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domingo, 31 de janeiro de 2016

"Que significa o niilismo? Que os valores superiores se depreciam." (Nietzsche)

                                      







                       O niilismo: um estado patológico[1]

Este texto constitui um fragmento do trabalho intitulado “Uma abordagem semântica relacional do niilismo, da má consciência e o do ideal ascético na filosofia de Nietzsche”, por mim desenvolvido na disciplina Ética II do curso de filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).



O acontecimento da morte de Deus constitui, conforme vimos, um imperativo histórico. Com ele, passamos a viver num mundo ao qual falta qualquer profundidade que antes lhe servia de suporte metafísico. A vontade de poder permeia todos os acontecimentos do mundo, caracterizando o próprio mundo como superfície fenomênica. Não há mais um ‘em si’ como instância doadora de sentido ao mundo. Portanto, vimos que o niilismo é tanto a experiência da falta de sentidos normativos que orientavam as vivências humanas quanto a impossibilidade de ter acesso ao absoluto.
Também acenamos com o fato de que Nietzsche não pode ser alcunhado de “filósofo do niilismo”. Pretender fixar-lhe tal lugar é ignorar seu esforço combativo orientado para a superação do niilismo. Nietzsche foi quem melhor soube identificar as causas desse estado patológico da vida e de propor-lhe uma forma de tratamento. O acontecimento da morte de Deus, para Nietzsche, não apenas fez eclodir o desespero niilista, como também (e sobretudo) abriu o horizonte para a possibilidade de superação do niilismo. Para Nietzsche, o niilismo é a condição normal da nossa época, da época pós-moderna. É verdade que, num primeiro momento, Nietzsche reconhece que o niilismo é experienciado como consequência da derrocada dos valores superiores. Nietzsche, ao perguntar o que significa o niilismo, numa primeira aproximação, responde: “que os valores superiores se depreciam”[2]. Mas essa não é a experiência que tem o tipo forte. A experiência niilista que se segue da derrocada dos valores superiores mantidos até então pela instância metafísica representada por Deus acometerá um tipo vital específico. O trecho abaixo confirma essa nossa interpretação. Além disso, o trecho patenteia-nos que o grandioso evento da “morte de Deus” sequer fora ainda sentido pela maioria dos homens. É importante reter o seguinte: a crítica de Nietzsche ao niilismo remonta às raízes do niilismo, que não se encontram no acontecimento da “morte de Deus”. Nietzsche parte do reconhecimento de que o niilismo veio suprimir a questão sobre a finalidade da existência. O “para quê” da vida carece de sentido depois que o mal do niilismo envenenou o modo como o homem experiencia o mundo. No entanto, o que parece preocupar Nietzsche é justamente a questão sobre o que a necessidade de interpretar a vida à luz da categoria de finalidade encoberta. O niilismo, segundo Nietzsche, é um estado patológico que não atingiu ainda seu termo. Falta-lhe justamente um sentido para o qual ele possa tender. O acontecimento da morte de Deus não é o começo desse estado, para Nietzsche; mas um estágio extremamente importante para superá-lo. Por isso, o acontecimento da morte de Deus descerra um novo horizonte hermenêutico que permitirá fomentar novas formas de interpretação da vida que se destinem à superação do estado patológico do niilismo, cujas raízes é anterior a esse grandioso acontecimento.

- O maior acontecimento recente – o fato de que “Deus está morto”, de que a crença no Deus cristão perdeu seu crédito – já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa. Ao menos para aqueles poucos cujo olhar, cuja suspeita no olhar é forte e refinada o bastante para esse espetáculo, algum sol parece ter se posto, alguma velha e profunda confiança parece ter se transformado em dúvida: para eles o nosso velho mundo deve parecer cada dia mais crepuscular, mais desconfiado, mais estranho, “mais velho”. Mas pode-se dizer, no essencial, que o evento mesmo é demasiado grande, distante e à margem da compreensão da maioria, para que se possa imaginar que a notícia dele tenha sequer chegado; e menos ainda que muitos soubessem já o que realmente sucedeu realmente sucedeu – e tudo que estava sobre ela construído, nela apoiado, nela arraigado; toda a nossa moral européia, por exemplo. Esta longa e abundante sequência de ruptura, declínio, destruição, cataclismo, que agora é iminente: quem poderia hoje adivinhar o bastante acerca dela, para ter de servir de professor e prenunciador de uma tremenda lógica de horrores, de profeta de um eclipse e ensombrecimento solar, tal como provavelmente jamais houve na Terra?... Mesmo nós, adivinhos natos, que espreitamos do alto dos montes, por assim dizer, colocados entre o hoje e o amanhã e estendidos na contradição entre o hoje e o amanhã, nós, primogênitos e prematuros do século vindouro, aos quais as sombras que logo envolverão a Europa já deveriam ter se mostrado por agora: como se explica que nós encaremos sem muito interesse o limiar deste ensombrecimento, e até sem preocupação e temor por nós? Talvez soframos demais as primeiras consequências desse evento – e estas, as suas consequências para nós, não são, ao contrário do que talvez se esperasse, de modo algum tristes e sombrias, mas sim algo difícil de descrever, uma nova espécie de luz, de felicidade, alívio, contentamento, encorajamento, aurora... De fato, nós, filósofos e “espíritos livres”, ante a notícia de que “o velho Deus morreu” nos sentimos como iluminados por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa – enfim o horizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida toda ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto “mar aberto”.[3]


