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domingo, 6 de março de 2016

A morte do corpo desvela para a alma a vida verdadeira

         


Capítulo terceiro do trabalho A maximização da figura do filósofo e do estatuto da filosofia no Fedro à luz do misticismo religioso de Platão apresentado na disciplina Filosofia Antiga IV do curso de Filosofia da UERJ.


                        3. A teoria da alma



No livro IV de A República, Platão apresentará sua psicologia que assenta na divisão da alma em três partes ou funções. É importante, antes de explicar quais são essas partes e a que finalidades elas servem, dar a conhecer o contexto temático no qual a teoria da alma será desenvolvida, visto que essa teoria se apresenta como um desdobramento da questão central que ocupa Sócrates naquela altura do diálogo. A questão do que é a justiça, que atravessa todo o diálogo de A República, demanda, no livro IV, uma investigação sobre as condições necessárias para que a cidade, na medida em que exibe uma ordem justa, se torne feliz. Lembremos que Platão sustenta que uma cidade justa deve ser, necessariamente, uma cidade feliz. Platão faz a felicidade da cidade depender de sua ordem justa. Ora, uma cidade que não se organizasse segundo a justiça (e a questão de todo o diálogo consiste em investigar o que é justiça com o objetivo de determinar o Estado ideal ) não poderia ser uma cidade feliz. 
A questão sobre a qual Sócrates irá se debruçar é prefigurada na pergunta, formulada por Adiamanto, no início de sua fala, a respeito da situação social da classe dos guardiães. Adimanto solicita a Sócrates que explique como é possível que tais homens sejam felizes se vivem privados do usufruto de bens a que outros chefes têm acesso em abundância. Adimanto está interessado particularmente na situação de privação econômica da classe dos guardiães e sugere que a essa situação devemos a impossibilidade de torná-los felizes. Como se vê, o problema que se impõe reconhecer, desde início, - e Sócrates não se esquiva de reconhecê-lo – é que as desigualdades sócio-econômicas constituem um obstáculo para o estabelecimento da harmonia da cidade. Na medida em que uma cidade justa é uma cidade cujas partes estão em harmonia, a existência de desigualdades sócio-econômicas favoreceriam a desarmonia entre as partes; logo estorvariam o estabelecimento de uma cidade justa.
Depois de, forçosamente, concordar com Adimanto em que sua questão apresenta um problema que demanda consideração, Sócrates opera um deslocamento da questão, a fim de que seu interlocutor perceba que o problema a ser resolvido não diz respeito circunscritamente à situação dos guardiães, mas toca à cidade inteira. Para Sócrates, a fundação da cidade deve favorecer a felicidade de todos que nela vivem. A esta altura, não poderia deixar de frisar que o deslocamento da questão, operado por Sócrates, não tinha o fito de dar conta do problema das desigualdades sócio-econômicas que, na mentalidade dos antigos, eram vistas como naturais. Segundo a visão de mundo dos antigos, as desigualdades sociais existem, porque os homens são, por natureza, desiguais – assim pensavam os antigos gregos. Sócrates, portanto, reconhecia a existência das desigualdades no domínio social, mas não estava (e não podia estar) preocupado em saná-las. Na cosmovisão grega, somos um fragmento eterno do cosmos; cada homem tem um lugar no interior da ordem cósmica, que é considerada boa e justa. Uma das finalidades da vida humana é, portanto, encontrar seu justo lugar no seio da ordem cósmica. Para garantir a harmonia dessa ordem, era indispensável que cada homem realizasse a função que lhe é própria por natureza.
No âmbito da pólis, a justiça só poderá ser garantida se os cidadãos forem educados segundo a prática de três virtudes: a sabedoria, a coragem e a temperança . A sabedoria é a virtude própria dos governantes; a coragem, dos guardiães da cidade, cuja função é defendê-la quando estão no campo de batalha. No tocante à temperança, ela é “uma espécie de ordenação, e ainda o domínio de certos prazeres e desejos, como quando dizem, não entendo bem de que maneira, “senhor de si””[1]. Sócrates dirá que a temperança deve ser extensiva a toda a cidade.
A justiça da cidade é correlativa à justiça no indivíduo, ou melhor, a justiça da cidade se identifica com a justiça no indivíduo. Pensando a conformação da pólis correlativamente com a conformação das naturezas individuais, Platão desenvolverá sua teoria da alma calcada sobre a ideia de que a alma é uma unidade múltipla, dividida em três partes. O trecho em que a analogia entre a estrutura da cidade e a estrutura da alma é explicitada merecerá um lugar neste texto; mas, antes de apresentá-lo, convém atentar para o passo em que se tornam claras a correlação entre a justiça da cidade e a justiça do indivíduo, a dependência da justiça na cidade com respeito ao cumprimento por cada homem de sua função própria e a introdução do tema da estrutura da alma:


- Dessa forma, prossegui eu -, se uma pessoa nomear da mesma maneira uma coisa, quer seja maior ou menor, serão diferentes, na medida em que são designadas da mesma maneira, ou semelhantes?
- Semelhantes – respondeu.
- Por conseguinte, o homem justo, no que respeita à noção de justiça, nada diferirá da cidade justa, mas será semelhante a ela.
- Sim.
- Mas a cidade pareceu-nos justa, quando existem dentro dela três espécies de naturezas, que executam cada uma a tarefa que lhe era própria; e, por sua vez, temperante, corajosa e sábia, devido a outras disposições e qualidades dessas mesmas espécies.
- É verdade.
- Logo, meu amigo, entenderemos que o indivíduo que tiver na sua alma estas mesmas espécies merece bem, devido a essas mesmas qualidades, ser tratado pelos mesmos nomes que a cidade.
- É absolutamente forçoso – confirmou ele.
- Ora, lá caímos nós, meu caro amigo, numa questão de pouca monta sobre a alma: saber se possui em si três partes ou não.[2]


Um pouco adiante Sócrates pretende que seu interlocutor concorde em que “em cada um de nós estão presentes as mesmas partes e caracteres que na cidade”. Fique claro, pois, que a justiça, para Platão, consiste na realização por cada homem da função que lhe é própria; por outro lado, constitui injustiça o tomarem os homens como sua a tarefa que não é consonante com a sua natureza. Vê-se que a justiça só pode realizar-se, no Estado ideal, com a preservação do status quo, ou seja, de uma organização política na qual cada homem deve desempenhar a tarefa que lhe é própria por natureza (porque em conformidade com suas disposições ou caracteres naturais) sem “se meter na dos outros”[3]. O Estado ideal, fundado no regime aristocrático e tendo como governante o filósofo, único capaz de garantir a justiça e favorecer o bem e a felicidade da comunidade, porque conhecedor da realidade imutável, amigo do saber e, por consequência, capaz de viver com moderação e retidão moral, não carece de muitas leis, que poderiam ser reduzidas a umas poucas essenciais. Da garantia da harmonia – portanto, da justiça nesse Estado – deve encarregar-se uma educação que prepare os indivíduos para  viver de modo disciplinado e racional. Esse Estado ideal precisa, portanto, ser portador de quatro virtudes: sabedoria, coragem, temperança e justiça. A justiça é a virtude mais importante do Estado e, tendo demonstrado o que é um Estado justo, Sócrates se ocupará de mostrar o que é um indivíduo justo. É justamente nesse momento, em que Sócrates se volta para a explicação do que é um homem justo, que ele discorrerá sobre a natureza da alma como uma unidade múltipla, cujas partes tratará de discriminar e definir.
Considere-se, pois, no que consiste a teoria da alma proposta por Platão. Escusa lembrar que a compreensão dessa teoria iluminará o que sobre a alma nos conta o mito da Parelha Alada, no Fedro. Se revisitamos o contexto filosófico de A República, não foi senão por cuidarmos estar aí explicitada a psicologia platônica. Nossa revista dessa obra não constitui um desvio do curso fixado por nosso objetivo; ao contrário, é um momento do desenvolvimento de um discurso em cujo bojo reside a preocupação em investigar os desdobramentos doutrinários que levaram à maximização da figura do filósofo e da importância da filosofia no Fedro. Naturalmente, Platão desenvolveu suas doutrinas, recuperando-as, aprofundando-as em diversos diálogos seus, o que exige de nós a revisita aos “lugares” onde elas aparecem (certamente não a todos os “lugares”, já que tal empresa supõe um “recorte” de questões definido pelo domínio de referência que constitui para nós a obra de Fedro). No mito da Parelha Alada, pode-se identificar, além da doutrina das partes da alma, a da reminiscência, a da imortalidade da alma, a da metempsicose e um aprofundamento da visão de Eros, de que nos dá testemunho Platão em O Banquete. Constituem estes os momentos previstos pelo desenvolvimento desta exposição, sem os quais cremos não lograr nosso intento.
No livro IV de A República, a determinação das funções da alma supõe, por um lado, as relações da alma com o corpo (o que chamamos de homem é, para Platão, o conjunto da alma com o corpo, muito embora a essência do homem  consista na alma); por outro lado, a determinação daquelas funções está calcada sobre duas constatações feitas por Sócrates: em primeiro lugar, nota Sócrates que ignoramos se desejar ou apetecer, irritar-se e compreender são realizados pela alma como um todo ou por diferentes partes da alma; em segundo lugar, Sócrates também observa que, no mesmo indivíduo e relativamente ao mesmo objeto, é de esperar que a alma não possa assumir disposições contrárias, como, por exemplo, ter o desejo e beber água e não tê-lo. Se o corpo sequioso de um indivíduo produz em sua alma o desejo de beber água, a alma não quererá outra coisa senão beber água. Mas a experiência prova que, muitas vezes, há um conflito no interior da alma humana, de sorte que um mesmo indivíduo, relativamente ao mesmo objeto, pode assumir, num mesmo lapso de tempo, uma dada disposição e o seu contrário. O indivíduo, em cena, pode desejar beber água, mas decidir por não fazê-lo. Em vista disso, é forçoso concluir que a tendência para beber água e a decisão por não obedecer a essa tendência não podem depender da mesma parte da alma, mas de partes diferentes. Por conseguinte, a alma se divide em partes diferentes, embora relacionadas.
Em Platão, a concepção da estrutura do homem é psicossocial, na medida em que Platão correlaciona a estrutura do Estado com a estrutura da alma humana. O Estado  compõe-se de três classes: a dos governantes, à qual corresponde a parte racional da alma; a dos guardiães auxiliares, à qual corresponde a parte irascível; e a dos artesãos, à qual corresponde a parte apetitiva. Esta última classe, mais numerosa, compreende os médicos, agricultores, pedreiros e outras profissões necessárias ao bem-estar da comunidade. O equilíbrio entre as classes constitui a unidade e harmonia (justiça) do Estado, assim como do equilíbrio entre as partes da alma resulta a harmonia ou justiça do indivíduo.
Platão discrimina, então, entre três funções da alma: a conservação do corpo, a proteção do corpo e a produção do conhecimento. Situada no baixo-ventre e destinada à conservação do corpo, acha-se a parte apetitiva ou concupiscente da alma. Essa parte da alma é responsável por levar o corpo a buscar comida, bebida, prazeres, sexo. Como se vê, ela impele o corpo a buscar tudo quanto é indispensável à conservação dele e à geração de outros corpos. Por seu turno, a parte irascível ou colérica, situada acima do diafragma na cavidade do peito, é responsável pela emoção de raiva contra tudo quanto seja prejudicial e possa causar sofrimento ao corpo. Ela incita o indivíduo a combater as ameaças à vida. Assim é que à parte irascível da alma cabe proteger o corpo. Em comum, ambas as partes da alma – a apetitiva e a irascível – têm o fato de serem mortais e irracionais.
Finalmente, a parte racional da alma cumpre a função de dominar as outras duas partes, harmonizando-as com a razão. Dessa qualidade da parte racional da alma, Platão nos dá testemunho, fazendo Sócrates dizer a Adiamanto:


- Diremos além disso que há pessoas que, quando têm sede, recusam beber?
- Sim, há muitas, que o fazem muitas vezes.
- Então, que se dirá acerca delas? Que na alma delas não está presente o elemento que impele mas sim o que impede de beber, o qual é distinto do que impele e superintende nele?
- É o que parece.
- Porventura o elemento que impede tais atos não provém, quando existe, do raciocínio, ao passo que o que impele e arrasta deriva de estados especiais e mórbidos?
- Acho que sim.
- Não é, portanto, sem razão que consideramos que são dois elementos, distintos um do outro, chamando àquele pelo qual ela raciocina, o elemento racional da alma, e aquele pelo qual ama, tem fome e sede e esvoaça em volta de outros desejos, o elemento irracional e da concupiscência, companheiro de certas satisfações e desejos.[4]


A parte racional é a parte espiritual e imortal da alma. É a função superior da alma, o princípio divino em nós. A psicologia proposta e descrita por Platão se articula com sua teoria ética. Não podemos perder de vista essa articulação, já que, ao dividir a psykhé em três partes Platão está interessado em determinar as condições necessárias para que um homem pratique o bem e seja virtuoso. Se dominado pelas partes apetitiva e irascível, esse homem não pode tornar-se virtuoso. É preciso, para tanto, que a parte superior e melhor da alma comande as demais partes. A própria possibilidade de haver justiça, discutida no livro IV de A República, demanda o comando do superior e melhor sobre o que é inferior e pior. Em outras palavras, para haver justiça, a parte racional da alma, que é a parte superior e melhor, deve governar as partes inferiores, a apetitiva e irascível. Que não reste dúvida sobre a relação necessária que Platão estabelece entre a vida virtuosa e a parte racional da alma. Esclarecemo-la. Platão sustenta a crença – que deve a seu mestre Sócrates – de que as paixões do desejo e da cólera levam à produção de apetites em nosso corpo, os quais concorrem para toldar a inteligência. O obscurecimento da inteligência por esses apetites que decorrem das paixões do desejo impedem-na de realizar sua atividade própria, que é conhecer. O que resulta daí é a ignorância, que é o próprio vício. Logo, incapaz de exercer a razão, o indivíduo fica impossibilitado de conhecer as virtudes e de tornar-se virtuoso. É assim que a vida virtuosa dependerá unicamente da parte racional da alma.
Se nos perguntarmos sobre qual é a tarefa ética da parte racional da alma, a resposta deve já nos saltar evidente: dominar as outras partes da alma, de modo a harmonizá-las com a razão. O domínio da razão sobre a concupiscência é o que chamamos temperança (sophrosýne). Sophrosýne é moderação. A temperança é a virtude da alma concupiscente que se deixa dominar pela razão. Uma alma que se dispõe para a temperança resiste aos impulsos e prazeres, modera os apetites e impõe-lhes uma medida racional.
A vida se diz virtuosa, quando cada uma das partes da alma realiza sua própria virtude sob o comando da razão. Por outro lado, a vida viciosa é aquela na qual todas as partes da alma falham na tarefa de realizar a sua excelência ou virtude que lhe é própria. Acresça-se que nos falta dizer qual é a virtude própria da parte irascível da alma. A parte irascível da alma serve de intermediário na ação da razão sobre a parte concupiscente da alma. A razão não atua diretamente sobre a parte concupiscente, já que é preciso que no comando da concupiscência pela razão intervenha o sentimento de defesa da vida pelo qual é responsável a parte irascível. A virtude da parte irascível da alma é a coragem (thýmos) ou a prudência (phrónesis). Dominando a parte irascível da alma, a razão possibilita a ela discernir entre o que é bom e o que é prejudicial para a vida do corpo.


3.1. A doutrina da imortalidade da alma

Doravante, faremos uma incursão pela dimensão místico-religiosa do pensamento de Platão. Os temas da imortalidade da alma, da metempsicose e do destino das almas de que nos vamos ocupar, nesta e nas próximas subseções, têm sua origem no pensamento órfico-pitagórico de que Platão foi um herdeiro.[5] Mas dizer que Platão foi um herdeiro não significa afirmar que ele não foi responsável por imprimir um caráter próprio na recepção do pensamento órfico-pitagórico. O ponto de partida para o que poderíamos chamar inovação platônica na doutrina órfica da imortalidade da alma prende-se ao fato de Platão conferir a essa doutrina um lugar de importância no tratamento da ética e da política. Sócrates disse que o homem é a psyché (a alma), mas dizer isso apenas era insuficiente para Platão, pois que seu mestre deixou por resolver o problema que consiste em saber se a psyché é imortal ou não.
A cosmovisão órfico-pitagórica assenta numa clara oposição entre a alma e o corpo: o corpo está destinado a morrer; a alma está destinada a viver eternamente. Quem vive em função do corpo vive para aquilo que está destinado a perecer; quem vive em função da alma vive para aquilo que está destinado a viver para sempre, logo viver tendo em vista a purificação da alma, mediante um contínuo progresso de desapego do corpo.  As injustiças sofridas pelos justos só afetam o seu corpo e podem, em casos extremos, levar à morte este corpo; mas, sendo justo um homem, o que ele perde é apenas o corpo; a alma é salva para gozar da eternidade. Novamente, deve-se enfatizar que essa visão da vida não foi simplesmente apropriada por Platão, “ela alcança um novo significado depois da “segunda navegação”, isto é, depois da descoberta do mundo inteligível” (Reale, 2007, p. 183). Platão se encarregou de demonstrar racionalmente a imortalidade da alma, crença sem qual a visão órfica da vida deixa de ter sentido. Consoante ensina Reale a respeito da inovação platônica, entendida como uma ressignificação da doutrina órfico-pitagórica,


No orfismo tratava-se de uma simples doutrina misterosófica; nos pré-socráticos que tinham aceitado a visão órfica, era um pressuposto em contraste com seus princípios físicos; em Platão, ao contrário, está fundamentada e apoiada perfeitamente sobre a metafísica, isto é, sobre a doutrina do supra-sensível, da qual se torna como que um corolário (...). (ib.id., ênfase no original).


