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quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Quando considero a duração mínima da minha vida, absorvida pela eternidade precedente e seguinte, o espaço diminuto que ocupo, e mesmo o que vejo, abismado na infinita imensidade dos espaços que ignoro e me ignoram, assusto-me e assombro-me de me ver aqui e não lá. Quem me pôs aqui? Por ordem de quem me foram destinados este lugar e este espaço? (Blaise Pascal)

                         
                                 

                                      Nietzsche e a acosmia
                           Gnosticismo e niilismo moderno[1]
                            A resposta nietzschiana ao problema da acosmia

Cumpre-nos, nesta exposição, dar a saber de que modo Nietzsche resolveu o problema, prefigurado na tradição niilista do gnosticismo e radicalizado no niilismo moderno, que consiste no estado de alienação do homem em face do mundo. Essa alienação se expressa na forma de acosmia: o mundo é destituído de um horizonte realizador do homem. O homem não encontra medida de realização de si no universo. A acosmia revela a diluição da relação integrativa do homem com o cosmo. O homem não se percebe mais como uma parte harmoniosamente relacionada com o todo cósmico. Na tradição gnóstica, é a concepção grega do cosmo, em cujo seio o homem encontrava seu justo lugar e que servia de modelo para a sua conduta, que dá lugar à concepção de um mundo que é cárcere, um mundo onde não é possível ao homem nem conhecimento de si nem de Deus.
Com vistas a tornar mais clara a condição de estranhamento entre o homem e o mundo, segundo o modelo hermenêutico gnóstico, impõe-se-nos apresentar, em linhas gerais, a dimensão teológica da doutrina gnóstica. Embora tenham sido variadas as formas do gnosticismo, tal como diversos foram os cristianismos primitivos, pode-se dizer que os gnósticos acreditavam que nós não fomos criados para viver neste mundo. Na verdade, nós fomos aprisionados aqui pela divindade ignorante e inferior que o criou. Para escapar a essa prisão terrena, os gnósticos propunham que devemos conhecer quem somos, de onde viemos e o que nos tornamos. Segundo esses cristãos, nós viemos do reino de Deus. Os grupos gnósticos apelavam para a necessidade do autoconhecimento como um meio de alcançar a verdade. A salvação só se alcançaria pelo conhecimento (gnose), que, no entanto, era secreto e reservado a uma elite espiritual. A doutrina gnóstica se assenta sobre um dualismo entre o ser humano e o mundo e um dualismo entre o mundo e Deus. A primeira forma de dualismo acena com a ideia de que o homem não é mais uma parte em harmonia com o todo, senão um prisioneiro numa totalidade que não mais lhe pode servir de norma para seu comportamento. Na segunda forma de dualismo, por sua vez, sublinha-se a ideia de que aquele mundo, que é a contraparte de Deus, é o mundo material em que vivemos, mundo considerado um lugar mau, manchado pela corrupção, pelo sofrimento, pois que criado por um Deus inferior e ignorante. O Deus verdadeiro, revelado na pessoa de Cristo, é um Deus transmundano, jamais revelado por esse mundo material corrompido. Trata-se de um Deus desconhecido, porque não revelado pelo mundo; totalmente outro, porque jamais reconhecido por analogia com o mundo. Não obstante, os gnósticos acreditavam que detinham o conhecimento que lhes permitiria retornar ao reino divino do qual provieram e no qual viverão na presença de Deus. Cristo era, pois, o emissário divino desse reino situado no além-mundo.
Nesta breve apresentação da metafísica gnóstica, há um aspecto que nos interessa sublinhar, dada a sua importância para a compreensão da resposta nietzschiana ao problema supramencionado no limiar deste texto. O mundo gnóstico é hostil e demonizado. É um mundo desdivinizado, do qual é necessário se libertar. Esse mundo deve ser vencido, negado pela gnose que torna possível o acesso a uma transcendência que se apresenta como o horizonte antagônico e de salvação.  Não menos importante é notar que o niilismo gnóstico ainda se baseia na dicotomia metafísica entre o sensível e o suprassensível; situação radicalmente diversa é a do niilismo moderno. Esta forma de niilismo se caracteriza por uma condição desesperadora, a qual se expressa por um profundo desamparo do homem em face de uma natureza indiferente. O homem, em sua finitude e contingência, se vê só, pois que somente ele, e não a natureza, se preocupa. No horizonte deste homem abandonado na imensidão de um universo indiferente, não há senão a angustiante certeza de sua morte inevitável e o temor que acompanha a consciência da ausência de qualquer sentido objetivo para seus projetos.
Doravante, ocupar-nos-emos da apresentação da resposta nietzschiana ao problema suposto tanto no niilismo gnóstico quanto no niilismo moderno. Nietzsche é sobremaneira reconhecido como o filósofo que anunciou e tematizou o acontecimento histórico da “morte de Deus”, bem como o filósofo que se dedicou à elaboração de uma filosofia afirmadora da vida. Começaremos por elucidar o significado do primeiro grande momento da resposta nietzschiana que é o do anúncio da morte de Deus. Dados os limites desta exposição, limitar-nos-emos a notar que o acontecimento da morte de Deus abre um novo horizonte hermenêutico à luz do qual é possível ao homem existir segundo outros valores. A morte de Deus significa a derrocada da metafísica tradicional, a qual, assentada na dicotomia entre o sensível e o suprassensível, atribuía ao em-si um valor absoluto e norteador da existência e do conhecimento humanos. Com a morte de Deus, a existência humana perde seu esteio: descerra-se a impossibilidade de ter acesso ao absoluto; o em-si não serve mais de fundamento para os valores que, até então, dotavam de sentido a existência humana.
O acontecimento da morte de Deus, uma vez representando a dissolução da normatividade dos conceitos metafísicos, os quais se associavam aos sentidos existenciais, acentua o aspecto negativo do niilismo. No entanto, na medida em que o acontecimento da morte de Deus desvela o vínculo entre metafísica e constituição dos valores supremos, na medida em que nos patenteia que o em-si, na história do Ocidente, sempre representou o horizonte a partir do qual a existência humana se dotava de sentido, o niilismo que dele resulta passa a exibir uma dimensão positiva, porquanto “descerra um novo horizonte de interpretação do mundo”[2]. A transvaloração de todos os valores significa tanto a dissolução da metafísica quanto a abertura de um novo horizonte hermenêutico que fornece um novo princípio de refundamentação dos valores.
