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domingo, 12 de abril de 2020

“O que foi dito sobre deus é ou ininteligível ou perfeitamente contraditório; e por esta razão deve ser uma hipótese absurda para todo homem de bom senso.” (Paul Henri Holbach)


Arte Barroca - Características, vertentes do Barroco e principais ...


Deus – um problema de lógica
O argumento da impossibilidade


Ponho-me a escrever este texto num período histórico em que o mundo enfrenta a pandemia de covid-19, enquanto o homem comum, tão habituado que está a acolher, de modo acrítico, os significados culturalmente compartilhados, dá novo vigor aos seus costumeiros apelos a Deus, a quem pede misericórdia e proteção. Por mais indiferente que eu procure ser ao comportamento religioso padrão desse tipo humano, custa-me silenciar meu espanto em face da incapacidade que tem esse tipo humano em aceitar raciocínios simples que colocam suas alegações de fé no conjunto das crenças falsas acerca do mundo. Um exemplo de raciocínio simples e completo, para cuja aceitação a maioria dos indivíduos que professa sua fé no Deus teísta parece inapta, é o silogismo. O silogismo é um raciocínio completo, explícito e composto de três juízos, dos quais dois são premissas; e o terceiro, a conclusão. Um exemplo de silogismo é o que se segue:

1. Todos os pernambucanos são brasileiros.  (premissa maior)

2. João é pernambucano.  (premissa menor)

3. João é brasileiro.  (conclusão)

 

Escusando-me de me deter em explicações especializadas, chamo a atenção para o fato de que, se assumirmos que 1 e 2 são verdadeiros, somos obrigados a aceitar como verdadeira a conclusão 3. Ora, se todos os pernambucanos estão inseridos no grupo dos indivíduos que são brasileiros, e se João é pernambucano, então (logo, portanto), João é brasileiro. Creio não haver dificuldade para a compreensão desse raciocínio, que é bastante simples. Agora, busquemos ver se uma das alegações sobre Deus passa no teste silogístico. Note-se este outro silogismo:

1. Todas as coisas que existem na natureza foram criadas por Deus.

2. Vírus são coisas que existem na natureza.

3. Vírus foram criados por Deus.

 

Se eu aceito a verdade de 1 e 2, então tenho de aceitar a verdade de 3. Trata-se de um raciocínio válido do ponto de vista lógico. Não obstante, ele acarreta um problema desconcertante para a fé no Deus teísta – problema este de base empírica: o problema do Mal. Sabemos que vírus são microrganismos patogênicos, ou seja, são capazes de causar doença e sofrimento. Como, então, explicar que um Deus sumamente bom e onipotente possa ter criado tais microrganismos que causam dor e sofrimento? É o paradoxo de Epicuro (341-270 a.C), posteriormente ampliado por Hume, sobre o problema do mal que se deixa ouvir aqui:

1. Deus quer eliminar o mal, mas não pode; 2) Deus pode eliminar o mal, mas não quer; 3) Deus não pode e nem quer; 4) Deus pode e quer. Se aceitamos 1), então Deus não pode ser onipotente; se aceitamos 2), então Deus não é bom; se aceitamos 3), então Deus é mau; se, finalmente, aceitamos 4), somos forçados logicamente a explicar por que há tanto sofrimento gratuito no mundo. Epicuro quer-nos mostrar que qualquer uma das alternativas é indesejável.

Não será, contudo, o Problema do Mal que tomarei para escopo de minhas reflexões. Sobre este problema já dissertei alhures, e vários textos dedicados ao tratamento dessa questão se topam neste blog. O que me interessa neste texto é mostrar a ilogicidade, a contraditoriedade inerente ao conceito do Deus teísta, ou seja, do Deus das três “Religiões do Livro”: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Essas três tradições de fé monoteísta compartilham um único texto sagrado (a Bíblia hebraica); e o cristianismo e o islamismo proclamam ainda livros adicionais, a saber, o Novo Testamento e o Alcorão. Estes livros são considerados como revelações da palavra de Deus. Tais textos, associados a séculos de crença popular e reflexão teológica, formaram o conceito que vêm à mente para mais da metade dos crentes quando ouvem a palavra “Deus”. O termo teísmo, usado desde o século XVII, designa a crença num Deus como Ser que é o princípio originário de todas as coisas. O Deus teísta é o Ser como causa do mundo, segundo Kant. Ao me ocupar em explicitar a ilogicidade intrínseca das tramas semânticas do conceito do Deus teísta, sinto-me obrigado a delimitar o domínio teórico à luz do qual a ideia de ‘conceito’ será pensada. A questão premente e inicial será então: o que estou entendendo por ‘conceito’ ao me referir ao ‘conceito de Deus’?

 

1. A visão clássica de conceito

 

Conceito, segundo Aristóteles, é uma ideia substancial, expressa por um substantivo, à qual se associa uma série de categorias ou acidentes. De acordo com a concepção clássica, o conceito visa à essência das coisas, ou seja, àquilo pelo qual as coisas não podem ser diferentes do que são. Tanto Platão quanto Aristóteles entendiam o conceito como lógos que circunscreve a substância ou essência necessária de um ser. Essência  é aquilo que permanece o mesmo, independentemente das mudanças ou acidentes. A essência é o ser mesmo das coisas, aquilo que a coisa é ou o que faz dela aquilo que é.

Além de abrigar uma ideia substancial, ao conceito se predem acidentes ou categorias. Aristóteles distinguiu 10 categorias, entre as quais estão a de ação, hábito, lugar, quantidade, paixão. Assim, ao conceito [CAVALO] pode-se associar a categoria [trotar], numa relação predicativa como “cavalos trotam”. Na visão clássica, os conceitos têm uma natureza binária: ou bem o conceito aplica-se a um ente, ou bem não se aplica. Se dois entes quaisquer são exemplares de um conceito, eles o são de modo igualmente apropriado, isto é, um conceito não se aplica mais ou melhor a um ente que a qualquer outro. Destarte, por conceito entende-se uma lista de propriedades necessárias e suficientes. Os conceitos são, portanto, absolutamente precisos. Assim, se todos os homens são mortais, não há nenhum homem mais mortal ou tipicamente mortal que qualquer outro. Na concepção clássica, os conceitos consistem em conjuntos de atributos ou propriedades individualmente necessários e conjuntamente suficientes. Destarte, para ser representado num conceito, um ente deve possuir cada uma das propriedades que o constituem e a posse de todas essas propriedades deve ser suficiente para que o ente seja um exemplar desse conceito. Por exemplo, uma vez que [animal] e [racional] são atributos ou traços semânticos do conceito [homem], para que um ente seja considerado “homem”, é necessário que seja animal e racional. Na concepção clássica, os conceitos são estáveis. Eles são constitutivos de nosso conhecimento – do conhecimento conceitual. Conceitos são ferramentas com as quais pensamos. Também é sobre conceitos que recai o ato da reflexão. No ato da reflexão, tornamos os conceitos mais eficazes, mais adaptados para seus fins, uma vez que é na reflexão que eles são transformados, passando a fazer parte de nós mesmos como sujeitos do conhecimento.

A concepção clássica de conceito é, contudo, insuficiente para dar conta do processo sócio-cognitivo-interacional de construção de conceitos. Ademais, a concepção clássica não reconhece que a cognição é o resultado das nossas ações e de nossas capacidades sensório-motoras. Por conseguinte, o que entenderemos por “conceito” se alinha com o Realismo Experiencilista associado com a abordagem sociocognitivo-interacional da linguagem.

 

2. Realismo experiencialista: conceitos como modelos cognitivos

 

O realismo experiencialista enfatiza a experiência humana e assume a centralidade do corpo humano nessa experiência a fim de explicar o funcionamento da cognição humana. De acordo com esta teoria, a investigação da mente humana não pode ser separada do corpo. A experiência, a cognição e a realidade são concebidas a partir da ancoragem corporal. De acordo com esta perspectiva filosófica, os conceitos são produtos de uma construção sócio-interacional-cognitiva de significados. Os conceitos são dinâmicos; formam-se e mudam em consonância com as diversas formas de interação humana com objetos de ação, de conhecimento, com signos e significados culturais; e, sobretudo, formam-se e mudam nas relações intersubjetivas, em situações sócio-históricas de construção coletiva de significados e de negociação interpessoal desses significados. Os conceitos, portanto, existem sempre numa contextualidade, a qual recobre as práticas discursivas, os domínios de conhecimento e de cultura. Todo conceito é dotado de uma materialidade (é parte de textos, suportes, instituições, atividades, práticas linguísticas historicamente condicionadas).

A cognição, por seu turno, é um fenômeno situado. Não há limite claro entre o que acontece dentro e fora da mente. Os processos cognitivos resultam de relações complexas entre ações sociais e atividades mentais internas. As tarefas que realizamos conjuntamente com os outros constituem rotinas culturalmente determinadas que organizam os processos cognitivos dos indivíduos em conformidade com exigências socialmente fixadas. A emergência e desenvolvimento dos conceitos se dão nas atividades nas quais os homens se engajam com vistas a construir sentidos para a suas experiências de mundo.

O corpo não só delimita a experiência, mas também estrutura a cognição. Conceitos rudimentares como o de ‘contato’, ‘contêiner’, ‘equilíbrio’ resultam da experiência pré-conceitual. Tais conceitos não são meras abstrações, mas constituem esquemas imagéticos derivados de experiência sensório-motora.

Longe de negar que exista um mundo físico objetivo independente de nós, o realismo experiencialista mantém que o acesso à realidade é limitado por nosso ambiente biofísico e pela natureza de nossa estrutura corporal. Destarte, a radiação infravermelha, por exemplo, emitida por alguns corpos é invisível ao  olho humano, porquanto o comprimento de onda dessa radiação é maior do que o da luz que somos capazes de enxergar. Quando consideramos a percepção da cor, sabemos que o sistema visual humano tem três tipos de fotorreceptores, os quais diferem daqueles de animais como esquilos e coelhos (que apresentam dois tipos) e de pombos (que têm quatro tipos). Essa diferença influencia nossa experiência no tocante às cores a que temos acesso no espectro cromático. Ademais, enquanto temos dificuldade para enxergar à noite, as cascavéis realizam atividades noturnas, como a caça. Esses animais conseguem detectar visualmente o calor emitido por outros organismos, porque são capazes de enxergar a faixa infravermelha. Tais exemplos patenteiam que as características do aparelho visual dos seres humanos – um dos aspectos de sua estrutura corporal – determinam a natureza e a extensão de sua experiência nesse domínio.