No Fédon, é possível distinguir entre três provas da imortalidade da alma.[6]  A primeira delas, que não irá nos interessar aqui, tem base heraclitiana e, por isso, envolve a percepção da realidade como atravessada pelos contrários (justo/injusto; belo/feio/ vida/morte, etc.). Essa prova encontrará seu bom termo na doutrina da reminiscência. Vamo-nos deter na apresentação das duas outras provas oferecidas por Platão e que ele mesmo julgava mais importantes.
A primeira das duas provas que devemos elucidar começa pela asserção segundo a qual a alma humana é capaz de conhecer as coisas imutáveis e eternas. Todavia, para a alma poder apreender essas coisas imutáveis e eternas, ela deve possuir como conditio sine quo non uma natureza que lhes seja afim. Em outras palavras, a alma deve ser também imutável e eterna, para que possa conhecer as coisas imutáveis e eternas.
Essa prova assenta na premissa de que há dois domínios de realidade, conforme já vimos, a saber, o do sensível (visível) e o do inteligível (invisível). O domínio inteligível é imutável, suas condições não variam; o do sensível, por outro lado, é mutável. Platão estabelecerá uma correlação do corpo e da alma com esses dois domínios do real. Ora, notará Platão que o corpo é visível e passível de sofrer mudança  e, por isso, assemelha-se ao mundo visível ou das coisas sensíveis; a alma, porque é invisível e imutável, assemelha-se ao mundo inteligível, que é invisível e imutável.
Uma vez que se oriente pelas percepções sensíveis, a alma incorre, facilmente, em erro e se confunde, porquanto as percepções sensíveis são mutáveis tanto quanto os objetos a que elas se referem. Quando, entanto, a alma se eleva para além do domínio das coisas sensíveis, recolhendo-se em si mesma, ela não erra mais e pode contemplar as Ideias puras, bem como o objeto que lhes é correspondente no mundo inteligível. Uma parte fundamental desse argumento consiste em ver que, conhecendo no mundo inteligível o objeto adequado das Ideias, a alma reconhece também que é afim a essas Ideias e, dado que pensa as coisas imutáveis, a alma permanece, ela mesma, imutável.
A alma, portanto, é imutável e eterna assim como imutáveis e eternas são as Ideias por ela contempladas e às quais ela é afim. Resta demonstrar que a alma também é dotada de um caráter divino. Para tanto, argumentará Platão que, quando unida ao corpo, a alma comanda o corpo, e o corpo lhe deve obediência. Ora, uma característica importante do divino é comandar, e do que é mortal é ser comandado. Por conseguinte, a alma é afim ao divino; e o corpo, ao mortal. Acompanhemos o testemunho desta primeira prova:


- Admitamos, portanto, que há duas espécies de seres: uma visível, outra invisível.
-Admitamos.
- Admitamos, ainda, que os invisíveis conservam sua identidade, enquanto que com os visíveis tal não se dá.
-Admitamos também isso.
- Bem, prossigamos – tornou Sócrates. – Não é verdade que nós somos constituídos de suas coisas, uma das quais é o corpo e a outra, a alma?
- Nada mais verdadeiro!
- Com qual dessas duas espécies de seres podemos dizer, pois, que o corpo tem mais semelhança e parentesco?
- Eis uma coisa que é clara para toda a gente: com a espécie visível.
- Por outro lado, que é a alma? Coisa visível ou coisa invisível?
- Não é visível, pelo menos aos homens, Sócrates!
- Todavia, quando falamos do que é visível e do que não o é, fizemo-lo com relação à natureza humana? Ou talvez creias que foi a propósito de qualquer outra coisa?
- Foi a propósito da natureza humana.
- Portanto, que diremos da alma? Que ela é coisa visível, ou que não se vê?
- Que não se vê.
- Vale dizer, por conseguinte, que ela é uma coisa invisível?
- Sim.
- Logo, a alma tem com a espécie invisível mais semelhança do que o corpo, mas este tem, com a espécie visível, mais semelhança do que a alma?
- Necessariamente, Sócrates.

(...)

- Penso não haver ninguém, Sócrates, por mais dura que tenha a cabeça, que seja capaz de não concordar, seguindo este método, em que, em tudo e por tudo, a alma tem mais semelhança com o que se comporta sempre do mesmo modo, do que com as coisas que não o fazem.
- E o corpo, por seu lado?
- Com a outra espécie.
- Tomemos agora um outro ponto de vista. Quando estão juntos a alma e o corpo, a este a natureza consigna servidão e obediência, e à primeira comando e senhorio. Sob este novo aspecto, qual dos dois, qual dos dois, no teu modo de pensar, se assemelha ao que é divino, e qual o que se assemelha ao que é mortal? Ou acaso pensas que o que é divino existe, por sua natureza, para dirigir e comandar, e o que é mortal, ao contrário, para obedecer e ser escravo?
- Penso como tu.
- Com qual dos dois, portanto, a alma se assemelha?
- Nada mais claro, Sócrates! A alma, com o divino; o corpo, com o mortal.
- Bem, examina agora, portanto, Cebes, se tudo o que foi dito nos conduz efetivamente às seguintes conclusões: a alma se assemelha ao que é divino, imortal, dotado da capacidade de pensar, ao que tem uma forma única, ao que é indissociável e possui sempre do mesmo modo identidade: o corpo, pelo contrário, equipara-se ao que é humano, mortal, multiforme, desprovido de inteligência, ao que está sujeito a decompor-se, ao que jamais permanece idêntico. Contra isso, meu caro Cebes, estaremos em condições de opor uma outra concepção e provar que as coisas não se passam assim?
- Não, Sócrates.
- Que se segue daí? Uma vez que as coisas são assim, não é acaso uma pronta dissolução o que convém ao corpo, e à alma, ao contrário, uma absoluta indissolubilidade, ou pelo menos qualquer estado que disso se aproxime?
- E por que não, com efeito?[7]



A segunda prova de que trataremos no Fédon exige que consideremos um aspecto da teoria da alma que, com ter sido omitido quando da consideração desse tema alhures, apresenta-se-nos indispensável a esta altura, já que se trata de um saber pressuposto por essa segunda prova.
No Timeu, narrando a origem do mundo sensível como um cosmo, uma totalidade ordenada fabricada pelo demiurgo, Platão diz ser esse mundo um organismo vivo ou animado. O que o anima é a alma (psykhé). Em grego, psykhé se diz vida ou princípio vital que anima um ser ou lhe confere vida. Uma vez que a vida é movimento ou mudança, psykhé “é o princípio de auto-atividade e de auto-conservação do cosmo” (Chauí, 2002, p. 291). Sendo responsável pela atividade e conservação do cosmo, psykhé é a Alma do Mundo. A Alma do Mundo é também a fonte de conhecimento, já que o demiurgo a fabricou com os mesmos elementos que empregou na fabricação da alma humana individual. Assim, participando da Alma do Mundo, a alma humana é princípio vital do corpo e, ao mesmo tempo, está destinada por sua natureza mesma ao conhecimento. Também no mito da Parelha Alada, em Fedro, encontramos a ideia de uma Alma do Mundo que, existindo no princípio, deu origem à alma dos deuses e à dos homens. Em princípio, tanto as almas dos deuses quanto as dos seres compostos permaneciam reunidas à abóboda celeste, de onde contemplava a Verdade ou as Ideias. As dos seres compostos, quando incapazes de acompanhar as revoluções celestes e vindo a perder as asas, fazem morada, depois de uma longa queda, em fragmentos de matéria aqui na terra. Os corpos onde residem esses fragmentos são capazes de se mover justamente em função da força da própria alma que o anima. É assim que o homem é um composto de corpo e alma. A alma humana é de natureza intermediária entre o divino (junto ao qual habitava outrora) e o mundo. Ela está destinada ao conhecimento, mas, porque unida ao corpo, é suscetível de incorrer em erro e se deixar arrastar por suas paixões, que a afastam de seu destino natural. Psykhé é, aqui, portanto, princípio cognoscente. É princípio da vida mental e espiritual. A alma, em nós, é o que conhece e o que permite conhecer. Vejamos o fragmento onde, no Timeu, narrando-se a constituição do mundo pelo demiurgo, diz-se que ele é um ser dotado de alma; ipso facto, um ser vivo. Ressalte-se que, diferentemente do que sucede no Timeu, em que todos os seres são dotados de alma, no Fedro, apenas os homens possuem alma, a qual, residindo num corpo e sendo dele distinta, é a própria razão.
Assim, a constituição do mundo tomou cada um destes quatro elementos na sua totalidade. Foi a partir da totalidade do fogo, da água, do ar e da terra que aquele que constituiu o mundo [isto é, o demiurgo], não deixando de fora parte alguma nem propriedade alguma, pois este era o seu desígnio: em primeiro lugar, que fosse, acima de tudo, um ser vivo completo e perfeito, constituído a partir de partes perfeitas; em seguida, que fosse único, posto que não sobraria nada a partir do qual pudesse ser gerado um outro da mesma natureza; e ainda, que estivesse imune ao envelhecimento e à doença, pois ele tinha perfeita consciência de que o calor, o frio e outras forças violentas, cercando de fora um corpo composto e caindo sobre ele, dissolvem-no e, impondo-lhe doenças e envelhecimento, causam a sua destruição. Foi por este motivo, e com base neste raciocínio, que a partir da globalidade dos todos produziu um só todo perfeito, imune ao envelhecimento e à doença.