Este aforismo tem insignes imagens que servem à expressão da significatividade do horizonte que se abre com o acontecimento da morte de Deus. Nietzsche o descreve como  “uma nova espécie de luz”, “uma nova aurora”, “como o nosso mar”, “mar aberto”. Todas essas imagens remetem ao horizonte descerrado pela “morte do velho Deus”. É justamente o mundo que se torna infinito novamente, que se torna suscetível de infinitas interpretações. Mas experienciar o acontecimento  da morte de Deus como “felicidade”, “alívio”, “contentamento”, “encorajamento”, como uma espécie de iluminação por uma nova aurora só é possível aos espíritos livres. Por isso, Nietzsche escreve sobre “as consequências para nós”, isto é, as consequências segundo uma interpretação que fixa um sentido sintetizador daquela “sequência de ruptura, de declínio, corrupção, cataclismo”. Ora, compreender o acontecimento da morte de Deus como algo capaz de produzir tal estado-de-coisas decorre de certo modo de conformação do mundo segundo um processo interpretativo de certo modo do relacionar agonístico entre vontades de poder. O tipo afirmador, o que é dotado de espírito livre, na medida em que é vontade de poder, valorará o acontecimento da morte de Deus, isto é, lhe imporá um sentido que sirva ao propósito de afirmar a vida, de intensificar a vida, de fortificá-la,; um sentido que possibilite quantificar ascensionalmente as forças da vontade. Esse tipo afirmador fixará um sentido que expressará consentimento pleno às consequências daquele acontecimento. O “mar está aberto”, e o tipo afirmador “quer que assim seja!”, não apesar dos perigos, mas por causa dos perigos que a imensidão do mar, que se lhe torna novamente acessível, lhe guarda. Porque os perigos, para o tipo afirmador, é condição de possibilidade para a ousadia, para o envidar de esforços corajosos destinados à regeneração da vida, à conformação de novos corpos vitais que sejam a encarnação de vontades de poder que amem o modo do destinar-se da vida.
Cumpre-nos, agora, responder à questão: como Nietzsche compreende o niilismo? Está claro que ele não ignora os modos como o niilismo é interpretado em seu tempo. Porque reconhece que o niilismo está ligado à depreciação dos valores superiores, Nietzsche discriminará entre duas formas de niilismo: um niilismo ativo e um niilismo fatigado (ou passivo).  Essa última forma de niilismo tornou-nos cansados do homem. Na Genealogia, lemos o seguinte:

- junto com o temor do homem, perdemos também o amor a ele, a reverência por ele, a esperança em torno dele, e mesmo a vontade de que exista ele. A visão do homem agora cansa – o que é hoje o niilismo, se não isto?... Estamos cansados do homem.[4] (ênfase nossa).