Com Nietzsche, cai por terra a dicotomia metafísica tradicional entre o sensível e o suprassensível. Não só não faz mais sentido referir-se a uma realidade suprassensível, como também à sua contraparte, o sensível, que derivava seu sentido daquela dicotomia. Não sendo mais seccionada a vida, ela mesma se revela como Vontade de Poder.
Escusa alongar-nos sobre a extensão da significatividade da Vontade de Poder; uma descrição acurada dessa extensão escapa aos nossos propósitos. Interessa-nos, contudo, salientar o modo como a Vontade de Poder dá corpo a uma filosofia que visa à afirmação do curso dionisíaco da vida. Dizer que a filosofia nietzschiana é uma filosofia da afirmação da vida é dizer que o que se afirma é um modo específico do viver. A vida não é objeto de afirmação. Há modos de conformação da vida que afirmam um modo específico do viver. Daí resulta que o amor fati é amar o modo como o mundo se destina, é amar o modo de ser do destinar-se da própria vida.
No tocante à Vontade de Poder, importa-nos distinguir nela dois sentidos: a Vontade de Poder ascendente e a Vontade de Poder decadente. Na primeira, o devir é abundância de ser: quanto mais devir, mais ser. O devir é o lugar da expansão da singularidade. Na segunda, por outro lado, o devir alija das formações a unidade. Nietzsche pensou a vida como Vontade de Poder, a qual se caracteriza pela pluralidade, pelo devir e pela unidade. A vida, enquanto unidade, resulta dos elementos relacionais. Nietzsche não pensou em termos dicotômicos a diversidade e a unidade, mas sustentou que a unidade não é possível senão na diversidade: quanto mais diversidade produz a unidade, mais plena é a vida. A unidade se perpetua por causa do devir. A Vontade de Poder conjuga o uno com o plural.
Tendo em conta os dois sentidos da Vontade de Poder, discriminados no parágrafo anterior, convém esclarecer que, por Vontade, Nietzsche entende o caráter autoafirmativo da força; e por Poder, entende “fazer”, “produzir”. Daí se segue que a Vontade de Poder é relação entre forças que produzem modos de ser específicos, que Nietzsche chamará “tipos”. Um tipo é o modo de ser de um arranjo vital. Todo modo de ser é singularizado; e a Vontade de Poder assumirá sentidos distintos segundo o tipo vital a que ela se relaciona. Dois tipos vitais designados por Nietzsche como Dionísio e o Crucificado evidenciam modos de configuração distintos da vida.
Dionísio, porque é a imagem religiosa da Vontade de Poder, que aparece a um tipo de vida que é afirmador (o tipo pagão), torna possível transformar o devir, o sofrimento, a aniquilação em mais ser. Nietzsche lembra que o pagão afirma a vida no sofrimento; para ele, o sofrimento não é motivo para a acusação da vida. Ao contrário, para o tipo crucificado, o sofrimento é motivo para acusação da vida. Para o crucificado, a dor é funcional; o lugar do “para quê” situa-se além da vida. Para o tipo dionisíaco, todavia, a vida é santa demais para necessitar de uma outra instância (o em si, o suprassensível) que a justifique. Para esse tipo, o sofrimento apresenta-se como promessa de mais vida.
O tipo crucificado vê o devir como corrupção; o devir corrói a vida. Para o tipo dionisíaco, por outro lado, o devir carreia fecundidade; o devir gera abundância: quanto mais abundância mais intensificação de vida. Para o tipo forte, o devir torna-se potencialização de ser. Se a vida é desfazimento, para o tipo dionisíaco, a dor de se refazer serve para acrescentar algo em seu ser. Dionísio torna possível a divinização da vida, pois evidencia o processo de aparição do divino segundo o processo de acréscimo de ser. Dionísio redime a finitude, ao passo que o Crucificado a acusa.
Um aspecto da Vontade de Poder que não se poderia silenciar é que ela, na medida em que é relações de forças, revela também que essas forças constituem quem somos. Quanto mais forças atuarem, mais a vida se torna coesa. A unidade da Vontade é resultante do modo como se articulam as forças. Cada força é, em si, uma Vontade de Poder; e o meu ser é formado por milhares de forças, isto é, minha subjetividade é um amálgama de forças.
 No que tange à relação eu-mundo, Nietzsche nos faz entender que tudo é força e que as forças integram a singularidade que eu sou. A Vontade de Poder permite reinterpretar a relação entre o eu e o mundo, que, no horizonte hermenêutico gnóstico, era caracterizada pela alienação do homem relativamente ao mundo, de modo tal, que o eu se constitui com o mundo; o mundo integra o eu. O meu corpo é integrado por muitas forças. É da interação das forças que se produz o corpo, que é unidade vital, que é arranjo. Vida é, para Nietzsche, ganhar corpo, é corporalizar. A unidade desse arranjo, que é a vida, não se realiza senão no devir. O devir é o lugar de reintegração: não só do homem ao mundo, mas também do ser no próprio devir.
Por fim, não se pode perder de vista que, na interpretação de Nietzsche, todo Deus metafísico é produto de uma vida degenerada, ao mesmo tempo em que fomenta uma vida degenerada. Disso não se segue que não possamos experimentar o divino. A experiência do divino, no entanto, não supõe a oposição entre temporalidade e eternidade. O divino nietzschiano, que é Dionísio, deve nos reconduzir à temporalidade. E o lugar em que se dá Dionísio é o Eterno Retorno, que é a reinscrição do eterno no tempo. No Eterno Retorno, tudo retorna identicamente, e o instante se apresenta como o lugar da reconciliação da temporalidade com a nossa plenitude. O instante é, assim, o lugar de reintegração da totalidade temporal; é também o lugar de reintegração do que eu sou, isto é, o meu passado com a minha tarefa, que é o futuro.
Poder-se-ia dizer, a título de conclusão, que o gnóstico, para Nietzsche, se identificaria com o tipo decadente, que precisa negar o devir para preservar a unidade. Para o gnóstico, o devir é corrupção. O gnosticismo necessita do absoluto para manter o finito. Sua doutrina se sustenta sob o postulado da desarticulação das partes com o todo (décadence): o homem, o mundo e Deus são grandezas contrárias. Jamais há relação de proporcionalidade com o todo.





