A mercadoligização dos relacionamentos
Este texto constitui uma versão reduzida e revisada de um
texto que escrevi há tempo e que pode revelar, no modo extravagante como o tema
foi abordado, certa ingenuidade minha em termos da percepção das relações entre
homens e mulheres em nossa sociedade. Talvez, meu espírito tenha feito vôos
muito altos; no entanto, por acreditar que, de algum modo, o texto possa
propiciar ao leitor algum momento de reflexão, cuidei conveniente divulgá-lo.
Tudo começou quando assisti pela televisão uma reportagem
sobre uma espécie de contrato
de namoro, que consiste num acordo judicial estabelecido pelos parceiros,
com vistas a obter privilégios de alguma espécie quando do rompimento da
relação. Isso é um sintoma da liquedez
dos vínculos humanos de que
já tratei alhures, ou seja, é preciso ter
garantias em face de sua
fragilidade. Contratos desse tipo, comuns na relação conjugal (contrato
nupcial), invadem a esfera das relações de namoro, o que indica uma verdadeira burocratização do amor.
É consabido que o sexo, assim como o dinheiro, é instrumento de poder, na sociedade.
Tudo, no capitalismo, torna-se mercadoria: inclusive o amor. O amor, enquanto
mercadoria, vale por outra coisa, o sexo.
Uma vez não obtendo a mercadoria pretendida – sexo – um homem poderá, segundo a lógica do
capital, procurar outra pessoa que torne possível a troca (“há outras que estão
dispostas a negociar”).
A traição não é mais um sinal de ruptura com a
cumplicidade; mas uma tendência.
A norma, muita vez, é trair; o anormal, pelo menos entre os mais jovens, é quem
não trai. A traição é ensejada pela ideologia do “mercado livre” e da “oferta e
procura”. Ora, quando uma empresa enfrenta uma crise econômica, seus
investidores não passam a investir seu capital em outra? Assim também, como
veremos numa reportagem da revista O
Globo, os namorados ou os cônjuges podem investir em outras mulheres/
homens, caso o mercado não lhe seja favorável. Tendo em vista essa ideia,
também as empresas, para atrair investidores, reestruturam-se, modernizam-se,
investindo em tecnologia, renovando o quadro de funcionários, despedindo e
contratando pessoas especializadas para atuar em determinados setores, etc. Em
certos relacionamentos conjugais ou pré-conjugais, sucede o mesmo: as chamadas
“crises do casamento”, ou as “desavenças da Primavera”, acarretam a procura por
outros “mercados” ou “negociadores”; e não escasseiam homens e mulheres que
concordam com a ideia, segundo a qual a “traição” só é justificável quando um
dos parceiros não satisfaz sexualmente o outro ou não atende aos caprichos do
outro. A traição não se
justifica! Se os dois
indivíduos concordam (pois o casamento é uma aliança, um acordo por vontade
recíproca) em unir-se pelos laços matrimonias, então é porque desejam em comum
dedicar suas vidas um ao outro. Oh!
Inocência romântica, a minha! O
mesmo se diz do namoro: nessa relação, deve haver liame afetivo e emocional
entre os parceiros, o qual é resultado de uma disposição (psíquica) humana a
viver junto do outro; portanto, para suprimir sua solidão social. Ensina-nos Cury
(2006:50):
No momento em que o amor se torna uma mercadoria que vale
por outra, que é o sexo, aquela mercadoria “perde” seu valor de mercado, pois,
muitas vezes, os negociadores cedem às pressões de um mercado maior que não
investe no amor, mas no sexo.
O sexo, à semelhança do dólar, torna-se a “moeda” universal que compra o
prazer, pois o “prazer” é o verdadeiro bem de consumo do homem. O mercado do
amor aufere lucros exorbitantes no Dia
dos Namorados, ocasião em que os shoppings estão repletos de gente e em que
os “pombinhos” vão às compras. Não quero com isso sugerir que não concorde com
a ida ao shopping no Dia dos
Namorados, mas apenas chamo a atenção para o fato de que o mercado se
aproveita de ocasiões como esta em que se celebram a harmonia, o “amor”, para
atender às necessidades econômicas.
