O niilismo: um estado patológico[1]
Este texto constitui um fragmento do trabalho intitulado “Uma abordagem semântica relacional do niilismo, da má consciência e o do ideal ascético na filosofia de Nietzsche”, por mim desenvolvido na disciplina Ética II do curso de filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
O acontecimento da morte de Deus
constitui, conforme vimos, um imperativo histórico. Com ele, passamos a viver
num mundo ao qual falta qualquer profundidade que antes lhe servia de suporte
metafísico. A vontade de poder permeia todos os acontecimentos do mundo,
caracterizando o próprio mundo como superfície fenomênica. Não há mais um ‘em
si’ como instância doadora de sentido ao mundo. Portanto, vimos que o niilismo
é tanto a experiência da falta de sentidos normativos que orientavam as
vivências humanas quanto a impossibilidade de ter acesso ao absoluto.
Também acenamos com o fato de que
Nietzsche não pode ser alcunhado de “filósofo do niilismo”. Pretender fixar-lhe
tal lugar é ignorar seu esforço combativo orientado para a superação do
niilismo. Nietzsche foi quem melhor soube identificar as causas desse estado
patológico da vida e de propor-lhe uma forma de tratamento. O acontecimento da
morte de Deus, para Nietzsche, não apenas fez eclodir o desespero niilista,
como também (e sobretudo) abriu o horizonte para a possibilidade de superação
do niilismo. Para Nietzsche, o niilismo é a condição normal da nossa época, da
época pós-moderna. É verdade que, num primeiro momento, Nietzsche reconhece que
o niilismo é experienciado como consequência da derrocada dos valores
superiores. Nietzsche, ao perguntar o que significa o niilismo, numa primeira
aproximação, responde: “que os valores superiores se depreciam”[2].
Mas essa não é a experiência que tem o tipo forte. A experiência niilista que
se segue da derrocada dos valores superiores mantidos até então pela instância
metafísica representada por Deus acometerá um tipo vital específico. O trecho
abaixo confirma essa nossa interpretação. Além disso, o trecho patenteia-nos
que o grandioso evento da “morte de Deus” sequer fora ainda sentido pela
maioria dos homens. É importante reter o seguinte: a crítica de Nietzsche ao
niilismo remonta às raízes do niilismo, que não se encontram no acontecimento
da “morte de Deus”. Nietzsche parte do reconhecimento de que o niilismo veio suprimir
a questão sobre a finalidade da existência. O “para quê” da vida carece de
sentido depois que o mal do niilismo envenenou o modo como o homem experiencia
o mundo. No entanto, o que parece preocupar Nietzsche é justamente a questão
sobre o que a necessidade de interpretar a vida à luz da categoria de
finalidade encoberta. O niilismo, segundo Nietzsche, é um estado patológico que
não atingiu ainda seu termo. Falta-lhe justamente um sentido para o qual ele
possa tender. O acontecimento da morte de Deus não é o começo desse estado,
para Nietzsche; mas um estágio extremamente importante para superá-lo. Por
isso, o acontecimento da morte de Deus descerra um novo horizonte hermenêutico
que permitirá fomentar novas formas de interpretação da vida que se destinem à
superação do estado patológico do niilismo, cujas raízes é anterior a esse
grandioso acontecimento.