[1] Trabalho elaborado como requisito para a aprovação na disciplina Filosofia da Religião no curso de Filosofia da UERJ. Este texto foi avaliado com a nota máxima.
[2] CABRAL, Alexandre Marques. Niilismo e Hierofania: Nietzsche, Heidegger e a tradição cristã – Nietzsche, cristianismo e o deus não-cristão, vol. 1. Rio de Janeiro: Mauad, Faperj, 2014, p. 129.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Evangelhos gnósticos


                             


                           O gnosticismo cristão

Precisei tornar-me ateu para interessar-me pelo estudo de religiões. Tornando-me ateu, passei a me interessar, particularmente, pelo aprendizado e compreensão da história do cristianismo, religião cujos preceitos e valores entraram a fazer parte de minha formação socioeducacional desde muito cedo. E os caminhos ateístas me levaram a ler livros de teologia cristã.  Hoje, sei mais sobre o cristianismo do que sabia no tempo em que eu era um cristão católico. Não há por que estranhar essa minha postura, já que toda rejeição a um sistema de ideias, valores e crenças que não nos parece mais satisfatório para explicar o mundo e dar sentido à vida deve assentar num exame que demonstre seus pontos problemáticos. Em outras palavras, não me bastava declarar-me ateu; sentia a necessidade de justificar meu ateísmo e sustentá-lo com base num esclarecimento sobre a fé que havia abandonado, um esclarecimento que fosse superior ao saber que qualquer cristão comum declara ter sobre a doutrina que subsidia sua fé. Acredito que um ateu que não conseguiu acumular os conhecimentos necessários na base dos quais possa desenvolver, sempre que necessário, uma argumentação sólida e eficaz contra o proselitismo dos cristãos, provavelmente, será visto como um problemático (no sentido pejorativo) ou como uma “ovelha desgarrada” em favor de quem a comiseração cristã se encarregará de fazer orações. Assim, aos olhos de cristãos piedosos e redentores, um ateu que necessita de orações é um indivíduo que se afastou de uma suposta verdade inquestionável e que precisa voltar a reconhecê-la, caso pretenda gozar da salvação.
Como eu pretendesse responder aos que, por ventura, me considerassem uma pessoa desditosa, para quem a vida, tendo abandonado a fé, não faria mais sentido, cuidei que proveitoso seria aprender sobre a história e os dogmas do sistema doutrinário a que meu espírito não podia mais submeter-se.
Somente o conhecimento pode combater a fé. Quem tem fé tem tão-só confiança em que seja verdadeiro o sistema de ideias e crenças que a sustenta, mas não detém o conhecimento do valor de verdade desse sistema. Por exemplo, esse sistema pode incluir o dogma segundo o qual Jesus Cristo reunia em si mesmo as naturezas humana e divina. Que Jesus fosse humano não se discute, mas que tenha sido uma encarnação de Deus, ninguém pode saber. Isso é matéria para a fé, ou seja, quem tem fé confia em que seja verdadeiro que Jesus Cristo tinha natureza divina. Diga-se, de passagem, uma visão que não encontrou unanimidade entre os primeiros seguidores de Jesus nos primórdios da era cristã. Houve, posteriormente, historiadores bíblicos que argumentaram no sentido de que as Escrituras não permitem sustentar tal crença. No entanto, essa foi a crença que se tornou ortodoxa.
Defenderei, aqui, a ideia de que a crítica à fé pode ser desenvolvida percorrendo-se dois caminhos que não são, necessariamente, estanques: um dos quais nos leva a examinar as Escrituras, a história de sua fabricação e as condições socio-históricas e ideológicas nas quais se desenvolveu o cristianismo (termo que engloba um espectro grande de variedades, hoje, e na Antiguidade); o outro nos leva a examinar, por meio de um confronto, as representações e afirmações sobre Deus com as nossas experiências de mundo, tendo em conta o modo como o mundo funciona, como a realidade é (e não como desejamos que fosse).
Ilustrarei como podemos percorrer esses dois caminhos para fazer a crítica. Emprego a palavra crítica no sentido rigorosamente filosófico, a saber, um exame racional pormenorizado das coisas, sem preconceitos ou prejulgamento. Quando criticamos, por exemplo, uma ideia, um costume, uma obra de arte, fazemos deles uma avaliação detalhada.
Começo por uma constatação que, de imediato, me surpreendeu, não sem agrado. Lendo o livro Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi? (2010), de Bart. D. Ehrman, se me deparou a seguinte passagem, que se segue ao subtítulo QUEM ESCREVEU OS EVANGELHOS? Convém reter que, a essa altura, Ehrman já havia tratado das contradições existentes entre os quatro evangelhos e já havia nos contado sobre suas experiências no Seminário Teológico de Princenton (instituto onde sua visão sobre a Bíblia mudou drasticamente). Leiamos o trecho abaixo:

“Embora evidentemente não seja o tipo de coisas que os pastores costumem contar às congregações, há mais de um século existe um forte consenso de que muitos dos livros do Novo Testamento não foram escritos pelas pessoas cujos nomes estão ligados a elas. Mas, se isso é verdade, quem então os escreveu?”

(p. 118)
(ênfase no original)


Ehrman desenvolverá uma argumentação lúcida que visa a nos fazer entender as razões por que se pode afirmar com certeza que os quatro evangelhos que constam do cânone e que chegaram até nós não foram escritos pelas pessoas cujos nomes figuram em suas páginas. O grande número de contradições entre os escritos evangélicos indicam que seus autores não foram testemunhas oculares dos acontecimentos relatados. Citem-se alguns exemplos de inconsistências, referidos por Ehrman. Por exemplo, em Mateus, conta-se que Jesus foi concebido por uma virgem:

23. Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho, e chamá-lo-ão pelo nome de EMANUEL, que traduzido é: Deus conosco. (Mt. 1: 23)

Em João, não há referência à crença em que Jesus teria nascido de uma virgem. Em João, lemos o seguinte:

1. No princípio, era o Verbo; e o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus.
(Jo 1: 1)

O Verbo a que se refere o autor de João é Jesus.
Segundo Ehrman, em Mateus, não há qualquer referência à natureza divina de Jesus. Mateus simplesmente silencia a respeito da crença de que Jesus era Deus. Em João, ao contrário, Jesus se identifica com Deus. Em Mateus, Jesus anuncia a bem-aventurança futura no Reino de Deus; em João, Jesus prega sobre si mesmo, destacando sua divindade.
É interessante notar que, no catolicismo, os dois dogmas são aceitos: o do nascimento de Jesus de uma virgem e o de sua natureza divina. Buscou-se, assim, conciliar as duas visões diferentes de dois autores que não foram discípulos de Jesus.
Não tenho a intenção de apresentar todas as evidências fornecidas por Ehrman para sustentar a afirmação de que nenhum dos evangelhos que compõem a Bíblia cristã foi escrito por discípulos que conviveram com Jesus. Convido o leitor a verificar por si mesmo. Compreendamos, no entanto, a razão por que se disseminou a crença de que os autores dos evangelhos foram realmente os apóstolos de Jesus? Leiamos o que nos ensina Ehrman abaixo:

“Por que surgiu a tradição de que esses livros foram escritos por apóstolos e por companheiros dos apóstolos? Em parte de modo a garantir aos leitores que eles foram escritos por testemunhas oculares e companheiros das testemunhas oculares. Uma testemunha ocular merece a confiança de que iria contar a verdade sobre o que realmente aconteceu na vida de Jesus. Mas a realidade é que não é possível confiar em que as testemunhas ofereçam relatos historicamente precisos. Elas nunca mereceram confiança e ainda não merecem. Se testemunhas oculares sempre fizessem relatos historicamente precisos, não teríamos a necessidade de tribunais. Quando precisássemos descobrir o que realmente aconteceu quando um crime foi cometido, bastaria perguntar a alguém. Casos reais demandam muitas testemunhas, porque seus depoimentos diferem entre si. Se duas testemunhas em um tribunal divergissem tanto quanto Mateus e João, imagine como seria difícil chegar a um veredicto”.

(p. 119)


Os quatro evangelhos foram escritos anonimamente e os títulos que trazem estampados (p. ex. “o Evangelho segundo Lucas”) foram acrescentados por escribas, posteriormente à produção dos textos. A intenção era esclarecer o público sobre quem se acreditava ser seus autores. Ehrman argumenta que a própria expressão “segundo x” indica que não se trata do próprio autor, já que o próprio autor não se referiria a si mesmo na terceira pessoa. Trata-se, na verdade, de um acréscimo feito por uma pessoa que acreditava que o autor foi um dos discípulos de Jesus. Foi assim que surgiram outros milhares de evangelhos que não entraram para o cânone, como os de Tomé, de Filipe, de Judas, etc.
Qualquer um que acompanhasse os argumentos aduzidos por Ehrman chegaria, com ele, à conclusão de que a Bíblia é um conjunto de livros produzido por mãos humanas; é uma obra humana, demasiado humana.
Todas as evidências apontam para o fato irrecusável, à luz da razão, de que a Bíblia não foi inspirada por Deus. A inspiração divina pressuporia uma exatidão dos textos, uma coerência entre as visões teológicas adotadas por seus autores, ou seja, uma unidade de concepções teológicas.
Na medida em que reconhecemos que Marcos, Mateus, João e Lucas não são os verdadeiros autores dos evangelhos, começamos aprender sobre um costume bastante comum na Antiguidade: o das fraudes literárias. Delas tratará Ehrman.
O segundo caminho, que tange ao confronto entre as representações de Deus, na memória discursiva teológico-cristã, e o modo como o mundo ou o universo funciona, pode ser percorrido pela reflexão sobre fatos  que invalidam a crença na existência de um Deus todo-poderoso e bom. Nesse domínio, devemos nos esforçar por desenvolver argumentos assentados na lógica. Assim, dada as premissas:

p.1 Deus criou o universo e tudo que nele há
p.2 Deus é todo-poderoso e bom

É forçoso que as levemos em conta quando confrontamos as representações de Deus como um criador e um ser todo-poderoso e bom com os fatos do mundo. Agora, vejamos os fatos. Sabemos que o Universo é indiferente ao nosso desejo de felicidade e segurança. Sabemos que os asteróides existem e que são potencialmente perigosos. Um deles dizimou os dinossauros. É razoável acreditar na possibilidade de que um asteróide, algum dia, possa colidir com a Terra, extinguindo todos os seres vivos que a habitam. Muitos asteróides passam pela Terra e muitos continuarão passando. A ideia de que o Universo foi criado por um designer inteligente e bom pressupõe que toda a sua criação tem de ter um propósito e que esse propósito seja benéfico. Isso é uma exigência lógica da própria definição desse ser. Ora, como podemos sustentar que os asteróides sejam alguma coisa produzida com um propósito bom? Na verdade, como podemos sustentar que há algum propósito subjacente à criação de um asteróide? Asteróides são objetos compostos pelos restos de outros grandes objetos, restantes da formação de planetas. Eles não existem para um propósito, muito menos para um propósito benéfico. Eles entram na formação de outros planetas e satélites e seu movimento se dá nas órbitas de Júpiter e Marte. Alguns eventualmente alargam suas órbitas, aproximando-se de planetas como a Terra e Vênus.
Ora, um Deus todo-poderoso, bom e onisciente reconheceria que tais objetos espaciais são ameaçadores e dotados de um imenso poder de destruição e, portanto, não os teria criado. Mas o fato é que os asteróides existem!

O desafio gnóstico

Imensa era a variedade de cristianismos primitivos. Prova disso surgiu quando da descoberta por trabalhadores agrícolas no Alto Egito de um punhado de livros produzidos por outros grupos cristãos cujos ensinamentos divergiam muito das visões proto-ortodoxas. A biblioteca de Nag Hammadi abrigava um vasto conjunto de livros, vários do quais encerravam concepções sobre Deus, sobre o mundo, sobre Cristo e sobre religião muito diferentes das perspectivas da proto-ortodoxia. Entre os livros, se acharam evangelhos supostamente escritos por Filipe e João, filhos de Zebedeu, por seu irmão Tiago, e seu irmão gêmeo Tomé. Também esses livros eram falsificados. A maioria dos textos se baseava na crença de que não havia apenas um Deus bom e grandioso que criou um mundo bom. Outros afirmavam, explicitamente, que o mundo não era bom e que resultava de um erro cósmico. Esse mundo fora criado por uma deidade inferior e ignorante, que era identificada, por engano, com o Deus verdadeiro e Todo-poderoso.
Os grupos gnósticos apelavam para a necessidade do “auto-conhecimento” como um meio de alcançar a verdade. A salvação só se alcançaria pelo conhecimento (gnose), que, no entanto, é secreto e reservado a uma elite espiritual. Conforme observa Ehrman,

“Documentos assim expressam o que muitos, ao longo da história, conhecem tão bem por experiência própria – os famintos, os doentes, os aleijados, os oprimidos, os abandonados, os inconsoláveis. Este mundo é miserável. Se há alguma esperança de libertação, não virá de dentro deste mundo por meios terrenos, como, por exemplo, melhorando o bem-estar social, colocando mais professores nas salas de aula ou investindo mais em recursos nacionais para a luta contra o terrorismo. Este mundo é um poço de ignorância e sofrimento, e a salvação não virá por meio de sua melhora, mas escapando-se completamente daqui”.