O fato de o homem estar cansado de si mesmo – nisso consiste o niilismo fatigado. Essa forma de niilismo não mais ataca. Nietzsche fornecerá como exemplo desse niilismo fatigado o budismo[5]. Nietzsche, no entanto, também vê o cristianismo como uma religião niilista. Tanto o budismo quanto o cristianismo comungam da mesma empresa: lutam contra os sentimentos de inimizade e os consideram fontes de todo o mal. As duas religiões também ensinam a indiferença em relação à ostentação de felicidade. O budismo é uma religião marcada por uma profunda luta contra o desejo, que considera a causa de todo sofrimento. O problema é que lutar contra o desejo é lutar contra a vida. O budista quer separar-se da vida, quer alcançar a dissolução absoluta no nada (nirvana final)[6]. A vida, para ele, também não pode ser aprovada, por isso ele quer interromper a lei do samsara (do ciclo de nascimento-morte-renascimento). O homem que não conseguiu interromper o ciclo de renascimentos vive na condição de escravo. É necessário, então, que esse homem alcance a salvação, que, diferentemente da salvação cristã, é uma salvação que depende exclusivamente de si mesmo. O cristianismo também quer separar-se da vida, embora seja proibido ao cristão fazê-lo voluntariamente (tanto quanto para o budista). O fim supremo do cristão é a salvação, que envolve a possibilidade de libertar-se do mundo para fruir de uma nova vida no Reino de Deus. O cristão não é desse mundo; seu destino é viver para adorar a Deus na esperança de obter dele a salvação. Para Nietzsche, esse desejo de salvação próprio do cristão decorre de sua “profunda incultura” com relação ao objeto de seus desejos.
O budismo e o cristianismo creem que os instintos vigorosos da vida (e para Nietzsche tudo que é instinto é bom) não mais atendem à conquista da alegria, mas são causa de sofrimento. No budismo, o sofrimento é experienciado quando aqueles instintos motivam a ação. O conceito de carma no budismo supõe que o nosso destino é determinado por nossas ações. Assim, como todas as ações têm consequências, ações más (e pensamentos maus) acarretam uma série de renascimentos danosos. Portanto, o modo como se constituirá a vida em que o indivíduo renascerá é consequência direta do modo como agiu, se comportou, pensou na vida anterior. Para romper com o carma, para suprimir o ciclo de renascimentos, o budista deve viver segundo a instrução deixada por Buda. Em essência, deve viver de modo a evitar os excessos, a desmesura (hýbris). Toda forma de proceder que seja desmesurada produz desprazer. Para Nietzsche, o cristão, por sua vez, também crê que aqueles instintos causam sofrimento, na medida em que levam a inimizades. O ódio e a ofensa engendram desprazer, violentam “a paz da alma”; e o que mais aspira alcançar em vida o bom cristão é a paz da alma (“que a paz esteja convosco”).
O niilismo fatigado é sinal de fraqueza, para Nietzsche; é expressão de cansaço da vida, de esgotamento da vontade.

(...) de tal forma que os fins e valores preconizados até o presente pareçam impróprios e não mais se imponham, de sorte que a síntese dos valores e dos fins (sobre os quais repousou toda cultura sólida) se decomponha; e que os diferentes valores se guerreiem entre si; uma degradação...; que tudo o que alivia, cura, tranquiliza, atormenta,  venha em primeiro plano, sob roupagens diversas, religiosas ou morais, políticas ou estéticas etc.[7]

Esse trecho sugere que o niilismo constitui um estado de decepção quanto à pretensão de fixar uma finalidade para o “eterno vir a ser”. O niilismo parece ser consequência de se criar valores que, em vez de afirmar a vida, se destinam a condená-la. A decepção ou se relaciona com um propósito que, em todo caso, fora previamente determinado, ou, de maneira geral, decorre da percepção de que as crenças numa finalidade para a vida são insuficientes para lhes dar coesão. Nesse caso, segundo Nietzsche, “o homem não mais se apresenta como o colaborador e, menos ainda, como centro do “eterno vir-a-ser”.[8]
No que tange ao niilismo ativo, ele alcança o máximo de sua força destrutiva. Essa forma de niilismo é destruidora de todos os valores superiores em que se esteia a moral ocidental. Essa forma de niilismo é um estágio necessário para a transvaloração de todos os valores; mas ela deverá também ser superada, porque é necessário reconduzir o homem para a terra; é necessário reconciliá-lo com sua existência aqui no mundo. O homem acreditou por muito tempo que a finalidade da existência fora fixada por uma autoridade sobre-humana. Essa autoridade, ordenadora do mundo, é fonte de todos os valores supremos. Mas os homens que passaram a questioná-la e a deixar de crer nela buscaram outras instâncias de autoridade moral: a consciência, a razão, o rebanho, a história. Nietzsche observa que a emancipação da autoridade teológica tornou a necessidade de moral mais premente. A própria moral torna-se mais imperiosa; afinal, como poderíamos viver num mundo em que não houvesse nenhum preceito moral a orientar a convivência humana ou num mundo em que não houvesse preceito moral que nos proibisse atender aos apelos de nossos “cruéis instintos”?
Segundo Nietzsche, o niilismo também ensejou uma outra fase: a do fatalismo. Não se divisa resposta alguma para a questão do “para quê”. Não podemos querer um fim, muito embora ainda seja possível acreditar que “para alguma parte estamos indo”[9]. Posteriormente, a negação passou a ser a explicação da vida. Negar a vida significa destituí-la de qualquer valor: a vida é uma experiência absurda, destinada a suprimir-se.