Além disso, deu-lhe a figura adequada e congénere. De facto, a forma adequada ao ser vivo que deve compreender em si mesmo todos os seres vivos será aquela que compreende em si mesma todas as formas (...).
(...)
Este foi, de um modo global, o desígnio do deus que é eternamente para o deus que havia de vir a existir um dia; tendo assim raciocinado, fez-lhe um corpo liso e totalmente uniforme, em todos os pontos equidistante do centro e perfeito a partir de corpos perfeitos. Depois, no centro pôs uma alma, que espalhou por todo o corpo e mesmo por fora, cobrindo-o com ela. Constituiu um único céu, solitário e redondo a girar em círculos, com capacidade, pela sua própria virtude, de conviver consigo mesmo e sem depender de nenhuma outra coisa, pois conhece-se e estima-se a si mesmo o suficiente. Foi por todos estes motivos que engendrou um deus bem-aventurado.[8] (ênfases nossas).


Tomemos, então, a segunda prova que se acha no Fédon e que nos interessa dar a saber. Essa prova se estrutura em torno da proposição: as Ideias contrárias não podem combinar-se entre si nem permanecer juntas. Daí se segue que elas são mutuamente excludentes. Da impossibilidade de elas se combinarem resulta também a impossibilidade de elas se combinarem com as coisas sensíveis que delas participam essencialmente. Platão observará, então, que entrando a fazer parte de uma determinada coisa, uma Ideia leva a desaparecer a Ideia que lhe é contrária e que até então estava nessa coisa. Em outras palavras, se uma Ideia entra numa coisa, a Ideia contrária que estava na coisa anteriormente à entrada dessa Ideia é “expulsa” da coisa onde estava. As duas Ideias, por serem contrárias, não podem coexistir na mesma coisa. Assim, por exemplo, o Grande em si e o Pequeno em si se excluem mutuamente; a mesma exclusão mútua é necessária quando tais Ideias entram a fazer parte das coisas. Assim, uma coisa grande não pode ser pequena e vice-versa. O mesmo princípio de exclusão mútua é extensivo às coisas que, não sendo contrárias entre si, apresentam atributos que são contrários uns aos outros. Por exemplo, o fogo e a neve, embora não sejam contrários entre si, apresentam atributos essenciais que são contrários entre si; sejam: [quente] e [frio]. Ora, o fogo não é compatível com a Ideia do frio, nem a neve é compatível com a Ideia do quente. A presença do quente faz a neve dissolver; a presença do frio faz o fogo apagar-se.
Procuremos, agora, estender esse argumento ao caso da alma. A alma, conforme vimos, é vida. Psykhé encerra a Ideia de vida. Ela é que dá vida ao corpo, conforme também vimos. Justamente porque, para um grego, a alma tem como marca essencial a vida, jamais poderá admitir em si a morte ou tornar-se mortal. A morte, portanto, não pode afetar a alma; a morte só corromperá o corpo. A alma, por sua vez, por ocasião da morte do corpo, se desprende deste e se dirige para outro lugar.
Podemos, então, compreender, a título de conclusão, que a alma, na medida em que essencialmente encerra a vida, sendo a vida seu atributo estrutural, não pode abrigar a morte, visto que a Ideia de vida e a Ideia de morte, segundo o princípio da exclusão mútua dos contrários, são totalmente excludentes. É por essa razão que um grego recusa como absurda uma combinação como “alma morta”. Trata-se de um sintagma tão antitético, para um grego, quanto a combinação “neve quente”.
Pondo termo a esta subseção, consideremos um último argumento em favor da imortalidade da alma, que nos é apresentado no Fedro. Trataremos de transcrevê-lo, não sem antes elucidá-lo. No Fedro, Platão procura provar a imortalidade da alma deduzindo-a do conceito de psykhé. Já observamos que psykhé é vida e que vida é movimento. Logo, psykhé é princípio de movimento. Porque é princípio de movimento, ou seja, na condição de princípio, que move a si mesmo, não pode deixar de sê-lo. Atente-se para o argumento, que transcrevemos abaixo na íntegra:


A alma toda é imortal, pois o que move a si mesmo é imortal; porém, o que movimenta outra coisa ou é movido por outra coisa deixa de viver quando cessa o movimento. Somente o ser que a si mesmo se movimenta, pelo fato de nunca abandonar-se, é que não para de mover-se, como é fonte e princípio de movimento para tudo o que recebe movimento de fora. Só o princípio não é gerado. Muito ao revés disso: dele, necessariamente é que se origina tudo o que nasce, ao passo que ele mesmo não provém de nada, pois se se originasse de alguma coisa, não seria princípio. Ora, uma vez que nunca nasceu, terá também de ser indestrutível, pois se o princípio viesse a perecer, nem ele poderia renascer de alguma coisa, nem nada teria nascimento nele, a ser verdade que tudo terá de provir de algum princípio. Surge daí ser princípio de movimento o que se move a si mesmo; donde se colhe que ele não pode começar a existir nem vir a destruir-se, sob pena de cair e parar todo o céu e toda geração, que nunca mais encontrariam outra fonte de vida e de movimento. Demonstrada, assim, a imortalidade do que se movimento por si mesmo, não terá de que envergonhar-se quem afirmar que nisso consiste a essência e a própria ideia de alma. Todo corpo que recebe de fora o movimento é inanimado, sendo, pelo contrário, animado o que tira de si mesmo, de dentro, o movimento, pois nisso, precisamente, consiste a natureza da alma. Ora, se as coisas se passam, realmente, desse modo, se a alma é o que a si mesmo se movimenta, necessariamente a alma não pode ser gerada e é imortal. A respeito da imortalidade, é quanto basta.[9]


O que, em princípio, deve suscitar uma observação, nesse argumento, é que Platão nega que a alma tenha uma origem, ou seja, um nascimento. Essa condição da alma como algo que não teve um nascimento, em Fedro, contrasta com a sua condição no relato do Timeu[10], no qual se narra que ela foi gerada pelo Demiurgo, embora não estivesse suscetível à morte em virtude uma decisão divina.
O texto supracitado e colhido do Fedro, em que se prova a imortalidade da alma, começa com o anúncio da tese cuja verdade se procura provar – a alma é imortal, pois o que move a si mesmo é imortal. Mas a tese inclui uma proposição que precisa ser demonstrada, antes de que a outra proposição – “a alma é imortal” - possa ser verdadeira. Trata-se de provar a verdade de “o que move a si mesmo é imortal”. Platão demonstrará que a imortalidade do que move a si mesmo segue-se, necessariamente, do fato de que aquilo que se move a si mesmo jamais pode suster em si seu próprio movimento. A suspensão do movimento ocorreria, em caso contrário, se a coisa que fosse movida recebesse seu movimento de outra coisa, que poderia deixar de mover o que antes movia.  Em seguida, Platão nos faz ver que o que move a si mesmo é princípio de movimento de tudo que não pode mover a si mesmo, mas que é, ao contrário, movido por esse princípio. O princípio, até aqui, cumula duas propriedades: move a si mesmo e é fonte de movimento de tudo quanto não pode mover a si mesmo. Pensar o princípio não só como o que dá origem ao movimento dos corpos sensíveis, mas também como o que se move a si mesmo é consonante com a concepção da alma como princípio de vida: se vida é movimento, a alma, enquanto princípio, também deve mover-se e mover. Platão acrescentará outra característica ao princípio: ele não é gerado. É na condição de não gerado que é princípio; princípio, por definição, não pode provir de outra coisa, mas é aquilo donde provém todas as coisas existentes. No entanto, Platão deixa ao leitor a tarefa de inferir a relação entre “o fato de o princípio não ter uma origem” e “o fato de mover a si mesmo e ser fonte de movimento de tudo o mais”. O que o leitor deve fazer assomar à superfície textual por inferência é a ideia de que, se gerado, o princípio receberia seu movimento daquilo que o gerou, deixando, assim, de ser princípio de seu próprio movimento. Nesse caso, o que geraria o princípio é que manteria o princípio em movimento, mas, nesse caso, o princípio deixaria de ser princípio, porque gerado, e aquilo que o gerou passaria a ser princípio. Para escapar a uma aporia, o princípio deve ser fonte de seu próprio movimento e isso significa dizer que não pode ser gerado por outra coisa que, na condição de aquilo que gera, seria princípio. Está claro que o arkhé não é aquilo que dá origem e faz mover permanecendo imóvel; ao contrário, é o que dá origem e move a si mesmo enquanto faz mover todas as coisas. E porque move a si mesmo, o arkhé não pode ter sido gerado. Porque nunca foi gerado, não é perecível. O que é perecível tem como condição de existência uma outra coisa que o gerou. O que explica o caráter perecível de algo é o fato de ter nascimento. O que é interessante no argumento é que a ideia de geração implica a ideia de que a coisa gerada não pode mover-se a si mesma, pois seu movimento é dado por aquilo que a gerou e que, por não ter sido gerado, mas sendo o que gera, pode mover a si mesmo. Geração é movimento que dá vida, que, por sua vez, é movimento que move. A alma dá vida ao corpo, porque é vida, é movimento de si, e porque é movimento de si não pode ser gerada. Não sendo gerada e ipso facto sendo princípio de seu movimento é, necessariamente,  imortal.
Uma vez que tenhamos nos convencido da validade dos três argumentos, apresentados aqui, em favor da imortalidade da alma, não podemos renunciar a aceitar que a existência da alma e sua imortalidade em Platão só faz sentido se, com ele, admitimos haver um ser suprassensível – o mundo das Ideias puras e perfeitas. Em última análise, a aceitação dessa dependência de sentido redunda na aceitação de que a alma é uma dimensão suprassensível, inteligível e incorruptível no homem (Reale, 2007, p. 191).