(p. 172)


Os gnósticos acreditavam que nós não fomos criados para viver neste mundo. Na verdade, nós fomos aprisionados aqui pela divindade ignorante e inferior que o criou. Para escapar a essa prisão terrena, os gnósticos propunham que devemos conhecer quem somos, de onde viemos e o que nos tornamos. Segundo esses cristãos, nós viemos do reino de Deus.
Não é correto entender o gnosticismo como um todo homogêneo. Havia diversas formas de gnosticismo, bem como há diversas formas de cristianismo.
Vejamos como os gnósticos e os escritores bíblicos pensavam o problema do mal no mundo. Para os primeiros, o mundo material é essencialmente mau. Tal mundo não fora criado por um Deus bom que declarou boas as coisas que criou, tal como se relata no Gênesis. É claro que judeus e cristãos não acreditavam ser o mundo perfeito, mas explicavam a origem do mal de modo diferente. Eles acreditavam que o mal provinha do pecado humano.
O gnosticismo é um movimento cristão que surgiu no interior do judaísmo, embora deste tenha divergido em alguns pontos da doutrina, sem, contudo, abandonar visões e matérias judaicas e cristãs. Particularmente interessante é a apresentação que faz Ehrman, em Os Evangelhos Perdidos (2008), da carta de Ptolomeu, um discípulo gnóstico de Valentim, a uma mulher, provavelmente, cristã proto-ortodoxa, nas quais encontramos as posições gnósticas sobre o Velho Testamento.
Antes de começar a apresentar o que tinha a dizer Ptolomeu sobre o Velho Testamento, convém lembrar que havia, naqueles tempos, uma ampla variedade de entendimentos do Velho Testamento entre os grupos cristãos. Os ebionitas acreditavam que o Velho Testamento era a sagrada Escritura em que se deveria basear o cânone cristão; para Marcião (de onde provém o termo “marcionitas”), o Velho Testamento recobria apenas as Escrituras do Deus judaico, não do Deus de Jesus; portanto, não poderiam ser incluídas no cânone.
Ptolomeu, a seu turno, concentra suas críticas nos cinco primeiros livros do Velho Testamento (conhecido como “Pentateuco”). Discordava de duas visões correntes acerca de quem estabeleceu a Lei. Os cristãos proto-ortodoxos defendiam que a Lei fora estabelecida pelo Deus, que é Pai. Alguns grupos gnósticos, ao contrário, entendiam que ela fora estabelecida pelo diabo. Para Ptolomeu, ambas as visões são equivocadas.
Ptolomeu – e nisso devemos reconhecer-lhe o bom-senso – entendia que o Velho Testamento não poderia ter sido inspirado por um Deus bom e perfeito, já que seus textos incluem uma série de recomendações imorais que não são dignas de um Deus bom e perfeito, como as dadas aos israelitas, que deveriam assassinar os canaanitas que viviam na terra que lhes fora prometida àqueles. Por outro lado, não poderia ter sido inspirado pelo diabo, já que inclui alguns preceitos bons e justos. Para mim, isso encaminha à conclusão de que o Velho Testamento foi produzido por homens, seres essencialmente contraditórios. Mas Ptolomeu não poderia, evidentemente, chegar a essa conclusão. Se nem era o Deus verdadeiro nem o diabo o autor, quem teria sido então?
Ptolomeu observa que os Dez Mandamentos devem ter sido estabelecidos pelo Deus verdadeiro. Todavia, há outras leis que não provieram desse Deus, no que Jesus parecia estar de acordo. Escreve-nos Ehrman a esse respeito o seguinte:

“(...) apenas algumas leis da Escritura vêm realmente de Deus. Porém, até mesmo essas leis divinas são de três tipos. Algumas são perfeitas, como os Dez Mandamentos, por exemplo. Outras são manchadas pela paixão humana. Por exemplo, a lei de retaliação, “olho por olho, dente por dente”, é “entrelaçada com injustiça”, porque, como destaca Ptolomeu, “aquele que é segundo em agir injustamente ainda assim age injustamente, diferindo apenas na ordem relativa na qual ele age, e cometendo o mesmo ato” (5:4). Terceiro, há algumas leis da Escritura que devem ser claramente interpretadas de forma simbólica, e não literal”.

(p. 196)



Uma dessas leis que devem ser interpretadas simbolicamente é a da circuncisão. Para Ptolomeu, ela não deveria ser interpretada como uma ordem para que retirassem o prepúcio dos meninos, mas como uma indicação da necessidade de destinar o coração a Deus. A lei do Sabá não tem nada que ver com abster-se de trabalhar no sétimo dia, mas de evitar a prática do mal; e a lei do jejum não é uma prescrição para que se passe fome, mas para que se abstenha de maus hábitos.
Com base no ensinamento de Jesus sobre o Velho Testamento, Ptolomeu conclui que a Lei implica um ser divino e justo, mas não um Deus único verdadeiro e perfeito. A esse ser divino e justo, Ptolomeu chamou o Demiurgo, ou seja, o criador do mundo. Esse Demiurgo é um intermediário entre o Deus verdadeiro, bom e perfeito e o Diabo.
Ptolomeu estava convencido de que seus ensinamentos foram baseados naquilo que Jesus ensinou. Declara que seguiu a “tradição apostólica”. Ehrman, concluirá, como se segue:

Claramente, aqui está um crente sincero, que entendia que suas visões eram aquelas dos apóstolos e, por meio deles, de Jesus. Isso se aplica não apenas às suas visões da Escritura, mas àquelas do mundo divino e do lugar do ser humano neste mundo. Aqui temos uma evidência adicional, como se fosse necessária mais alguma, de que os perdedores na batalha para estabelecer a “verdadeira” forma de Cristianismo lutavam para descobrir a verdade e a certeza de que seu entendimento da fé residia no ensinamento dos próprios apóstolos de Jesus. Se as visões de Ptolomeu não tivessem sido citadas nos escritos de Epifânio, que as explicou somente a fim de atacá-las, poderíamos nunca ter percebido como elas eram claras, apaixonadas e íntegras”.