O sexo é uma fonte de prazer natural; mas, no momento em
que ele se torna domínio de sistemas teóricos especializados, de discursos
especializados, acaba por ser controlados pelas instituições, entre as quais o
mercado. A teorização do sexo implica maior quantidade de práticas sexuais;
quanto mais se compreende as formas de existência da sexualidade mais domínio
sobre ela pode-se ter e mais estimulada ela será.
Uma vez não tendo valor no mercado de trocas, das emoções,
o amor torna-se uma moeda desvalorizada, pois
já não vale mais para obter o prazer, que assume várias formas, entre as quais
a sexual, que é a forma natural e instintiva, segundo a psicanálise freudiana.
Ou seja, para gozar do prazer sexual, não se precisa mais “experimentar” ou
“falar de amor”; basta que se detenha algum atrativo econômico.
Viver intensamente e fielmente nossa sexualidade é um meio
de liberdade; a liberdade não se confunde com promiscuidade. Se tomarmos o caso
do mercado pornográfico, o que observamos é que é o dinheiro que intermedeia a
negociação: o corpo é o “bem-privado” que é vendido para a obtenção de um valor
monetário determinado. A “mão-de-obra” aqui é a capacidade de fazer sexo. É essa capacidade, a rigor, que é
vendida; afinal, não basta que o corpo seja atraente, tenha atributos exigidos
pelo mercado, se o homem ou a mulher não podem, por alguma patologia, praticar
o ato sexual. Ora, um homem impotente sexualmente não tem valor de mercado,
muito embora sobressaiam seus músculos e formas apreciáveis. Nesse mercado, o
corpo não pertence mais ao indivíduo, que deve mantê-lo segundo os padrões
estéticos exigidos pelo mercado; o corpo pertence a esse mercado pornográfico.
E ouvimos certas mulheres de filmes pornográficos se proclamarem “atrizes”!
Deve-se distinguir, pois, claramente, entre os dois
domínios em que o sexo se torna mercadoria e, consequentemente, em que o Amor se desvaloriza, do ponto de vista de
seu valor de mercado: o domínio das relações descartáveis ou epidérmicas entre
indivíduos que não se valem do dinheiro para obtenção do prazer (exceto, no
caso em que o homem recorre a prostíbulos); e o domínio social em que o sexo
vale por dinheiro, numa relação claramente mercantil.
Tanto num quanto noutro domínio, as relações tornam-se esvaziadas emocionalmente.
Veja-se, a título de ilustração, como uma formação ideológica procura
justificar a traição que é, implicitamente, tomada como consequência de uma
relação convencional e antiquada. Aqui está a expressão do pensamento de uma
ex-garota de programa, em entrevista na revista O Globo.
“A mulher que se transforma em garota de
programa para seu companheiro com certeza vai estar um grande passo para ele
não pensar em traição. Os homens querem novidades sexuais, justamente o que não
têm dentro de casa. Se a esposa oferece isso, ele não vai precisar de outras
mulheres – avalia a moça, com a experiência de quem trabalhou três anos
atendendo a uma média de cinco clientes por dia”.
Vejamos o que está explícito e o que está implícito:
Há, então, o pressuposto de que a esposa tem de encenar uma personagem “erótica” e
“lasciva”, fazendo quebrar a “casca grossa da rotina”, como condição necessária
para que os seus maridos não venham a traí-las. Ora, acreditar em que a única
forma de evitar a traição do homem seja a de satisfazer sua vontade lasciva
significa minar valores como diálogo,
respeito, cumplicidade, amor –
que devem primar em qualquer relacionamento.