3.2. A doutrina da reminiscência[11]

A doutrina da reminiscência, enfocada no interior da gnosiologia platônica, se desenvolve como resposta a dois problemas que encaminhavam para uma aporia: como é possível procurar aquilo que não se conhece e, mesmo encontrando o que se procura, como é possível reconhecê-lo? Se o que se procura já é conhecido, por que razão se deve procurá-lo? A doutrina da reminiscência foi formulada para dar conta dessa aporia. Essa doutrina se assenta na afirmação segundo a qual conhecimento é anamnese, isto é, recordação. O conhecimento não é produzido pelo indivíduo a partir de fora, mas se acha dentro de si. Mas o acesso  ao que está dentro de si se faz pela recordação daquilo que, em outra vida, a alma contemplou. A reminiscência que ocorre na alma e que a faz conhecer é a reminiscência das Ideias. Com essa doutrina, Platão descobre um a priori objetivo (não kantiano, que era subjetivo)[12]. Nesse sentido, Platão sustentou a objetividade absoluta das Ideias, as quais se impõem à razão humana por meio da anamnese. A razão capta as Ideias, que preexistem independentemente do sujeito, mas não as produz. A experiência cumpre algum papel nessa recordação das Ideias, que constitui o conhecimento, mas apenas na medida em que constitui ocasião para a recordação, não porque deduzimos as Ideias das coisas sensíveis (como, aliás, preconizaria Aristóteles).
Sem ignorar que a doutrina da reminiscência exibe um aspecto mítico-religioso e um aspecto teorético ou dialético (este último evidente no exemplo do escravo no Mênon), aproveitaremos, para efeito de discussão, visto sua adequação à temática da imortalidade da alma, apenas o aspecto mítico-religioso, cujas raízes estão, como já o dissemos, em doutrinas órfico-pitagóricas. Os sacerdotes órfico-pitagóricos mantinham que a alma é imortal e que renasce muitas vezes. A morte põe fim a uma das vidas da alma num corpo; o nascimento é um começar de uma outra vida que se acrescenta a vidas precedentes.[13] A alma, então, teria conhecido a totalidade da realidade tanto no além quanto no aquém. Platão concluiu daí que, se é assim que se deu, a alma deve apreender em si mesma a verdade que outrora conhecera essencialmente. Essa verdade, que um dia a alma contemplou, ela, a alma, a possui desde sempre. O recordar é justamente esse tirar de si operado pela alma.
Ora, se conhecer é, para a alma, recordar aquilo que ela já sabe, aquilo que ela viu antes de habitar o corpo e que, na recordação, se faz presente a ela nela mesma, segue-se que a alma é imortal. A dedução da imortalidade da alma a partir da doutrina da reminiscência está resumida neste trecho do Fédon.

- Em verdade, Sócrates – tornou então Cebes – é precisamente esse também o sentido daquele famoso argumento que (suposto seja verdadeiro) tens o hábito de citar amiúde. Aprender, diz ele, não é senão recordar. Se esse argumento é, de fato verdadeiro, não há dúvida que, numa época anterior, tenhamos aprendido aquilo de que no presente nos recordamos. Ora, tal não poderia acontecer se nossa alma não existisse em algum lugar antes de assumir, pela geração, a forma humana. Por conseguinte, ainda por esta razão é verossímil que a alma seja mortal.[14] (ênfase nossa).


No Fedro, em dois momentos, pode-se encontrar a referência à doutrina da reminiscência em seu aspecto mítico-religioso. Destaquemos um desses momentos, dada a sua relevância para a compreensão da figura do filósofo nesta obra.


(...) Realmente, a condição humana implica a faculdade de compreender o que denominamos ideia, isto é, ser capaz de partir da multiplicidade de sensações para alcançar a unidade mediante a reflexão. É a reminiscência do que nossa alma viu quando andava na companhia da divindade, desdenhando tudo a que atribuímos realidade na presente existência, alçava a vista para o verdadeiro ser. Daí, justificar-se só ter asas o pensamento do filósofo, pois este se aplica com todo o empenho, por meio da reminiscência, às coisas que asseguram ao próprio deus a sua divindade. Só atinge a perfeição o indivíduo que sabe valer-se da reminiscência e foi devidamente iniciado nos mistérios. Indiferente às atividades humanas e ocupado só com as coisas divinas, geralmente passa por louco, pois o vulgo não percebe que ele é inspirado[15]. (ênfase nossa)



Esses passos de Fédon e de Fedro, respectivamente, patenteiam, de modo irrecusável, o aspecto mítico-religioso do pensamento platônico. Ajunte-se a isso o aspecto relacional com as realidades divinas próprio do pensamento do filósofo. O filósofo se destaca dentre os indivíduos por ser o único que pode alcançar uma vida perfeita (a saber, aquela que mais se aproxima da felicidade divina), visto que é o único que se ocupa, em sua busca do saber, de ascender às coisas divinas, ignorando as ocupações ordinárias dos homens cujas vidas se passam inteiramente na caverna de sombras e simulacros. É esta uma magnífica imagem do filósofo: aquele cuja alma, tendo recordado as belas coisas que outrora viu, inflama-se pelo desejo de tornar a contemplar o Belo em si. Teremos a oportunidade de precisar a importância da Ideia do Belo em si e de retomar a significação do filósofo e da filosofia na narrativa de Fedro.



3.3. A metempsicose e os destinos escatológicos da alma

A metempsicose foi difundida entre os gregos pela tradição órfica, tendo encontrado em Pitágoras o primeiro filósofo a ensiná-la, certamente após o contato com o orfismo (Reale, 2012). A metempsicose é a doutrina segundo a qual a alma pode reencarnar muitas vezes, existindo em corpos que têm não só a forma humana, mas também a forma de animais. Essa crença na possibilidade de a alma migrar, após a morte, para outros corpos era muito difundida na Antiguidade. Os antigos egípcios nutriam-na; os jainistas na Índia e, com alguma ressalva, os budistas tibetanos, por exemplo, ainda a nutrem.
A metempsicose baseia-se num significado moral, que viria a ser muito destacado por Platão. Ora, as sucessivas existências da alma que reencarna já em corpos humanos, já em corpos de animais, visam a expiar alguma culpa cometida em existências anteriores. No Fédon, conta-nos Platão que a alma que viveu demasiadamente ligada ao corpo e entregou-se, assim, às paixões, aos prazeres não chega a separar-se inteiramente do corpo após a morte. Essa alma teme o Hades e fica a rondar “os monumentos funerários e as sepulturas”[16]. Uma alma com tal sorte só pode ser a dos maus indivíduos. Depois de muito vaguear entre as sepulturas e tendo se libertado do corpo em estado de impureza, essa alma não cessa de desejar encontrar outro corpo onde possa residir. Sua ligação ao corpo, que pode ter forma humana ou de animal, dependerá da afinidade ou identidade de hábitos desse corpo com aqueles aos quais elas se dispuseram na vida pregressa. No Fédon, conta-nos Platão o seguinte, nesse tocante:


- (...) São as [almas] dos maus, que se vêem obrigadas a vaguear nesses lugares, que recebem assim o castigo de sua maneira de viver anterior, que foi má. E vagueiam desse modo até o momento em que encontram o companheiro desejado, algo corporiforme,  e tornam a entrar num corpo! Ora, aquilo a que elas assim novamente se juntam deve ser, como é natural, possuidor dos mesmos atributos que as distinguiram no curso de sua vida.
- Quais são, Sócrates, esses atributos de que falas?
- Exemplo: em corpos de asno ou de animais semelhantes é que muito naturalmente irão entrar as almas daqueles para quem a voracidade, a impudicícia, a bebedeira constituíram um hábito, as almas daqueles que jamais praticaram a sobriedade. Não pensas assim?
- Perfeitamente, é muito natural com efeito.[17]