Em consonância com o realismo experiencialista, a linguagem não reflete a realidade, mas interage com os sistemas perceptuais e cognitivos moldados pelas práticas culturais na construção humana da realidade. O realismo experiencialista mantém que a forma e a configuração de nossos corpos e cérebro determinam necessariamente uma perspectiva particular - entre várias possíveis – sobre o mundo. 

Na abordagem sociocognitiva, conceitos são um feixe de modelos cognitivos dotados de uma estrutura interna. Cada expressão linguística põe em evidência um aspecto do conceito em consonância com o contexto sociocognitivo. Na produção e desenvolvimento dos conceitos, destaca-se a importância do background cultural, que consiste na forma de vida da sociedade – forma de vida que inclui mudanças de costumes e mudanças tecnológicas.

O que torna possível a compreensão do que é o conceito ou dos aspectos do conceito instanciados pela expressão linguística é a experiência que o indivíduo tem, enquanto sujeito sócio-histórico, em sua vida cotidiana, com os diferentes aspectos do ente designado pelo conceito (p. ex.,  o conceito de ‘água’ será resultado da experiência que o indivíduo terá com  a fluidez, a clareza, a impureza desse elemento, ou com o fenômeno da chuva, etc.). Muitos de nossos processos cognitivos têm por base a percepção e a nossa capacidade de atuação sensório-motora no mundo. Portanto, há processos cognitivos que acontecem em sociedade e não exclusivamente ‘na mente’ dos indivíduos.

Em síntese, são três os postulados do Realismo experiencialista:

 

1) O pensamento enraíza-se no corpo, de modo que as bases de nosso sistema conceitual são a percepção, o movimento corporal e as experiências físicas e sociais;

 

2) O pensamento é imaginativo, de sorte que os conceitos que não são diretamente ancorados em nossa experiência física empregam metáforas, metonímias e imagética mental, que não mantém uma relação especular com a realidade;

3) O pensamento tem propriedades gestálticas, o que significa dizer que os conceitos apresentam uma estrutura global não atomística, ou seja, não se limitam à mera reunião de traços de significados organizados segundo regras específicas.

 

As palavras ou os signos de modo geral são o meio para a formação dos conceitos; mas, como não há uma relação especular entre a linguagem e o mundo, essa relação é sempre mediada pela arquitetura cognitiva dos actantes sociais, tendo em conta as restrições e características dessa arquitetura. Assim, segundo o realismo experiencialista, a razão humana não é um componente transcendental, mas algo que se constitui a partir da natureza de nosso organismo biológico e dos fatores que contribuem para a nossa experiência individual e coletiva, tais como herança genética, características do ambiente, a natureza de nosso comportamento e modo de ser sociais, etc.

O realismo experiencialista, assentado na hipótese da base corpórea da cognição, mantém que as experiências vividas pelos indivíduos através de seus corpos em ação servem de fundamento para a cognição, influenciando as atividades cognitivas tais como a percepção, a formação de conceitos, a imagética mental, a memória, o raciocínio, a linguagem, as emoções e a consciência.

Assim, por exemplo, considerando um esquema imagético como versões esquemáticas de imagens, concebidas como representações de experiências corporais, tanto sensoriais quanto perceptuais em nossa interação com o mundo, formamos os conceitos de dentro-fora, que, em conjunto, constitui um esquema imagético. Na base desse esquema está o domínio “contêiner”. Domínios são experiências perceptuais, conceitos, complexos conceituais e sistemas elaborados de conhecimento. Domínios como ‘contêiner’, ‘trajetória’, ‘força’ e ‘equilíbrio’ são responsáveis pela estruturação da experiência ancorada no corpo. É com base nesses domínios que é possível formular frases como “Ele jogou o lixo fora” e “Guardei o carro na garagem”.

  

2.1. O conceito de Deus como uma forma de modelo cognitivo

 

O conceito do Deus teísta se formou e se ainda desenvolve, com certa dinâmica reflexiva, em práticas intersubjetivas e institucionais, discursiva e historicamente condicionadas, com base em experiências individuais e coletivas delimitadas por relações com o entorno biofísico e pelo background cultural dos indivíduos que são socialmente posicionados como autoridades na promoção da fé em Deus. Como a constituição do conceito de Deus só indiretamente está ancorada em experiências físicas com o mundo, visto que não se tem experiência sensível de Deus, assumo que o conceito canônico de Deus foi gestado pela imaginação, a qual é condicionada por experiências sócio-históricas dos hebreus com guerras, exílio, impérios, deuses estrangeiros, artefatos culturais (como a escrita, por exemplo) e experiências físico-corpóreas com o ambiente natural, como, por exemplo, com o deserto. Como bem lembra Debray (1004, p. 38), “Deus é impensável sem a escrita essencialmente e sem a roda secundariamente”. A roda diminui, em certo grau, a dependência do homem em relação ao espaço; e a escrita, em relação ao tempo. Ainda segundo Debray, “o homem descende do símio, mas Deus descende do signo” (ibid., p. 39).

 Embora o que os crentes saibam a respeito de Deus tenha sido sedimentado por uma tradição bíblica e teológico-filosófica ao longo de séculos, o conceito de Deus, como todo conceito, é marcado por uma contextualidade e dinamicidade, de modo que pode sofrer algum tipo de customização. Por exemplo, em nossas sociedades de mercado, os fiéis, muitas vezes, vivenciam sua fé como alguém que participa de uma relação mercantil. Com base  no modelo cognitivo das relações de mercado, Deus é imaginado como um mercador com quem o fiel negocia favores e milagres. A relação imaginária entre o crente e seu Deus fica regulada por motivos e interesses pragmáticos.

Uma vez que eu tenha assumido que a imaginação desempenha um papel importante na formação do conceito de Deus, parece-me imperioso justificar por que lhe confiro esse estatuto. É o que farei doravante.

Vimos que um dos postulados do realismo experiencialista é que o pensamento é imaginativo, de sorte que muitos conceitos que não se formam pela ancoragem corporal diretamente dependem, para se constituir, de metáforas, metonímias e imagens mentais. O pensamento imaginativo parece, então, está essencialmente implicado na constituição do conceito da divindade de um modo geral. Escusa lembrar que o Deus bíblico é referido na Bíblia com o emprego de metáforas. Diz o salmista “o Senhor é a minha rocha, a minha fortaleza e o meu libertador, o meu Deus é o meu rochedo...” (Salmos 18:2). As metáforas da “rocha”, da “fortaleza” e do “libertador” se baseiam nas experiências hebraicas tanto com o ambiente biofísico quanto com o jugo e o exílio.  Em Isaías (40:11), Deus é representado como “pastor” que cuida do seu rebanho. É a experiência com o modo de vida pastoril, tão comum nas sociedades antigas do Oriente Próximo, que é ativada para a constituição desse modelo cognitivo de Deus. Deus é o pastor de seu povo. Ele tem a missão de reunir o gado e impedir sua dispersão. Deus prometeu uma pastagem às suas ovelhas – a Terra Santa. Jeová é para o homem o que o homem é para seus animais. Aqui o esquema imagístico para Deus funda-se no modelo pastoril. Modelos constituem simplificações ou idealizações da experiência e se formam levando ao extremo caracteres ou atributos dos objetos empíricos. Assim, “cada povo cria deuses à sua própria imagem”, como ensina Debray:

 

“(...) um povo de oradores inventa um Olimpo eloquente e rixoso. Um povo de pastores escolhe como instrumento de coesão e independência, um grande pastor celeste, substituído, nos planos inferiores, por pastores de carne e osso, profetas e monarcas, Moisés e Davi. A metáfora pastoril dos poderes supremos era corrente nas sociedades antigas, o Egito e a Assíria. O povo hebreu parece ter adotado o sistema de metáfora, adequado a pastores de pequenos rebanhos”. (ibid., p. 73).

 

 

Armstrong (2008, p. p. 94) também salienta o poder do pensamento imaginativo na formação do conceito de Deus, quando nos ensina que “(...) a concepção de Deus foi muitas vezes um exercício de imaginação. Os profetas refletiam sobre sua experiência e achavam que podiam atribuí-la ao se que chamavam de Deus”. É oportuno aqui lembrar que os profetas de Israel não eram adivinhos. Eles não falavam de acontecimentos de um futuro distante, como sugerem algumas interpretações correntes e historicamente inadequadas em nossos dias. Vale reiterar que os profetas bíblicos lidavam com o futuro imediato e não prediziam o que iria acontecer muitos séculos depois. Eles estavam tão só levando a palavra de Deus a pessoas que viviam em sua própria época. Os profetas também falavam dos sofrimentos de seus contemporâneos e forneciam uma justificação para eles sem pretender que ela se convertesse num princípio explicativo universal. A profecia hebraica tinha como propósito fazer uma crítica social e religiosa. Para os profetas, Deus é que punia o seu povo com sofrimentos sempre que esse povo se afastava Dele.

No primeiro livro de Samuel, Deus é referido como “Senhor dos Exércitos”, uma metáfora cunhada com base na experiência bélica dos hebreus com os filisteus. Os dois livros de Samuel recobrem o período que vai de aproximadamente 1030 a.C até o final do reino de Davi (972.a.C). Todo o segundo Livro é dedicado ao reinado de Davi, a cuja descendência o profeta Nathan promete uma Aliança eterna. Os Livros do profeta Samuel reúnem documentos diversos, possivelmente compilados a partir do início do século VII, conquanto somente um século depois tenham sido incorporados na forma definitiva em que se encontra na Bíblia. Conta-se que os israelitas, sob o comando do rei Saul, escolhido por Samuel, organizou um pequeno exército com apenas 3.000 homens para expulsar os filisteus. Como Deus é intervencionista, conta-se que ele causou o pânico entre os filisteus, quando um grupo de filisteus abandonou seu acampamento depois que Jônatas e seu escudeiro mataram vinte homens filisteus. A crença dos autores bíblicos na participação de Deus no curso da história é flagrante também quando se relata que Saul fica aborrecido com o silêncio de Deus, depois que lhe pediu orientação para continuar na luta contra os filisteus em fuga.