- O maior acontecimento recente –
o fato de que “Deus está morto”, de que a crença no Deus cristão perdeu seu
crédito – já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa. Ao menos para aqueles poucos cujo olhar,
cuja suspeita no olhar é forte e refinada o bastante para esse espetáculo,
algum sol parece ter se posto, alguma velha e profunda confiança parece ter se
transformado em dúvida: para eles o nosso velho mundo deve parecer cada dia
mais crepuscular, mais desconfiado, mais estranho, “mais velho”. Mas pode-se
dizer, no essencial, que o evento
mesmo é demasiado grande, distante e à margem da compreensão da maioria, para
que se possa imaginar que a notícia dele tenha sequer chegado; e menos ainda
que muitos soubessem já o que realmente sucedeu realmente sucedeu – e tudo que
estava sobre ela construído, nela apoiado, nela arraigado; toda a nossa moral
européia, por exemplo. Esta longa e abundante sequência de ruptura,
declínio, destruição, cataclismo, que agora é iminente: quem poderia hoje
adivinhar o bastante acerca dela, para ter de servir de professor e
prenunciador de uma tremenda lógica de horrores, de profeta de um eclipse e
ensombrecimento solar, tal como provavelmente jamais houve na Terra?... Mesmo
nós, adivinhos natos, que espreitamos do alto dos montes, por assim dizer,
colocados entre o hoje e o amanhã e estendidos na contradição entre o hoje e o
amanhã, nós, primogênitos e prematuros do século vindouro, aos quais as sombras
que logo envolverão a Europa já deveriam ter se mostrado por agora: como se explica que nós encaremos sem muito
interesse o limiar deste ensombrecimento, e até sem preocupação e temor por
nós? Talvez soframos demais as primeiras consequências desse evento – e estas,
as suas consequências para nós, não são, ao contrário do que talvez se
esperasse, de modo algum tristes e sombrias, mas sim algo difícil de descrever,
uma nova espécie de luz, de felicidade, alívio, contentamento, encorajamento,
aurora... De fato, nós, filósofos e “espíritos livres”, ante a notícia de que
“o velho Deus morreu” nos sentimos como iluminados por uma nova aurora; nosso
coração transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa – enfim o
horizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos
barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida
toda ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente
aberto, e provavelmente nunca houve tanto “mar aberto”.[3]
Este aforismo tem insignes imagens que
servem à expressão da significatividade do horizonte que se abre com o
acontecimento da morte de Deus. Nietzsche o descreve como “uma nova espécie de luz”, “uma nova aurora”,
“como o nosso mar”, “mar aberto”. Todas essas imagens remetem ao horizonte
descerrado pela “morte do velho Deus”. É justamente o mundo que se torna
infinito novamente, que se torna suscetível de infinitas interpretações. Mas
experienciar o acontecimento da morte de
Deus como “felicidade”, “alívio”, “contentamento”, “encorajamento”, como uma
espécie de iluminação por uma nova aurora só é possível aos espíritos livres.
Por isso, Nietzsche escreve sobre “as consequências para nós”, isto é, as
consequências segundo uma interpretação que fixa um sentido sintetizador
daquela “sequência de ruptura, de declínio, corrupção, cataclismo”. Ora,
compreender o acontecimento da morte de Deus como algo capaz de produzir tal
estado-de-coisas decorre de certo modo de conformação do mundo segundo um
processo interpretativo de certo modo do relacionar agonístico entre vontades
de poder. O tipo afirmador, o que é dotado de espírito livre, na medida em que
é vontade de poder, valorará o acontecimento da morte de Deus, isto é, lhe
imporá um sentido que sirva ao propósito de afirmar a vida, de intensificar a
vida, de fortificá-la,; um sentido que possibilite quantificar ascensionalmente
as forças da vontade. Esse tipo afirmador fixará um sentido que expressará
consentimento pleno às consequências daquele acontecimento. O “mar está
aberto”, e o tipo afirmador “quer que assim seja!”, não apesar dos perigos, mas
por causa dos perigos que a imensidão do mar, que se lhe torna novamente
acessível, lhe guarda. Porque os perigos, para o tipo afirmador, é condição de
possibilidade para a ousadia, para o envidar de esforços corajosos destinados à
regeneração da vida, à conformação de novos corpos vitais que sejam a
encarnação de vontades de poder que amem o modo do destinar-se da vida.
Cumpre-nos, agora, responder à questão:
como Nietzsche compreende o niilismo? Está claro que ele não ignora os modos
como o niilismo é interpretado em seu tempo. Porque reconhece que o niilismo
está ligado à depreciação dos valores superiores, Nietzsche discriminará entre
duas formas de niilismo: um niilismo
ativo e um niilismo fatigado (ou
passivo). Essa última forma de niilismo
tornou-nos cansados do homem. Na Genealogia,
lemos o seguinte:
- junto com o temor do homem,
perdemos também o amor a ele, a reverência por ele, a esperança em torno dele,
e mesmo a vontade de que exista ele. A visão do homem agora cansa – o que é
hoje o niilismo, se não isto?... Estamos
cansados do homem.[4]
(ênfase nossa).