É fácil ver que a doutrina da metempsicose se prende à doutrina dos destinos escatológicos da alma, sobre a qual versaremos, muito brevemente, doravante. Para mostrar o significado dessa doutrina, vamo-nos ater, inicialmente, ao mito da Parelha Alada, em Fedro. Nesse mito, a complexidade da representação do além liga-se, segundo Reale (2007, p. 200), ao fato de ser apresentada “a causa da descida das almas nos corpos, as origens primigênias das almas e as razões de sua afinidade com o divino”. Façamos, pois, um resumo da narrativa.
Conta-se que, na origem, a alma, na companhia dos Deuses, vivia uma vida divina no Séquito dos Deuses. A queda da alma num corpo que habita a terra se deu devido a uma culpa. No mito da Parelha Alada, a alma é como um carro puxado por dois cavalos sob o comando de um cocheiro. Os cavalos dos deuses e seus aurigas são bons; mas os dois cavalos dos homens têm natureza diversa: um é bom; o outro é mau. O cocheiro, que é responsável por comandar os dois cavalos, identifica-se, por analogia, com a parte racional da alma. Os dois cavalos, por seu turno, são as partes irracionais da alma: a parte apetitiva é representada pelo cavalo mais resistente à obediência, que puxa para baixo, que se deixa dominar pelo desejo; a parte irascível corresponde ao cavalo bom, mais dócil, mais diligente em atender aos comandos do cocheiro.[18] Em virtude da natureza diversa dos cavalos – um é belo e nobre; do outro, diz-se o contrário disso -, constitui tarefa árdua conduzi-los.
As almas voam no séquito dos Deuses com o propósito de, juntamente com eles, chegar, periodicamente, ao mais alto dos céus para contemplar o que está além dos céus, ou seja, o mundo das Ideias. Entanto, as nossas almas têm muita dificuldade para contemplar o Ser em si, que se situa além do céu, mormente porque o cavalo de natureza má puxa a alma para baixo.
As almas que são bem sucedidas e que conseguem ver o Ser, ou uma parte dele, continuam a viver na companhia dos Deuses. Todavia, as que fracassam, mesmo mobilizando esforços para obter sucesso, desorientam-se, atropelam-se, chocam-se e perdem as asas depois de muito disputar umas com as outras. Desprovidas de asas, elas caem no chão. No trecho abaixo, em que Sócrates menciona a lei da deusa Adastreia (ou Nêmesis), da qual não se pode escapar, se acha o relato do destino das almas bem sucedidas e mal sucedidas. A doutrina da metempsicose, que, conforme notamos, prende-se à do destino das almas, também se deixa entrever.

A razão de tamanha empenho de contemplar a Planície da Verdade está no fato de nascer justamente naquele prado o alimento adequado para a porção mais nobre da alma e de nutrir-se com isso a natureza das asas que confere à alma mais leveza. A lei de Adrasteia é a seguinte: toda alma que, no séquito de algum deus, consegue contemplar algo das verdadeiras realidades, fica livre de padecimentos até a revolução seguinte, e se sempre conseguir isso mesmo, nunca mais virá a sofrer coisa nenhuma. Quando, ao revés disso, por incapacidade de acompanhar os deuses, nada percebe das essências, e pelo efeito de alguma desgraça intercorrente, torna-se pesada e, em consequência desse fato, perde as asas e cai no chão: há uma lei que a proíbe entrar no corpo de algum animal logo na geração seguinte, como também determina que a que teve visão mais rica penetre no germe de um homem destinado a ser amigo da sabedoria e da beleza ou cultor das Musas e do amor; a alma colocada em segundo lugar dará um rei legítimo, potentado ou guerreiro do prol; a terceira classificada será um político, ecônomo ou comerciante; a quarta, um ginasta amigo dos exercícios físicos ou alguém entendido na cura das doenças do corpo; a quinta terá vida de adivinho ou de iniciado nos mistérios; a sexta será poeta ou alguém afeito às artes da imitação; a sétima, artista ou lavrador; a oitava, sofista ou demagogo; e a nona, algum tirano. Em todos esses casos, os que viveram de modo justo alcançam melhor sorte; quem praticou injustiça, destino cem vezes pior.[19] (ênfase nossa).


A alma que consegue contemplar o Ser e repousar na “Planície da Verdade” não cai num corpo sobre a terra. De ciclo em ciclo, segue vivendo na companhia dos Deuses e dos daímones. A medida de seu êxito na contemplação das Ideias é proporcional à perfeição alcançada por sua vida: quanto mais pôde a alma ver o Ser em si mais perfeita será a sua vida. Em sentido contrário, será tanto menos perfeita a vida da alma quanto menos capaz foi de ver o mundo das Ideias.
Estando morto o corpo, a alma será julgada e por um milênio, segundo nos conta Platão na República, se beneficiará de prêmios ou sofrerá punições proporcionais aos seus méritos, no primeiro caso, e aos seus deméritos, no segundo. Passados mil anos, ela tornará a reencarnar. No Fedro, no entanto, Platão conta que todas as almas não tornam ao lugar de onde partiram, nem readquirem as asas, antes de decorridos dez mil anos[20], salvo aquelas que se dedicaram “sem dolo à filosofia” e que “votaram aos jovens afeição verdadeiramente filosófica”.[21] As almas que, por três vidas consecutivas, continuaram dedicando-se à filosofia, “voltam a adquirir asas e dali se afastam no fim de três mil anos”. [22]
De tudo que aqui precede, não é difícil depreender que a questão basilar suscitada pelo problema do destino das almas recobre o tipo de sorte que a alma terá quando se desliga do corpo. A visão místico-religiosa platônica, calcada sobre a cosmovisão orfico-pitagórica, consagrará, na história do pensamento ocidental, a crença de que esta vida é transitória e nela o homem é uma espécie de passageiro que deve estar, no entanto, ocupado de realizá-la como uma tarefa para obter, com seus méritos, algum benefício no além-mundo. Nessa visão de mundo, a vida terrena e material é uma provação.[23] A vida terrena serve para que o homem expie as faltas cometidas em existências anteriores. A vida verdadeira está no além, no Hades. É aí que a alma será julgada de acordo unicamente com critérios éticos. Os juízes responsáveis pelo julgamento da alma não levam em conta a origem do homem cujo corpo a alma habitou – se foi um grande rei ou um servo, pouco importa. Para efeito de julgamento, os juízes levam em consideração tão-somente o fato de ela ter vivido de modo justo ou injusto, com temperança ou devassidão, de modo virtuoso ou vicioso. Diferenciam-se, assim, três destinos da alma, segundo seus méritos e deméritos.
1) a alma conhecerá lugares maravilhosos nas Ilhas dos Bem-aventurados, se tiver vivido uma vida justa;
2) se tiver vivido uma vida inteiramente injusta, a tal ponto que não possa mais curar-se, ela receberá um castigo eterno (será lançada no Tártaro);
3) Mas, se as injustiças cumuladas forem menos graves e se viveu alternadamente segundo a justiça e a injustiça, sem ter deixado de arrepender-se de seu modo injusto de viver, ela será temporariamente punida (expiada a culpa, receberá o benefício merecido).[24]


3.4. A moral ascética platônica e a função da filosofia

3.4.1. A recepção pitagórica do orfismo

Como a dimensão místico-religiosa do pensamento de Platão é devedora da influência de Pitágoras, a quem devemos a divulgação na grecidade, àquela altura, de muitas ideias órficas e, na medida em que essas ideias, mediante a divulgação pitagoriana, puderam penetrar o pensamento platônico servindo-lhe de matriz inspiradora de várias de suas doutrinas, é forçoso dar a conhecer de que modo se deu a recepção por Pitágoras das crenças órficas.
Já dissemos que Pitágoras foi o primeiro filósofo a ensinar a metempsicose que tomou ao orfismo. Agora, devemos acrescentar que coube a ele reestruturar o orfismo em alguns de seus aspectos essenciais. Com essa reestruturação, Pitágoras pôde dar ao orfismo um tratamento filosófico. Se os órficos cultivavam a Dionísio, para quem a orgia entusiástica era sagrada, Pitágoras honrava Apolo, deus da razão e da ciência.
Assinalemos, pois, o que pensamos ser as proposições fundantes do orfismo, às quais Pitágoras deu seu assentimento. Tal como os órficos, Pitágoras manterá que 1) a alma é imortal; 2) a alma preexiste ao corpo e continua existindo depois de desprender-se dele; 3) a união da alma com o corpo é contrária à natureza; 4) a natureza da alma é divina, portanto, eterna; 5) a natureza do corpo é mortal e corruptível; 6) a alma, que se acha encerrada no corpo, encontra-se nessa condição para expiar uma culpa originária que ela cometeu; 7) a união da alma com o corpo é uma forma de punição da alma.
No entanto, Pitágoras são foi um mero divulgador da visão órfica de mundo; ele não esteve de acordo com os órficos em alguns pontos essenciais da doutrina. Comecemos, então, por sublinhar o ponto de convergência entre os órficos e Pitágoras: o sentido da vida humana supõe um fim ultraterreno de caráter escatológico e é por meio de purificações que a alma poderá libertar-se do ciclo de reencarnações e, como consequência, poderá unir-se ao divino. Mas Pitágoras divergia dos órficos no tocante aos meios de purificações que deveriam ser empregados. Os órficos acreditavam que as celebrações e as práticas religiosas dos mistérios sagrados eram suficientes. Eles se fiavam nos ritos como práticas capazes de elevar a alma gradativamente a Deus. Pitágoras, por seu turno, preferia atribuir à ciência o caminho verdadeiro para a purificação. Não significa isso dizer que não houvesse, no pitagorismo, prescrições empíricas amparadas por superstições a regular a vida cotidiana dos pitagóricos; todavia, o culto à ciência levado a efeito pelos pitagóricos foi decisivo para diferençar seu modo de vida do modo de vida órfico. A ciência passou, assim, a ocupar um lugar privilegiado na comunidade pitagórica: ela se tornou o mais elevado e eficaz meio de purificação.
O pitagorismo instaurou um modo de vida inteiramente novo para os gregos. Não só as formas religiosas tradicionais se tornaram insatisfatórias para dar conta das novas exigências da vida, como também a religião dos mistérios viu seu alcance tornar-se muito limitado em face do poder que tinha o modo de vida pitagórico para satisfazer tais exigências. Destarte, é possível entender por que os êxitos e consensos obtidos pelos pitagóricos foram bastante expressivos.
O asceticismo pitagórico incluía regras médicas de purgação e  regras de abstinência, as quais visavam a purificar o corpo e torná-lo domesticável para a alma. Por sua vez, as práticas de purificação da alma incluíam concentração na música que funcionava como uma etapa preparatória para a dedicação ao estudo da teoria dos números e do sistema aritmético-geométrico pitagórico. Aos noviços era dada uma formação científica que lhes exigia, no primeiro período de admissão à ordem, silêncio e escuta (hábitos difíceis de adquirir). Tendo-os adquirido, podiam formular perguntas acerca de música, aritmética e geometria, bem como escrever tudo aquilo que aprenderam.


