O animal simbólico e o trágico
1. Situando o problema
O tema
desta dissertação é o trágico, e o
trágico será pensado como a qualidade fundamental definidora da condição
humana. A condição humana é trágica – esse é o pressuposto central de toda a
minha exposição. Usarei, pois, a forma substantivada “o trágico” para designar
o modo de ser próprio do homem no
mundo. A forma “tragédia” será empregada para designar um gênero literário.
Além desse pressuposto central, que constitui o alicerce de toda a minha
argumentação, há outros cinco que, reunidos, dão corpo à tese que pretendo
sustentar:
1º pp. O aparecimento da linguagem verbal rompeu
definitivamente a aliança entre o homem e a natureza. Desde então, o homem se
viu condenado a uma solidão irremediável;
2º pp. É a linguagem que constitui o homem; o
homem é efeito da linguagem;
3º pp. Todo o complexo institucional que chamamos
de realidade social é fabricado, é
construído pela atividade humana a partir da conjunção de elementos econômicos,
culturais, ideológicos, políticos e históricos.
4º pp. O que chamamos de “realidade” é resultado de
processos sóciocognitivos de fabricação ao longo da qual há uma contínua
interação entre práticas culturais, percepção-cognição e linguagem.
5º pp. A linguagem verbal e as formas simbólicas
desempenham um papel decisivo na criação da realidade de categorias,
instituições, ritos, práticas e sujeitos.
Ao assumir
que a linguagem constitui o homem, mantenho que o homem não é conatural ao
mundo. Não se segue daí que eu rejeite ser o homem um animal, ter o homem um
corpo biológico – posição, aliás, que estou disposto a defender sempre que o
homem é pensado como se fosse dotado de algum privilégio ontológico. Malgrado
esse reconhecimento, assumo a não conaturalidade do homem com o mundo, a fim de
que o que há de trágico na condição humana se torne o mais transparente
possível. O que penso ser mais espesso em minha tese consiste na afirmação de
que a tragicidade da condição humana é um sintoma (no sentido psicanalítico, um
conflito) do fato de sermos parasitados pela linguagem, do fato de sermos
invadidos por ela. O animal simbólico, que é o homem, é um ser desnaturado,
cuja existência está submetida ao regime da linguagem, do qual não pode
escapar. O registro do simbólico é, portanto, constitutivo da nossa condição
existencialmente trágica. Só há o trágico para um animal cuja existência foi
capturada e é sustentada por uma teia de significados, de símbolos criada e
reproduzida por esse mesmo animal que está condenado a significar. Portanto, a
tese que esposo alinha-se com o horizonte hermenêutico psicanalítico, à luz do
qual se afirma ser a linguagem o ponto de partida para a compreensão do que há
de problemático no homem. Nesse sentido, concordo com Garcia-Roza:
A palavra não fez sua emergência no homem: o homem é um efeito dessa
emergência. Tendo feito sua emergência, a palavra ressignificou ou simplesmente
significou o próprio corpo com suas faculdades, assim como os objetos do mundo.
(Garcia-Roza, 1990, p. 16).
A psicanálise recusa a precedência de um corpo
biológico. Seu corpo é o corpo pulsional. Seu ponto de partida não é a
suposição da existência prévia de uma ordem natural. Seu ponto de partida é a
linguagem. É a linguagem que está na origem da constituição do animal
extravagante, excêntrico, problemático, conflitual que é o homem.
Esclarecida,
então, a orientação teórica à luz da qual se desenvolverão minhas reflexões,
dou a conhecer o que me motivou a elaborar este texto. O seguinte trecho de
Nietzsche, colhido de Genealogia da Moral
(2011, XIII, p. 117) foi referido e comentado por Giacoia, em seu Nietzsche: o humano como memória e promessa (2014). Darei a saber,
em primeiro lugar, o texto de Nietzsche; posteriormente, citarei Giacoia, que
dele nos oferece uma interpretação que captou o que está no cerne da tese por
mim apresentada.
(...) o homem é o animal doente, mais incerto, mais mutável, mais
inconsciente, é o animal doente por excelência: donde lhe veio isto? Certamente
provocou o destino e inovou mais, foi mais teimoso, mais audaz do que os outros
animais; o grande experimentador de si mesmo insatisfeito, o insaciável, o que
luta para reinar sobre os animais, sobre a natureza e sobre os deuses; o
indomável, o futuro eterno, o aguilhoado pela espora que o futuro introduz na
carne do presente, o mais valente dos animais, o de sangue mais rico, como não
havia de estar exposto a doenças mais largas e mais terríveis?
Giacoia
propõe uma leitura desse trecho de Nietzsche à luz de uma chave hermenêutica
antropológico-cultural. Sua leitura descerra dois horizontes de sentido em que
o texto de Nietzsche se deixa compreender: O primeiro deles encontra formulação
linguística no seguinte trecho de Giacoia:
(...) a tese de Nietzsche dá ensejo a ser interpretada como uma hipótese
que tem a forma lógica da causalidade: o homem é o animal doente, o mais
prolongada e profundamente doente entre todos os animais porque é também o animal não fixado, sendo assim o grande
experimentador consigo mesmo. (ibid., p. 24, ênfase no original).
Essa autoexperimentação do homem, vista à luz do
horizonte semântico do “não fixado”, acarreta “a instabilidade, a
flexibilidade, a multiplicidade e insegurança” (ibid.). Tudo isso pressupõe,
segundo Giacoia, “mal-estar, sofrimento, insatisfação, ânsia, insaciedade
permanente, mas também repto lançado ao destino, disputa por domínio sobre
animais, natureza e deuses (também sobretudo sobre si mesmo)”. (ibid.).
A insistência cruel com que o animal humano
escraviza, maltrata e mata os outros animais humanos e não humanos é um sintoma
de sua doença como animal não fixado, um sintoma da negação de sua condição de
animal, de seu destino animal, de ser alimento para vermes, de ter um corpo
animal deteriorável e perecível.
A segunda linha
de interpretação de Giacoia pauta-se pela afirmação de que o texto nietzschiano
autoriza a inferência segundo a qual a mutabilidade constante, a
insaciabilidade irrefreável são a natureza dividida e paradoxal do homem.
Consoante nota Giacoia,
Sendo assim, faz parte desse paradoxo um excedente de força pulsional que ultrapassa toda fixação instintiva
e faz do homem esse desafio permanente à estabilidade pensada no conceito de
natureza, esse repto à autoconservação; eterna insubsistência, que o torna, por
natureza, o animal mais exposto, o mais periclitado, o mais ameaçado pelo
“acaso”, pelo “destino”, pela “natureza”. (ibid., grifo meu).
Portanto,
consoante entende Giacoia, o mais enfermo dos animais, é também o mais
problemático, “o que é mais digno de questão, o mais denso, profundo e pleno de
futuro – um aguilhão na carne da natureza, de todo presente” (ibid., p. 25). O
ser constituído de um excedente pulsional significa ser o homem um excesso,
cujo reflexo é sua indigência crônica como corpo animal. Admitindo usar um
vocábulo anacrônico em relação ao pensamento de Nietzsche, o autor acrescenta:
(...) diria que o homem é um animal doente porque não é um animal instintivo, mas pulsional e, mais ainda, provido de um excedente pulsional que o torna não fixado, instável, cuja
estabilidade e fixação só pode ser realizada por sua própria obra, ou seja, por
meio da história e da cultura, basicamente por meio das instituições. (ibid.,
grifo meu).
Uma vez que é o homem provido de um excedente pulsional, ele é um animal
não especializado, desprovido dos recursos naturais indispensáveis à sua sobrevivência;
ele é um animal exposto a uma tensão crônica de forças e tarefas internas e
externas; é, em suma, atravessado por uma “indigência crônica”. Outrossim,
afirmar ser o homem provido de um excedente pulsional é afirmar não ser
possível reduzir sua vida a simples atos de satisfação de necessidades animais
mínimas, como a fome e o instinto sexual.
Do exposto
estende-se, pois, o solo filosófico, antropológico, psicanalítico a partir do
qual a questão do trágico se nos
impõe ao pensamento reflexivo como uma qualidade existencial da condição
humana. Somos desnaturados, diferentemente dos demais animais, cuja vida é
regulada exclusivamente pela gramática biológica, somos – repito – “infestados”
pela linguagem, dominados por ela, estamos emaranhados nela. O que se seguirá é a expressão de um esforço analítico cuidadoso que visa a pôr a descoberto a
condição constitucionalmente trágica do animal simbólico, que é o homem. O
conflito insuperável entre o campo pulsional e a cultura é trágico.
2. Da tragédia ao trágico
Sabe-se que tragédia é
um gênero de expressão artística, particularmente marcante na história do
teatro. No domínio da arte, a tragédia, segundo alguns teóricos, não recobre
apenas adversidades, sofrimentos, iniquidades, mas, principalmente, uma
corajosa resistência ao destino. A tragédia deve, pois, expressar a reação a um
evento, e não apenas o evento fatídico em si. Para alguns teóricos, a tragédia
começa com a arte, que a vida imita. Com o tempo, o significado da tragédia foi
estendido do domínio da arte para a vida, restando aqui um eco da arte, o qual
foi silenciado quando a tragédia passou a caracterizar o modo de configuração
da própria vida. Neste texto, defendo que o trágico é o modo próprio de constituição da condição humana. Nesse
sentido, o trágico é uma categoria filosófico-hermenêutica com a qual a
existência humana se converte em objeto para exame de uma filosofia trágica.