O fato de o homem estar cansado de si
mesmo – nisso consiste o niilismo fatigado. Essa forma de niilismo não mais
ataca. Nietzsche fornecerá como exemplo desse niilismo fatigado o budismo[5].
Nietzsche, no entanto, também vê o cristianismo como uma religião niilista.
Tanto o budismo quanto o cristianismo comungam da mesma empresa: lutam contra
os sentimentos de inimizade e os consideram fontes de todo o mal. As duas
religiões também ensinam a indiferença em relação à ostentação de felicidade. O
budismo é uma religião marcada por uma profunda luta contra o desejo, que
considera a causa de todo sofrimento. O problema é que lutar contra o desejo é
lutar contra a vida. O budista quer separar-se da vida, quer alcançar a
dissolução absoluta no nada (nirvana
final)[6].
A vida, para ele, também não pode ser aprovada, por isso ele quer interromper a lei do samsara (do ciclo de
nascimento-morte-renascimento). O homem que não conseguiu interromper o ciclo
de renascimentos vive na condição de escravo. É necessário, então, que esse
homem alcance a salvação, que, diferentemente da salvação cristã, é uma
salvação que depende exclusivamente de si mesmo. O cristianismo também quer
separar-se da vida, embora seja proibido ao cristão fazê-lo voluntariamente
(tanto quanto para o budista). O fim supremo do cristão é a salvação, que
envolve a possibilidade de libertar-se do mundo para fruir de uma nova vida no
Reino de Deus. O cristão não é desse mundo; seu destino é viver para adorar a
Deus na esperança de obter dele a salvação. Para Nietzsche, esse desejo de
salvação próprio do cristão decorre de sua “profunda incultura” com relação ao
objeto de seus desejos.
O budismo e o cristianismo creem que os
instintos vigorosos da vida (e para Nietzsche tudo que é instinto é bom) não
mais atendem à conquista da alegria, mas são causa de sofrimento. No budismo, o
sofrimento é experienciado quando aqueles instintos motivam a ação. O conceito
de carma no budismo supõe que o nosso
destino é determinado por nossas ações. Assim, como todas as ações têm
consequências, ações más (e pensamentos maus) acarretam uma série de
renascimentos danosos. Portanto, o modo como se constituirá a vida em que o
indivíduo renascerá é consequência direta do modo como agiu, se comportou,
pensou na vida anterior. Para romper com o carma, para suprimir o ciclo de
renascimentos, o budista deve viver segundo a instrução deixada por Buda. Em
essência, deve viver de modo a evitar os excessos, a desmesura (hýbris). Toda forma de proceder que seja
desmesurada produz desprazer. Para Nietzsche, o cristão, por sua vez, também
crê que aqueles instintos causam sofrimento, na medida em que levam a
inimizades. O ódio e a ofensa engendram desprazer, violentam “a paz da alma”; e
o que mais aspira alcançar em vida o bom cristão é a paz da alma (“que a paz
esteja convosco”).
O niilismo fatigado é sinal de
fraqueza, para Nietzsche; é expressão de cansaço da vida, de esgotamento da
vontade.
(...) de tal forma que os fins e valores
preconizados até o presente pareçam impróprios e não mais se imponham, de sorte
que a síntese dos valores e dos fins (sobre os quais repousou toda cultura
sólida) se decomponha; e que os diferentes valores se guerreiem entre si; uma
degradação...; que tudo o que alivia, cura, tranquiliza, atormenta, venha em primeiro plano, sob roupagens
diversas, religiosas ou morais, políticas ou estéticas etc.[7]
Esse trecho sugere que o niilismo
constitui um estado de decepção quanto à pretensão de fixar uma finalidade para
o “eterno vir a ser”. O niilismo parece ser consequência de se criar valores
que, em vez de afirmar a vida, se destinam a condená-la. A decepção ou se
relaciona com um propósito que, em todo caso, fora previamente determinado, ou,
de maneira geral, decorre da percepção de que as crenças numa finalidade para a
vida são insuficientes para lhes dar coesão. Nesse caso, segundo Nietzsche, “o
homem não mais se apresenta como o colaborador e, menos ainda, como centro do
“eterno vir-a-ser”.[8]
No que tange ao niilismo ativo, ele
alcança o máximo de sua força destrutiva. Essa forma de niilismo é destruidora
de todos os valores superiores em que se esteia a moral ocidental. Essa forma
de niilismo é um estágio necessário para a transvaloração de todos os valores;
mas ela deverá também ser superada, porque é necessário reconduzir o homem para
a terra; é necessário reconciliá-lo com sua existência aqui no mundo. O homem
acreditou por muito tempo que a finalidade da existência fora fixada por uma
autoridade sobre-humana. Essa autoridade, ordenadora do mundo, é fonte de todos
os valores supremos. Mas os homens que passaram a questioná-la e a deixar de
crer nela buscaram outras instâncias de autoridade moral: a consciência, a
razão, o rebanho, a história. Nietzsche observa que a emancipação da autoridade
teológica tornou a necessidade de moral mais premente. A própria moral torna-se
mais imperiosa; afinal, como poderíamos viver num mundo em que não houvesse
nenhum preceito moral a orientar a convivência humana ou num mundo em que não
houvesse preceito moral que nos proibisse atender aos apelos de nossos “cruéis
instintos”?