Também a experiência com o Deserto constitui um esquema imagético para a composição do conceito de Deus no Antigo Testamento. O Deus que aprecia as naturezas hostis, as temperaturas extremas e as pedras é símbolo da confiança na superação dos limites. Como pondera Debray,

 

“(...) se olharmos um mapa histórico, veremos que o Grande Outro só se apresentou, em pessoa, nos reinos da Ausência, que não configuram um meio uniforme e sim abstrato. Ele rejeita as baixas planícies, as margens pantanosas dos rios (...)” (ibid., p. 69)

 

 

 

Deus anuncia-se “lá onde nada separa o céu da terra. Onde o homem, exilado dos seus mundos familiares, descobre-se nu e quase supérfluo, insignificante”. (ibid.). É na desolação do deserto que “os céus nos contam a glória de Deus” e “as insignificâncias das glórias humanas, a comédia dos pontetados, o destino dos impérios”. (ibid.). A experiência dos hebreus com o caráter inóspito do deserto é o domínio com base no qual o esquema imagético de Deus como o Único, o Grande Unificador Federativo será constituído. Deus é, então, “o único ser capaz de costurar um tecido social mais exposto do que em outras partes às rupturas e até à divisão tribal”. (ibid., p. 70).

Tendo em vista o exposto,  a imaginação entra a fazer parte na constituição do conceito do Deus judaico não sob a forma grosseira de conjunto de sintomas delirantes, mas incrustada em experiências concretas, corpóreos e históricas, com a pedra, com o deserto, com as guerras, etc. É preciso ter em conta o fato de que por imaginação, desde Aristóteles, entende-se a faculdade de evocar ou produzir imagens, independentemente da presença do objeto a que se refere. Sartre a pensará como “consciência desrealizante”, porquanto a imaginação se dirige a um objeto não real. A imaginação, para ele, transcende o existente em direção ao ausente e elabora um mundo alternativo. Kant, por sua vez, pensará a imaginação como uma faculdade reprodutiva, que traz de volta ao espírito uma intuição empírica anterior. Não estou, portanto, negando à imaginação a função transgressora e criadora, “poetizante”, da qual nos lembram Baudrillard, Deleuze e Guattari. Decerto, a imaginação é o estímulo para que o pensamento conceitual pense mais além, é o estímulo sem o qual o conhecimento filosófico ficaria engessado no momento presente. Sem embargo, é igualmente certo que a tradição definiu, de modo geral, a imaginação como a faculdade criativa do pensamento mediante a qual se produzem imagens (representações mentais) de objetos inexistentes, entre os quais incluo Deus. A tradição distinguiu entre imaginação reprodutiva, que produz imagens daquilo que percebemos e a imaginação criadora, que produz imagens do que jamais vimos. Deus é um complexo conceitual produzido pela imaginação criadora. A imagem não é cópia do objeto real, mas seu processo de formação é um processo mimético da percepção. Quando, por exemplo, formamos o conceito canônico de Deus, ou seja, do Deus judaico-cristão, a imagem que produzimos se compõe de elementos de objetos reais. Os cristãos falam em um Deus pessoal, num Deus que é pai, num Deus capaz de amor, num Deus que se fez carne na pessoa de Jesus Cristo, etc. O divino no imaginário judaico-cristão é antropomorfizado. O conceito de Deus é, pois, produzido pela imaginação criadora, sempre condicionada por experiências históricas concretas, cujo modelo último é o homem e seus modos de ser no mundo. As experiências que os homens fazem de si mesmos com base nas relações de seus corpos com o entorno biofísico e histórico são o cadinho donde eles recolhem as qualidades imaginariamente projetadas e combinadas para compor o conceito de Deus. Como a imaginação se caracteriza por transcender os limites da experiência possível, em Deus, as qualidades humanas são representadas de modo superlativizado, superdimensionado.

 

3. O argumento da impossibilidade

 

Passo, agora, a desenvolver, um dos argumentos ateus mais notáveis dentre os que visam a demonstrar a impossibilidade da existência do Deus teísta. O chamado argumento da impossibilidade busca mostrar que o conceito tradicional de Deus é marcado estruturalmente por contradições, de sorte que sua existência é logicamente impossível. Tradicionalmente, Deus é definido como um Ser necessário, onisciente, onipotente e moralmente perfeito. Também é concebido como o Criador livre do mundo e se diz dele que é imutável e transcendente. Alguns argumentos da impossibilidade incidem sobre um só atributo do complexo conceito de Deus, por exemplo, tentando mostrar que a noção de onisciência é, em si mesma, logicamente incoerente; outros argumentos atacam a combinação de atributos, mostrando, por exemplo, que não é logicamente possível que um ser seja onisciente e criador livre. Se qualquer das formas de argumentação for bem-sucedida, poderei mostrar que não pode haver um Deus tal como imaginado na tradição teísta.

Uma observação se faz aqui necessária. É sempre possível ao teísta rejeitar o argumento da impossibilidade alegando que o Deus que se mostrou impossível não é o Deus em que ele acredita. Se o teísta acabar por defender um Deus que é capaz de conhecimento, sem ser onisciente, pode furtar-se a alguns argumentos, mas sob o preço de ficar com um Deus perculiarmente ignorante. Se o teísta, por exemplo, afirmar que seu Deus é poderoso, mas não é onipotente, esse Deus pode parecer cada vez menos digno de receber tal título honorífico. O teísta também pode optar pela vagueza; algumas vezes também pode apelar para concepções bastante abstratas de Deus, que chegam a beirar os modos como o divino é pensado na mística oriental. Uma reação bastante frequente, talvez, não é a redefinição do conceito de Deus, mas o refúgio na vagueza, no uso contínuo do termo “Deus” em flutuações semânticas que carecem de qualquer especificação. Mas recorrer à vagueza só consegue afastar as críticas ateístas à custa da diluição do conteúdo tratado. Se a noção que um crente tem de Deus for vaga o bastante para se furtar a todos os argumentos da impossibilidade, então nem para ele é claro o objeto de sua crença – nem se o que toma como uma crença pia tem realmente conteúdo.

 

3.1. A impossibilidade da Onipotência

 

O mais famoso argumento contra a crença na existência de um Deus onipotente é o argumento da pedra. O argumento se estrutura com base na seguinte questão: poderia Deus criar um pedra tão pesada que nem ele mesmo conseguisse levantá-la? Devemos aqui recordar que a onipotência, como qualidade do conceito do Deus teísta, é definida como a capacidade que tem Deus de realizar tudo, de fazer tudo. Como ensina o Catecismo da Igreja Católica (2000, p. 80-81), “(...) nada lhe é impossível e Ele dispõe à vontade de sua obra, Ele é o Senhor do universo, cuja ordem estabeleceu, ordem esta que lhe permanece inteiramente submissa e disponível”. Ou ainda: “Deus criou tudo, governa tudo e pode tudo”. (ibid., p. 81).

1) Se a resposta à referida questão for “sim”, ou seja, Deus pode criar tal pedra, então há algo que Deus não poderia fazer – não poderia levantar a pedra;

 

2) se a resposta for “não”, há algo que Deus não poderia fazer – não poderia criar tal pedra.

 

Em qualquer caso, a razão se vê diante de uma antinomia ao tentar elucidar a onipotência de Deus. Em qualquer caso, há algo que Deus não poderia fazer. Segue-se que há coisas que nenhum Deus pode fazer; nem ele nem qualquer outro ser (já que podemos substituir o signo “Deus” por qualquer outro) poderia ser onipotente. Se a onipotência designa a capacidade para fazer qualquer coisa, tudo, então há um argumento mais simples a favor da ideia de que não pode haver um ser onipotente. Bastaria dizer que nenhum ser, nem mesmo Deus, poderia criar um círculo quadrado, ou um número inteiro par maior que dois e menor que quatro. Como, logicamente, não pode haver tais coisas, então não poderia haver um ser que as pudesse fazer. Tomás de Aquino tentou invalidar esse aspecto do argumento alegando que a onipotência exige a capacidade para desempenhar tarefas logicamente possíveis. Criar um círculo quadrado sequer é uma tarefa, dada a contradição evidente que carreia. No entanto, o esforço de São Tomás para salvar a onipotência divina reforça o argumento de que o poder de Deus está submetido ao poder regulador da lógica humana. O argumento da pedra, todavia, pode facilmente especificar uma tarefa. Basta reformular a questão assim: poderia Deus criar uma pedra de betume tão pesada que nem ele mesmo conseguisse levantá-la?

Se é impossível mudar o passado, a onipotência deve excluir de seu domínio semântico a possibilidade de mudar o que aconteceu. Se Deus não pode mudar o passado, ele tem limites; portanto, não pode ser onipotente.

  

3.2. A impossibilidade da onisciência

 

Diz-se que Deus é onisciente na medida em que é um ser capaz de conhecer tudo o que é conhecível ou tudo o que pode ser conhecido. A onisciência de Deus inclui a presciência: ele é capaz de saber o que vai acontecer no futuro.

Há, contudo, várias dificuldades na onisciência que resultam de diferentes tipos de conhecimento. Outra ordem de dificuldades provém das mais sofisticadas descobertas da lógica contemporânea e da teoria dos conjuntos. Vou-me deter apenas nas dificuldades que resultam das diferentes maneiras de definir o conhecimento.

Quando falamos de conhecimento, podemos tomá-lo no sentido de:

 

1) conhecimento proposicional (saber que x é verdade)

 

2) saber como se faz algo (knowhow) (saber andar de bicicleta)

 

3) conhecimento de coisas e sentimentos por contato (eu sei o que é estar magoado).

 

Se Deus é onisciente, ele o é nas três acepções. Relativamente a 1), Deus, mesmo que detenha todo o conhecimento proposicional possível, não tem o saber como descobrir o conhecimento proposicional que não tem. Relativamente a 2), se Deus não tem corpo, já que é um ser incorpóreo, não pode saber fazer malabarismos, não pode saber o que é ter sensações. Relativamente a 3), Deus, não tendo imperfeições morais, não pode conhecer a luxúria, a inveja. Porque é perfeito, não pode conhecer o medo, a frustração nem o desespero.

