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quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

“O canalha é sempre cordial, um ameno, um amorável e costuma ter uma fluorescente aura de simpatia.” (Nelson Rodrigues)

     
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                        Por que um canalha não pode ser filósofo?


A questão que dá título a esta exposição pressupõe já, formalmente, a incompatibilidade entre os tipos ‘canalha’ e ‘filósofo’. Procuraremos argumentar no sentido da impossibilidade de um canalha ser um filósofo. O percurso argumentativo articulará entre si três momentos: o primeiro dos quais é destinado à definição do tipo que chamamos ‘canalha’; o segundo momento recobre a apresentação de alguns pressupostos gerais atinentes ao modo como a filosofia se define na Antiguidade; no terceiro e último momento, apresentaremos o retrato platônico do filósofo na República. Ao cabo desse percurso, esperamos tornar suficientemente convincente nossa crença de que o canalha não pode ser filósofo.
A questão primeira que se nos impõe em nossa tentativa de negar ser possível a um canalha ser filósofo é a seguinte: quem é o canalha? Consideremo-lo um tipo existencial, à moda nietzscheana, que reúne em si as seguintes principais características: 1) é um fingidor; b) é corruptível; c) é avesso a padrões éticos; d) é escravo de suas paixões; e) é um traidor. A característica a) diz respeito ao fato de o canalha fingir ser quem não é; a característica b) diz respeito ao fato de ele ser propenso à corrupção moral, sempre que o que está em jogo é a fruição de seus próprios prazeres; a característica c), que se prende a b), diz respeito ao fato de o canalha não se comprometer com padrões éticos; a característica d) toca ao fato de o canalha agir sempre movido por suas paixões, buscando satisfazer seus interesses egoístas; finalmente, a característica e) diz respeito ao fato de o canalha faltar ao cumprimento de seus juramentos.
Tendo definido o canalha pela apresentação dessas cinco características, passamos ao segundo momento de nosso percurso. Esse segundo momento, conforme dissemos, recobre a apresentação de pressupostos respeitantes à experiência filosófica na Antiguidade. Começo a apresentação desses pressupostos, citando Hadot (2010, p. 18), que assinala: “A filosofia é, antes de tudo, uma maneira de viver”. Mais adiante, acrescenta: “A filosofia não é senão o exercício preparatório para a sabedoria”. (ib.id.). A concepção de filosofia como ‘modo de viver’ se concilia com outra forma de encarar a filosofia, da qual nos dá testemunho o próprio Hadot. Para ele e para nós, a filosofia é exercício espiritual, que se realiza pelo discurso e pela meditação e que se destina a operar uma modificação e transformação no ‘eu’ de quem a pratica. Cabe, a esta altura, observar que, contrariamente ao que subjaz à posição segundo a qual o comportamento moral de uma pessoa pode ser dissociado de seu discurso filosófico (dissociação esta que está na base da crença na possibilidade de um canalha ser filósofo), a experiência filosófica como “maneira de viver” proíbe-nos de dissociar o discurso filosófico do modo de viver filosófico. Acompanhando Hadot, sustentamos que o discurso filosófico é, ao mesmo tempo, meio e confirmação do modo de viver do qual a filosofia é expressão. Portanto, não cabe opor a filosofia como discurso teórico à sabedoria como modo de vida a que se chega quando o discurso atinge seu acabamento e perfeição.
Uma boa maneira de definir o modo de viver filosófico, que já descortina o terceiro momento de nossa exposição e que se afina com a compreensão socrático-platônica da própria filosofia, encontramo-la em Hadot (p. 102): “Viver de modo filosófico é, principalmente, voltar-se para a vida intelectual e espiritual, realizar uma conversão que põe em jogo “toda a alma”, isto é, toda a vida moral”. Em Platão, a filosofia é experimentar-se, ou ainda, é fazer a experiência de não ser o que se deveria ser. A filosofia, na tradição socrático-platônica, é uma experiência de cuidado de si indissociável do cuidado da cidade e dos outros. Com Sócrates, a filosofia se torna um exercício espiritual que convida o homem a examinar seus valores, sua maneira de agir, “para tomar cuidado consigo mesmo, como também para uma ruptura radical com a vida cotidiana, com os hábitos e as convenções da vida corrente, com o mundo que lhes é familiar” (Hadot, 2010, p. 66).