Todo pensamento trágico quer “fazer o trágico passar do estado inconsciente para
o consciente” (Rosset). Dado o inegável vínculo interdiscursivo entre o
conceito de tragédia e o de trágico, não poderia tratar deste sem considerar
aquele. Como já me ocupei, alhures, do modo como o pensamento trágico performatiza
seu significado, cinjo-me, aqui, a citar o que nos diz Deleuze e Rosset acerca
do trágico. Segundo Deleuze (2001, p. 29), “o que é trágico é a alegria”. O que
Nietzsche viu e que Deleuze soube reconhecer e admirar é que o herói trágico é
alegre. O trágico designa, para esses dois pensadores, a forma estética da
alegria, que não sendo nenhuma solução moral da dor e do sofrimento, converte
todo pesar, toda tristeza, toda infelicidade, mesmo a mais pungente e atroz, em
objeto de afirmação. Para Rosset (1989a), uma filosofia trágica afirma o
caráter originário do acaso, do acaso anterior à constituição de toda série de
causas e de toda ordem, e afirma o caráter artificial de toda existência:
artificial no sentido de que afirma a independência da existência com relação a
todo princípio natural. O pensamento trágico, segundo Rosset, afirma a
fundamental imprevisibilidade de todo ser, o acaso de toda constituição, a
facticidade de todo fato. Conforme assinala Rosset (1989b, p. 300), “aprovar a
existência é aprovar o trágico”, ao que acrescenta “ou a aprovação é trágica ou
não há aprovação”. (ibid.). Tanto em Nietzsche, como em Deleuze e Rosset, o
trágico é uma qualidade da afirmação, um elemento modal da aprovação
incondicional da existência. O pensamento trágico é o pensamento da afirmação
por excelência. Mesmo em face da constatação do que há de problemático,
obscuro, sombrio, doloroso, aterrador na existência, o pensador trágico afirma
o desespero jubiloso que quer o real tal como é (quem quer que esteja interessado
nesse tema pode consultar: http://escritosdobar.blogspot.com/2018/08/toda-experiencia-profunda-se-formula-em.html.
Um pensador como Schopenhauer não acompanha aqueles autores. Para
Schopenhauer, “há sabedoria na tragédia, mas não há afirmação” (Eagleton, 2013,
p. 112). A aprovação trágica não é uma aprovação do pior – que fique claro; é
uma aprovação incondicional e total da existência, com suas alegrias e
tristezas. Como ensina Maffesoli (2003, p. 116), “a especificidade do trágico é
considerar a existência em sua totalidade: a luz necessita da sombra, o bem não
é possível se não consentir ao seu contrário o lugar que lhe corresponde”. O
pensamento trágico afirma a problematicidade insolúvel do mundo. O afeto
trágico não diz senão isto: “só vale o que sabemos que vai acabar” (ibid., p.
58). Ainda segundo Maffesoli, “a sensibilidade trágica (...) aceita com
sabedoria o que é. Acrescenta uma forma de intensidade ao viver o que é”. (p.
40-41).
A intensidade afetiva trágica encontra seu mais claro e vigoroso
registro na afirmação: a medida da vida
é viver sem medida: “viver apesar de tudo esta existência tolhida de
vicissitudes, mas que segue sendo atrativa apesar ou por causa disso” (ibid.).
O páthos trágico é o ter de jogar-se
na vida como quem joga um jogo cujo resultado já está dado e no qual tudo está
irremediavelmente perdido e, apesar disso, querê-lo jogar. Trágica é a condição
humana marcada pelo desamparo, em frente ao qual o homem realiza a sua tarefa,
assume a responsabilidade de ser livre e de dar um sentido à sua vida. Camus,
em O homem revoltado, nos lembra que
a consciência de que o sofrimento e a injustiça jamais serão totalmente
eliminados faz parte da experiência trágica. O trágico também se deixa capturar
na fórmula sartreana, com a qual se afirma a contingência radical da
existência: “todo ente nasce sem razão, se prolonga por fraqueza e morre por
acaso”.
Maffesoli, acerca da tragédia grega, diz que ela se caracteriza
propriamente pelo seu caráter aporético: “ao contrário do drama, não oferece
solução”. Para Schopenhauer (2015, p.
294), “a única essência da tragédia é a exposição de uma grande infelicidade”.
A infelicidade pode ser produzida pelo destino cego, acaso ou erro. Em
Schopenhauer, a arte trágica expressa o conflito da Vontade com ela mesma de
maneira aterrorizante. Para ele, a tragédia consiste “na exposição do lado
terrível da vida, a saber, o sofrimento inominado, a miséria humana, o triunfo
da maldade, o império cínico do acaso, a queda inevitável do justo e do
inocente (...)”. (ibid., p. 292). O trágico é um sinal da misteriosa
inexplicabilidade do cosmos. Ao dizer que o mundo é governado pelo acaso, o
pensador trágico admite, tacitamente, que ele não é governado de forma alguma.
Conforme nota Eagleton (ibid., p. 191), “a suposta inescrutabilidade do
trágico, sua resistência a um mero raciocínio secular, pode ser explorada para
esconder sua crueldade”.
O herói trágico age sem saber; o herói moderno sabe de sua ação. O que
há de trágico na condição do herói clássico é o fato de ele se reconhecer
responsável até mesmo por aquilo que ignora em suas ações. Édipo, por exemplo,
age, mas não sabe acerca do alcance de sua ação, ao passo que Hamlet sabe o que
está acontecendo, mas não sabe acerca do que o destino lhe reserva. Se é
razoável sustentar que o herói trágico é, em grande medida, responsável pela
própria ruína, é igualmente sustentável dizer que nenhum herói grego ou heroína
aceita, de bom grado, seu destino. O trágico pode nos patentear o fato bastante
perturbador de que, talvez, exista uma ordem do Cosmos, mas que ela não é
justa.
É certo que muitas tragédias terminam com a distribuição de justiça; o
que é trágico é que tenha de haver grande derramamento de sangue, grande
sofrimento para alcançá-la. É a desproporção que constitui o verdadeiro terror
trágico, de modo que justiça e tragédia parecem pouco compatíveis. Decerto, a
punição precisa ser desproporcional; apenas aqueles que são virtuosos mas
desafortunados despertam compaixão. A sintaxe trágica envolve a) um herói
trágico como aquele que incorre num erro, em hamartia, b) que ultrapassa os limites, é tomado pela desmesura, hybris, c) e sofre a reviravolta da desgraça, o que
desperta o temor e a compaixão dos espectadores. O fato de que o sofrimento e a
morte não poupam ninguém, nem os inocentes – isso é trágico.
A unidade de salvação e aniquilamento constitui uma característica
fundamental de toda tragédia. Não é o aniquilamento que é trágico, mas o fato
de a salvação tornar-se aniquilamento. Não é no declínio do herói que se cumpre
a tragicidade, mas no fato de o herói sucumbir justamente no caminho que
escolhera para fugir da desgraça. Segundo Eagleton (ibid., p. 42), a tragédia
“precisa envolver mais do que a mera criação de um bode expiatório; precisa
envolver uma corajosa resistência ao destino”.
São suficientes essas breves considerações sobre o
significado da tragédia como gênero da arte; doravante, quero deter-me na
descrição do aspecto sombrio, problemático, desesperador da experiência trágica
como modo de se constituir da existência humana. Conquanto os estudiosos da
tragédia tendam a sublinhar que a contingência radical da existência não é um
elemento da tragicidade, parece-me difícil negar que, tendo deslocado nosso
olhar da tragédia enquanto gênero de expressão artística para o trágico
enquanto o modo de ser próprio da existência, a contingência radical de todo
existente humano não possa compor-se com o trágico. Nesse caso, trágico é o
fato de todo ente, de todo existente carecer de razão de ser; é o fato de o
mundo não ter em si mesmo seu princípio de existência. Trágica também é a
facticidade de todo existente humano: minha facticidade é o fato de eu me
encontrar lançado no mundo em meio aos entes, simplesmente como são, sem
necessidade, sem razão, como presença absurda e constatada. Se nem a
contingência nem a facticidade são suficientes para a determinação do caráter
trágico da existência, talvez seja o caso de articular a elas “o reconhecimento
da existência pelo que é: precária, finita, sempre submetida à inexorável lei
da morte de tudo e de todos” (Meffesoli, ibid., p. 58). Acresça-se a isso que a
facticidade desvela “a incongruência notória entre aqueles que chegam ao mundo
e as condições da chegada” (Sloterdijk, 2002, p. 123). É bem verdade que
Sloterdijk designa tal incongruência “o nada”, mas ela parece dizer respeito
muito mais à constatação, a qual não pode basear-se em qualquer medida razoável,
do fato de que entre o nascimento, nossa chegada ao mundo, e as condições
fáticas dessa chegada nada há senão o cego lance de dados do acaso. Nascer é
estar lançado, em profundo estado de ignorância, à imponderabilidade, às
flutuações do acaso.
2.2. O animal simbólico e a repressão básica
O
nascimento é, para o animal simbólico que é o homem, apenas um ensaio do
caráter trágico de sua condição. Encontrando-se no mundo, o homem precisará
produzir mecanismos de defesa contra duas formas de medo: o medo da vida e o
medo da morte. O animal simbólico angustia-se por ser-no-mundo, por
encontrar-se no mundo. E, para evitar que seja dilacerado por um desespero
generalizado, ele precisará lidar com o medo da morte, da vida, da experiência
e da individuação. É preciso, pois, desobstruir o caminho que levará o trágico
a passar da penumbra da vida semiconsciente da cotidianidade, do modo de vida
inautêntico, para a clarividência do modo de vida autêntico, que é o do
desespero controlado da Lucidez. Ignoro que haja um método mais eficaz para
empreender tal desobstrução do que o debruçar-se sobre o modo como o homem lida
com a certeza de sua finitude. Na maior parte do tempo, em condições normais,
em que, desde o despertar até o adormecer, nos ocupamos com a lida da vida
diária, em que perambulamos para lá e para cá, sem acreditar, em nenhum
momento, em nossa morte, como se confiássemos plenamente em nossa imortalidade,
estamos preocupados em dominar a morte, em manter controlado o terror da morte,
que está universalmente presente em nosso funcionamento psicológico normal,
muito embora seja, paradoxalmente, “total o nosso esquecimento desse temor em
nossa vida consciente” (Becker, 2012, p. 37). Alguém poderia dizer, é claro,
que sabe que vai morrer um dia, mas que não se importa, pois precisa aproveitar
bem a vida e não pensar na morte e se importar com ela. Mas isso é uma admissão
puramente intelectual, verbal. O afeto do medo da morte está reprimido. Alguém,
então, poderia perguntar por que perturbar aquilo que está “adormecido”, por
que correr o risco de ver-se tomado pelo terror que se manifestaria em
consequência do despertar daquilo que é melhor que permanecesse “adormecido”.