Deus, não tendo ignorância, porque supostamente onisciente, não poderia conhecer o que é ignorância. Logo, não pode haver qualquer ser onisciente.

 

 

 

 

3.3. A impossibilidade de atributos combinados

 

Quando consideramos a relação entre os atributos de Deus, as ilogicidades são igualmente evidentes. Tomemos, em primeiro lugar, a combinação do atributo “criador livre” com o atributo da “onisciência”. O Catecismo diz que Deus é o Criador que mantém e sustenta a criação – “Deus cria livremente do nada” (p. 88). Deus dá o ser e a existência a sua criatura (o mundo todo existente) e “a sustenta a todo instante no ser” (p. 90). Seria a liberdade de Deus compatível com sua onisciência? A resposta é não. Não se pode fazer uma escolha livre entre A e B, se se souber com completa certeza antecipadamente que se toma o curso de ação A. Nesse caso, uma vez que um Deus onisciente saberia antecipadamente (e desde toda a eternidade) todas as ações que levaria a cabo, não pode haver qualquer momento no qual Deus possa fazer uma escolha genuína.

Vejamos agora se a onipotência é compatível com a perfeição moral. Um ser pode ser onipotente e, ao mesmo tempo, incapaz de fazer o mal, de pecar? Ora, se Deus não pode agir imoralmente (há algo que ele não pode fazer), é-lhe impossível enfrentar quaisquer escolhas morais genuínas. Deus não pode ser louvado por fazer escolhas corretas, e se Deus não é moralmente louvável, dificilmente se pode considerá-lo moralmente perfeito. A perfeição moral parece excluir precisamente a possibilidade da escolha entre o bem e o mal, que a perfeição moral exige.

Quando tomamos a intemporalidade e a imutabilidade de Deus conjuntamente com a onisciência, encontramos novas inconsistências. A intemporalidade e a imutabilidade são atributos inconsistentes com a onisciência relativamente a fatos conhecíveis apenas num momento particular do tempo; e a imutabilidade, em particular, é incompatível com a noção de um Deus criador, já que, ao criar, Deus muda seu estado de não-criador (que existia juntamente com o nada) num tempo t para criador num tempo t’, com todos os encargos e compromissos que este estado implica.

 

3.4. Contradições da Criação

 

 

Como um Deus, definido como imaterial, puro espírito, infinito e perfeito, poderia ter criado um mundo material imperfeito?

Lucrécio ensinou que, se os Deuses são perfeitos e se, ipso facto, encerram em si mesmos todas as realidades possíveis, como conceber uma realidade que ainda não existia antes da criação? Vamos esclarecer aqui os conceitos teológicos que estão implicados nesta etapa da argumentação. No sentido teológico, o infinito é aquilo que, para ser, não precisa de outro, sendo então ilimitado potência de ser. Assim, a infinidade de Deus consiste na ideia de que Deus não é limitado por nada em sua potência de ser, Deus não depende de nada além de si para ser. Deus é infinito porque sua natureza transcende todo e qualquer grau de perfeição. Perfeição significa aqui que Deus é a totalidade do Ser. A perfeição de Deus repousa na crença de que Deus possui totalmente o ser. Deus e o ser é o mesmo. Se Deus é sumamente perfeito, de nada carece, já que ele encerra todas as realidades possíveis, como lembra Lucrécio. Se Deus é o infinito em ato, nenhuma produção suplementar de existência será possível. Logo, a Criação é impossível.

No entanto, se Deus tem necessidade da Criação, ele é imperfeito porque tem necessidade. E toda necessidade é uma carência. Se Deus criou por suberabundância de amor, por que Deus ofereceu um mundo tão repleto de males e sofrimentos? Toda criação é, por natureza, finita; portanto, é imperfeita relativamente ao infinito (Deus). Como o infinito (Deus) conseguiu produzir o finito (inferior)? Se a perfeição conseguiu tão facilmente se degradar, é porque ela era imperfeita.

Se Deus é puro espírito, como produziu a matéria? Ora, de modo geral, os filósofos definiram a matéria (hýle) como substância comum aos corpos. Por abstração, a matéria significa também a realidade sensível de que são feitas todas as coisas. Segundo Aristóteles, a matéria é phýsis (natureza), o universal do movimento e da mudança. É o ser em potência, que deve passar ao ato ao receber a forma (eidos). Tanto para Descartes quanto para Espinosa, matéria é extensão. É uma substância extensa em comprimento, largura e profundidade. Suas características principais são a divisibilidade e impenetrabilidade.  Matéria é o corpóreo, o sensível. Recobre a totalidade de tudo que existe no universo. Na física moderna, a matéria é granular, quando considerada em sua profundidade; é um aglomerado de átomos e está em constante movimento. É a própria energia. A matéria que tocamos e sentimos é, na verdade, uma imensa quantidade de energia “comprimida”. A energia é, portanto, a substância da qual todas as coisas são feitas, incluindo todas as partículas elementares, os átomos e as quatro partículas estáveis no mundo atômico: o próton, o elétron, o fóton e o nêutron. Os físicos atualmente assumem a existência de um imenso oceano de partículas nucleares chamadas hádrons, as quais se decompõem em partículas menores: os quarks (que, no entanto, nunca foram observados). Em suma, o mundo é matéria em movimento, porque não existe matéria sem movimento e nem movimento sem matéria (Schöpke, 2009).

Tendo criado a matéria, que relações ela tem com Deus, o seu Criador? Se ela é independente dele, Deus deixa de ser onipotente e infinito: torna-se finito, limitado pela criação. Se a matéria é uma emanação da substância de Deus, então Deus tem de assumir a sua materialidade, a finitude e os seus defeitos. Se Deus criou a matéria, o fez porque sentiu-se carecido dela. Mas, nesse caso, Deus não é perfeito ou a materialidade sempre fez parte da perfeição. Vale lembrar que Plotino tentou resolver esse problema, de modo bastante insatisfatório, distinguindo a matéria inteligível, que é divina e eterna, da matéria sensível, que não tem essas qualidades. Na qualidade de substratum (hypokeímenon) físico, a matéria é o não-ser e, assim, ela é o mal.

 

3.5.  A impossibilidade divina

 

O filósofo Carnéades de Cirene notou que o conceito de Deus teísta é intrinsecamente contraditório. Como é impossível existir uma contradição de si mesmo, concluiu pela impossibilidade da existência de Deus. Para Carnéades, Deus não pode ser onipotente e também virtuoso, porque onipotência supõe um estado de eterna perfeição, mas virtude moral supõe imperfeição superada. Assim, por exemplo, a coragem é a virtude que consiste em dominar o medo em face de uma situação perigosa. Que sentido há em dizer que um Deus Todo-Poderoso, que presumivelmente, nada teme, já esteve em uma circunstância tal em que pudesse praticar a virtude da coragem? Se tomamos a alegação teísta segundo a qual Deus é onipotente e onisciente, podemos mostrar que tais atributos são inconsistentes entre si, alegando que, se Deus é onisciente, é capaz de antever tudo, inclusive seus atos futuros. Mas, sendo onipotente também, Deus pode anular tudo, tornando incertas todas as suas previsões, inclusive as previsões sobre seu próprio comportamento.

 

A título de conclusão, parece-me certo dizer que o conceito de Deus teísta, na medida em que se inscreve na história do pensamento ocidental como signo do divino submetido à razão discursiva, herda as tendências irracionais da própria razão. A suposta onipotência de Deus é frágil em face das contradições em que se vê enredada a razão humana, prova de que Deus não é senão um complexo de imagens hipostasiadas do pensamento imaginativo humano, cujo caráter selvagem a razão em si mesma não consegue domar. Como bem escreve Verret (1975, p. 58):

 

“O metafísico idealista não encontra em Deus senão as suas próprias contradições inconscientes. Nega a contradição à face da realidade: ela não se manifesta aí com mais acuidade, dentro de seu pensamento. Define Deus segundo critérios da lógica formal por uma série de atributos isolados, absolutos e imóveis (a infinidade, a perfeição etc.) excluindo os seus contrários. Mas este Deus sem contradições supostas não consegue pensar, senão ao preço da contradição! A contradição desprezada vinga-se. Sobre ele. E até sobre Deus. Pois se Deus é pura ideia, toda contradição na ideia de Deus recai em Deus”.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

Catecismo da Igreja Catótilca. São Paulo: Loyola, 2000.

 

FERRARI, Lilian. Introdução à Linguística Cognitiva. São Paulo: Contexto, 2011.

 

GUITTON, Jean; BOGDANOV, Grichka; BOGDANOV, Igor. Deus e a Ciência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

 

MCKENZIE, Stven L. Como ler a Bíblia: História, profecia ou literatura. São Paulo: Edições Rosari, 2007.

 

SCHÖPKE, Regina. Matéria em movimento: a ilusão do tempo e do eterno retorno. São Paulo: Martins Fontes, 2009

 

SEIFE, Charles. Alfa e Ômega: a buscado pelo início e o fim do Universo. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

 

TRIGUEIRO, Edmac. História do Universo. Osasco, SP: Novo Século Editora, 2011.

 

VERRET, Michel. Os marxistas e a religião. Lisboa: Prelo, 1975.

 

 

WALTERS, Kerry. Ateísmo: um guia para crentes e não crentes. São Paulo: Paulinas, 2015.


quarta-feira, 8 de abril de 2020

"As instituições não se reduzem ao simbólico, mas elas só podem existir no simbólico". (Castoriadis)


                                   Jornalista E Fotógrafo Dos Desenhos Animados Elementos, Notícias ...