Uma breve digressão se faz necessária. Toda discussão sobre a incompatibilidade entre um modo de ser ‘canalha’ e um modo de ser filosófico deve estear-se na crítica, feita por Hadot, à representação da filosofia como mero conteúdo conceitual. Essa representação da filosofia como mero conteúdo conceitual tem relação direta com sua redução a uma disciplina acadêmica. Essa redução da filosofia a uma disciplina acadêmica é consequência da separação entre o discurso filosófico e o modo de vida filosófico, que se inicia com a modernidade[1].
Retomando-se o curso de nossa discussão, intentando rejeitar a crença na possibilidade de um canalha poder ser filósofo, insistimos na necessidade de retomar a relação, estabelecida pelos gregos, marcante em Platão, entre sabedoria, conhecimento e virtude. A virtude é indissociável da sabedoria, a qual, não sendo acúmulo de conhecimentos, é “um estado de liberação total das paixões, de lucidez perfeita, de conhecimento de si e do mundo” (Hadot, 2014, p. 57). A sabedoria, no entanto, não é propriedade do filósofo. É importante insistir neste fato: o filósofo não é o sábio; o filósofo é amante da sabedoria, ele deseja a sabedoria e se devota a buscá-la a partir do reconhecimento de que “nada sabe”.
Na tradição socrático-platônica – que é a tradição na qual nos movemos nesta exposição -, a ciência ou o saber jamais são conhecimento puro e abstrato. A virtude é um saber que escolhe o bem e quer o bem; é uma disposição interior na qual pensamento, vontade e desejo se fundem numa unidade. Para Platão, a virtude é ciência, e a própria ciência é virtude. A ciência, tal como pensada e praticada na Academia, destinava-se à formação do homem, a uma lenta e difícil formação de seu caráter. A ciência visava ao desenvolvimento harmonioso da personalidade humana. Em suma, a ciência era um modo de vida destinado a assegurar uma vida boa e, consequentemente, a “salvação” da alma.
Cumpre ainda elucidar a figura do filósofo, tal como dela nos dá testemunho Platão na República. A questão que orienta toda a problemática do Livro VI é a seguinte: quem é filósofo e quem não é filósofo? Em diferentes passagens deste livro, Platão nos fala do filósofo como a) aquele que conhece o que é imutável (484a-d), b) ser virtuoso cuja alma é justa, cordata e moderada (486a-e), c) o que luta pelo ser (490a-e), d) o que se torna divino e ordenado, porque convive com o que é divino e ordenado (500a-e). Também nos diz Platão que o filósofo é aquele capaz de contemplar a essência da Justiça e o Belo em si. Acrescenta que os filósofos são pintores que utilizam o modelo divino. Eles são educadores da alma: cabe a eles criar nos homens a temperança, a justiça e toda a virtude. Platão “pinta”, por assim dizer, o mundo do filósofo. Como é este mundo próprio do filósofo? Acompanhando Platão, somos levados a concluir que o mundo dos filósofos é o mundo das Ideias, dos modelos imutáveis das coisas sensíveis. A vida do filósofo é devotada à compreensão dos Princípios. O filósofo é aquele que se volta para a contemplação do Bem, que é o horizonte a partir do qual o mundo inteligível se ilumina, tornando possível a compreensão dos Princípios.
Uma dimensão importante na constituição da figura do filósofo é a paidéia filosófica. A paidéia é uma conversão da alma que se volta do mundo sensível para o mundo inteligível. A paidéia é uma forma de educar o olhar, de ensinar a ver. É pela paidéia que o filósofo se torna quem ele é: amante da sabedoria, incorruptível e fiel à filosofia. Essa forma de pedagogia filosófica torna os filósofos os únicos capazes de guardar as leis e os costumes da cidade, sem se perderem nas aparências das coisas e das opiniões. Eles são avessos à mentira. São também os mais aptos para governar porquanto dispõem da condição para o bem governar, a saber, o conhecimento da Justiça e do Bem em si.
Sendo necessariamente virtuoso, o filósofo é um homem em cuja alma a parte racional domina as partes apetitiva e irascível. A alma do filósofo é, portanto, uma alma virtuosa porque não cede aos apelos irracionais das paixões. A parte racional de sua alma tem como virtude o conhecimento. O filósofo é, portanto, aquele que vive uma vida justa, o que equivale a dizer que cada parte de sua alma realiza sua própria excelência sob a orientação da parte superior, que é a razão.
Deter-nos-emos um pouco na consideração do sentido da razão como parte superior da alma humana. A razão é responsável por dar a medida. A parte racional da alma – repetimos - cumpre a função de dominar as outras duas partes, harmonizando-as com a razão. Dessa qualidade da parte racional da alma, Platão nos dá testemunho, fazendo Sócrates dizer a Adiamanto:

- Diremos além disso que há pessoas que, quando têm sede, recusam beber?
- Sim, há muitas, que o fazem muitas vezes.
- Então, que se dirá acerca delas? Que na alma delas não está presente o elemento que impele mas sim o que impede de beber, o qual é distinto do que impele e superintende nele?
- É o que parece.
- Porventura o elemento que impede tais atos não provém, quando existe, do raciocínio, ao passo que o que impele e arrasta deriva de estados especiais e mórbidos?
- Acho que sim.
- Não é, portanto, sem razão que consideraremos que são dois elementos, distintos um do outro, chamando àquele pelo qual ela raciocina, o elemento racional da alma, e aquele pelo qual ama, tem fome e sede e esvoaça em volta de outros desejos, o elemento irracional e da concupiscência, companheiro de certas satisfações e desejos.[2]

A parte racional é a parte espiritual e imortal da alma. É a função superior da alma, o princípio divino em nós. A psicologia proposta e descrita por Platão se articula com sua teoria ética. Não podemos perder de vista essa articulação, já que, ao dividir a psykhé em três partes, Platão está interessado em determinar as condições necessárias para que um homem pratique o bem e seja virtuoso. Se dominado pelas partes apetitiva e irascível, esse homem não pode tornar-se virtuoso. É preciso, para tanto, que a parte superior e melhor da alma comande as demais partes. A própria possibilidade de haver justiça, discutida no livro IV de A República, supõe o comando do superior e melhor sobre o que é inferior e pior. Em outras palavras, para haver justiça, a parte racional da alma, que é a parte superior e melhor, deve governar as partes inferiores, a apetitiva e irascível. Que não reste dúvida sobre a relação necessária que Platão estabelece entre a vida virtuosa e a parte racional da alma. Esclarecemo-la. Platão sustenta a crença – que deve a seu mestre Sócrates – de que as paixões do desejo e da cólera levam à produção de apetites em nosso corpo, os quais concorrem para toldar a inteligência. O obscurecimento da inteligência por esses apetites que decorrem das paixões do desejo impedem-na de realizar sua atividade própria, que é conhecer. O que resulta daí é a ignorância, que é o próprio vício. Logo, incapaz de exercer a razão, o indivíduo fica impossibilitado de conhecer as virtudes e de tornar-se virtuoso. É assim que a vida virtuosa dependerá unicamente da parte racional da alma.
Se nos perguntarmos sobre qual é a tarefa ética da parte racional da alma, a resposta deve já nos saltar evidente: dominar as outras partes da alma, de modo a harmonizá-las com a razão. O domínio da razão sobre a concupiscência é o que chamamos temperança (sophrosýne). Sophrosýne é moderação. A temperança é a virtude da alma concupiscente que se deixa dominar pela razão. Uma alma que se dispõe para a temperança resiste aos impulsos e prazeres, modera os apetites e impõe-lhes uma medida racional.