Não faltariam filósofos, sobretudo entre os gregos, para oferecer uma resposta.
Um filósofo como Sêneca, por exemplo, poderia responder que viver a vida com a
consciência constante da presença da morte é evitar a perda de si, é evitar a
dispersão de si. Aprender a morrer é um exercício do meu viver. É uma tarefa da
vida inteira. A morte é um problema da totalidade da vida. Por isso, pensar
sobre a morte é ter em vista evitar viver uma vida desperdiçada, é evitar
experimentar o tempo como perda. Para Sêneca, perder-se na multidão é perder-se
de si. A existência é perda de si para quem vive em desperdício. Uma vida em
desperdício não é uma vida livre. Liberdade é, para os gregos, autarkéia, domínio de si, ser princípio
de si. A liberdade é uma qualidade da vida. Uma vida que pertença a si mesma é a
liberdade. Em suma, citando Hadot (1999, p. 202), para um estoico como Sêneca,
“o pensamento da morte iminente transformará de maneira radical a maneira de
agir, fazendo que se tome consciência do valor infinito de cada instante”. Não
obstante a lição estoica, que, pelo menos para mim, dá testemunho de uma
profunda lucidez e é assaz preciosa, penso que nem todos são dotados da
disposição afetiva para ocupar-se da morte. Quiçá, a maioria esmagadora dos
homens não se sinta psicofisiologicamente predisposta a um tal exercício
eminentemente filosófico. Estou entre aqueles que têm uma estrutura de caráter
pessimista (não sendo nenhum privilégio, é uma experiência de destino) e, por
isso, vivo continuamente com uma atenção a mim mesmo e com uma atenção na
presença da morte iminente. Tem razão Becker, quando escreve:
É fácil perceber que (...) aqueles que tiverem experiências adversas no
início da vida serão os mais morbidamente fixados na ansiedade da morte; e se,
por acaso, quando crescerem, forem filósofos, é provável que façam da ideia da
morte uma máxima central de seu pensamento – como fez Schopenhauer, que odiava
a mãe e declarou ser a morte “a musa da filosofia”. Se você tem uma estrutura
de caráter “amarga” ou teve experiências especialmente trágicas, deverá vir a
ser um pessimista. (ibid., p. 34).
Estando de acordo com Unamuno (2013, p. 30), para
quem “não basta pensar, devemos sentir o nosso destino” entrego-me à meditação
sobre o aspecto constitucionalmente trágico de nossa experiência com a finitude
como quem aceita realizar uma obra para a qual foi destinado. Viver e conhecer
não é o mesmo. Há uma contradição entre viver e conhecer. Disso se segue que “o
que é vital é antirracional, não apenas irracional, e tudo o que é racional é
antivital. Essa é a base do sentimento trágico”. (ibid., p. 47). Filosofar,
para mim, enquanto prática de exercícios espirituais, é uma exigência de ordem
fisiológica, ou melhor, afetivo-fisiológica, pois que é preciso filosofar com
muito mais do que com o cérebro; é preciso pensar “com todo o corpo e toda a
alma, com o sangue, com o tutano dos ossos, com o coração, com os pulmões, com
o ventre, com a vida”. (ibid., p. 30). Esta é uma exigência especialmente forte
do pensamento trágico. Unamuno pensa que o sentimento trágico tem como lastro o
divórcio entre o racional e o vital. É que o trágico, na medida em que é uma
qualidade definidora da vida, deve ser uma experiência que se vive antes de ser
pensada. O pensamento trágico evidencia que
“uma ligação indissolúvel une o gozo da vida ao conhecimento da morte, o
conhecimento da vida àquele da tragédia” (Rosset, 1989a, p. 8). Como ensina
Rosset (ibid.), “não há triunfo da vida sem um igual triunfo da morte, nem um
verdadeiro transbordamento de alegria sem um igual transbordamento de
desespero”. É que toda a alegria de viver que desconsidere o trágico é uma
alegria inautêntica, facilmente desmentida por um instante de afronta do nada
da lucidez. E, prosseguindo com Rosset, antes de retomar Unamuno, é preciso
atender no seguinte: “o verdadeiro apaixonado da vida tem por principal e no
fundo único objeto de aversão o otimismo e a estampa do trágico, culpados a
seus olhos de constituir, sob as cores ordinariamente morais e bem-pensantes,
um atentado permanente contra o real e a alegria de ser” (ibid.). Ora, um
pensador como Epicuro não queria nos fazer experimentar outra coisa senão a
alegria de ser, o prazer de existir. Mas, para a filosofia trágica, só é
verdadeiramente atravessado por essa experiência quem se exercita no pensamento
“da ligação entre a alegria de existir e o caráter trágico da existência”. Pois
é isto a essência do pensamento trágico: não um pensamento da catástrofe, da
fixação no pior, mas da ligação, da urdidura entre o transbordamento da alegria
de viver e o transbordamento do desespero, da urdidura, do vínculo visceral
entre o triunfo da alegria de ser e o triunfo da morte. O pensamento trágico
não afirma uma felicidade “ao abrigo do otimismo” (ibid., p. 23), o que ele
busca é “uma coisa inteiramente outra: loucura
controlada e júbilo” (ibid.). A alegria trágica não é a alegria dos tolos,
das massas irrefletidas de homens que desperdiçam o tempo e a vida a buscar os
prazeres fugazes oferecidos pela sociedade de consumo. A alegria trágica tem
sempre estampado diante de si o ensinamento do choro de Sólon, sobre o qual nos
conta Unamuno (ibid., p. 32): “Um pedante que viu Sólon chorar a morte do filho
lhe disse: “para que chora assim se não adianta?”. E o sábio respondeu:
“precisamente por isso, porque não adianta””. O choro de Sólon é o choro do
homem trágico, do homem que se sabe defrontado com o irremediável; seu choro é
signo do valor inestimável de um ente amado que morreu, de um afeto que jamais
voltará a encontrar. Seu choro é o choro de quem se desesperou e se liberou do
desespero, de quem sabe que viver é, em grande medida, preparar-se
continuamente para a experiência da despedida, do confronto com o “nunca mais”.
Por isso, a despedida pela morte justifica o pranto de Sólon e o de todos os
homens; por isso, todo cristão que chora a morte de alguém que amou é traidor:
trai a fé mesmo que professa, pois que baseada na esperança da vida eterna, do
reencontro com aqueles que amou. O choro pela morte é o choro mais imperioso, o
mais urgente, o mais legítimo; pois no mais profundo do seu ser todo ser humano
sente que jamais tornará a ver seu ente amado que morreu.
Encontrando-se, pois, no mundo, como um “animal
inteiramente aberto à experiência” (Becker, p. 75), desprovido de um programa
instintual que lhe possibilite ajustar-se completamente à natureza e a
responder adequadamente aos estímulos desse mundo natural, “o homem não pode
nem mesmo ter seu corpo como ponto pacífico, como podem ter os outros animais”
(Becker, ibid.). A relação do homem com seu corpo é já extremamente
problemática, conforme assinala Becker (ibid.):
(...) Para o homem, o seu corpo é um problema que tem que ser explicado.
Não é só o corpo que é estranho, mas também sua configuração interior, suas
recordações e seus sonhos. As próprias entranhas do homem – o seu eu – lhes são
confusas. Ele não sabe quem é, por que nasceu, o que está fazendo no planeta, o
que deveria fazer, o que pode esperar.
A dificuldade básica para o homem, segundo Becker,
- e o que entendo ser o centro nervoso,
a nervura mesma de sua condição trágica -, consiste em “sermos simultaneamente
vermes e deuses (...) outra vez: deuses e com ânus” (ibid.). O ânus não só se
refere a uma parte do corpo animal que tem o homem, não só se refere à
animalidade do homem, mas simboliza o destino de tudo que é da ordem da
matéria, do bios e da phýsis: o definhamento, a deterioração,
o apodrecimento e a morte. Dilacerado pelos dois grandes temores básicos – o da
vida e o da morte -, o animal simbólico edifica o mundo da cultura – mundo
entretecido pelos símbolos e significados que ele mesmo cria, numa tentativa
dispendiosa e desesperada de pôr sob domínio, sobretudo, o terror da morte.
Como ensina Cassirer (2012, p. 48), de modo perspicaz,
o
homem não pode mais confrontar-se com a realidade imediatamente; não pode
vê-la, por assim dizer, frente a frente. A realidade física parece recuar em
proporção ao avanço da atividade simbólica do homem. Em vez de lidar com as
próprias coisas, o homem está, de certo modo, conversando consigo mesmo.
As quatro eminentes invenções da cultura – a arte,
a religião, a filosofia e a ciência – estão a serviço da contenção desse
terror. Filosofamos, certamente, para lidar com esse terror (Schopenhauer tinha
razão, antes dele os gregos, é claro), direta ou indiretamente, quando
abordamos o problema ou quando propomos rotas de fuga, deveras sutis, que não
passam de tentativas de sublimação.