3.4.2. A moral ascética platônica

Sob a influência do orfismo-pitagorismo, a concepção dualista da relação entre alma e corpo torna-se, no pensamento de Platão, mais do que uma concepção metafísica à luz da qual a alma é suprassensível; e o corpo, sensível. Nessa concepção, introduz-se um componente religioso, por força daquela influência. A partir daí, o corpo passa a ser concebido muito mais como um túmulo ou cárcere da alma do que um receptáculo da alma ao qual ela dá vida.
Essa mudança na forma de compreender o corpo, influenciada pelo orfismo-pitagorismo, leva Platão a defender que, enquanto vivemos num corpo (já que somos essencialmente alma), estamos mortos; e a alma, que se acha no corpo, está aprisionada como num cárcere ou jaz como num túmulo. Necessário será que o corpo morra para que a alma se liberte de seu cárcere. Morrendo o corpo, somos transportados para a verdadeira vida, ou melhor, passamos a verdadeiramente viver. O corpo é a origem de todo mal: é fonte de amores doentios, de paixões destrutivas, de ignorância, de discórdia, loucura, etc.[25] No Fédon, Platão diz que, mesmo chegando ao Hades, depois da morte, a alma que viveu para os prazeres e os desejos cuja sede está no corpo ainda está contaminada por ele. Pode-se concluir que esse corpo que aprisiona a alma pode ser para ela também como uma doença. Vejamos a passagem em que Platão nos dá a conhecer as linhas mestra de sua moral ascética. Lembremos – e nos deteremos nesse ponto mais adiante – que a filosofia deve estar a serviço da libertação e purificação da alma, por isso Sócrates censura aqueles que vivem na contramão da filosofia:

(...) Acreditando que não deve agir em sentido contrário à filosofia, nem ao que ela proporciona para libertar-nos e purificar-nos, esse homem volta-se para o lado dela e segue-se na rota que ela lhe aponta.
- De que modo, Sócrates?
- Vou dizer-te. É uma coisa bem conhecida dos amigos do saber que sua alma, quando foi tomada sob os cuidados da filosofia, se encontrava completamente acorrentada a um corpo e como que colada a ele; que o corpo constituía para a alma uma espécie de prisão, através da qual ela devia forçosamente encarar as realidades, ao invés de fazê-lo por seus próprios meios e através de si mesma; que, enfim, ela estava submersa numa ignorância absoluta. E o que é maravilhoso nesta prisão, a filosofia bem o percebeu, é que ela é obra do desejo, e quem concorre para apertar ainda mais as suas cadeias é a própria pessoa! Assim, digo, o que os amigos do saber não ignoram é que, uma vez tomadas sob seus cuidados as almas cujas condições são estas, a filosofia entra com doçura a explicar-lhes as suas razões, a libertá-las, mostrando-lhes para isso de quantas ilusões está inçado o estudo que é feito por intermédio dos olhos, tanto como o que se faz pelo ouvido e pelos outros sentidos; persuadindo-as ainda a que se livrem deles, a que evitem deles servir-se, pelo menos quando não houver imperiosa necessidade; recomendo-lhes que se concentrem e se voltem para si, não confiando em nada mais do que em si mesmas, qualquer que seja o objeto de seu pensamento. Que não creiam, enfim, senão no próprio testemunho desde que tenham examinado bem o que cada coisa é na sua essência e que se persuadam de que as coisas que são examinadas por meio de um intermediário qualquer nada possuem de verdadeiro, e pertencem ao gênero do sensível e do visível enquanto que o que elas veem pelos seus próprios meios é inteligível e, ao mesmo tempo, inteligível!
“Contra essa libertação a alma do verdadeiro filósofo persuade-se de que não se deve opor, e por isso se afasta tanto quanto possível dos prazeres, assim como dos desejos, dos incômodos e dos terrores. Ela sabe com efeito que, quando sentimos com intensidade um prazer, um incômodo, um terror ou um desejo, por maior que seja o mal que possamos sofrer nesse momento, entre todos os que se podem imaginar – cair doente, por exemplo, ou arruinar-se por causa de suas paixões – ela sabe que não há nenhum desses males que não seja ultrapassado por aquele que é o mal supremo; é deste mal que sofremos, e não o notamos!”.
- E que mal é esse, Sócrates?
- É que em toda alma humana, forçosamente, a intensidade do prazer ou do sofrimento, a propósito disto ou daquilo, se faz acompanhar da crença de que o objeto dessa emoção é tudo o que há de mais real e verdadeiro, embora tal não aconteça. Esse é o efeito de todas as coisas visíveis, não é?
- Efetivamente.
- E não é em tais afetos que no mais alto grau a alma fica sujeita às cadeias do corpo?
- De que modo, dize?
- Assim: todo prazer e todo sofrimento possuem uma espécie de cravo com o qual pregam a alma ao corpo, fazendo, assim, com que ela se torne material e passe a julgar a verdade das coisas conforme as indicações do corpo. E pelo fato de se conformar a alma ao corpo em seus juízos e comprazer-se nos mesmos objetos, necessariamente, deve produzir-se em ambos, segundo penso, uma conformidade de tendências assim como também uma conformidade de hábitos; sua condição é tal que, em consequência, ela jamais atinge o Hades em estado de pureza, mas sempre contaminada pelo corpo de que sai; o resultado é que logo recai num outro corpo, onde de certa forma se planta e deita raízes. E por força disso fica desprovida de todo direito a participar da existência do que é divino e, portanto, puro e único em sua forma.
- Tuas palavras são sábias, Sócrates – disse Cebes – são a própria verdade![26] (ênfases nossas).



No excerto supracitado de Fédon, figuram ideias que consubstanciam a moral ascética platônica; tratemos de explicitá-las. Em primeiro lugar, por ocasião do ingresso da alma no corpo, este passa a ser para ela uma prisão, raiz de suas ilusões. O corpo impõe a alma uma maneira de ver as realidades, impedindo-a de fazê-lo por conta própria. A alma torna-se incapaz de atingir a verdade, permanecendo imersa na ignorância total. Em segundo lugar, os prazeres, o sofrimento e os desejos, desde que a alma se abandone a eles, contribuem ainda mais para a permanência dela naquele estado de ignorância em que se acha enquanto aprisionada no corpo. De que modo? Platão nos conta que o prazer e o sofrimento “pregam a alma ao corpo”, isto é, tornam-na ainda mais aderente ao corpo, de sorte que ela passa a adquirir materialidade. Nessa condição, a alma é incapaz de julgar a verdade senão segundo os ditames do corpo – porque sua materialidade, sua maior aderência ao corpo é um impedimento –. Por um lado, a maior aderência da alma ao corpo priva-a de uma visão da verdadeira realidade (a alma encontra-se na ilusão, pois toma como verdadeira realidade aquela que as indicações do corpo faz parecer ser a verdadeira realidade).  Em terceiro lugar, quanto mais aderente ao corpo está a alma mais conforme às tendências e aos hábitos dele ela está. Segundo Platão, quando a alma, conformada ao corpo, forma seus juízos com base na materialidade dele, da qual, agora, ela não se distingue, e quando se compraz nos mesmos objetos que o satisfazem, o que se dá, em última instância, é uma contaminação da alma pelo corpo. Essa contaminação persiste na alma mesmo quando ela deixa de habitar o corpo. Ademais, a contaminação decorre da forte aderência da alma ao corpo, circunstância esta em que a alma assume tendências e hábitos afins às tendências e aos hábitos do corpo.
Tendo esclarecido o que cuidamos ser as ideias fundadoras da moral ascética platônica, examinemos, doravante, com mais acuro, essa moral, com vistas, principalmente, a destacar o papel da filosofia e do filósofo nessa teoria moral. A moral ascética de Platão apóia-se em dois pressupostos: a alma é afim ao inteligível, e o corpo é afim ao sensível. Essa distinção metafísica alicerça a primeira proposição da moral platônica, que assume a seguinte forma deôntica: a alma deve empenhar-se para fugir do corpo. Como  o verdadeiro filósofo vive sua vida segundo a alma, ele deseja a morte (bem entendida, como morte do corpo), e a verdadeira filosofia é um exercício de preparação para a morte.
Compreendamos por que o verdadeiro filósofo deseja a morte. Para Platão, o corpo, como vimos, é um obstáculo, devido ao seu peso sensível, para a alma, cujo desejo é ascender às realidades inteligíveis para a contemplação da Verdade. A morte só atinge o corpo e, nesse sentido, constitui a realização completa da libertação a que aspira o filósofo quando, em vida, dedica-se à busca do conhecimento através do exercício da filosofia. A morte não somente não afeta a alma, como também a beneficia enormemente, porquanto, liberta do corpo, a alma pode, enfim, viver a vida mais verdadeira, qual seja, a vida em que a alma pode, recolhida em si mesma, contemplar, sem os véus que sobre ela lança o corpo, o mundo das Formas puras. Ora, a morte do corpo desvela para a alma a vida verdadeira. Destaque-se em que consiste o paradoxo da ética platônica: a morte põe a descoberto a verdadeira vida para a alma. O filósofo deseja a vida verdadeira que não se descerra senão com a morte do corpo; e a filosofia é o exercício de preparação para a vida verdadeira, isto é, para a vida vivida na dimensão pura do espírito. A filosofia deve libertar a alma do jugo das paixões, das solicitações dos prazeres e dos sofrimentos, tomando o divino e o verdadeiro como medida de realização do filósofo. Que deve pretender o verdadeiro filósofo? Unir-se às coisas divinas, pela libertação e purificação da alma.
O asceticismo platônico propõe, portanto, a fuga ao corpo, ao mal que ele representa, mediante o conhecimento e a virtude. Fugir do mal do corpo significa fugir do mal do mundo, sempre mediante a virtude e o exercitar-se na busca do conhecimento. Assim, quem, à semelhança do verdadeiro filósofo, vive sua vida segundo a virtude e o conhecimento, assemelha-se a Deus ou ao divino, que é o horizonte de medida para a realização da perfeição humana.
Finalmente, cumpre dizer que Platão foi o primeiro filósofo da Antiguidade a fornecer uma tábua de valores, em cujo topo situou os valores religiosos, pertencentes aos Deuses; logo abaixo, dispôs a alma como a parte superior no homem e cujos valores são a virtude e o conhecimento; em seguida, como se estivesse a construir degraus, colocou o corpo com seus valores mantenedores da vida; e, por fim, no lugar último da escala de valores, situou os bens da fortuna, as riquezas e os bens exteriores. Mais afastados da filosofia são, portanto, os homens que fundam sua vida nesses últimos valores, que nada contribuem para elevação ao divino tão anelada pela alma do verdadeiro filósofo.