A sugestão da ex-garota de programa é não só um produto
ideológico, como também ineficaz, porquanto, afinal, não é encenando
eroticamente, vestindo a personagem da prostituta, que o receio e a
desconfiança da esposa se esvaecerão. A “novidade”, inevitavelmente,
tornar-se-á, num lapso de tempo curto, “repetição”, o que demandará novas
formas de requinte sexual (na sociedade líquida, o imperativo é a busca pelo novo). Note-se bem, leitor:
estamos diante de um exemplo claro da insaciabilidade do homem moderno. No
domínio do sexo, considerando-se o oferecimento pelo mercado de produtos
destinados a estimular cada vez mais as práticas sexuais e a aumentar sua
‘qualidade’, interessa a esse mercado que os consumidores permaneçam num estado
de insatisfação, para que continuem a consumir mais produtos destinados ao sexo.
Devemos a Augusto Cury o termo ditadura da beleza, com o qual
ele interpreta a neurose coletiva pela busca contínua por um padrão de beleza,
que é estabelecido pela televisão, pela moda e pela publicidade e que é
reforçado nas experiências cotidianas do homem comum. É necessário obter e
conservar a beleza para continuar a participar dos meios sociais de consumo.
Essa forma de sociedade produz indivíduos narcísicos e carentes de profundidade psicológica.
Notemos como o mercado, considerado agora em sua vertente
editorial, determina padrões e reforça estereótipos, contribuindo para aumentar
a distância sócio-subjetivo-emocional entre homens e mulheres. Sabemos que as
revistas produzidas e publicadas destinam-se às exigências de um determinado
público; na realidade, os agentes da moda e da publicidade e toda a indústria
editorial captam os modos sócio-culturais de existência e as tendências,
aproveitam-se das novas descobertas tecnológicas e científicas, reconhecem e
trabalham as ideologias predominantes e empacotam tudo isso na forma de um produto
(a revista), destinando-o ao consumidor. Tome-se para exemplo a revista Marie Claire. Nela, se oferecem
matérias sobre culinária, moda, decoração, beleza, alimentação, etc. e são sugeridas “receitas para conquistar o homem dos sonhos” (sem mencionar os “testes de
fidelidade”); e, aos homens, o mercado editorial oferece revistas com apelo
pornográfico e erótico, mantidas por mulheres que visam ao enriquecimento, ao status social e publicitário e que, na
sociedade do espetáculo, desejam permanecer sob as luzes dos holofotes da mídia.
Outros dois estereótipos são construídos aqui: de um lado,
a mulher moderna, que precisa cuidar da casa, cumprir seus encargos
profissionais, sem deixar de estar bonita e atraente aos seus maridos ou
companheiros; de outro lado, o homem moderno, que não escapando à onda da beleza a qualquer custo, tem de
ser sexualmente satisfeito por essa mulher “multifacetada” e “dinâmica”, que
tem de ser versátil para assumir várias “personagens” (a mãe dedicada, a
dona-de-casa exemplar, a mulher dos desejos primaveris do marido, a
profissional de sucesso que luta por seu espaço, num mercado predominantemente
ocupado por homens, e que devem resistir à competição predatória do
capitalismo, etc.), mas que tem também de acordar “feliz” por ter ao seu
alcance “as páginas amigas” que a conhecem verdadeiramente e que “foram feitas
para ela”, das quais só bastará seguir as “fórmulas” para se tornar uma “mulher
moderna”.
Há, arraigada em nossa sociedade, uma ideologia segundo a
qual sexo e amor são coisas diferentes. Uma música de Rita Lee expressa bem
essa separação. Segundo essa ideologia, as mulheres “fazem amor”; os homens
“fazem sexo”. O fazer amor pressupõe maior profundidade afetiva e
emocional, desejo de perenidade na relação, expectativa de prolongamento e
reiteração do prazer. O fazer
sexo é meramente
circunstancial e atende a necessidades instintivas imediatas; não há espaço
para compromisso; a efemeridade é o que o sustenta; as emoções são apenas
reflexos de estímulos orgânicos. Igualmente sintomático dessa separação das
esferas sexuais em que se situam homens e mulheres é o modo como tanto uns
quanto outros se referem à experiência sexual. Os homens se vangloriam do
número de mulheres com quem tiveram relação sexual e referem-se a essas
experiências com o vulgo comer (“Cara, comi uma mulher!...”). As mulheres, a seu
turno, ou “vão para cama”, ou “dão para ele”.