O que
chamei de “a nervura de nossa condição trágica” precisa ser mais bem
esclarecido. A experiência que o homem, enquanto animal simbólico, tem de seu
corpo lhe evidencia uma cisão: todo ser humano é, ao mesmo tempo, um “eu”
(veremos que esse “eu” não é uma substância, uma espécie de “fantasma na
máquina”) e um “corpo”. Melhor será dizer: todo ser humano tem o sentimento de
ser um “eu” e de “ter” um corpo. Por meio do “eu”, o homem se aproxima do
“divino”: ele é um ser dotado da capacidade de pensar e de criar. Mas, por ter
um corpo, o homem é arrastado, continuamente esmagado por sua condição animal –
com os animais o homem compartilha o mesmo destino: o de ser alimento para
vermes. Esse caráter dual do homem, antes de lhe ser um privilégio, é, na
verdade, um pesado ônus. Comparado com o homem, o animal não sofre esse ônus:
ele manifesta uma exuberante potência de viver, e só se entristece, se deprime,
inclusive, em muitos casos, quando se sente privado dessa potência. Penso que,
em grande medida, por ser constitucionalmente incapaz de levar a uma síntese a
sua animalidade e a sua identidade simbólica, o animal humano se torna o animal
mais doente, o mais profundamente e irremediavelmente doente. Esmagado pela
confusão onde realmente está a identidade pessoal – ou seja, no eu ou no corpo
-, o homem vive “tentando, com uma tenacidade além do normal, proteger-se
contra os acidentes da vida e o perigo da morte, tentando usar símbolos da
cultura como um meio de triunfar sobre o mistério da natureza, tentando
fazer-se passar por tudo, menos por um animal”. Eis aí a repressão básica da
condição humana: negação vibrante da vida física e do fantasma da morte. A
cultura é a tentativa humana de oferecer uma solução conciliatória com a vida,
de modo a torná-la possível. Enquanto se esforça por empreender e assegurar
essa conciliação, o animal humano tenta evitar, nem sempre com muito sucesso, a
percepção de que “a criação é um aterrorizante e grandioso espetáculo que se
passa num planeta que vem ensopado, durante centenas de milhões de anos, no
sangue de todas as criaturas” (Becker, ibid. ,p. 335). Não obstante, como
ensina Schopenhauer (2014, p. 33), “com mil cuidados, mil precauções, durante
todo tempo possível”, nos ocupamos de conservar e prolongar a vida, de
alimentar a vontade de viver em nós; a vida, tal como uma bola de sabão é
soprada, enche-se “durante muito tempo, não obstante a certeza que temos de que
ela acabará por rebentar”. O trecho abaixo, colhido da pena de Schopenhauer,
não deve ser lido como um testemunho de pessimismo, mas como uma grande
advertência contra a loucura da condição humana, contra as insanidades diárias,
contra a sofreguidão com que os homens se põem a serviço da reprodução de uma
máquina socioeconômica e política que os transforma em meros autômatos, em
meras peças de uma engrenagem, contra, sobretudo, nosso inveterado hábito de
autoengano, a insistência com que defendemos as ficções sociais que nós mesmos
criamos e em que acreditamos, autonomizamos, absolutizamos, em nome das quais travamos
contendas, rixas, guerras e matamos.
O homem só vive no presente, que foge irresistivelmente para o passado,
e afunda-se na morte: salvo as consequências, que se podem refletir no
presente, e que só são obra dos seus atos e da sua vontade, a sua vida de ontem
acha-se completamente morta, extinta (...) O presente foge-lhe, e transforma-se
incessantemente no passado; o futuro é absolutamente incerto e sem duração... E
assim como do ponto de vista físico, o andar não é mais do que uma queda sempre
evitada, da mesma maneira a vida do corpo é a morte sempre suspensa, uma morte
adiada, e a atividade do nosso espírito, um tédio sempre combatido (...) É
preciso, enfim, que a morte triunfe, pois lhe pertencemos pelo próprio fato do
nosso nascimento, e ela não faz senão brincar com a presa antes de devorá-la”.
(ibid.).
O que
Becker entende como “levar a vida a sério” se afina bem com a sabedoria
trágica, mas é um “levar a sério” estranho ao homem da cotidianidade mediana,
seja ele um operário, um cientista, um burocrata, seja um chefe de Estado.
Pondera Becker: “acho que levar a vida a sério significa mais ou menos o
seguinte: seja lá o que o homem faça neste planeta tem que ser feito na verdade
vivida do terror da criação, do grotesco, do ronco do pânico debaixo de tudo,
ao contrário, será falso” (Becker, ibid., p. 336). Antes de me deter um pouco
em esclarecer o que angustia a criança, vale ainda atentar para o modo como o
animal humano, segundo Becker, experiencia a precariedade de sua condição
enquanto ser-no-mundo:
O homem reluta em enfrentar o peso esmagador do
mundo, os verdadeiros perigos desse mundo. Ele retrai-se para não se perder nos
devastadores apetites dos outros, para não rodopiar sem controle nas garras e
presas de homens, animais e máquinas. Como organismo animal, o homem sente em
que tipo de planeta foi colocado – o apavorante, o demoníaco frenesi no qual a
natureza liberou bilhões de apetites de seres orgânicos individuais de todos os
tipos. Isso sem falar em terremotos, meteoros e furacões, que parecem ter seus
próprios apetites infernais. Cada coisa, para que possa se expandir prazerosamente,
está sempre engolindo outras. Os apetites podem ser inocentes, por se
construírem numa dádiva da natureza, mas qualquer ser vivo apanhado nas malhas
dessa infinidade de interesses contrários que agitam este planeta é uma vítima
em potencial dessa inocência – e o ser vivo, assim, se esquiva da vida com medo
de perder a própria vida. A vida pode sugar o indivíduo, solapar suas energias,
submergi-lo, tirar-lhe o autocontrole, dar tanta experiência nova com tanta
rapidez que ele irá explodir. Pode fazê-lo destacar-se entre os outros, emergir
em terreno perigosos, jogar-lhe por cima novas responsabilidades que precisam
de grande força para serem suportadas, expô-lo a novas contingências, novas
chances. Acima de tudo, há o perigo de um escorregão, um acidente, uma doença
imprevista e, naturalmente, o perigo da morte, a sucção final, a submersão e a
negação totais. (ibid., p. 78-79).
A dualidade
do animal humano, quando confrontada com o saber acerca da finitude de sua
existência, expõe à luz do dia, num momento de atormentada lucidez, a tensão
afetiva que ela é, mas que se mantém, na maior parte do tempo, sob controle.
Refiro-me à dualidade que consiste em sentir-se um “eu” e um “corpo”, ou “um
deus com ânus”. Tendo um sentimento de eu, o animal humano:
(...) tem uma identidade simbólica que o destaca nitidamente da
natureza. Ele é um eu simbólico, uma criatura, com um nome, uma história de
vida. É um criador com uma mente que voa alto para especular sobre o átomo e o
infinito, que com a imaginação pode colocar-se em um ponto no espaço e,
extasiado, contemplar o seu próprio planeta. Essa imensa expansão, essa
sagacidade, essa capacidade de abstração, essa consciência de si mesmo dão
literalmente ao homem a posição de um pequeno deus na natureza, como sabiam os
pensadores da Renascença”. (Becker, ibid., p. 48).
É bem
verdade que a descrição feita por Becker desse homem constrói mais a imagem de
um cientista ou de um astronauta do que a de um operário, o que não invalida o
cerne do argumento: cada indivíduo humano constrói para si, nas relações com os
outros, um “eu”, que é um efeito da ordem do imaginário. Mas a experiência
subjetiva que ele tem desse “eu” não é de modo algum “imagética”. O animal
humano identifica a si mesmo com este eu, portador de uma autobiografia: é um
eu que vive um vasto e complexo conjunto de experiências emocionais, afetivas,
cognitivas nas relações com outros seres humanos e animais, um eu que se
alegra, ri, se diverte, trabalha, estuda, chora, namora, forma laços conjugais,
tem filhos, etc. Por outro lado,
(...) ao mesmo tempo, como também sabiam os sábios orientais, o homem é
um verme e um alimento para vermes. Este é o paradoxo: ele está fora da
natureza e inevitavelmente nela; ele é dual, está lá nas estrelas e, no
entanto, acha-se alojado num corpo cujo coração pulsa e que respira e que
antigamente pertenceu a um peixe e ainda traz as marcas das guelras para
prová-lo. Seu corpo é um invólucro de carne, que lhe é estranho sob muitos
aspectos – o mais estranho e mais repugnante deles é o fato de que ele sente
dor, sangra e um dia irá definhar e morrer. O homem está literalmente dividido
em dois: tem consciência de sua esplêndida e ímpar situação de destaque na
natureza, dotado de uma dominadora majestade, e no entanto retorna ao interior
da terra, uns sete palmos, para cega e mudamente apodrecer e desaparecer para
sempre (...). (ibid., p. 48-49).
Vemos, pois, ganhar carne o trágico da condição
humana nessa tensão entre o amor-próprio do homem, seu narcisismo básico, que,
ao longo dos 150 mil anos, desde o surgimento do homo sapiens, não diminuiu – amor-próprio constituído de símbolos,
palavras, sons, imagens – e sua condição de criatura, de um animal que “é
cônscio de sua limitação animal”. Eis, pois o horror, que o animal humano mantém afastado de si por
meio de mecanismos de repressão cultural: “ter surgido do nada, ter um nome,
consciência de si mesmo, profundos sentimentos íntimos, uma torturante ânsia
íntima pela vida e pela auto-expressão – e, apesar de tudo isso, morrer”
(ibid., p. 116). E Becker se pergunta: “que tipo de divindade iria criar um
alimento para vermes tão complexo e caprichoso? Divindades cínicas, diziam os
gregos, divindades que usam os tormentos do homem para se divertirem”. (ibid.).
O que
angustia a criança? A angústia, desde Kierkegaard, é uma forma de temor, mas
difere do medo por carecer de objeto (isto é, falta-lhe uma causa específica).