[1] A República, 430e.
[2] Ib.id., 435a-d.
[3] Ib.id.,433a.
[4] Ib.id.,439d.
[5] Excederia os limites de nosso estudo o pretender discorrer sobre o que foi a tradição órfica. Bastar-nos-á enfatizar que as doutrinas das quais Platão dará uma demonstração racional se situam na esteira da tradição órfico-pitagórica.
[6] Considerando-se Fédon, Fedro, República e Leis, o número das provas podem aumentar para cinco (Chauí, 2002).
[7] Fédon,79a-80b.
[8] Timeu,32d; 33a-b; 34b.
[9] Fedro,245c-246a.
[10] Segundo nota Reale (2007, p. 190), nos diálogos anteriores ao Timeu, esse parece ser o caso das almas. Neles, ela era apresentada como sem origem e sem termo.
[11] A doutrina da reminiscência apresenta-se, no Mênon, sob duas formas: uma mítica e outra dialética. Para uma exposição sumária dessas duas formas de apresentação da doutrina, ver (Reale, 2007).
[12] O a priori kantiano e neokantiano caracterizava um modo de aquisição do conhecimento pelo sujeito, modo que dispensava a experiência, porque o conhecimento, nesse caso, era deduzido de princípios universais da mente humana que independiam da experiência.
[13] Registre-se que algumas das ideias órficas fazem eco a ideias budistas e hinduístas. Não pretendemos sugerir que tenha havido algum tipo de contato do orfismo com essas tradições orientais, mas apenas assinalar que há muita semelhança entre essas três tradições de pensamento quando consideramos alguns pontos essenciais de suas doutrinas. Por exemplo, o budismo inclui a doutrina das reencarnações da alma, tem como um de seus corolários a ideia da Roda da vida ou samsara, que constitui o ciclo de nascimento-morte-renascimento, do qual o homem deve esforçar-se por libertar sua alma; a ideia de karma, que em sânscrito, quer dizer “ação”, como intimamente ligada à primeira, e que consiste numa lei assentada sobre a relação de causa-efeito, que rege as ações humanas e à qual devemos a recompensa ou sofrimento merecido nesta e noutra vida. Ações boas levam a renascimentos em reinos superiores; ações más, ao contrário, causam renascimentos em reinos inferiores (Gyatso, 2009).
[14] Fédon,73a.
[15] Fedro, 249b-d.
[16] Fédon, 81d.
[17] Ib.id.,81e-82a.
[18] Inicialmente, os adjetivos “bom” e “mau”, usados para caracterizar os dois cavalos fornecem pistas pouco seguras para tal correspondência, já que as duas partes da alma – a apetitiva e a irascível – beneficiam o corpo, sempre que a parte racional impõe-lhe a justa medida. No entanto, se interpretamos “mau” como aquilo que se diz do que é desprovido da qualidade desejável, do que é avesso a obedecer, do que tende a ser sublevado, insubordinável, cremos possível aproximar o cavalo mau à parte apetitiva da alma. Essa correspondência, talvez, fique mais clara, caso levemos em conta o fato de que a parte apetitiva é mais diligente em atender às solicitações do corpo, bem como o fato de o cavalo mau puxar a carroça para baixo, ou seja, para o sensível, o corpóreo.
[19] Fedro, 248b-e.
[20] Não devemos esquecer que o místico Platão foi muito influenciado pelo pensamento de Pitágoras. A referência aos dez mil anos evoca a mística pitagórica em torno do número 10, fundada na figura chamada tetráktys da década – um triângulo equilátero cujos lados são constituídos cada um por quatro (tetra) pontos, com um ponto no meio. O número dez é o número sagrado e mais perfeito, pois que, entre outras razões, é resultante da soma dos quatro primeiros números – representando assim a síntese da unidade. A perfeição da tetráktys deu origem ao que passaria a ser conhecido como sistema decimal. No pensamento baseado no sistema decimal, o dez simboliza o retorno à unidade em grau mais elevado. No pitagorismo, o dez simboliza a harmonia. Ao atingir o dez, uma nova série inicia-se ad infinitum. Talvez, tenha sido esse significado que apela para o caráter cíclico, de movimento circular do número dez que Platão tenha pretendido evocar na esteira do ensinamento pitagórico, ao se referir aos dez mil anos como período em que se inicia um novo ciclo de vida para a alma.
[21] Ib.id. 249a.
[22] Ib.id.
[23] É notável quão devedor dessa concepção metafísico-religiosa é o Kardecismo. Não se segue dessa reconhecida filiação doutrinária que o Espiritismo kardecista tenha seguido, linha por linha, o que nos chegou pela pena de Platão a respeito da tradição órfico-pitagórica. A metempsicose é, por exemplo, rejeitada pelos kardecistas. Mas a ideologia do kardecismo é impressionantemente afim ao sistema de crenças de que é expressão a visão órfico-pitagórica da vida. Naturalmente, o espiritismo não se apresenta como um simples desdobramento ideológico de uma tradição que o precedeu, mas, como toda religião revelada, supõe-se portadora de uma verdade divina, que no seu caso em particular, foi ressignificada à luz de pressupostos doutrinários revelados por entes espirituais transcendentes, que se apresentam ao médium como confirmadores e, em alguns casos, reparadores da consagrada interpretação da verdade revelada por Deus. No livro O Evangelho segundo o Espiritismo (2008, p. 42-43), se acha uma seção intitulada Sócrates e Platão, precursores da ideia cristã e do espiritismo. Na seção seguinte – Resumo da doutrina de Sócrates e Platão (p.44-53), Kardec revisita vários temas místico-religiosos tratados pelo pensamento platônico, entre os quais a doutrina da preexistência da alma, da intuição que a alma tem da existência do outro mundo, da sua sobrevivência ao corpo, de sua reencarnação, etc. A leitura que Kardec faz de Platão o permitirá ver no pensamento do filósofo grego a verdade de que o Espiritismo é portador e da qual ele deu testemunho aproximadamente vinte e três séculos mais tarde. Não se pode perder de vista que o kardecismo também assume explicitamente a doutrina cristã, conforme se infere do título do próprio livro citado. O Deus cuja existência é suposta pelo espiritismo é o Deus da tradição judaico-cristã. Kardec chega a dizer que Santo Agostinho “foi um dos maiores vulgarizadores do Espiritismo” (p. 65). Estando Kardec com razão ou não no tocante à contribuição agostiniana para a popularização do Espiritismo, certo é que o Espiritismo bebeu na fonte dos Pais da Igreja. O que nos parece inegável é que o Espiritismo é uma religião que se formou pela sistematização de duas frentes doutrinárias: a do misticismo metafísico platônico, que terá em sua linhagem especulativa a decisiva contribuição do orfismo-pitagorismo; e a do judaísmo-cristianismo, cujo modelo do divino será explicitamente assumido.
[24] Reale, 2007, p. 192.
[25] Não perdemos de vista a advertência feita por Reale (2007, p. 204), quando escreve: “essa concepção negativa do corpo atenua-se em parte nas últimas obras de Platão, sem desaparecer de todo”.
[26] Fédon, 82e-82e.