Niilismo como condição psicológica

Nietzsche descreve o niilismo, tendo em vista seu aspecto psicológico, como uma experiência decorrente da necessidade de darmos “o sentido” a tudo que não se presta a recebê-lo. Ao pretendermos determinar “o sentido” para o mundo, constatamos que o mundo resiste a se deixar estruturar por esse sentido. Destarte, segundo Nietzsche,

O niilismo, como condição psicológica, aparecerá primeiramente, logo que sejamos forçados a dar a tudo o que acontece o “sentido” que aí não se encontra: dessa forma, quem procura acabará por perder a coragem. O niilismo é, pois, o conhecimento do longo desperdício da força, a tortura que ocasiona esse “em vão”, a incerteza, a falta de oportunidade de se refazer de qualquer maneira que seja, de tranqüilizar-se em relação ao que quer que seja – a vergonha de si mesmo, como se fôssemos ludibriados por longo tempo.[10] (ênfases no original).

Nietzsche não está negando que seja parte fundamental da condição humana a necessidade de produzir sentido. Já fizemos notar que a vida mesma nos força a valorar, a produzir sentido. O problema está em pretender doar ao mundo “o sentido”, isto é, um único sentido; é supor que o mundo se preste a acomodar-se à crença na unicidade do sentido. Ora, o sentido, segundo vimos, é um problema tratado por Nietzsche à luz de seu perspectivismo. Como a trama da realidade é resultado de um jogo agonístico de vontades de poder que se relacionam entre si e como cada vontade de poder interpreta, isto é, é produtora de sentido, existe sempre a possibilidade, a princípio, de perdurar um confronto entre múltiplos sentidos. No entanto, o próprio sentido é indicativo da preponderância, da hegemonia de uma vontade de poder, de uma força sobre as demais. Esse sentido indicador da hegemonia “apaga” a inerência conflitiva das relações entre as forças, isto é, pretende mascarar o aspecto deveniente, contraditório da dinâmica das relações entre as forças. Quer-se impor como único sentido possível, como o sentido último, absoluto que confere substancialidade ao mundo, que o sustenta e que serve de horizonte norteador das ações humanas. A propósito da origem desse sentido, Nietzsche dirá que pode ser fixado “pelo cumprimento de um cânone moral superior”; pode ser resultado do “aumento do amor e da harmonia entre os seres ou parte da realização do estado de felicidade universal; ou até a marcha para um não ser universal”[11]. O problema, segundo Nietzsche, é que essa necessidade de fixar uma unidade de sentido é parte da dinâmica deveniente do próprio mundo. Ora, o devir do mundo impossibilita atingir o objetivo pretendido, qual seja, sintetizar definitivamente toda a multiplicidade dos elementos do mundo. A alternativa é tão pouco favorável, isto é, pretender que exista uma instância metafísica que sirva de fundamento desse único sentido ordenador, estruturador do mundo é iludir-se quanto à possibilidade de o devir reger-se por uma unidade superior.
Na descrição do niilismo como condição psicológica, Nietzsche faz-nos ver ainda outros dois traços importantes. O primeiro dentre estes traços é que o niilismo é resultado da necessidade de estabelecer uma ordem, uma totalidade, uma sistematização em tudo o que acontece no mundo. Em uma palavra, o niilismo é consequência inevitável da necessidade que tem o homem de logicizar o mundo. Mas, “não existe semelhante totalidade”[12]. A totalidade a que Nietzsche se refere e em proveito da qual o indivíduo se sacrifica é a humanidade. Nietzsche nega que o sentido do mundo possa derivar da profunda dependência do homem em relação a um todo que lhe é infinitamente superior. Nietzsche não crê na humanidade como um “ente”. O homem já não encontra valor em si, tendo reconhecido que não há tal totalidade a lhe garantir um enraizamento ontológico no mundo. A necessidade que tem o homem de crer no todo objetiva assegurar o seu próprio valor.
O terceiro e último traço do niilismo como condição psicológica assenta em dois pressupostos: 1) o devir não possibilita a realização de nada; 2) o devir não encontra esteio e governo em alguma grande unidade à qual o indivíduo possa vincular inteiramente a sua existência. No primeiro caso, julga-se que, no mundo, em que tudo flui, tudo se transforma, tudo está destinado a não ser o que era, toda pretensão à realização está fadada ao malogro. Vida é desfazimento; no viver no mundo em fluxo perpétuo, os projetos humanos correm o risco de nunca realizar-se, ou, caso venham a se realizar, correm o risco de sucumbir à impermanência a que estão destinadas todas as coisas. No segundo caso, não havendo possibilidade de garantir um sentido de unidade em que a existência do indivíduo possa estear-se, ele vê-se arrastado também pela impermanência de todas as coisas. Resta-lhe inventar um mundo-verdade, um mundo que transcenda ao mundo deveniente. Mas, ao inventar esse mundo-verdade, o homem condena o mundo do devir; toma-o como uma ilusão.