(p. 197)

Não tive a intenção de ser exaustivo na apresentação do diversificado pensamento gnóstico cristão. Apoiarei minhas conclusões, com as quais, espero, o leitor esteja de acordo, sobre esse trecho final de Ehrman.
Em primeiro lugar, é imperioso notar que o autor usa aspas em “verdadeira”, ao se referir à forma vitoriosa do cristianismo. Isso nos leva a considerar o fato de que não temos razões para assegurar que a perspectiva vitoriosa, a proto-ortodoxa, representada por figuras como Irineu e Epifânio, seja tão verdadeira quanto a de Ptolomeu. Espero que fique claro que o que pesou para a vitória dos proto-ortodoxos, que estabeleceram num cânone definitivamente, suas visões teológicas, foi seu poder (político e ideológico). A visão “verdadeira” é a visão dos grupos vitoriosos. Já as perspectivas dos perdedores foram qualificadas de heréticas ou falsas. Quão diferente, podemos supor, seria o Cristianismo, hoje, caso as visões defendidas por Ptolomeu predominassem sobre aos dos pais da Igreja primitiva.
Em segundo lugar, o próprio fato de que havia grupos cristãos, muito variados entre si, que tinham concepções diferentes sobre quem era Jesus, sobre a natureza de Deus (ou dos deuses) e do mundo material prova que foi por razões históricas que hoje, os cristãos, modernos assumem determinadas representações de Deus como “verdadeiras” e, supostamente, reveladas pelo próprio Deus. Como vimos, grupos de cristãos tinham compreensões diferentes de Deus, do mundo, do problema do mal e do sofrimento, de Jesus, etc. Ora, um Deus que pretendesse se revelar deveria fazê-lo de modo a evitar equívocos e diversidade de opiniões, por vezes, contraditórias a seu respeito.
É interessante notar também que a posição dos gnósticos, em face do problema do mal no mundo, era mais confortável, teologicamente, do que a dos israelitas, que tinham de conviver com o desapontamento sempre que se apercebiam de que seu povo sofria, sem que Deus interviesse. É verdade que os autores de Isaías, Jeremias, Ezequiel, Oséias e Amós buscavam explicar o sofrimento do povo de Israel, que sofrera com invasões militares, dificuldades políticas e sociais, culpando o próprio povo pelo pecado contra Deus. O sofrimento era, assim, na perspectiva desses autores, resultado da punição de Deus. Mas como explicar a permanência do sofrimento, mesmo quando as pessoas se voltavam para Deus? Essa visão também falha, porque não explica o sofrimento dos justos e a prosperidade dos perversos.
Os gnósticos, a seu turno, explicariam que o sofrimento é inerente à matéria de que o mundo foi feito; é produto de uma criação imperfeita, feita por uma divindade ignorante. Não suponho que os gnósticos estivessem com a verdade. Tanto eles quanto os demais cristãos buscavam compreender o mundo a partir de suas visões ideológico-teológicas. Mas notem a coerência interna da visão gnóstica. Uma vez reconhecendo ser este mundo impregnado de dor e sofrimento, os gnósticos não poderiam sustentar a crença de que este mundo tenha sido criado por uma divindade boa e perfeita. A alternativa foi elaborar uma teologia que ensinasse existirem dois deuses: um bom e perfeito, que não criou o mundo; e uma divindade era imperfeita e ignorante, que teria criado o mundo e capturado os seres humanos, aprisionando-os. Os gnósticos tinham um mito através do qual contavam o surgimento tanto do Deus verdadeiro e perfeito quanto da divindade imperfeita. Nós, seres humanos, proviemos desse Deus bom e perfeito, que nos reserva um reino de paz e felicidade.
Quando nos esforçamos por estudar e compreender fatos como os que apontei, que dizem respeito à formação do cristianismo, um movimento religioso marcado, ainda hoje, pela diversidade de dogmas, crenças e rituais, somos levados a perceber como tudo que se escreveu e se disse sobre Deus, Jesus, e seus feitos grandiosos, são ficções históricas produzidas por homens socio-historicamente situados, que buscavam respostas às suas dificuldades, em sua época. Se alcançamos essa compreensão, entendemos o que quero dizer quando sugiro que busquemos o enraizamento de Deus na história. O Deus transcendente (que existe além do mundo e do universo e independente destes) é um Deus de que não se ouviria falar se não existissem seres humanos para produzir história. A compreensão da história do Deus judaico-cristão ajuda-nos a entender também as razões por que ele não é um Deus unanimemente reconhecido no mundo. Há povos, comunidades que o ignoram. E os povos que o desconheciam passaram a professar a fé nele por força da opressão de povos colonizadores. Novamente, a história vem em socorro da real forma como esse Deus “se revela”. Um Deus do qual se diz ser bom, justo, perfeito, amoroso e todo-poderoso não deveria depender da ação opressora e violenta de grupos humanos para se tornar conhecido por comunidades humanas que, por razões culturais e históricas, o ignoravam até então. Veja-se o caso dos povos indígenas do Brasil de 1500, aos quais os valores do cristianismo (e, evidentemente, a crença, até então inconcebível nos padrões culturais desses povos, no Deus cristão) foram impostos por força da ação dos colonizadores portugueses.
Um Deus que pretendesse se revelar como único e verdadeiro deveria cuidar para que outras tantas comunidades de homens não viessem a cultuar outros deuses ou mesmo a abandonar qualquer crença em deuses. Os ateus existem. Não se trata de um Deus que deveria se impor e obrigar a todos devoção a ele. De certo modo, foi o que aconteceu: não que Deus tenha se imposto, é claro, mas sim homens que impuseram suas crenças em um único Deus que julgavam verdadeiro. Um Deus tão grandioso quanto o Deus cristão simplesmente seria capaz de revelar-se, de modo que todos os homens se tornariam convencidos de que só há um único Deus e, certamente, o meio pelo qual se revelaria não poderia consistir em  “inspirar” Escrituras produzidas por seres humanos tão suscetíveis ao erro e à corrupção, tampouco por meio de apropriações de terras alheias e jugo de seus habitantes, mediante a força da opressão e violência.