                                    Discurso e poder
                         Uma abordagem sociocognitiva


A relação entre discurso e poder quase nunca é evidente para os usuários da língua em geral. Isso se deve, em parte, ao fato de que discursos veiculam relações de poder, muitas vezes, veladas.  De que modo o discurso constitui, legitima e reforça relações de poder? Essa é a questão basilar do presente texto. Pretendo responder a ela a partir da abordagem sociocognitiva do discurso proposta por Van Dijk. A fim de que a tarefa, a cuja realização me dedicarei, logre sucesso, cuido indispensável a definição prévia dos conceitos de discurso, cognição, contexto, e poder.
No tocante à compreensão do discurso, Dijk observa que o discurso é um fenômeno multidimensional. Assim, o discurso pode ser, segundo o autor:
a) uma totalidade formada de sequências significativas, ou seja, palavras ou sentenças (nesse caso, o discurso se identifica com o texto);
b) um ato de linguagem (asserção, ameaça, etc.);
c) uma forma de interação social (gêneros discursivos tais como conversa, telefonema, etc.);
d) uma prática social (palestra, por exemplo);
e) uma representação mental (um modelo mental, uma opinião, conhecimentos);
f) um produto cultural (uma telenovela).

Não obstante as múltiplas formas pelas quais o discurso se realiza, Dijk admite ser possível uma definição operacionalmente razoável de discurso.  Na esteira da abordagem sociocognitiva proposta por Dijk, o discurso é forma de ação  e interação social  situada em situações sociais das quais os participantes não são apenas falantes, escritores, ouvintes ou leitores, mas sobretudo atores sociais pertencentes a grupos e comunidades culturais. Destarte, o discurso não é um objeto autônomo. Não basta, portanto, analisá-lo tendo como escopo apenas a sua materialidade linguística (frases, textos, palavras). O discurso é resultado de uma interação social, histórica, cultural e politicamente situada. Por conseguinte, é necessário, para fins de análise, levar em conta as relações entre a materialidade linguística do discurso e as estruturas sociais,  tais como, por exemplo, a família, a escola, as corporações midiáticas, posições de poder, movimentos sociais, instituições governamentais, etc.
Uma vez que os participantes do discurso são atores sociais que pertencem a grupos específicos numa mesma cultura geral, o discurso jamais é neutro, mas é sempre cultural e politicamente marcado. Ora, do fato de que são social, cultural, histórico e politicamente situados os atores sociais, segue-se que eles não são completamente livres para usarem as construções discursivas como quiserem. As estruturas sociais condicionam a produção dos discursos produzidos pelos usuários da língua, mas não de modo direto. Em outros termos, as condições sociais, culturais, políticas e situacionais não influenciam diretamente a produção do discurso. A abordagem sociocognitiva do discurso proposta por Van Dijk esteia-se na tese segundo a qual as estruturas societárias ou situacionais só podem influenciar o discurso pela mediação das representações mentais dos sujeitos sociais. Vale insistir: os elementos da situação comunicativa não afetam diretamente a produção do discurso; na verdade, a relação entre a situação social (entendida como fragmento “demarcado espaço-temporalmente de mundos sociais possíveis” (Dijk, 2012, p. 45)) e o discurso só pode ser estabelecida pela intervenção da interface sociocognitiva. Portanto, é a definição, a interpretação, a representação ou a construção cognitiva da situação social, feitas pelos participantes do discurso, por meio de seus contextos sociocognitivos, que influenciam o modo como eles falam, escrevem, leem e compreendem. Antes de compreendermos como opera a interface sociocognitiva a partir da definição de contexto, cumpre esclarecer o que devemos entender por cognição, nos limites estritos da abordagem sociocognitiva proposta por Dijk.
Em consonância com a abordagem sociocognitiva do discurso, tal como proposta por Dijk, pode-se definir a cognição como o conjunto de várias formas de conhecimento que, não sendo totalizado pela linguagem, é de sua responsabilidade. A cognição recobre as atividades mentais associadas ao pensamento, ao conhecimento, à memória e à linguagem. Os processos cognitivos como a linguagem e/ou a significação não são tomados à margem das rotinas significativas da vida em sociedade.  Portanto, a cognição é resultado das nossas ações e de nossas capacidades sensório-motoras. A cognição é um fenômeno situado, o que significa dizer que não há limite claro entre o que acontece dentro e o que acontece fora da mente. A cognição é um efeito da relação complexa entre ações sociais e atividades mentais. As tarefas que realizamos conjuntamente com os outros constituem rotinas culturalmente determinadas que organizam os processos cognitivos dos indivíduos em conformidade com demandas sociais.
A interface sociocognitiva esteia-se na visão de que sãos os modelos de contexto que permitem explicar que o que controla o modo como falamos não é um ambiente social objetivo, mas nosso modo de compreender ou construir subjetivamente a situação social. Modelos de contexto são, portanto, a interface entre a sociedade, a situação social imediata (por exemplo, profiro uma palestra no auditório de uma universidade) e o discurso. Os modelos de contexto são modelos mentais. Embora formados a partir de experiências pessoais, os modelos de contexto baseiam-se em conhecimentos socioculturais e outras crenças socialmente compartilhadas. Os modelos de contexto encerram as propriedades sociais e cognitivas dos eventos comunicativos, tais como os papéis sociais dos participantes, suas intenções e conhecimentos.
Para Dijk, contextos são tipos especiais de modelos mentais. E modelos mentais são representações cognitivas de nossas experiências. Em certo sentido, os modelos mentais são nossas experiências, se entendermos que experiências são interpretações pessoais daquilo que acontece conosco. Tais experiências pessoais ou modelos mentais armazenam-se na Memória Episódica, a qual faz parte da Memória de Longo Prazo. Dijk evita, portanto, o contextualismo ingênuo característico das teorias sociolinguísticas. Elementos situacionais como gênero, classe social, etnia, idade, posição e poder não operam objetivamente nem deterministicamente sobre o discurso, ou seja, tais restrições situacionais não determinam diretamente o que um sujeito diz em dada situação. As estruturas sociais não se relacionam com o discurso de modo direto. Elas se relacionam com o discurso pela mediação (interface) do contexto sociocognitivo. Chama-se, pois, contexto sociocognitivo ao conjunto de conhecimentos, propósitos, expectativas, opiniões, crenças, bem como ao conjunto de todos os sistemas de conhecimento (enciclopédico, linguístico, comunicacional, etc.) armazenados na memória dos interactantes e que precisam ser mobilizados por ocasião da interação verbal. A ativação desse contexto será indispensável para que o curso interacional se desenvolva, se mantenha e atinja um bom termo.
O contexto, para Dijk, é um constructo cognitivo, é uma representação mental que os participantes do discurso fazem das propriedades relevantes da situação social na qual interagem e na qual compreendem textos falados e escritos. O contexto media as relações entre a estrutura social e o discurso. A concepção sociocognitiva de contexto não é determinista. Destarte, indivíduos diferentes podem falar de maneiras diferentes mesmo quando se encontram e uma situação social semelhante.  Isso é possível porque os participantes do evento discursivo têm representações mentais subjetivas das estruturas sociais. São as distintas representações mentais que eles têm que lhes conferem certa liberdade para fazerem suas escolhas temáticas, lexicais e sintáticas por ocasião da produção de seus discursos. Mas devemos atender no fato de que essa liberdade é relativa. Por outro lado, são essas representações mentais que permitem aos analistas do discurso reconhecer a relativa liberdade de que gozam os sujeitos e os condicionamentos sócio-históricos e linguísticos que regulam o comportamento discursivo deles.


Contexto é um modelo mental de uma determinada situação comunicativa


O contexto, à luz da abordagem sociocognitiva de discurso, é a representação social que os participantes do discurso fazem da situação comunicativa com base em seus esquemas mentais. Portanto, contexto não é o conjunto de elementos sociais extralinguísticos (ambiente social, papel social, idade, gênero, etc.) aos quais se relaciona o discurso, mas a representação mental que os participantes do discurso fazem desses elementos. Cumpre, doravante, elucidar o que são esquemas mentais.
O processamento do armazenamento da Memória Episódica e da Memória de Longo Prazo (ou memória semântica) se dá por meio de esquemas mentais. Os esquemas mentais são estruturas de conhecimentos preexistentes na memória. Assim, quando os interactantes produzem ou interpretam um texto, eles já trazem um conjunto de crenças e conhecimentos prévios (background) estruturados mentalmente. São esses esquemas mentais que funcionam como interface entre a estrutura social e o discurso. Dois tipos de esquemas mentais são relevantes para a produção e interpretação dos textos:

a) frames: constituem conjuntos de conhecimentos armazenados sob certo “rótulo”, sem que seja necessário ordenação entre eles. Recobrem um padrão de conhecimentos fixos, estabilizados na memória. São estruturas de conhecimentos mais gerais numa comunidade ou sociedade.
 Por exemplo, o frame Carnaval ativa em nossa memória uma série de conhecimentos. Se somos brasileiros, especialmente cariocas, pensamos em blocos de rua, Cordão do Bola Preta, Desfiles das Escolas de Samba, alegorias, fantasias, Marquês de Sapucaí, etc. Nós possuímos uma série de conhecimentos sobre esse frame. Assim também, o frame Show ativa uma série de saberes a respeito da experiência relativa a show em geral. Sabemos que há uma banda ou cantor, normalmente, que se apresenta; há o palco onde eles tocam; há um lugar próprio para a realização do espetáculo. Para participar do show como espectadores, precisamos comprar ingressos, etc.

b) scripts: recobrem conjuntos de conhecimentos sobre modos de agir estereotipados em uma dada cultura, incluindo-se aí modos de comportar-se  linguísticamente. São um tipo de esquema mental mais dinâmico, como, por exemplo, saber fazer um pronunciamento.