Segundo Nietzsche, o niilismo também
ensejou uma outra fase: a do fatalismo. Não se divisa resposta alguma para a
questão do “para quê”. Não podemos querer um fim, muito embora ainda seja
possível acreditar que “para alguma parte estamos indo”[9].
Posteriormente, a negação passou a ser a explicação da vida. Negar a vida
significa destituí-la de qualquer valor: a vida é uma experiência absurda,
destinada a suprimir-se.
Niilismo como condição psicológica
Nietzsche descreve o niilismo, tendo em
vista seu aspecto psicológico, como uma experiência decorrente da necessidade
de darmos “o sentido” a tudo que não se presta a recebê-lo. Ao pretendermos
determinar “o sentido” para o mundo, constatamos que o mundo resiste a se
deixar estruturar por esse sentido. Destarte, segundo Nietzsche,
O niilismo, como condição psicológica, aparecerá primeiramente, logo que sejamos forçados
a dar a tudo o que acontece o “sentido” que aí não se encontra: dessa forma,
quem procura acabará por perder a coragem. O niilismo é, pois, o conhecimento
do longo desperdício da força, a
tortura que ocasiona esse “em vão”, a incerteza, a falta de oportunidade de se
refazer de qualquer maneira que seja, de tranqüilizar-se em relação ao que quer
que seja – a vergonha de si mesmo, como se fôssemos ludibriados por longo tempo.[10]
(ênfases no original).
Nietzsche não está negando que seja
parte fundamental da condição humana a necessidade de produzir sentido. Já
fizemos notar que a vida mesma nos força a valorar, a produzir sentido. O
problema está em pretender doar ao mundo “o sentido”, isto é, um único sentido;
é supor que o mundo se preste a acomodar-se à crença na unicidade do sentido.
Ora, o sentido, segundo vimos, é um problema tratado por Nietzsche à luz de seu
perspectivismo. Como a trama da realidade é resultado de um jogo agonístico de
vontades de poder que se relacionam entre si e como cada vontade de poder
interpreta, isto é, é produtora de sentido, existe sempre a possibilidade, a
princípio, de perdurar um confronto entre múltiplos sentidos. No entanto, o
próprio sentido é indicativo da preponderância, da hegemonia de uma vontade de
poder, de uma força sobre as demais. Esse sentido indicador da hegemonia
“apaga” a inerência conflitiva das relações entre as forças, isto é, pretende
mascarar o aspecto deveniente, contraditório da dinâmica das relações entre as
forças. Quer-se impor como único sentido possível, como o sentido último, absoluto que confere substancialidade ao mundo,
que o sustenta e que serve de horizonte norteador das ações humanas. A
propósito da origem desse sentido, Nietzsche dirá que pode ser fixado “pelo
cumprimento de um cânone moral superior”; pode ser resultado do “aumento do
amor e da harmonia entre os seres ou parte da realização do estado de
felicidade universal; ou até a marcha para um não ser universal”[11].