Angústia é sempre angústia de nada. Heidegger entendia que na angústia o nada
se revela e assedia o ser-aí. Na angústia, o homem é atravessado pela
experiência da perda de mundo, mas também é por ela que o homem aceita o fato
de ser um ser-para-a-morte. Aquilo com que a angústia se angustia é o
ser-no-mundo. Para os meus propósitos, porém, será bastante dizer que, na
criança, o afeto de angústia se manifesta como temor da vida e da morte: 1)
teme a impotência humana diante das forças da natureza; 2) teme os perigos da
vida; 2) o doloroso enigma da morte; 3) as grandes necessidades do destino,
contra os quais não há remédio. Segundo Becker (ibid., p. 78), a criança se
angustia em face do “fato de que a vida é demais para ela e de que, na verdade,
ela tem de evitar um excesso de pensamento, de percepção e de vida. Ao mesmo
tempo ela precisa evitar a morte, que ronda qualquer tipo de atividade
despreocupada, que lhe espia por sobre os ombros enquanto ela, a criança,
brinca”.
Na terceira
seção deste ensaio, antes da conclusão, demorar-me-ei no desenvolvimento da
tese, que venho, então, buscando sustentar, segundo a qual o afeto trágico, que
caracteriza fundamentalmente a existência humana, está originalmente implicado
no desenvolvimento do animal humano como animal simbólico. A partir dessa
terceira seção, transitarei pelo terreno da psicanálise freudiana/lacaniana com
vistas a demonstrar por que o trágico é o modo de ser fundamental e próprio do
homem, a raiz a partir da qual se edifica sua existência.
3. O animal simbólico ou animal trágico
O domínio de
referência à luz do qual tratarei do desejo é o da psicanálise
freudiana/lacaniana. Por conseguinte, deixo, forçosamente, fora do escopo de
minhas considerações tanto a definição spinozista de desejo como um apetite
quanto a de Deleuze & Guattari (2011). Spinoza, aliás, chega a dizer que,
por desejo, entende “todos os esforços, todos os impulsos, apetites e volições
do homem” (Spinoza, 2011, p. 141). Em seu Anti-Édipo,
Deleuze subverte o modo como a psicanálise compreende a relação do homem com o
mundo, relação centrada na hipótese do complexo de Édipo, o qual se baseia no
padrão de referência do Pai. Em vez de assumir o desejo como falta, Deleuze
mantém que “nada falta ao desejo, não lhe falta o seu objeto”. (ibid., p. 43).
Para Deleuze, o desejo produz, produz o real; ele é produtor de realidade. Conquanto
julgue inestimável a contribuição deleuzeana, entendo que ela não fornece os
elementos necessários para o tratamento da questão que me interessa neste
ensaio.
Na medida em que a psicanálise assume como postulado básico a
precedência da linguagem, do simbólico sobre uma ordem natural, o próprio homem
e sua condição problemática se constituem como uma questão cujo tratamento não
se faz senão por meio de remissões ao simbólico, à estrutura significante.
Conceitos tais como o de desejo, sujeito, pulsão, inconsciente, em
virtude dos quais a psicanálise se diferencia tanto da psicologia quanto da
biologia, devem sua consistência ao registro do simbólico, ou melhor, ao
postulado segundo o qual o homem é um efeito da linguagem. É por isso também
que o corpo que interessa à psicanálise não é o corpo biológico, mas o corpo
pulsional. Se nascemos com necessidades, nunca as experimentamos pura ou
diretamente, ou seja, sem a mediação da linguagem. A vida biológica é, como
tal, excluída da experiência do sujeito, que se relacionaria com ela por
intermédio da linguagem, que a fragmenta. Não custa lembrar que a hipótese do
inconsciente é que confere à psicanálise sua especificidade, sua razão de ser.
O inconsciente é a base de toda a vida psíquica; é o psíquico em si e sua
realidade essencial. O conceito de inconsciente se elabora a partir da
articulação entre o psíquico e a linguagem, os quais, por sua vez, se inscrevem
numa relação intersubjetiva permeada pelo afeto. O psiquismo é um rede de
traços articulados por operadores lógicos e temporais, em torno de um
acontecimento denominado de trauma
(acontecimento real fundador das perturbações psíquicas). Freud, em 1890, concebeu o
psiquismo como um aparelho de linguagem,
isto é, um conjunto de signos que dotava de sentido os acontecimentos
vivenciados pelos indivíduos. Já em 1895, Freud dirá que o psiquismo não é
apenas um aparelho de linguagem, ou seja, um conjunto de signos; é também um
campo de intensidades (pulsões). O psiquismo, portanto, constitui um campo de
signos permeado por intensidades, de maneira que as representações-palavra
seriam reguladas por investimentos afetivos, comandando então o psiquismo de
maneira permanente. O psiquismo é, pois, concebido fora da relação especular
entre as palavras e as coisas. Feitas essas considerações preliminares,
passarei a me ocupar de alguns conceitos da teoria psicanalítica, importantes
para que compreendamos de que modo o simbólico constitui a instância de
abertura do homem para a experiência trágica. Só há o trágico para o animal
simbólico que é o homem – é o que procurarei demonstrar a partir do exame de
conceitos estruturantes da teoria psicanalítica freudiana/lacaniana.
3.1. As pulsões e o
desejo
Sustenta a
psicanálise que o desejo é causado por um objeto que falta e que é responsável
pela estrutura faltosa que causou o advento do simbólico, tendo sido este o
fator absolutamente novo da evolução. Com o advento do simbólico, a linguagem
tornou possível um acesso diferente ao real. Foi graças esse acesso mediado
pela linguagem que se constituíram as quatro mais importantes criações do homem:
a arte, a religião, a filosofia e a ciência.
O desejo, marcado
sempre por uma falta, não pode ser formulado em palavras; ele não é articulável
em palavras no discurso, embora seja articulado no inconsciente. O sujeito da
psicanálise é sujeito do desejo, sujeito do inconsciente; é o correlato ativo
da falta. A falta é fundante do sujeito. O sujeito não nasce nem se desenvolve.
Ele é um efeito do campo da linguagem; é
efeito da ordem simbólica. Na medida em que é sujeito do inconsciente, o
sujeito é um efeito de um sistema de significantes articulados em cadeias. Para
Lacan, o sujeito é um ato de resposta ao Outro, o qual, por sua vez, é o
esqueleto material e simbólico da ordem social e cultural. O sujeito tanto mais
existe quanto mais é abolido, elidido. O que elide o sujeito é o significante,
que o funda e o constitui. O sujeito não é o nome para um referente empírico. O
sujeito é sempre sujeito suposto. Em suma, o sujeito é o átomo do simbólico:
não tendo significação alguma, é uma suposição do significante, que se impõe a
nós. Portanto, o sujeito da psicanálise distingue-se tanto do sujeito
cartesiano – porque não é um sujeito que se inscreve no ato de conhecer, um
sujeito suposto nesse ato – quanto do sujeito kantiano, já que não é um sujeito
transcendental, inscrito no campo do entendimento. Outra distinção deve ser
esclarecida aqui: o sujeito não se confunde com o ego, o eu. O “eu” é da ordem
do imaginário e do sentido, enquanto o sujeito é dividido entre os
significantes do simbólico. O sujeito jamais alcança uma unidade, pois é já
sempre dividido, atravessado pelo conflito, marcado pela impossibilidade de se
identificar de modo absoluto. Não há, para Freud, nenhum “eu” verdadeiro a ser
encontrado. A mente é um caos, e os sujeitos humanos devem esforçar-se pela
construção do ego, e não por buscar um eu interior, que é inexistente. Para
Freud, a alma humana está irremediavelmente cindida: a divisão da alma decorre,
em grande medida, da repressão do desejo. E essa repressão é inevitável, porque
onde há vida civilizada há perda da satisfação das pulsões.
Se o sujeito é
sujeito do desejo, segue-se que o que causa o sujeito é um objeto faltoso.
Lacan chama de “objeto a” a esse
objeto faltoso. O objeto a é a
presença de um vazio, um cavo, um buraco. Perdido definitivamente para a
espécie, o objeto a é faltoso para cada sujeito. É a rede de significantes que
funda tanto o corpo como corpo pulsional quanto institui o objeto como objeto a. O objeto a é a falta, o furo central em torno do qual se organizam os
significantes. O objeto a é da ordem do real (veremos o que significa “ o real” para a psicanálise, mais adiante). Voltarei
a considerar a importância do objeto a para a compreensão do sujeito quando me debruçar
sobre a distinção entre das Ding e die Sache, dois termos que, em alemão,
designam, “coisa”. Urge considerar, doravante, o conceito de pulsão.
Uma maneira simples
de definir pulsão consiste em
tomá-lo como motor do funcionamento do aparelho psíquico. A pulsão é uma força
ou pressão que afeta o organismo a partir de dentro e o impele a realizar ações
que buscam uma descarga de excitação, ou seja, a satisfação. A pulsão tem sua
fonte na excitação corporal, num estado de tensão e seu objetivo é pôr termo a
esse estado de tensão. Freud observará que a pulsão é um conceito fronteiriço
entre o psíquico e o somático. A pulsão é sempre um representante psíquico dos estímulos que provêm do interior do
corpo e atingem a mente, como uma medida de exigência. As pulsões vão
constituir uma nova realidade corporal, irredutível ao natural, ao instintivo.
Não são desvio do natural, mas diferença pura. As pulsões designam “um estado
de dispersão de intensidades corporais” (Garcia-Roza, 1990, p. 19). As pulsões
são intensidades anárquicas, que se referem ao corpo anárquico, desordenado. A
psicanálise leva em conta a dualidade corpo-linguagem/ pulsões anárquicas. Essa
dualidade é interpretada em termos de Ordem/Acaso. O corpo-linguagem
inscreve-se no lugar da Ordem; e as pulsões, no lugar do Acaso.