A vida se diz virtuosa, quando cada uma das partes da alma realiza sua própria virtude sob o comando da razão. Por outro lado, a vida viciosa é aquela na qual todas as partes da alma falham na tarefa de realizar a sua excelência ou virtude que lhe é própria. Acresça-se que nos falta dizer qual é a virtude própria da parte irascível da alma. A parte irascível da alma serve de intermediário na ação da razão sobre a parte concupiscente da alma. A razão não atua diretamente sobre a parte concupiscente, já que é preciso que, no comando da concupiscência pela razão, intervenha o sentimento de defesa da vida pelo qual é responsável a parte irascível. A virtude da parte irascível da alma é a coragem (thýmos) ou a prudência (phrónesis). Dominando a parte irascível da alma, a razão possibilita a ela discernir entre o que é bom e o que é prejudicial para a vida do corpo.
Tomemos, agora, a vida viciosa, da qual podemos dizer ser a vida do canalha. Essa vida se caracteriza pela desarmonia entre as partes da alma. Nenhuma das partes da alma consegue realizar a excelência que lhe é própria. Trata-se de uma vida injusta, porque lhe falta o comedimento, a ordem interior. Nela, os apetites dominam a parte racional ou a parte colérica, fazendo-as se enganar e tornando-as conflitantes entre si.
Somente o filósofo é apto para intuir a Ideia de Justiça, sem a qual não é possível a realização de uma cidade justa. Platão estende o governo dos apetites e da cólera pela razão à compreensão do governo da cidade, a qual é concebida como um conjunto hierarquizado de funções cada qual com sua dýnamis e sua areté. Assim, no Livro V, Platão mostra que a justiça é harmonia no Estado e na alma. Como o filósofo é aquele cuja alma é harmoniosa, aquele que é mais apto para atingir o conhecimento verdadeiro, para contemplar a Ideia de Justiça, somente a ele poderia ser conferida a função de governante da cidade justa. Suas propriedades intelectuais e éticas são garantidas pelo exercício da dialética que conduz à intuição da Verdade e do Bem em si.
Concluímos, pois, nosso itinerário descritivo da figura do filósofo, destacando do método dialético, indispensável na formação do filósofo, dois aspectos: o primeiro dos quais consiste no fato de a dialética ser o caminho para descobrir quais Ideias participam de outras e quais não podem participar de outras. A dialética é, assim, um processo ascensional que visa às Essências. Pela dialética, o filósofo é levado a reconhecer que há entre as Ideias um princípio de comunicabilidade e que a maneira como as Essências se comunicam entre si se reflete na maneira como as coisas sensíveis se comunicam. A teoria da participação, coração da doutrina platônica, revela que estamos vinculados às Essências e que o ato de pensar não se separa do ato de nos vincularmos dialeticamente aos deuses. O filósofo, portanto, é aquele que, por ter memória, visa às Essências. O filósofo é, por natureza, virtuoso – repitamos – e, como a virtude, em Platão, é um processo ascensional, o próprio filósofo é aquele ascensionalmente voltado para as realidades divinas. Nada semelhante se dá com o tipo canalha, avesso a qualquer horizonte vinculativo, infiel, movido por interesses egoístas para cuja satisfação ele se lançará irrefletidamente sem o menor escrúpulo.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HADOT, Pierre. O que é filosofia antiga. São Paulo: Edições Loyola, 2010.
_____________ Exercícios Espirituais e filosofia antiga. São Paulo: Realizações Editora, 2014.

PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2009.




[1] Não se segue daí que não haja filósofos modernos que, de algum modo, experienciam a filosofia como modo de viver. Citem-se, por exemplo, Blaise Pascal, Schopenhauer e Nietzsche.
[2] Ib.id.,439d.