O problema, segundo Nietzsche, é que essa necessidade de fixar uma unidade de
sentido é parte da dinâmica deveniente do próprio mundo. Ora, o devir do mundo
impossibilita atingir o objetivo pretendido, qual seja, sintetizar
definitivamente toda a multiplicidade dos elementos do mundo. A alternativa é
tão pouco favorável, isto é, pretender que exista uma instância metafísica que
sirva de fundamento desse único sentido ordenador, estruturador do mundo é
iludir-se quanto à possibilidade de o devir reger-se por uma unidade superior.
Na descrição do niilismo como condição
psicológica, Nietzsche faz-nos ver ainda outros dois traços importantes. O
primeiro dentre estes traços é que o niilismo é resultado da necessidade de
estabelecer uma ordem, uma totalidade, uma sistematização em tudo o que
acontece no mundo. Em uma palavra, o niilismo é consequência inevitável da
necessidade que tem o homem de logicizar o mundo. Mas, “não existe semelhante
totalidade”[12]. A
totalidade a que Nietzsche se refere e em proveito da qual o indivíduo se
sacrifica é a humanidade. Nietzsche nega que o sentido do mundo possa derivar
da profunda dependência do homem em relação a um todo que lhe é infinitamente
superior. Nietzsche não crê na humanidade como um “ente”. O homem já não
encontra valor em si, tendo reconhecido que não há tal totalidade a lhe
garantir um enraizamento ontológico no mundo. A necessidade que tem o homem de
crer no todo objetiva assegurar o seu próprio valor.
O terceiro e último traço do niilismo
como condição psicológica assenta em dois pressupostos: 1) o devir não
possibilita a realização de nada; 2) o devir não encontra esteio e governo em
alguma grande unidade à qual o indivíduo possa vincular inteiramente a sua
existência. No primeiro caso, julga-se que, no mundo, em que tudo flui, tudo se
transforma, tudo está destinado a não ser o que era, toda pretensão à
realização está fadada ao malogro. Vida é desfazimento; no viver no mundo em
fluxo perpétuo, os projetos humanos correm o risco de nunca realizar-se, ou,
caso venham a se realizar, correm o risco de sucumbir à impermanência a que estão destinadas
todas as coisas. No segundo caso, não havendo possibilidade de garantir um
sentido de unidade em que a existência do indivíduo possa estear-se, ele vê-se
arrastado também pela impermanência de todas as coisas. Resta-lhe inventar um
mundo-verdade, um mundo que transcenda ao mundo deveniente. Mas, ao inventar
esse mundo-verdade, o homem condena o mundo do devir; toma-o como uma ilusão.
Mas desde que o homem compreenda
que este mundo somente foi edificado para responder às necessidades
psicológicas e que este não tem absolutamente qualquer fundamento, nasce-lhe
uma forma suprema de niilismo, forma que abarca a negação de um mundo
metafísico – que exclui a crença num mundo-verdadeiro. Por este ângulo, admite
a realidade do devir, como única
realidade, proibindo qualquer desvio que leve a um além e a falsas
divindades e não tolera mais este mundo embora não queira negá-lo.[13]
(ênfase no original).
A leitura do excerto acima autoriza-nos
dizer que o niilismo decorre do reconhecimento pelo homem de que o mundo
metafísico ou o mundo-verdade é criação sua. Ademais, o homem reconhece que o
criou para atender a necessidade que ele tem de crer que o sentido do mundo
esteja assegurado por um “em si”. No entanto, como procuramos mostrar, o
niilismo é uma experiência que não foi levada até as suas últimas
consequências. O homem que reconhece que o mundo-verdade não existe, que sua
criação atende a necessidades psicológicas suas, não renuncia completamente ao
mundo do em-si e dos deuses.
As categorias de “finalidade”,
“unidade” e “ser” responderam, na tradição, pelo anseio de conferir ao mundo
fundamento. O mundo passou a ser concebido como uma ordem (cosmo), uma
totalidade dotada de sentido que era mantida na postulação dessas categorias.
Assim, “finalidade”, “unidade” e “ser” constituíram instâncias metafísicas
doadoras de sentido ao mundo; a partir delas, o mundo recebia valor. Com o
niilismo, suprime-se a estrutura metafísica que assegurava uma ordem de sentido
ao mundo. Suprimida essa estrutura metafísica, o mundo deixa de ter valor.