Assim como foi por
efeito do aparecimento da linguagem que as pulsões se constituíram, será também
por efeito da linguagem que elas serão ordenadas. O corpo resultante dessa
ordenação será um corpo submetido à ordem simbólica, ou seja, um
corpo-linguagem. Por conseguinte, conforme assinala Garcia-Roza (ibid.):
Se admitirmos esta
ficção como ponto de partida estratégico, veremos que a ideia de um mundo
natural e ordenado, independente da linguagem, é que se apresenta como fictício.
É apenas no lugar da linguagem que podemos supor um mundo que lhe seja
anterior, mundo dos começos, mundo verdadeiramente mítico.
Eis o que não se
pode perder de vista, quando consideramos ser o trágico uma experiência própria
da condição humana: a relação humana com o corpo-objeto é caracterizada pela
impossibilidade de completude, porque mediada pela linguagem. O que a
psicanálise chama de pulsão sexual é a pulsão que diz respeito a esse
corpo-linguagem, visto que o sexual supõe forma, ordem, e somente podemos falar
em forma e sentido no lugar da ordem e da linguagem. Tanto a pulsão, como o
desejo e seu objeto são efeitos da linguagem. A pulsão é também da ordem do
real.
Assim como o desejo
é marcado pela falta, o objeto absoluto falta também para a pulsão, mas falta
no sentido paradoxal de que esse objeto da pulsão nunca existiu. Lacan pensa o
homem como desejo, desejo que permanece como falta. O objeto absoluto é essa
falta. O homem é pensado, portanto, a partir dessa falta do absoluto para o
qual, no entanto, ele, homem, se inclina, na condição de ser de desejo. Entre a
pulsão e o objeto, interpõe-se o desejo e a fantasia. Um objeto só se constitui
em objeto da pulsão se ele for objeto para o desejo. Como é a fantasia
responsável pela articulação entre o objeto e o desejo, ela é mediação
necessária entre a pulsão e o objeto. Nisso consiste, pois, o estatuto da
fantasia: cabe à fantasia articular a pulsão – força constante – ao objeto. A
fantasia funciona como uma espécie de tela entre o sujeito e a pulsão. A
fantasia transforma o gozo em prazer. A fantasia é o que protege o sujeito do
real. Entre o corpo pulsional e o objeto, interpõe-se, portanto, o desejo e
suas fantasias; e isso significa dizer que entre corpo pulsional e objeto
impõe-se a rede de significantes da linguagem. É fácil ver que é
constitucionalmente impossível ao animal humano viver sem fantasias; isso
deveria servir de advertência para todo credo racionalista que pretenda liberar
o homem de suas ilusões e fantasias. Este texto pretende também ser um alerta
sobre o fato de que qualquer proposta que reivindique a naturalização do homem
deve, primeiramente, compreender de que modo o animal humano é constituído pela
linguagem. A linguagem é mais do que uma faculdade cognitiva que lhe permite
usar uma língua, é mais do que um instrumento de comunicação. O que a
psicanálise nos mostra é que a linguagem é o campo de significantes que
estrutura a condição humana, que a constitui. Graças à linguagem, o homem é
filho de uma negatividade: é filho de um buraco, de um abismo; ele nasceu
quando se negou a morrer ajustado, quando perdeu sua unidade com a natureza,
quando no seu ser natural foi feita uma “rachadura”. Ao reprimir sua natureza
animal (pode-se dizer, de certo modo, ao perder sua natureza animal), o homem
teve de inventar uma segunda natureza, chamada “cultura”, que funciona como uma
espécie de tampa, um tampão que o impede de ver o abismo que o constitui. O
trágico aqui, que o animal humano insiste em recusar, que não pode ver
verdadeiramente, é que ele ensaia a pose de um deus, mas morre como todo
animal.
As pulsões estão à
deriva, o que significa dizer que estão sempre remetidas ao acaso dos
encontros. O encontro, no entanto, é sempre faltoso. Esse encontro faltoso vai
ser submetido ao ordenamento pelo mundo dos signos. O que estrutura a libido –
entendida como energia vital fundamental - não é o primado do genital, mas a
articulação das pulsões com a rede de significantes. É na sua articulação com a
rede de significantes que uma ordem lhe é imposta. Trata-se, porém, de uma
ordem que lhe é externa, ordem própria dos signos e não das pulsões; é por essa
razão que só se pode alcançar uma satisfação parcial. Como soube ver bem
Schopenhauer, grande precursor da psicanálise, a satisfação plena é impossível;
e essa impossibilidade se deve ao fato de à pulsão ser dado jamais o objeto,
que falta, mas um substituto, um representante.
Ora, se, por um lado, a submissão ao mundo dos signos inviabiliza a
satisfação plena; por outro lado, essa mesma submissão multiplica de forma incomensurável
as possibilidades de satisfação (embora parcial). Nisso reside o equívoco
fundamental da pulsão. O mundo para o qual ela tende, se inclina, é um mundo
que é efeito de outra ordem, a saber, da ordem simbólica, mundo este onde não
há que buscar o objeto perdido, dado que esse objeto jamais o habitou.
3.2. Representações-coisa e
representações-palavra
Em princípio,
frisa-se que Ding, que significa
“coisa”, em alemão, não se confunde com objeto (em alemão, Gegenstand). Objeto se define como aquilo que se coloca “diante de
nós” como correlato da percepção, da consciência. Objeto deriva do latim objectum, no qual o prefixo “ob” significa “diante de”. Freud faz uso
distinto dos termos que, no alemão, significam “coisa”: die Sache e das Ding. Das Ding é o objeto perdido e que deve
ser reencontrado, muito embora, paradoxalmente, jamais o tenhamos
experimentado. É na busca de das Ding
(Coisa) que se vai constituir a trama das representações. Essa busca será
governada pelo princípio de prazer.
Esse princípio atua sobre as representações, produzindo a transferência de
energia de um representante para outro representante sucessivamente, de modo
que nos movimentamos em torno de um centro sem nunca atingi-lo. Esse centro é
das Ding.O primeiro representante de das Ding é a pulsão, o que instaura, ao
mesmo tempo, uma aproximação e distância. Quando se constitui o registro das
representações, ou seja, dos representantes ideativos da pulsão, todas as
representações se tornam equidistantes do objeto perdido.
Freud distingue
entre sachevorstellung, ou representação-coisa e Wortvorstellugen
(representações-palavra). As representações-coisa estão ligadas às
representações-palavra de modo necessário. As coisas (Sachen), uma vez que constituem
o mundo organizado, mundo dotado de ordem humana, passam primeiro pelo
investimento simbólico, ou seja, da palavra. As coisas estão, portanto, desde o
início, submetidas à ordem simbólica. Isso significa dizer que o modo como
temos experiência das coisas é ordenado pela linguagem; significa dizer que o
mundo das coisas é um mundo semiotizado. Nesse sentido e para este mundo
semiotizado, é um equívoco pensar nas palavras como ‘etiquetas’ que colocamos
nas coisas, como se estas preexistissem à linguagem. Das Ding, por seu turno, designa a coisa de modo diverso. Das Ding habita um outro lugar, para
além do universo da linguagem. A importância do papel desempenhado pelas
palavras consiste em que elas dotam as representações-coisa de realidade por
meio do discurso. As palavras é que possibilitam a articulação das
representações-coisa com o pré-consciente. Die
Sache é a palavra da Coisa (Ding).
Vamos esclarecer melhor esse ponto.
As representações-coisa
se inscrevem no inconsciente, ao passo que a representação-palavra pertence ao
campo do pré-consciente/ consciente. Mas, no inconsciente, as
representações-coisa estão articuladas pelos significantes, formando uma
estrutura do inconsciente. Deve-se, pois, a esta altura, distinguir entre a
linguagem como função e a linguagem como estrutura. Na condição de função, a
linguagem corresponde à representação-palavra. Trata-se da atividade de
simbolização da linguagem que se dá no nível pré-consciente/consciente. A
linguagem como estrutura, por outro lado, refere-se à linguagem estruturante da
rede de significantes no nível inconsciente (representações-coisa). As
representações-coisa, conforme disse, estão no inconsciente, mas articuladas
como significantes, já que a linguagem está presente desde o início em sua
função estruturante. É como representação que a coisa (Sache) se constitui.
Para Freud, representação é a forma ideativa da presentificação da pulsão no
aparelho psíquico. Ela toca ao elemento imaginário do objeto. Representação é o
que se constitui ao redor da Coisa (Ding)
como aparição, como fantasma.
Portanto, o mundo das representações se organiza numa ordem que é a ordem das
possibilidades do significante. A coisa-Ding é muda; ela nada tem a ver com a palavra.
Das Ding não pertence ao espaço da representação,
muito embora deixe uma marca, um vestígio de sua presença na ausência. Há algo
no nível das representações-palavra que sinaliza para a Coisa (Ding). Todavia, esse algo, não sendo a
Coisa disfarçada, é um vazio que não pode ser preenchido adequadamente por
objeto algum. Esse vazio é o objeto a;
mas o objeto a não é Das Ding; é o
índice ou testemunha de das Ding como
objeto perdido. Esse índice – objeto a
– não é um objeto específico, mas um furo, um vazio. O objeto a não é objeto do desejo, mas objeto-causa do desejo. A
função do objeto a-, causa do desejo, é ser produtor da falta, e sua relação
com a pulsão é a de ser contornado por ela. A pulsão aponta para das Ding e, ao mesmo tempo, a contorna.
As pulsões são, desde o início, inibidas quanto ao seu alvo. É desse desvio
quanto ao seu alvo (a satisfação) que Freud fala como sendo o mecanismo da sublimação. Para Lacan, a relação entre
a sublimação e das Ding posiciona o homem como médium,
um intermediário entre o real – que não se confunde, conforme veremos, com a
realidade – e o significante. Consoante pondera Garcia Roza (ibid., p. 89),
Todas as coisas
criadas pelo homem e que são do registro da sublimação são de algum modo
representadas por um vazio porque não podem ser representadas por outra coisa,
“ou mais precisamente, porque só podem ser representadas por outra coisa”.