domingo, 18 de novembro de 2012

O olhar gnóstico



O desafio gnóstico nos primórdios do cristianismo




Tenho de concordar com o filósofo Luiz Felipe Pondé, que não é ateu, mas também não demonstra ser religioso em algum sentido forte, ao objetar aos que supõem que as pessoas que acreditam em Deus são ignorantes. A experiência é suficiente para lançar por terra a validade dessa crença. Também não é verdade que ateus seriam, em algum sentido, mais “inteligentes”, crença também repudiada por Pondé, em cuja posição estou de acordo. Também, nesse tocante, a experiência é suficiente para dispensar demonstrações em favor da invalidade dessa crença. Para ele tanto quanto para mim, isso é uma bobagem, infelizmente, muitas vezes, largamente reproduzida.
Tendo estabelecido minha posição sobre a correlação entre ignorância e teísmo, de um lado; e esclarecimento e ateísmo, de outro, reelaboro-a de outro modo. Desde já, fique claro que me situo na tradição dos três grandes monoteísmos (judaísmo, cristianismo, islamismo), embora me concentre na tradição judaico-cristã. A imersão nas vivências religiosas, a adesão às práticas doutrinárias, à receptividade à ideologia teológica por meio da oratória de padres ou pastores, durante cultos ou missas, moldam a consciência de uma coletividade, de modo a desenvolver atitudes, ideias e hábitos que acabam por inibir cada um de seus membros de buscar instruir-se sobre as bases históricas de sua fé. O poder da doutrinação é de tal modo tão penetrante, que as pessoas mais suscetíveis a ele preferem, talvez por receio de deparar-se com a fragilidade das fundações de sua fé, manter-se distante dos discursos polêmicos. Polemizar a doutrina é chocar-se contra a própria doutrina. Por definição, uma doutrina não admite polêmica.
No tempo em que ainda frequentava a igreja e em que conservava minha crença na existência de Deus, me contentava com o sentimento de abstração de Deus de toda retórica da comunidade eclesiástica que falava por detrás da voz do padre, para cultuá-lo na intimidade de minha imaginação (tratava-se de uma fé intimista). Conquanto tivesse crescido numa tradição católica e tivesse freqüentado missas católicas, recusava-me a me definir como católico, preferindo considerar-me como cristão ou como alguém que cria em Deus.
Era uma crença, certamente, egoísta, como o é, em muitos casos, o culto a Deus. Era egoísta, porque, acreditando ter Deus atendido a um pedido e tendo-lhe manifestado minha gratidão, sequer cogitava da possibilidade do insucesso alheio ao solicitar a Deus algum benefício. Na prática, me interessava o fato de eu, por exemplo, ter sobrevivido a um sério problema de saúde tão-logo eu nascera, sem levar em conta a possibilidade de outras crianças em condição semelhante não ter sido da mesma forma agraciada. O problema do mal ou do sofrimento no mundo, naquela época, raramente visitava a minha consciência. Digo “o problema”, porque é claro que estamos expostos ao mal e ao sofrimento cotidianamente, quer diretamente, quer indiretamente, quando assistimos aos noticiários pela televisão. Lamentava o fato de um furacão arrasar uma cidade e matar um grande número de pessoas, mas, como para todos os que creem na existência de um Deus que é bom, que é todo-poderoso, justo e providente, não via naquela ocorrência um problema sério para a minha convicção de fé. Não me ocorria fazer uma conexão lógica entre ‘o fato do sofrimento, da dor, da morte provocado pela passagem do furacão’ e a ‘crença na existência de tal Deus’.
Pondé diz ser o ateísmo uma hipótese fácil a que qualquer criança, com um pouco mais de discernimento, pode chegar. Estou agora a cogitar dessa visão... O que terá querido dizer o filósofo ao considerar o ateísmo uma ‘hipótese fácil’? Penso que a razão esteja em demandar pouca ou nenhuma teorização filosófica. Se é assim, pode-se concluir que, para Pondé, a teologia cristã ou o teísmo é mais intelectualmente desafiador. Em outras palavras, a hipótese da existência de Deus seria mais estimulante ao desenvolvimento do pensamento reflexivo do que a hipótese ateísta - mais fácil e menos fértil para o pensamento.
Não posso acompanhar o filósofo nesse tocante. A se considerar o fato de que a aceitação dos postulados ateístas pelo teísta mais ferrenho é extremamente difícil, dado o poder de penetração doutrinário a que me referi, claro me parece que a empresa ateísta constitui um desafio nada desprezível para o pensamento humano. Se, por um lado, num sentido epistemológico, o ateísmo parece ser uma ‘hipótese fácil’, por outro lado, Deus não deixa de sê-lo também. Deus é uma hipótese simples para explicar a origem da vida e do universo; é uma hipótese simples com que se mascaram as razões verdadeiras por que certas coisas acontecem (por exemplo, por que nos curamos de um câncer). Trata-se de se valer do conceito de Deus como um mecanismo ad hoc, ou como uma hipótese explicativa para as lacunas de nossa ignorância sobre o mundo.
Se a hipótese do ateísmo é fácil ou óbvia, por que bilhões de pessoas no mundo são incapazes de aceitá-la, de chegar a ela? Parece ser razoável dizer que uma criança não acreditará em Deus se não for exposta a uma tradição discursiva que tenha Deus como centro de suas preocupações. Para um religioso, no entanto, que viveu grande parte de sua vida acreditando em Deus, assumir a hipótese ateísta não constituirá tarefa fácil. Pode ser que, uma vez introduzida no universo de reflexões ateístas, uma vez tendo acesso aos discursos da filosofia ateísta, uma pessoa, disposta a abandonar sua fé, comece a sentir facilidade para chegar às conclusões apontadas pelo ateísmo; mas até que isso ocorra, ela terá de “desvendar essa hipótese”, que não lhe é, ao contrário do que sugere Pondé, imediatamente acessível. Quando a criança é, por força da sua formação familiar, em primeiro lugar, exposta às crenças religiosas de seus pais, e não lhe sendo oferecidas oportunidades para questioná-las, a hipótese ateísta lhe ficará, por muito tempo (senão para a vida toda), inacessível. Quando a doutrinação já tiver feito seu trabalho lapidar, dificilmente terá ela oportunidades de, pelo pensamento crítico, chegar àquela hipótese. Por isso, a filosofia. O leitor pode assistir ao final da palestra de Pondé, quando responde a um espectador, acessando 