A língua dispõe de várias fórmulas de cortesia. Pensemos também nos rituais religiosos, como batismo. Quando vamos a um enterro, assumimos determinados comportamentos previstos culturalmente para essa situação. Dizemos “meus pêsames pelo falecimento de seu marido”, ou algo parecido; mas não “sinto muito por seu marido ter batido as botas”.
Se, por exemplo, o Presidente da República vai à Câmara dos Deputados fazer um pronunciamento, os frames ‘’Presidente da República’  e ‘Câmara dos Deputados’ e o script ‘fazer um pronunciamento’ são ativados na mente dos participantes do evento discursivo, de modo que eles vão buscar em sua memória os conhecimentos e as crenças que julgam relevantes para a escolha de estratégias de produção e interpretação textual para aquele evento em particular. Frames e scripts permitem aos sujeitos sociais a produção de inferências sobre as propriedades do episódio que não são imediatamente acessíveis. A inferenciação é uma atividade linguístico-cognitiva básica no processo de compreensão textual. Ao interagirmos socialmente por meio de textos, não nos limitamos a apreender os conteúdos proposicionais dos enunciados a que somos expostos, mas, a todo momento, estamos derivando deles, com base no diversificado conjunto de saberes de que dispomos, conteúdos implícitos. 
Os elementos que fazem parte de um esquema mental são armazenados na memória do indivíduo ao longo da vida e são prototípicos. Assim, temos uma ideia prototípica do que é um mamífero: um animal de sangue quente, com pelos, que amamenta. É devido a essa prototipicidade que ficamos confusos quando descobrimos que um mamífero como o ornitorrinco põe ovos e um mamífero como o morcego voa.
Os frames variam de acordo com a diversidade das comunidades socioculturais. Assim, pessoas que vivem em comunidades socioculturais diferentes terão esquemas mentais diferentes. As representações mentais são controladas pelos esquemas mentais, os quais são constituídos de conhecimentos e crenças arquivados na Memória de Longo Prazo. Conquanto as representações mentais feitas pelos participantes do discurso sejam subjetivas e únicas, elas também se constituem de grandes quantidades de conhecimentos e outras crenças socialmente compartilhadas. O conhecimento cultural, portanto, é a base de todas as crenças avaliativas, incluindo as opiniões, atitudes e ideologias socialmente partilhadas. Pessoas diferentes, que possuem posicionamentos ideológicos, muitas vezes, conflitantes, precisam compartilhar um conhecimento cultural geral no qual se baseiam tais posicionamentos. A existência de esquemas mentais diferentes explica por que as pessoas fazem diferentes representações cognitivas de um mesmo fenômeno social que, por isso, não é o mesmo fenômeno para pessoas diferentes.
Em suma, para Dijk, contexto é definido como constructo mental, que constituirá a ponte entre os elementos da estrutura social e o discurso, ou entre a situação social imediata e o discurso.

Poder e ideologia

Para Dijk, poder é controle social de um grupo (ou seus membros) sobre outros grupos (ou seus membros). Assim, discursos expressam relações de poder. O discurso produz e reproduz a dominação social, ou seja, o abuso de poder de um grupo em relação a outros grupos, mas também serve para realizar movimentos de resistência a tal abuso de poder. A maneira como os discursos expressam e sustentam relações de poder é através da veiculação de posições ideológicas. Por isso, é extremamente importante compreender o que são ideologias e como elas funcionam discursivamente.
Para Dijk, ideologias são crenças sociais gerais e abstratas que são compartilhadas por um grupo e que controlam e organizam as opiniões, as atitudes e os conhecimentos específicos desse grupo. A ideologia, segundo Dijk, é uma forma de cognição social, ou seja, a ideologia “é uma estrutura cognitiva complexa que controla a formação, transformação e aplicação de outros tipos de cognição social, tais como o conhecimento, as opiniões e as posturas, e de representações sociais como preconceitos sociais”. (Dijk, 2008, p. 48). Ideologias consistem em estruturas de normas, valores, metas e princípios socialmente relevantes que são selecionados e empregados de modo tal a favorecer a percepção, a interpretação e a ação nas práticas sociais que atendem aos interesses de um grupo como um todo. A ideologia dota de coerência as atitudes sociais, as quais, por sua vez, determinam as práticas sociais. É extremamente importante salientar que “todas as ideologias (incluindo as científicas) englobam uma (re)construção da realidade social dependente de interesses”. (ibid.).
O discurso desempenha um papel fundamental tanto na formação quanto na transformação das estruturas ideológicas. Por isso, o analista do discurso está interessado em examinar quem e mediante quais tipos de processos controla os meios ou as instituições de (re)produção ideológica, tais como os meios de comunicação e as instituições de ensino. As ideologias, enquanto cognição social, influenciam a construção social da realidade, as práticas sociais e a (trans)formação das estruturas sociais. Cada um dos elementos estruturais da ideologia (filiação, atividades, metas, valores, normas, posição, relações de grupo e recursos sociais) pode servir de base para a delimitação de um grupo. Assim, um grupo social é um conjunto de sujeitos que compartilham determinadas características que lhes dão o sentimento de pertencimento. Por exemplo, o elemento “valores e normas” mostra como as ideologias são sempre avaliativas. Segundo a orientação valorativa da ideologia, nosso grupo sempre está correto e é normal, ao passo que os outros sempre estão errados ou são anormais. Discriminam-se os elementos da estrutura ideológica, como se segue:

a) filiação: quem somos nós? De onde viemos? Como nós somos? Quem pode se tornar um membro de nosso grupo?

b) atividades: o que nós fazemos? O que se espera de nós? Por que estamos aqui?

c) metas: por que fazemos isso? O que nós queremos realizar?

d) valores e normas: quais são os nossos valores fundamentais? Como nós avaliamos a nós mesmos e aos outros? O que deve e não deve ser feito?

e) posição e relações de grupo: qual é a nossa posição social? Quem são nossos inimigos, nossos adversários? Quem é igual a nós e quem é diferente de nós?

f) Recursos: quais são os recursos essenciais de que nosso grupo dispõe ou precisa dispor? (poder econômico, poder político, cor de pele, civilização ocidental, etc.).

Nunca é demais lembrar que os discursos, sendo produzidos por sujeitos social, cultural, histórica e politicamente situados, jamais são neutros, mas sempre ideologicamente condicionados. Todavia, nem todos os sujeitos têm consciência desse fato, o que torna mais fácil o trabalho de manipulação das opiniões e das ações das outras pessoas.
Acresça-se que as ideologias vão sendo constituídas ao longo da vida das pessoas à proporção que elas se deixam afetar pelos discursos de seus pais, mães, professores, líderes religiosos, escritores, músicos, políticos, jornalistas, colegas, etc. A exposição a esses discursos vai influenciar a maneira como os indivíduos representam e/ou constroem os fenômenos sociais. A influência que esses discursos exercem está diretamente relacionada às posições de poder ocupadas pelos atores sociais que (re)produzem esses discursos, fato, aliás, óbvio quando se consideram mães, pais e professores, cuja autoridade é vista como natural por filhos e alunos. Destarte, os discursos formadores de ideologias são mais diretivos e explícitos em casa e na escola. Por outro lado, quando consideramos os discursos de jornalistas e escritores, a influência ideológica tende a exercer-se de modo mais sutil e velada, o que não significa dizer que tais discursos não sejam formadores de ideologias.
Importa, por fim, enfatizar que ter ou não consciência da orientação ideológica de um discurso é resultado dos esquemas mentais que as pessoas têm e que, integrados em um contexto sociocognitivo, mediam as relações que os atores sociais – participantes do evento discursivo - estabelecem entre o discurso e a estrutura social. O trabalho dos analistas do discurso contribui para tornar patentes as orientações ideológicas materializadas/veiculadas nos textos que circulam nas diversas esferas sociais de uso da língua. Tais orientações ideológicas, muitas vezes, não sendo óbvias para os leitores e ouvintes, podem ser decisivas para a manutenção da desigualdade e das injustiças sociais. As escolhas lexicais e sintáticas feitas pelos produtores de textos são sempre controlados pelos seus modelos mentais. Nem sempre essas escolhas são conscientes, mas, quando feitas pelas elites simbólicas (jornalistas, políticos, líderes religiosos, publicitários, escritores) -, elas são sempre conscientes.
Quando pensamos a relação entre poder e discurso, devemos, pois, assumir que poder é controle social do discurso dos outros. As pessoas não são livres para falar ou escrever quando, onde, para quem, sobre o que ou como elas querem; mas são parcial ou totalmente controladas por outras pessoas, grupos ou instâncias que gozam do poder de exercer controle, tais como o Estado, a polícia, a mídia ou uma empresa interessada na supressão da liberdade da escrita e da fala. O poder, como controle social do discurso dos outros, obriga também as pessoas a falar ou escrever como um grupo ou instância quer que elas falem ou escrevam.


Uma amostra de análise

Convém oferecer, doravante, um recorte de análise que vise a demonstrar como o discurso pode exercer controle sobre os modelos mentais de ouvintes e leitores. Van Dijk sugere que a análise comece levando em consideração as macroestruturas semânticas, ou significados globais, que são o tema ou tópicos discursivos. Essas macroestruturas semânticas são importantes porque elas são conscientemente escolhidas pelo produtor do texto. Elas expressam as informações subjetivamente mais importantes do discurso e marcam o conteúdo geral dos modelos mentais dos eventos. Tópicos ou temas são informações mais facilmente memorizadas pelos leitores. São caracteristicamente tópicos ou temas os títulos, os resumos e sumários.
Terminada a análise das macroestruturas semânticas, Dijk recomenda que o analista do discurso concentre sua atenção nas microestruturas semânticas ou significados locais, atualizadas pelas escolhas lexicais e sintáticas feitas pelo produtor do texto e também pelas relações entre conteúdos explícitos e implícitos, tais como as pressuposições, e por outros recursos imagéticos, tais como metáforas e metonímias. Os significados locais são o resultado da seleção feita pelos falantes/escritores de conhecimentos, crenças, ideologias constitutivas de seus modelos mentais. Ademais, tais significados influenciam diretamente os modelos mentais e, portanto, as opiniões e atitudes dos leitores e ouvintes.
Considere-se, para fins de análise, o seguinte texto, sem autoria específica, publicado pelo jornal Correio da Bahia, em 19 de abril de 2011.

Fernando Henrique comete erro de português em artigo

DESLIZE – O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso cometeu um erro de português num artigo sobre o PSDB, distribuído a sites e blogs e publicado no endereço eletrônico do partido. O erro foi revelado ontem pela colunista Mônica Bergamo, do Jornal Folha de S. Paulo. No texto, FHC diz que “existe ou existiu até a pouco certa carga fiscal”. O correto é “existiu até há pouco”. O ex-presidente Lula cometia diversos erros de português em seus pronunciamentos. O que chama a atenção no caso de FHC é que ele é extremamente culto e estudado. O ex-presidente é sociólogo formado pela USP, já lecionou na Universidade de Paris e fala fluentemente diversos idiomas, como o francês e o inglês, além do português.