Ademais, passou-se a crer que o mundo não pode mais ser interpretado; e
ignorou-se que o niilismo só levou à derrocada uma interpretação que se
conservou hegemônica durante muito tempo, na história do ocidente. Segundo
Nietzsche, da desvalorização daquelas categorias não se segue que estejamos
justificados para desvalorizar o mundo. É preciso reconhecer que o niilismo
deve sua causa à crença naquelas categorias. O niilismo, para Nietzsche,
repousa em nosso inveterado hábito de medir o valor do mundo “de acordo com as
categorias que se relacionam com um mundo fictício”[14].
A experiência do niilismo, antes de nos conduzir ao abandono num universo que
não mais se importa conosco, antes de nos arrastar para o desespero, deve ser
uma experiência vivenciada como a grande aurora, o instante decisivo em que nos
apercebemos de que nos habituamos a ver os valores como imanentes à essência das
coisas. Julgamos, falsamente, que as coisas possuem, em si mesmas, um valor.
Acompanhemos o que nos escreve Nietzsche a seguir:
Conclusão: todos os valores pelos
quais experimentamos até o presente tornar o mundo avaliável para nós, e pelos
quais temo-lo precisamente desvalorizado desde que se mostraram inaplicáveis –
sob o ângulo psicológico, todos estes valores são resultados de certas
perspectivas de utilidade, estabelecidas para manter e aumentar as criações de
domínio, mas falsamente projetadas na essência
das coisas.[15] (ênfase
nossa).
Tendo em conta o excerto acima,
categorias como “finalidade”, “unidade” e “ser”, com as quais procuramos
valorar o mundo, foram produzidas por princípios interpretativos que se
tornaram hegemônicos (que assumiram a forma de perspectiva) com o propósito de assegurar
a manutenção e o aumento do domínio de uma vontade de poder criadora. Desde que
elas se demonstraram inúteis, o homem passou a experimentar uma perda de mundo.
Com a experiência niilista, o homem descobriu que aqueles valores não existem
como propriedades inerentes à constituição do mundo, mas foram projetadas por
ele como se fossem propriedades essenciais do mundo. Tal descoberta leva o
homem a condenar o mundo. No entanto, Nietzsche parece querer argumentar que o
caráter desmitificador da experiência niilista, na medida em que torna o mundo
infinito novamente, a saber, na medida em que descerra para o homem um novo
horizonte de possibilidades de interpretação do mundo, aponta, por isso mesmo,
o caminho a ser trilhado pelo homem para que possa superá-la.
O que o homem experiencia com a
desvalorização dos valores que até então sustentavam a sua existência é
caracterizado por Nietzsche como uma forma de niilismo radical: “(...) a convicção da absoluta insustentabilidade
da existência, quando se refere aos valores superiores que se aceitam;
acrescente-se ainda o sabermos que não temos o menor direito de fixar um além
ou um “em si” das coisas.”[16].
Para Nietzsche, o que explica nossa convicção absoluta da ausência de sentido
da vida é nossa crença na moral: “enquanto cremos na moral, condenamos a
existência”[17]. Nossa
fé na moral suprime-nos a vontade de viver. Enquanto continuamos a acreditar em
que a existência não se sustenta sem um fundamento moral, a existência
continuará a ser condenada. O pessimismo que daí se segue leva o homem a
experienciar o niilismo extremo: não há mais sentido possível, não há mais
valor que anime a vontade de viver. Toda a história da moral ocidental, para
Nietzsche, se desenvolveu como negação da vida como vontade de poder, ou ainda,
como falsificação da vida.
Nietzsche acredita que o niilismo ativo
deve ser encorajado. É justamente essa forma de niilismo que deve estar a
serviço do combate ao niilismo passivo ou fatigado. Como o niilismo passivo ou
fatigado é um sintoma de uma longa experiência moral negadora da vida, cumpre
servir-se do niilismo ativo como meio para a destruição dos valores superiores
que levaram o animal humano a adoecer. Mas – sublinhe-se isto – o niilismo
ativo constitui apenas um estágio da radicalidade do processo de transvaloração
de todos os valores. Nietzsche não se satisfaz apenas com a demolição dos
ídolos da tradição, dos valores superiores; em todo caso, é preciso pavimentar
o caminho para o advento do além-do-homem.