        Até o momento, não introduzi a questão principal sobre a qual me debruçarei neste texto. Tratarei de expô-la agora. A incapacidade de traçar relações lógicas entre minhas experiências de mundo e minhas crenças de fé foi conservada até o momento em que eu passei a me interessar pelos estudos filosóficos e daí pelos estudos do ateísmo, primeiramente pela pena dos filósofos ateus, depois por outros autores ateus, não necessariamente filósofos. No entanto, durante o longo tempo em que minha consciência estava imersa ou aprisionada na crença em Deus (é disso mesmo que se tratava: era eu que estava imerso na crença), ignorava muitos fatos a respeito da história da religião e do Deus a que eu me inclinava. Pelo ateísmo, cheguei a conhecer melhor a natureza antropomórfica de Deus e, especialmente, a conhecer a história do cristianismo. À medida que avançava meus estudos sobre a história da formação do cristianismo, aprendi sobre fatos, por muitos cristãos ignorados, a respeito da fabricação da Bíblia. Na verdade, aprendi mais sobre a Bíblia.
Não estou sugerindo que só se pode conhecer a formação histórica do cristianismo e a fabricação da Bíblia pelo caminho do ateísmo. Quero dizer que as descobertas dos historiadores sobre o cristianismo e sobre a Bíblia dificilmente serão acessíveis aos religiosos leigos, caso pretendam buscar tais conhecimentos nos ensinamentos dos ministros de sua fé. Não estão eles na boca do padre, do bispo ou do pastor. Não se encontram nos cursos de catequese ou nos encontros para estudos bíblicos. Nessas ocasiões, fazem-se leituras devocionais dos textos bíblicos, que não contribuem para estimular uma reflexão crítica (e nem podem!).
Nos primórdios do cristianismo, os pais da Igreja tiveram de lidar com vários obstáculos ao fortalecimento da nova fé. Entre esses obstáculos, estavam as práticas de certas comunidades cristãs constituídas de pessoas que questionavam a hierarquia eclesiástica e a crença num Deus criador e único. Surgiam os gnósticos, que acreditavam haver outro Deus além do Deus criador.
Marcião, um cristão e teólogo da Ásia Menor (séc. II), perguntava-se sobre a razão de existir um Deus que, sendo todo-poderoso, criaria um mundo repleto de sofrimento, dor e doença. Com base nas visões conflitantes de Deus no Antigo e no Novo Testamento, não tardou para concluir que devia haver dois deuses diferentes. Para ele, o Deus do Antigo Testamento não era o mesmo Deus de Jesus. A Lei dizia respeito ao judeus; e o Evangelho, aos cristãos.
Seu nome inspirou a formação de um grupo de cristãos conhecidos como marcionitas. Na visão dos marcionitas, o Deus do Antigo Testamento não se identificava com o Deus do Novo Testamento. O primeiro era um Deus vingativo, assassino e ciumento; já o segundo, que era o Deus verdadeiro, era amoroso e misericordioso. Portanto, o Deus de Jesus nada tinha que ver com o Deus dos judeus.
Evidentemente, sustentar a crença na existência de outro Deus diferente do Deus criador, representado no pensamento ortodoxo que buscava se estabelecer, era intolerável. Irineu, fundador da teologia cristã, dedicou-se a combater, com virulência, as heresias gnósticas, entre as quais as do marcionitas. Havia além destes os valentinos, inspirados nas posições de Valentim - teólogo gnóstico do cristianismo primitivo. Esses gnósticos assumiam publicamente a crença em um Deus único (muitos ainda estavam ligados à cúpula da igreja), mas, em seus encontros furtivos, insistiam em discriminar entre a imagem de um Deus, que é criador, senhor e justo, e a imagem de um Deus que é fonte de todo o ser.
Havia, evidentemente, além das razões filosóficas e teológicas, razões políticas para que cristãos ortodoxos, como Irineu, se insurgissem contra as visões gnósticas. A crença em um só Deus justifica a instituição de um poder inquestionável de um só bispo como monarca da igreja. Em Os Evangelhos Gnósticos (2006), Pagels argumenta:

“(...) quando investigamos a forma como realmente funciona a doutrina de Deus nos escritos ortodoxos e gnósticos, podemos constatar como esta questão religiosa envolve também questões sociais e políticas. Especificamente, pela segunda metade do século segundo, quando os ortodoxos insistiram em “um Deus”, eles validaram simultaneamente o sistema de governo no qual a igreja é regida por “um bispo”. A modificação gnóstica do monoteísmo foi tomada – talvez, intencionalmente – como um ataque contra esse sistema. Pois quando os cristãos gnósticos e ortodoxos discutiam a natureza de Deus, eles debatiam ao mesmo tempo a questão da autoridade espiritual”.
(p. 99)
(grifo meu)

Os seguidores de Valentim acreditavam numa tradição secreta em que se inspiravam os escritos atribuídos a Paulo. Essa tradição revelaria que o Deus em que a maioria cristã acreditava como sendo o criador e Pai é tão-só uma imagem do Deus verdadeiro. Adotando o termo demiurgo (artesão) de Platão, Valentim assumia que o Deus de Clemente e outros pais da igreja é um Deus menor. Apresentando-nos a crença de Valentim, esclarece Pagels:

“Não é Deus, explica [Valentim], mas sim o demiurgo quem reina como rei e senhor, quem age como comandante militar, quem promulga a lei e julga aqueles que a violam – em resumo, ele é o Deus de Israel”.

(p. 62)

O gnóstico reconhece tanto no demiurgo quanto no bispo uma autoridade legitimada que exerce influência sobre os cristãos leigos. A pessoa iniciada na gnosis (conhecimento, entendimento) passa a estabelecer uma relação nova com Deus. Ela se reveste de uma autoridade espiritual em suas práticas cristãs. É digno de nota que nas cerimônias gnósticas todos podiam exercer, por sorteio, as funções de padre, bispo e profeta, inclusive as mulheres, fato que desagradava aos proto-cristãos ortodoxos. No entanto, os gnósticos não deixavam de crer na providência e onisciência de Deus, de tal sorte que, para eles, o resultado dos sorteios expressava a escolha de Deus.
Creio bastantes essas reflexões para aquilo a que me proponho aqui. Elas conduzem-nos à seguinte questão: Qual a importância, para o leitor cristão, do conhecimento de fatos como os que apresentei aqui? Não espero, evidentemente, com a exposição deles, com base na literatura especializada, sugerir que abandone sua fé. O conhecimento sobre a história do cristianismo e sobre a história da constituição do cânone das Escrituras não leva, necessariamente, ao ateísmo, muito embora contribua para colocar em xeque algumas crenças arraigadas, tais como a de que Deus inspirou a escrita das Escrituras (quando o leitor, pelo estudo, é forçado a reconhecer que a Bíblia é um trabalho de muitas mãos humanas e que nos textos e entre eles há muitas inconsistências); a de que a Bíblia é infalível (porque, segundo a primeira crença, é a Palavra de Deus); a de que foi Jesus quem realmente proferiu as palavras a ele imputadas nos Evangelhos (os Evangelhos são produtos de falsificações e os autores dos textos não são as pessoas que alegavam ser), etc.
Se somos capazes de aceitar a verdade desses fatos, igualmente capazes somos de reconhecer a materialidade histórica do Deus judaico-cristão. Deus e religião, assim, deixam de ser, em nossa consciência, um ser transcendente e um caminho elevado de acesso a ele, respectivamente, para tornarem-se fatos da cultura, portanto, fatos humanos.