] § 76.
[7] § 78.
[8] § 86.
[9] Por que sou tão sábio, § 2.