Mas desde que o homem compreenda que este mundo somente foi edificado para responder às necessidades psicológicas e que este não tem absolutamente qualquer fundamento, nasce-lhe uma forma suprema de niilismo, forma que abarca a negação de um mundo metafísico – que exclui a crença num mundo-verdadeiro. Por este ângulo, admite a realidade do devir, como única realidade, proibindo qualquer desvio que leve a um além e a falsas divindades e não tolera mais este mundo embora não queira negá-lo.[13] (ênfase no original).


A leitura do excerto acima autoriza-nos dizer que o niilismo decorre do reconhecimento pelo homem de que o mundo metafísico ou o mundo-verdade é criação sua. Ademais, o homem reconhece que o criou para atender a necessidade que ele tem de crer que o sentido do mundo esteja assegurado por um “em si”. No entanto, como procuramos mostrar, o niilismo é uma experiência que não foi levada até as suas últimas consequências. O homem que reconhece que o mundo-verdade não existe, que sua criação atende a necessidades psicológicas suas, não renuncia completamente ao mundo do em-si e dos deuses.
As categorias de “finalidade”, “unidade” e “ser” responderam, na tradição, pelo anseio de conferir ao mundo fundamento. O mundo passou a ser concebido como uma ordem (cosmo), uma totalidade dotada de sentido que era mantida na postulação dessas categorias. Assim, “finalidade”, “unidade” e “ser” constituíram instâncias metafísicas doadoras de sentido ao mundo; a partir delas, o mundo recebia valor. Com o niilismo, suprime-se a estrutura metafísica que assegurava uma ordem de sentido ao mundo. Suprimida essa estrutura metafísica, o mundo deixa de ter valor. Ademais, passou-se a crer que o mundo não pode mais ser interpretado; e ignorou-se que o niilismo só levou à derrocada uma interpretação que se conservou hegemônica durante muito tempo, na história do ocidente. Segundo Nietzsche, da desvalorização daquelas categorias não se segue que estejamos justificados para desvalorizar o mundo. É preciso reconhecer que o niilismo deve sua causa à crença naquelas categorias. O niilismo, para Nietzsche, repousa em nosso inveterado hábito de medir o valor do mundo “de acordo com as categorias que se relacionam com um mundo fictício”[14]. A experiência do niilismo, antes de nos conduzir ao abandono num universo que não mais se importa conosco, antes de nos arrastar para o desespero, deve ser uma experiência vivenciada como a grande aurora, o instante decisivo em que nos apercebemos de que nos habituamos a ver os valores como imanentes à essência das coisas. Julgamos, falsamente, que as coisas possuem, em si mesmas, um valor. Acompanhemos o que nos escreve Nietzsche a seguir:

Conclusão: todos os valores pelos quais experimentamos até o presente tornar o mundo avaliável para nós, e pelos quais temo-lo precisamente desvalorizado desde que se mostraram inaplicáveis – sob o ângulo psicológico, todos estes valores são resultados de certas perspectivas de utilidade, estabelecidas para manter e aumentar as criações de domínio, mas falsamente projetadas na essência das coisas.[15] (ênfase nossa).