3.3. Princípio de
realidade
No tocante ao princípio de realidade, cumpre dizer
que ele não diz respeito ao mundo da experiência sensível, não diz respeito à
realidade biofísico-social, mas aos signos que o indicam. É por força dessa
insistência significativa do simbólico que a vida se acha presa ao simbólico de
maneira despedaçada, decomposta, fragmentada, e o ser humano se acha, ao menos
em parte, fora da vida. Por isso, o animal humano participa da pulsão de morte,
e o registro do simbólico está numa relação com a pulsão de morte. O princípio
de realidade diz respeito à quantidade de energia conservada e suportada pelo
organismo para que ele responda adequadamente à necessidade de conservação da
vida. No entanto, o mundo ao qual tal princípio nos remete não é o mundo
ordenado de que temos consciência. Nossa psique fornece sempre, seja no nível
pré-consciente/consciente, seja no nível inconsciente, signos, ou mais
precisamente, significantes. O que nos é fornecido está submetido à função
estruturante da linguagem. Em outras palavras, o que encontramos são sempre Sache (representações-coisa) e nunca Ding (a Coisa).
O princípio de
realidade só pode funcionar mediante um sistema de neurônios denominado por
Freud neurônios ômega. O que os
neurônios ômega fornecem é um signo de realidade e não a realidade ela própria.
O ponto de partida do princípio de realidade são as informações enviadas pelo
sistema ômega de neurônios, os quais são responsáveis pela percepção. Todavia,
o princípio de prazer atua precisamente sobre a percepção e, uma vez que o
princípio de realidade visa a uma identidade perceptiva, deriva daí um paradoxo
no próprio princípio de realidade: ele torna difícil distinguir entre uma
identidade perceptiva alucinatória e uma identidade perceptiva real. O
princípio de realidade não corrige o mundo interno em relação ao mundo externo,
mas corrige o mundo interno em relação a si mesmo.
De tudo que precede, segue-se que o aparelho psíquico, porque
se constitui como mediador entre o corpo e o mundo exterior, e porque se
estrutura segundo princípios que são conformes à linguagem, esse aparelho acaba
por isolar o indivíduo da própria realidade. O aparelho psíquico passa então a
ser composto por signos dessa realidade externa. E, como sabemos que os signos
são equívocos, enganosos, o autoengano e o equívoco são inerentes à relação que
mantemos com a realidade externa.
3.4. O real, o
simbólico e o imaginário
Real, simbólico e imaginário
constituem três registros psíquicos que, não podendo ser analisados
separadamente, constituem uma tripartição estrutural sem a qual, segundo Lacan,
não se poderia compreender satisfatoriamente as teses freudianas sobre o
psiquismo. Essas três categorias estavam apenas entrevistas no pensamento de
Freud; coube a Lacan formulá-las e defini-las. Os três termos estão ligados de
modo indissociável, e, a fim de ilustrar o fato de que “tudo começa com três”,
ou seja, de que são necessários três elementos inextricavelmente articulados
para que se tenha uma estrutura, Lacan lança mão do modelo de representação do nó borromeano.
O real de que fala a psicanálise não se
identifica com a realidade biofísico-social. Em outras palavras, o real não é a
realidade que conhecemos em nossa experiência de mundo cotidiana. O real é o
impossível de ser simbolizado. O real é o que ex-siste, ou seja, o que está fora, o que escapa à trama do
sentido. O real é o não-senso radical, o que não tem nenhum sentido. O real é a
parte do sujeito que escapa à análise. O real se encontra além do simbólico e
do imaginário, para além da palavra e da linguagem. O real, não sendo a
realidade percebida, tampouco é a realidade psíquica. A realidade psíquica é a
realidade do inconsciente, do desejo e de suas fantasias. Se a realidade
exterior é fabricada, ordenada a partir da linguagem e tem como referência o
sujeito, o real é o pré-subjetivo e constitui um registro distinto do
simbólico. O real não se submete à organização do mundo externo nem obedece à
organização da realidade psíquica. O real, situando-se além da ordem e da lei,
está fora do campo do princípio de prazer. Ele coloca-se como um obstáculo ao
princípio de prazer. O real é o oposto do imaginário. Destarte, o real excede à
capacidade de representação psíquica: o real é a morte, a perda, aquilo que não
tem inscrição possível no psiquismo. O real é, por excelência, o trauma, isto é, aquilo que não pode de
modo algum ser assimilado pelo sujeito em suas representações
simbólico-imaginárias. O real é o limite da simbolização. Em suma, ele é, no
animal humano, o registro do trágico.
O simbólico, por seu turno, identifica-se
com o campo da linguagem, por meio do qual o sujeito impõe resistência ao real
traumático e reconstitui incessantemente seu imaginário que está,
continuamente, submetido à invasão do real. O registro do simbólico é da ordem
do duplo sentido, porquanto permite ao falante mediar o encontro com o sem-sentido do real. O simbólico é o
registro que vem ocupar, no sujeito, o lugar da falta real primordial do
imaginário. O que é da ordem do ôntico, para o homem, é constitucionalmente
marcado por uma falta originária. Há uma distinção fundamental entre o sujeito
e o eu: o sujeito está numa relação excêntrica com o eu. O sujeito não é o
indivíduo, isto é, o sujeito não é indiviso. Ao contrário, o sujeito é marcado
por uma divisão constituinte, é determinado pelo simbólico, dividido entre os
significantes que o constituem. O lugar do sujeito é o lugar do corte, da
ruptura, ao passo que o eu representa a configuração de uma unidade, de uma
completude, constituída imaginariamente. O que chamamos de realidade é uma
montagem pela qual são responsáveis o simbólico e o imaginário. Toda a
realidade, incluindo a realidade psíquica, é configurada a partir da fantasia
inconsciente fundamental. O relacionamento do sujeito com outros sujeitos e com
o mundo exterior será sempre mediado por essa tela da fantasia, protetora do
real traumático. É a fantasia,
constituída pelo simbólico, pelos significantes do Outro que medeia o encontro
do sujeito com o que é inabordável enquanto tal – a saber, o real. Não é
custoso entender em que medida o simbólico está no cerne da problematicidade da
existência humana. A linguagem é, enquanto substituição do real inefável, uma
possibilidade de atividade para o sujeito. O que era vivência passiva imediata
para ele passa a ser vivido ativamente por meio da linguagem. A subjetivação
das vivências depende do processo de simbolização que a linguagem permite. Todo
uso da linguagem é metafórico, no sentido de que a linguagem, em si mesma, é da
ordem da substituição de uma falta originária; ela, a linguagem, é, em si
mesma, uma imensa metáfora. A precedência da ordem simbólica faz com que a linguagem
seja o que constitui a realidade para cada sujeito, pois que, antes dela, só há
a indiferenciação do real. Destarte, Lacan entende que a metáfora se situa no
ponto preciso em que o sentido se produz a partir do não sentido, isto é, do
real. A entrada do sujeito na ordem da
linguagem – ordem simbólica – re-produz uma perda de ser original. A
linguagem, inscrevendo-se no lugar da
falta-de-ser, será sempre metáfora do sujeito. O Outro, enquanto lugar do
significante, é o registro do simbólico, na medida em que o campo dos
significantes é faltoso, incompleto; nele há sempre a possibilidade de um ato
criativo, de um novo significante. Jamais se sai, portanto, do regime da
linguagem. Estamos sempre mergulhados no campo da linguagem, e não existe
qualquer outra linguagem, senão a linguagem verbal, que venha dar conta desse
campo.
No tocante ao imaginário,
cumpre dizer que é o registro oposto ao real. O imaginário, por isso,
recobre a ordem do sentido. O imaginário é imaginário do sujeito; é marcado por uma falta originária, uma
hiância real que virá a ser preenchida pelo simbólico. Essa falta do imaginário
do sujeito é uma hiância congênita que o ser real do homem apresenta em suas
relações com o natural.
3.5. O Campo
pulsional: pulsões de vida e pulsão de morte
Segundo Freud,
fazendo eco a Schopenhauer, anteriormente à hegemonia do princípio de prazer, o
psiquismo se regularia originalmente pelo princípio do Nirvana, sendo
necessária a incidência insistente de Eros, para que o prazer se instituísse
finalmente como princípio regulador da vida. O psiquismo é movido por um
confronto interminável de forças. Entre o amor e a discórdia, há uma guerra
permanente no psiquismo, de maneira que representar como se processa essa
guerra não é mais uma possibilidade fácil para o sujeito. Há, pois, um fundo de
acaso contra o qual se estabelece uma ordem e com a qual ela mantém uma relação
estrutural. O Id é uma instância psíquica inconsciente, embora não se confunda
com o inconsciente. As pulsões estão situadas para além do Id. As pulsões são
forças que, supostamente, existem por trás do Id e que representam as
exigências que o corpo faz relativamente à psique.
O homem trágico
aparece, portanto, no discurso psicanalítico a partir do reconhecimento da
presença de forças em constante conflito – pulsões de vida e pulsão de morte. A
mais primitiva delas, a pulsão de morte, é irrepresentável e seu movimento se
expressa, inexoravelmente, em direção à morte, à extinção do indivíduo e ao seu
retorno a um estado anterior de coisas.
Ao postular a
existência de um conflito insolúvel entre as pulsões de vida e a pulsão de
morte no psiquismo humano, Freud reconhece sua dívida para com o filósofo
pré-socrático Empédocles (492-432 a. C.). Empédocles concebia esse conflito no
âmbito cosmológico. Para ele, as partículas primordiais do Cosmos (terra, água,
fogo e ar) combinam-se entre si sem qualquer ordem estabelecida. Foi por força
do acaso que surgiram os primeiros seres vivos.