A fim de que fiquem claras as orientações ideológicas que atravessam o texto, é importante saber que o Correio da Bahia pertence à família do ex-senador Antonio Carlos Magalhães, falecido em julho de 2007. Esse jornal é um meio de comunicação à disposição de um grupo político de direita, afinado com grupos ruralistas e com outros grupos conservadores da sociedade brasileira. Um dia antes da publicação desse texto, FHC desafiara Lula para disputar uma eleição presidencial. Essas informações são relevantes porque fornecem pistas sobre que estruturas ideológicas são compartilhadas pelos editores do jornal.
Levando em conta, em primeiro lugar, as macroestruturas semânticas, é notável a preocupação do autor do texto com a correção linguística, o que revela a orientação linguística normativista do jornal. Essa preocupação do autor é a mesma que se expressa no patrulhamento linguístico das elites brasileiras. Após relatar o suposto “erro” linguístico cometido pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o autor introduz, sem nenhuma razão aparente, uma informação sobre o ex-presidente Lula: “O ex-presidente Lula cometia diversos erros de português em seus pronunciamentos”. Sem deixar de ser curiosa, a menção aos erros de português cometidos pelo ex-presidente Lula não é por acaso. Ao lembrar que Lula “cometia diversos erros” em seus pronunciamentos quando era presidente, o autor do texto simplesmente aproveita a ocasião para desqualificar Lula. Como sabemos que o jornal Correio de Bahia é controlado por grupos de direita, conservadores, alinhados ideologicamente com as elites brasileiras, e que politicamente fazem oposição a Lula, o autor do texto reproduz essa oposição que é tanto política quanto de origem sociocultural. A expressão do compromisso do autor com o  posicionamento político-ideológico do jornal se torna inegável quando consideramos que, não fazendo mais qualquer referência a Lula, o autor passa a fazer valorações positivas de FHC.
Quando, num segundo momento, consideramos os significados locais, não podemos deixar de notar o uso de expressões valorativas como “extremamente culto e estudado” para caracterizar Fernando Henrique Cardoso. Expressões como estas não só assinalam avaliação positiva, podem, como acontece no texto, orientar o leitor a anuir às seguintes conclusões:

1. Se o erro de português cometido por FHC causa surpresa, os “diversos erros de português”  que Lula, supostamente, cometeu não surpreendem devido à falta de sua formação acadêmica;
2. Fernando Henrique Cardoso é um político mais competente que Lula.

Como se vê, o objetivo do Correio da Bahia é criar uma imagem negativa de Lula e uma imagem positiva de FHC, a despeito de este ter cometido também um suposto “erro de português”, que, aliás, é categorizado como “DESLIZE” (uma forma linguística que conota ‘atenuação, suavização’), o que reforça a ideia de que o que se considera “erro linguístico” depende da origem sociocultural do falante. A avaliação positiva de FHC, que se identifica com grupos de elite, e a construção de uma imagem negativa de Lula, que se identifica com as camadas populares, encenam, no âmbito ideológico, o velho embate etnocêntrico entre NÓS e os OUTROS.


O controle do discurso público: o discurso jornalístico

Hegemonia, conceito-chave do pensamento de Gramsci, designa o modo como um poder governante conquista o consentimento dos governados ao seu domínio. A noção de hegemonia recobre as ideias de ‘consentimento’ e ‘coerção’. Uma poderosa fonte de hegemonia política é a suposta neutralidade do Estado. A hegemonia caracteriza o fato de o poder de grupos dominantes integrar-se a leis, regras, normas, hábitos e a um consenso geral. Os grupos podem exercer maior ou menor controle sobre outros grupos, ou podem controlar certos grupos em situações específicas. Por seu turno, grupos dominados podem, em maior ou menor grau, aceitar, consentir, legitimar esse poder – até mesmo achá-lo “natural”-,  ou podem resistir a ele.
A Análise Crítica do Discurso (ACD) cumpre, como uma de suas preocupações, a tarefa de explicitar e explicar como os grupos que gozam de maior poder controlam o discurso público e como o discurso público passa a controlar a consciência de indivíduos e a ação de grupos (menos poderosos) e quais são as consequências sociais desse controle (por exemplo, desigualdade social, exclusão de minorias, etc.). O acesso à comunicação e ao discurso público, ou o controle exercido sobre essas instâncias, representa um importante recurso simbólico que define a base do poder de um grupo ou instituição.
A maioria das pessoas tem um controle ativo tão somente sobre as conversas cotidianas com membros de sua família, amigos ou colegas. A maioria delas tem controle passivo sobre, por exemplo, os discursos da mídia. Em muitas situações, as pessoas comuns são simplesmente receptoras passivas, em menor ou maior grau, de textos orais e escritos, produzidos, por exemplo, por seus chefes, professores e autoridades como oficiais de polícia, juízes, burocratas da previdência social ou auditores fiscais. Todas essas autoridades dizem em que a maioria de nós deve acreditar (ou não acreditar)  e o que podemos (ou não) fazer.
Por outro lado, membros de grupos e instituições sociais que gozam de maior poder – mormente as elites – detêm o privilégio do acesso mais ou menos exclusivo a um ou mais gêneros de discurso público, exercendo controle sobre esses gêneros. Destarte, os professores universitários controlam o discurso acadêmico; os professores de escola, o discurso educacional; os jornalistas, o discurso midiático; os advogados, o discurso jurídico; os políticos, o discurso da política e de outros assuntos públicos. Quanto maior for o controle dos agentes sociais sobre a maior quantidade de discursos, sobretudo os mais influentes, tanto maior será o poder exercido por esses agentes.
No que se seguirá, serão apresentadas algumas considerações sobre o poder da mídia, com especial destaque ao discurso jornalístico.
Não resta dúvida de que a mídia é um instrumento ou espaço de poder no mundo contemporâneo. Não resta dúvida de que ela desempenha um papel sobremaneira relevante na disputa pela hegemonia, na promoção de ideias identitários, na regulação e normatização de comportamentos, na administração da memória, na constituição da chamada opinião pública e na formulação de agenciamentos democráticos. Sim, a mídia é um poderoso dispositivo simbólico capaz de influenciar significativamente, de formas variadas, a vida cotidiana e a atuação política dos indivíduos – isto é, a maneira como eles agem, sentem, desejam, lembram, convivem e resistem. Entretanto, a mídia não é apenas um instrumento de dominação burguesa; é também uma instância de luta político-cultural, na qual se confrontam diferentes discursos, ideologias e forças sociais. Destarte, ao mesmo tempo que a mídia legitima e sustenta a ação coercitiva do Estado, moldando a vontade política da sociedade, ela oferece também um espaço dinâmico e dialógico de manifestações contra-hegemônicas, de expressão e encenação de vozes dissonantes de atores sociais interessados na criação de novas formas culturais de viver e na criação de uma nova ordem social.
Quando pensamos na influência da mídia na formação da opinião pública, devemos ter em conta que o que se chama de “opinião pública” é sempre um ponto de contato entre o consenso e a força. Os chamados órgãos formadores da opinião buscam captar e expressam o consenso da maioria, consenso este que justifica, legitima e dá sustentação ao poder e à ação coercitiva do Estado. O Estado, quando pretende tomar medidas impopulares, cria preventivamente a opinião pública que lhe é adequada, a fim de obter o consenso geral. Se é verdade que a Rede Globo e um jornal de grande circulação nacional como a Folha de São Paulo cumprem inegavelmente uma função de direção político-cultural, não se deve daí concluir que sejam meros porta-vozes dos interesses das classes dominantes. A Rede Globo, a Folha, o Estado de São Paulo, a Veja constituem um coletivo intelectual que se ocupa da formulação e da elaboração sistemática da ideologia indispensável à dominação do grande capital financeiro. Todas essas instâncias midiáticas modelam a opinião pública e criam o clima cultural favorável e indispensável às reformas liberais de um Governo, como por exemplo, às privatizações do Governo de Fernando Henrique Cardoso.
A mídia, como partido, “captura” as “paixões elementares” das massas, organiza-as e acomoda, com bastante eficiência, a visão de mundo da sociedade às necessidades de desenvolvimento das forças produtivas e aos interesses dos grupos de poder.
A maneira mais elementar e provavelmente mais fácil de o discurso jornalístico formar a opinião pública e expressar o consenso da maioria é reforçando a crença na objetividade do próprio discurso jornalístico. Como o homem comum acredita que usamos a língua para nos referir a um mundo externo de objetos que existem previamente e independentemente da linguagem e da percepção-cognição humanas, não surpreende que ele imagine que, diante de uma notícia que está lendo, ele está diante do que realmente aconteceu. Por acreditar numa relação especular entre a linguagem e o real, o homem comum crê que usamos a língua para falar de um mundo de objetos discretos previamente existente e que a função da língua é apenas fornecer descrições fiéis de estados-de-coisas no mundo. É preciso, no entanto, quebrar o encanto!
O homem, enquanto ser social, é construtor do mundo; e o homem é construtor do mundo porque ele é aberto para o mundo. Consoante ensinam Berger & Luckmann (2007, p. 142), “a experiência humana, ab initio, é uma exteriorização contínua”. Ao se exteriorizar, o homem constrói o mundo em que se exterioriza. No processo de exteriorização, o homem projeta na realidade seus próprios significados. O homem é produtor de significados, e estes significados não existiam antes do advento do homem. Para que fique clara a importância da linguagem no modo como experienciamos a realidade, devemos atentar para como Berger & Luckmann definem o que chamam de universo simbólico:

“O universo simbólico é a matriz de todos os significados socialmente objetivados e subjetivamente reais. A sociedade histórica inteira e toda a biografia do indivíduo são vistas como acontecimentos que se passam dentro deste universo.” (ibid., p. 132).