Tendo em conta o excerto acima, categorias como “finalidade”, “unidade” e “ser”, com as quais procuramos valorar o mundo, foram produzidas por princípios interpretativos que se tornaram hegemônicos (que assumiram a forma de perspectiva) com o propósito de assegurar a manutenção e o aumento do domínio de uma vontade de poder criadora. Desde que elas se demonstraram inúteis, o homem passou a experimentar uma perda de mundo. Com a experiência niilista, o homem descobriu que aqueles valores não existem como propriedades inerentes à constituição do mundo, mas foram projetadas por ele como se fossem propriedades essenciais do mundo. Tal descoberta leva o homem a condenar o mundo. No entanto, Nietzsche parece querer argumentar que o caráter desmitificador da experiência niilista, na medida em que torna o mundo infinito novamente, a saber, na medida em que descerra para o homem um novo horizonte de possibilidades de interpretação do mundo, aponta, por isso mesmo, o caminho a ser trilhado pelo homem para que possa superá-la.
O que o homem experiencia com a desvalorização dos valores que até então sustentavam a sua existência é caracterizado por Nietzsche como uma forma de niilismo radical: “(...) a convicção da absoluta insustentabilidade da existência, quando se refere aos valores superiores que se aceitam; acrescente-se ainda o sabermos que não temos o menor direito de fixar um além ou um “em si” das coisas.”[16]. Para Nietzsche, o que explica nossa convicção absoluta da ausência de sentido da vida é nossa crença na moral: “enquanto cremos na moral, condenamos a existência”[17]. Nossa fé na moral suprime-nos a vontade de viver. Enquanto continuamos a acreditar em que a existência não se sustenta sem um fundamento moral, a existência continuará a ser condenada. O pessimismo que daí se segue leva o homem a experienciar o niilismo extremo: não há mais sentido possível, não há mais valor que anime a vontade de viver. Toda a história da moral ocidental, para Nietzsche, se desenvolveu como negação da vida como vontade de poder, ou ainda, como falsificação da vida.
Nietzsche acredita que o niilismo ativo deve ser encorajado. É justamente essa forma de niilismo que deve estar a serviço do combate ao niilismo passivo ou fatigado. Como o niilismo passivo ou fatigado é um sintoma de uma longa experiência moral negadora da vida, cumpre servir-se do niilismo ativo como meio para a destruição dos valores superiores que levaram o animal humano a adoecer. Mas – sublinhe-se isto – o niilismo ativo constitui apenas um estágio da radicalidade do processo de transvaloração de todos os valores. Nietzsche não se satisfaz apenas com a demolição dos ídolos da tradição, dos valores superiores; em todo caso, é preciso pavimentar o caminho para o advento do além-do-homem.





[1] Este texto é parte de um trabalho acadêmico com o qual obtive, ao final do curso, a nota máxima.
[2] Vontade de Potência, Niilismo, § 2.
[3] A Gaia Ciência,  Livro V, § 343.
[4] Primeira dissertação, § 12.
[5] É preciso notar que, para Nietzsche, o budismo e o cristianismo são religiões de declínio, são movimentos niilistas (Nietzsche, 2011, § 135-136). Mas, em O Anticristo, ele reconhecerá que, em certos aspectos, o budismo mais ocupado da vida que o cristianismo. Por exemplo, Nietzsche ressaltará que o budismo é mais realista que o cristianismo; que o budismo coloca objetivamente os problemas da vida, que soube suprimir o conceito de “deus”, que não luta contra o pecado, mas contra o sofrimento, que, em suma, “ele se encontra além do bem e do mal” (Nietzsche, 2012, § 20 et.seq.).
[6] O nirvana é o estado em que todo o carma e a lei dos renascimentos são interrompidos. O nirvana é uma experiência que deve se dar no aqui e agora, no mundo, portanto. Quando o budista atinge o nirvana, consegue extinguir o desejo. Mas a forma última e definitiva do nirvana só se alcança com a morte, que é a extinção absoluta. Alguns budistas chamam-na de parinirvana. (Gaarder, Jostein et.al. O livro das religiões. Trad. Isa Mara Lando. Companhia das Letras: São Paulo, 2005).
[7] Nietzsche,  op.cit, loc.cit.
[8] Nietzsche, 2011. Crítica do niilismo, § 5.
[9] Ibid., p. 141.
[10] Ibid., p. 142.
[11] Ibid.
[12] Ibid., p. 143.
[13] Ibid., p. 143-144.
[14] Ibid., p. 145.
[15] Ibid.
[16] Ibid., p. 146
[17] Ibid.


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