[1]
Este texto é parte de um trabalho acadêmico com o qual obtive, ao final do
curso, a nota máxima.
[2] Vontade
de Potência, Niilismo, § 2.
[3] A
Gaia Ciência, Livro V, § 343.
[4] Primeira
dissertação, § 12.
[5] É preciso notar que, para Nietzsche, o
budismo e o cristianismo são religiões de declínio, são movimentos niilistas
(Nietzsche, 2011, § 135-136). Mas, em O
Anticristo, ele reconhecerá que, em certos aspectos, o budismo mais ocupado
da vida que o cristianismo. Por exemplo, Nietzsche ressaltará que o budismo é
mais realista que o cristianismo; que o budismo coloca objetivamente os
problemas da vida, que soube suprimir o conceito de “deus”, que não luta contra
o pecado, mas contra o sofrimento, que, em suma, “ele se encontra além do bem e
do mal” (Nietzsche, 2012, § 20 et.seq.).
[6] O nirvana
é o estado em que todo o carma e a lei dos renascimentos são interrompidos. O
nirvana é uma experiência que deve se dar no aqui e agora, no mundo, portanto.
Quando o budista atinge o nirvana, consegue extinguir o desejo. Mas a forma
última e definitiva do nirvana só se alcança com a morte, que é a extinção
absoluta. Alguns budistas chamam-na de parinirvana.
(Gaarder, Jostein et.al. O livro das
religiões. Trad. Isa Mara Lando. Companhia das Letras: São Paulo, 2005).
[7] Nietzsche, op.cit, loc.cit.
[8] Nietzsche, 2011. Crítica do niilismo, § 5.
[9] Ibid., p. 141.
[10]
Ibid., p. 142.
[11] Ibid.
[12]
Ibid., p. 143.
[13]
Ibid., p. 143-144.
[14]
Ibid., p. 145.
[15] Ibid.
[16]
Ibid., p. 146
[17] Ibid.
_________________________________________________________
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRAGA, Antonio
C. Nietzsche: o filósofo do niilismo e
do eterno retorno. São Paulo: Lafonte, 2011.
BRUCKNER,
Pascal. A Euforia Perpétua: ensaio sobre
o dever de felicidade. Trad. Rejane Janowitzer. São Paulo: Difel, 2010.
CABRAL, Alexandre Marques. Niilismo e Hierofania: Nietzsche, Heidegger
e a tradição cristã – Nietzsche, cristianismo e o deus não-cristão, vol. 1.
Rio de Janeiro: Mauad, Faperj, 2014.
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São
Paulo: Loyola, 2000.
COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.
129.
FOGEL, GILVAN. O que é Filosofia? – Filosofia como
exercício de finitude. Aparecida, SP: Ideia e Letras, 2009.
GAARDER,
Jostein. et.al. O livro das religiões. Trad.
Isa Maro lando. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
LYTOARD, J.F. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro:
José Olimpyo, 2008.
NIETZSCHE,
Friedrich. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
________________
Vontade de Potência. Trad. Mario
Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
________________
Além do Bem e do Mal. Trad. Mario
Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
________________
Assim Falou Zaratustra. Trad. Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
________________
Aurora. Trad. Antonio Carlos Braga.
São Paulo: Escala, 2013.
_________________
Ecce Homo. Trad. Antonio Carlos
Braga. São Paulo: Escala, 2013.
_________________
O Anticristo. Trad. Renato Zwick.
Porto Alegre, RS: L&PM, 2012.
_________________
A Gaia Ciência. Trad. Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
________________ Crepúsculo dos Ídolos. Trad. Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
_________________
Humano Demasiado Humano. Trad. Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Martins Fontes,
2005.
ROSSET, Clément. A
Anti-natureza: elementos para uma filosofia trágica. Trad. Getulio Puell.
Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.
ROSSET, Clément. Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.
SOUSA, Mauro
A. A morte de Deus em Nietzsche: fim da metafísica? In: Maraschin, Jaci; Pires,
Frederico Pieper (Orgs.). Teologia e
Pós-modernidade: novas perspectivas em teologia e filosofia da religião.
São Paulo: Fonte Editorial, 2008. p. 61-90.
VOLPI, Franco. O Niilismo. São Paulo: Edições Loyola,
1999.