A educação dos pais exerce um papel fundamental no modo de
condução da sexualidade de seus filhos. Mais do que ensinar os jovens a
ministrar métodos contraceptivos, devem-se transmitir valores tais como
“respeito”, “amor”, “cumplicidade”, “fidelidade”, etc. na vivência de sua
sexualidade. Nos espaços sociais frequentados, especialmente pelos mais jovens,
bocas se unem sem haver aliança, corpos são consumidos sem que haja
referenciais prévios (nome, o que faz, o que gosta...). Tais formas de relações
imediatas e instantâneas são esvaziadas
emocionalmente; não há sequer sombra de amor.
Quando os pais não intervêm nessa esfera de comportamento
dos filhos, educando-os, acabam por formar adultos que não estão habituados ao
sofrimento, às decepções, às desilusões que cercam toda relação interpessoal;
em outras palavras, formam-se pessoas incapazes de lidar com a tristeza, a
decepção, a ilusão, forjando um mundo fantasioso, em que tudo pode ser
consumido, no qual, havendo inúmeras possibilidades de obter prazer, novas
formas de prazer instantâneo devem ser buscadas. Não lhes é ensinada a
necessidade de assumirem responsabilidade, tampouco se lhes traz à consciência
a ideia de que, ao fazerem escolhas, serão responsáveis por si mesmos e pelos
outros, porque, como nos ensina Sartre, minha escolha envolve toda a humanidade;
cada escolha que eu faço implica que eu assuma a responsabilidade por ela, bem
como pelos outros. Existir, na concepção sartreniana, é não só “estar condenado
a ser livre”, mas ter de assumir, por sua liberdade incondicional, a
responsabilidade por si mesmo e por todos os outros homens. A verdade desta
lição existencialista se sustenta quando observamos as situações em que, não
satisfeitos com o comportamento de outrem, questionamos: “E se todos agissem
assim?”, “o que aconteceria se todos agissem como você?”.
Em entrevista ao Jornal Folha Dirigida, o professor e
sociólogo Nelson Mello e Souza, também vice-chanceler da universidade Estácio
de Sá, avalia, entre outras coisas, a inserção dos jovens no mercado de
trabalho. Suas palavras, num tom de denúncia, trazem-nos à consciência as
condições sócio-culturais, econômicas e ideológicas em que vivem os homens das
sociedades modernas industrializadas:
É preciso, então, reconhecer, considerando-se as condições
da cultura pós-moderna, que sexo
escusa amor. No entanto, acredito que o amor,
quando encarado como sentimento entre os parceiros de uma relação erótica, deve envolver a relação sexual.
O amor sem sexo é como um membro amputado; o sexo sem amor viciado.
Que dirá do sexo um romântico como eu, então? É com as
seguintes palavras a respeito do sexo que ponho termo a este texto.
O sexo não se resolve num ato; deve ser uma relação anímico-carnal, durante
a qual o alvoroço de corpos deixa ver o embaraço de sentimentos de amor dantes
inconfessáveis; de uma relação em que o incitamento das ancas e a confusão de
bocas deixam ver a irmanação de sentimentos de benquerença nunca dantes
conciliáveis. O sexo não é senão uma experiência de sublime adoração e comunhão
dos corpos e espíritos humanos. Há, no sexo, assim creio, mais do que uma
acomodação de corpos, um roçar afoito pela harmonia perfeita num espaço que
repele a unidade; no sexo, há a comunhão das almas, o entrelaçamento dos
desejos mais íntimos da alma; enfim, a busca ininterrupta pela superação dos
limites físicos da corporeidade.
A penetração do falo e o acolhimento passivo da vagina não
é senão o anseio humano por comunicar fisicamente as delícias inconfessáveis
que impregnam o o coração e o imaginário. Comunica-se, pelo sexo, mais do que
um fluido corporal, um deleite físico, senão a dimensão sentimental imensurável
que navega pelas veias, quando o batimento cardíaco se acelera e os corpos se
estremecem, e que, ao final, não encontra sua síntese no orgasmo, pois que o
prazer é sempre passível de ser revivido.