Note que os autores ensinam que todos os significados socialmente objetivados e subjetivamente experienciados como reais são produzidos por essa matriz criadora chamada “universo simbólico”. Ainda segundo os autores, “toda a realidade social é precária” e “todas as sociedades são construções em face do caos”. (ibid., p. 141). Os universos simbólicos, sendo sempre construções linguístico-cognitiva-sociais, recobrindo e totalizando a realidade humanamente dotada de sentido e o cosmo inteiro, proclamam o valor da existência humana – valor, no entanto, que inexiste fora desses universos simbólicos. Os universos simbólicos são as extensões máximas da projeção humana de significados na realidade. Quando eles são questionados e abalados quer por movimentos sociais contestatórios ou revolucionários, quer quando são ameaçados por epidemias e pandemias, a fragilidade da realidade social que eles sustentam é exposta. É o universo simbólico que integrará e unificará todos os processos institucionais. Graças a essa integração e unificação realizadas pelo universo simbólico, a sociedade inteira ganha sentido. Instituição e papéis particulares são legitimados por sua localização em um mundo compreensivelmente dotado de sentido. O universo simbólico ordena a história, o que significa dizer que ele localiza os acontecimentos coletivos numa unidade coerente que abriga o passado, o presente e o futuro. No que diz respeito à sua relação com o passado, o universo simbólico estabelece uma “memória” que é compartilhada por todos os indivíduos socializados na coletividade. O universo simbólico também constrói um quadro de referência comum para a projeção de ações individuais. Assim, o universo simbólico cumpre a função de ligar os homens com seus predecessores e seus sucessores numa totalidade dotada de sentido, possibilitando a eles transcender a finitude da existência individual e conferindo significado à morte individual. Finalmente, o universo simbólico permite que todos os membros de uma sociedade possam conceber-se como partes integrantes de um universo dotado de sentido, que existia antes de terem nascido e que continuará a existir depois de morrerem. É toda a comunidade empírica de seres humanos que é transportada para um plano cósmico e tornada majestática e ficcionalmente independente das vicissitudes da existência individual. Novamente é Berger & Luckmann que assinalam o papel fundamental da linguagem na fabricação social da realidade:

“A linguagem é capaz não somente de construir símbolos altamente abstraídos da experiência diária, mas também de “fazer retornar” estes símbolos, apresentando-os como elementos objetivamente reais na vida cotidiana. Desta maneira, o simbolismo e a linguagem simbólica tornam-se componentes essenciais da realidade da vida cotidiana e da apreensão pelo senso comum desta realidade. Vivo em um mundo de sinais e símbolos todos os dias.” (ibid., p. 61).


A linguagem constrói esquemas de classificação ou categorização para diferenciar objetos em gênero e número. A linguagem constrói campos semânticos ou zonas de significação linguisticamente circunscritas. Por exemplo, a soma das objetivações linguísticas referentes ao meu trabalho constitui um campo semântico que ordena de maneira significativa todos os acontecimentos da rotina que encontro em meu trabalho diário. Nos campos semânticos assim construídos, a experiência, tanto biográfica quanto histórica, pode ser objetivada, conservada e acumulada.
Contrariamente ao realismo ingênuo, o homem não se relaciona com um mundo povoado de coisas independentemente da linguagem e as quais seriam nomeadas pelas palavras, que funcionariam como espécie de “etiquetas” para essas coisas. O referente é um evento cognitivo, produto de nossa percepção moldada discursivamente. A práxis, definida como conjunto das atividades humanas que engendram não só as condições de produção, mas, sobretudo, as condições da existência de uma sociedade, modela a percepção/cognição e gera a significação do mundo. O indivíduo percebe o mundo e o capta intelectivamente através de “óculos sociais”. São através dos estereótipos da percepção, isto é, dos padrões ou modelos perceptivos que vemos a realidade e que fabricamos o referente. A língua une de modo indissociável percepção e cognição, impedindo o indivíduo de ver a realidade de um modo ainda não programado pelos corredores de estereotipação. Assim, nossa cognição está submetida a um processo de estereotipação contínuo, de sorte de que consideramos real e natural todo um universo de referentes e realidades fabricadas.
Todos os significados produzidos pelos universos simbólicos são socialmente construídos. Há uma íntima relação entre percepção, cognição, linguagem e cultura. São os sujeitos que constroem, mediante práticas discursivas e cognitivas, social e culturalmente situadas, as versões públicas do mundo. Segue-se daí que as categorias e objetos de discurso (os referentes) não preexistem às práticas discursivas e cognitivas, mas são elaborados nessas práticas e transformados segundo contextos.
Interpretar é necessariamente uma operação sociocognitiva por meio da qual o sujeito nunca constrói o sentido em si, mas sempre para outro sujeito. Destarte, toda experiência social é semiotizada: atua-se numa situação social investida de sentido e reconstruída pelos esquemas mentais dos interactantes.
As categorias cognitivas ou linguísticas não existem a priori como entidades ontológicas (coisas no mundo). Elas são construídas no processo de referenciação, por meio do qual objetos cognitivos e discursivos são construídos nas práticas intersubjetivas das negociações, das modificações, das ratificações de concepções individuais e públicas do mundo.
Tendo em vista o exposto, urge reconhecer que o discurso jornalístico não produz senão uma ilusão de objetividade. O mundo que nos é representado nas notícias ou nas reportagens é um mundo que passou por processos de edição, ou seja, um mundo redesenhado, redefinido num trajeto atravessado por milhares de filtros até aparecer no rádio, na televisão ou no jornal. A notícia, embora seja um produto real que pode ser lida ou vista, é sempre um símbolo, já que se põe no lugar de outra coisa. Não obstante, a famigerada objetividade do discurso jornalístico é alardeada por especialistas como um princípio ético que torna os gêneros jornalísticos práticas discursivas comprometidas com a “verdade”. Acontece que a crença na objetividade apaga a existência de um sujeito interpretante. Evidentemente, a objetividade do jornalismo é difundida pelos próprios meios de comunicação como garantia de credibilidade e como forma de manter a confiança de seu público, que espera saber o que é e o que não é verdade sobre o mundo. A suposta imparcialidade e neutralidade das informações veiculadas e a afirmada independência do repórter visam a assegurar que o produto midiático é um espelho da realidade. O jornalista seria, assim, responsável por produzir cópias fiéis da realidade.
O leitor, imaginando que está diante do que realmente aconteceu, ignora todo o processo de criação e seleção existente no ato de reportar um fato. Sem embargo, uma vez estejamos convencidos de que há uma complexa interação entre cognição-percepção, linguagem e práticas culturais na fabricação da realidade, o que chamamos de “fatos” são constructos sociocognitivos, em cuja base estão teorias, conceitos, sensações, sistemas, contextos, conhecimentos, linguagem. O discurso jornalístico não descreve ou retrata o mundo objetivo, o mundo aparente e externo à nossa consciência, mas fornece uma versão imagética do mundo, constrói a realidade segundo uma série de processos que culminam na fabricação do fato jornalístico. O jornalismo opera um tratamento simbólico da realidade, mas jamais um retrato do mundo.
Ao pretender relatar os acontecimentos do mundo, o discurso jornalístico discrimina objetos (fatos) já previamente selecionados e nomeados por uma pauta escrita (lista), uma teoria subjacente ou esquemas mentais. Depois de apurada, ou seja, depois que se ouvem possíveis testemunhas do ocorrido e que fontes tenham sido checadas, esta lista e todos os dados são usados para a redação de um texto – a notícia ou a reportagem -, que não sendo um retrato fiel da realidade, é um modelo, uma versão pública do real, cuja construção depende da interface linguístico-cognitiva. Não se trata de negar que exista um mundo externo à mente, mas de fazer compreender que as formas como experienciamos/percebemos o mundo são estruturadas pela linguagem. Vemos e distinguimos as “coisas” como são percebidas e categorizadas pela linguagem.
O discurso jornalístico trabalha tanto com fatos sociais quanto com fatos institucionais. Os fatos sociais dizem respeito a tudo que ocorre na vida em sociedade, a estruturas e contextos, a ambientes onde a atividade social humana acontece. Os fatos institucionais, por sua vez, pressupõem o consenso humano. Exigem uma instituição humana para existir. Por exemplo, para que um pedaço de papel seja considerado um dinheiro, é necessário que seres humanos concordem entre si em atribuir a ele a função de representar sistematicamente o valor de outras coisas em suas relações comerciais. Fatos institucionais não são naturais, mas criações, ficções humanas.
Do repórter que noticia determinado acontecimento até o telespectador/leitor que sobre esse acontecimento se informa, a “realidade” é submetida a vários processos de reconstrução, seleção, adaptação e edição, que tornam o produto final algo diferente e estranho à realidade “objetiva”. A objetividade aparente da informação é, por si só, um instrumento de legitimação de todo o processo de codificação. O leitor de um jornal, por exemplo, acredita estar recebendo um “retrato” da realidade sem distorções ou manipulações. Sob a aparência de se fazer um trabalho objetivo, ao noticiar apenas um fato tal como aconteceu, vela-se um poderoso aparelho ficcional (de invenção, de criação), mediante o qual a realidade é fragmentada, reunida, editada, adaptada e interpretada segundo a ideologia da instituição jornalística. Em suma, a notícia ou a reportagem não é a “realidade”, mas uma representação ou construção ficcional da realidade. Habitando os porões da vida cotidiana, o homem comum ignora que “a linguagem constrói (...) imensos edifícios de representação simbólica que parecem elevar-se sobre a realidade da vida cotidiana como gigantescas presenças de um outro mundo”. (ibid.). Quando se trata de pensar em que medida a existência humana é dependente de uma rede simbólica tecida e mantida pela linguagem, convém sempre atentar para a lição de Castoriadis:

“Tudo o que se nos apresenta, no mundo social-histórico, está indissociavelmente entrelaçado com o simbólico. Não que se esgote nele. Os atos reais, individuais ou coletivos – o trabalho, o consumo, a guerra, o amor, a natalidade – os inumeráveis produtos materiais sem os quais nenhuma sociedade poderia viver um só momento, não são (nem sempre não diretamente) símbolos. Mas uns e outros são impossíveis fora de uma rede simbólica”. (Castoriadis, 1982, p. 142).




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A fabricação social da realidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
DIJK, van Teun A. Discurso e contexto: uma abordagem sociocognitiva. São Paulo: Parábola Editorial, 2013.
____________. Discurso e Poder. São Paulo: Contexto, 2008.
OLIVEIRA, Luciano A. Van Dijk. In: OLIVEIRA, Luciano Amaral. Estudos do discurso: perspectivas teóricas. São Paulo: Parábola Editorial, 2013.