Empédocles entendia que todas as quatro substâncias conservam-se como
raízes do Cosmos. Essas raízes sempre existiram, mas elas se misturam entre si
em proporções variadas, de modo a produzir a estrutura do mundo e as coisas do
céu. Empédocles atribuiu a dois princípios
ativos a mistura das substâncias fundamentais: a Eros (Philia) e a Discórdia ou
Ódio (Neikos). O Amor é responsável
por combinar os elementos, e o Ódio, por separá-los. Em determinado momento, as
substâncias crescem para ser uma entre muitas; noutro momento, dividem-se para
ser muitas a partir de uma. Há, pois, um movimento contínuo de união por força
do Amor e de separação por força do Ódio.
Em sua constituição, o mundo passa por quatro fases:
1ª fase: o mundo é uma esfera homogênea que se encontra em repouso.
No início, existia uma esfera em que estavam intimamente misturadas todas as
substâncias, de tal forma que não se podia distinguir qualquer delas;
2ª fase: em determinado
momento, o Ódio, que, na primeira fase, encontrava-se no extremo limite da
esfera, começa a dirigir-se para o centro, provocando a separação das
substâncias. Nessa fase, o Ódio ainda não exerce domínio total, pois o Amor ou Philia ainda preside a algumas reuniões.
3ª fase: o Ódio domina por absoluto, tendo-se o Amor se afastando. O
domínio total do Ódio vai levar à total separação das diferentes substâncias.
4ª fase: com a
aproximação do Amor e o afastamento progressivo do Ódio, o processo de
agregação se reinicia, culminando com a mistura completa da primeira fase.
A dinâmica de
mistura e a separação das substâncias explica o devir e a multiplicidade do
mundo. Todo nascimento é também morte, porque, se, por um lado, dá início a um
novo conjunto; por outro lado, faz desaparecer algo que já existia sob uma
forma diferente. A teoria cosmológica de Empédocles encaminha a conclusão
segundo a qual Philia e Neikos, ou Amor e Ódio, são princípios
responsáveis pela união/junção e desunião/ separação das substâncias
fundamentais. Esse duplo movimento tensional inerente ao cosmos explica a
existência dos diferentes seres, todos sujeitos aos dois impulsos simultâneos e
divergentes. Por fim, para Empédocles,
toda ação é resultado da associação e do acaso.
Inspirado na teoria
de Empédocles, Freud supõe a existência de um conflito permanente no interior
do ser humano. O animal humano é dotado de uma potência de destruição. Nosso
corpo, ao pretender evitar a morte, desvia a pulsão de morte para fora e,
assim, o ataque destrutivo é dirigido contra os objetos. Com a noção de pulsão
de morte, Freud inscreverá a violência como um forte elemento caracterizador da
psique humana. A pulsão de morte, nesse contexto teórico, é tanto o retorno ao
inorgânico quanto o prazer na destruição de si mesmo e do outro.. O estado de perfeito
equilíbrio é encontrado apenas no mundo inorgânico, antes de a vida ter feito
sua emergência. Uma vez tendo produzido o desvio – a vida – o destino natural
da pulsão de morte não pode ser outro senão o retorno ao inorgânico (por isso,
Freud entendia que o sentido da vida, sua direção, é a morte). As pulsões de
vida e a pulsão sexual são ordens emergentes a partir de um estado anárquico
que seria a vida em seus começos. A vida é, para Freud, perturbação, e o que é
perturbado é a quietude do inorgânico. Como não existe pulsão de morte nem
pulsões de vida em si, ou seja, isoladamente, deve-se falar em campo pulsional, um campo constituído
de corpos-força que são as pulsões de vida e de morte interligadas.
As pulsões de vida
são ruidosas e pródigas em nos fornecer seus representantes psíquicos. Por
outro lado, a pulsão de morte é silenciosa e tende a se ocultar. A pulsão de
morte representa o caos-acaso. Ela representa o fundo-acaso sobre o qual se
diferenciam as pulsões de vida como ordem. Com o retardo do retorno ao
inorgânico, as pulsões de conservação puderam se desenvolver. As pulsões de
conservação dizem respeito ao nosso caminhar inevitável para a morte, visto que
sua função é garantir que o transcurso da vida até a morte se dê por
circunstâncias imanentes ao próprio organismo. Em outros termos, as pulsões de
conservação asseguram que os seres vivos venham a morrer por causas naturais. A
pulsão sexual ou pulsões de vida instituem uma pluralidade de ordens sobre um
fundo pulsional anárquico.
Segundo Lacan, a
pulsão de morte dever ser entendida como uma vontade de destruição, mas não
“vontade” à moda schopenhaureana. A pulsão como vontade de destruição não é uma
tendência a reproduzir o mesmo (por exemplo, o mesmo mundo tormentoso, como em
Schopenhauer); mas vontade de recomeçar com novos custos. A pulsão de morte
pode ser vista sob três domínios semânticos: 1) o da entropia, ou seja, o do
nível dos sistemas materiais inanimados; 2) o do nível dos organismos, dos
seres vivos: retorno ao inanimado; 3) como vontade de destruição e potência
indispensável à criação.
A pulsão de morte é
o que se repete. Mas repetição aqui não é reprodução, como nos advertia
Kierkegaard, Nietzsche e Deleuze. Repetição não é repetição do mesmo, mas
repetição diferencial. Tanto para Kierkegaard quanto para Nietzsche, a
repetição implica algo novo. Freud e Lacan endossam essa visão: a repetição
implica o novo, é criação de diferenças. A pulsão de morte, na medida em que se
opõe a Eros, constitui um obstáculo grande para a cultura. É que Eros é
responsável pelas unidades, pelas uniões, e a cultura, na medida em que produz
reuniões, agrupamentos (família, sociedade, nações, etc.) é a tentativa de
realizar o que é exigência de Eros. A cultura estaria, pois, a serviço de Eros.
Todavia, a pulsão de morte, na condição de potência destrutiva, tem como alvo a
disjunção das unidades, a recusa da permanência. Se a pulsão sexual é
conservadora, porque, além de instituir uniões, tende a mantê-las, a pulsão de
morte é renovadora, subversiva. Como esteja a serviço do questionamento do status quo, a pulsão de morte é potência
criadora. Portanto, se Eros tende à unificação, à indiferenciação, a pulsão de
morte, como princípio disjuntivo, é produtora de diferenças.
Para Lacan, a pulsão
de morte é antinatural; para Freud, ela é anticultural. Não é antinatural
porque visaria à destruição da natureza, tampouco é anticultural porque visaria
à destruição da cultura; mas porque coloca em questão tanto uma quanto a outra,
ou seja, porque recusa a permanência do “mesmo”, provoca tanto na natureza
quanto na cultura a emergência de novas formas. Na condição de repetição
diferencial, a pulsão de morte é um estímulo para o psíquico, mas não é um
estímulo psíquico. As pulsões não são estímulos fisiológicos, porque, ao
contrário destes, as pulsões atuam como força constante. A pulsão é externa ao
aparelho psíquico, se situa além da linguagem e da ordem; por conseguinte, se
acha no lugar do acaso e da dispersão – e, mesmo assim, tem uma historicidade.
Sua historicidade consiste em que a pulsão se refere a algo memorável ou
memorizado. É porque se dá uma presença da pulsão no psiquismo humano que a
historização (o memorável) é possível. Como a pulsão só é pulsão pela inscrição
no simbólico, a historicidade da pulsão é a sua não naturalidade. A rememoração
deve sua possibilidade à cadeia significante. Ao ser capturada pela rede de
significantes, a pulsão ganha historicidade.
A pulsão de morte é
uma potência de destruição, porque ela atua disjuntivamente contra a
perpetuação das formas e uniões levadas a efeito por Eros. Se entendermos o
desejo como pura indiferença, o projeto de Eros é a eliminação da diferença e,
portanto, do desejo, numa indiferenciação final. A pulsão de morte, enquanto
potência destrutiva, é o que impede a repetição do mesmo, produzindo, pela
disjunção, a emergência de novas formas. Ela é, portanto, criadora, e não
conservadora, dado que impõe novos começos ao invés de produzir o mesmo.
Consoante assinala Garcia-Roza (ibid., p. 137), “a verdadeira morte – a morte
do desejo, da diferença – sobrevém por efeito de Eros e não da pulsão de
morte”.
4. Para concluir
Chamar ao homem animal
simbólico significa admitir que ele é um animal excêntrico, extravagante,
pois que desnaturado, atravessado pelo desajuste em relação à ordem natural. O
animal humano é marcado constitucionalmente por uma falta irremediável,
intransponível porque o humano nele é efeito da linguagem, é um efeito da ordem
do simbólico. Se o homem é constituído de um excedente pulsional, em função do
qual se pode explicar ao mesmo tempo seu excesso e indigência crônica em
relação à ordem natural, é porque sua existência mesma está inteiramente
submetida ao regime da linguagem. Há um conflito insuperável entre o campo
pulsional e a cultura; é nesse conflito que se inscreve o trágico da condição
humana. O sentimento do caráter trágico da vida e a consciência constante de
que toda a sua vida é um transcorrer para a morte inevitável é o preço alto que
o homem teve de pagar quando a evolução lhe tornou possível o desenvolvimento
da faculdade da linguagem, sem a qual não seria capaz nem de pensamento
conceitual nem de conhecimento racional, mas em virtude da qual, por outro
lado, se tornou o ser mais infeliz, o mensageiro de seu próprio agouro, o caminhante
que sabe que caminha em direção ao seu inevitável aniquilamento e que, mesmo
certo do vaticínio de seu fim, precisa continuar a inventar ficções para poder
viver e não pode, por um momento sequer, livrar-se das fantasias que o protegem
de um confronto com o real que, se ocorresse, o levaria à loucura desordenada,
desintegradora e ao aniquilamento.