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quinta-feira, 2 de setembro de 2021

"O homem é uma corda, atada entre o animal e o além-do-homem - uma corda sobre o abismo". (Nietzsche)

 




         O animal enjaulado

Se, como escreve Rosa Dias, com razão, ao ler Nietzsche, “a vida é atividade criadora”, e se o animal humano vive, é parte do ecossistema da vida, é um organismo vital, é o homem também criador. No entanto - Pasmem-se!-, historicamente, o homem se alienou de sua natureza; criou instituições, toda uma ordem simbólico-institucional que o nega enquanto tal. Alienado, o homem concebe-se ainda hoje como criatura de um Criador, vive como escravo de uma ordem institucional em cuja origem ele não se reconhece. A vida civilizada, produto da atividade laboral deste animal excêntrico e periclitante que é o homem, é a causa de seu adoecimento, de seu apequenamento, de sua demência. Civilizando-se, o homem construiu para si mesmo seus cárceres, dentro dos quais ele vive como um estranho que não se reconhece na sua criação, e luta pelo direito de permanecer encarcerado, pelo direito de ser quem acredita imaginariamente ser: o herdeiro primogênito de um Pai celestial, sem suspeitar que esse Pai é criação sua, que toda a ordem que cria tem a marca de um criador ausente, de um criador que se renegou.




O ALÉM-DO-HOMEM COMO CATEGORIA TRANS-HISTÓRICA


       A partir de dois pequenos textos que publiquei em minha página do Facebook e estimulado pelas leituras sobre Nietzsche (estou agora lendo um ensaio de Giacoia que se acha no livro “Labirintos da Alma: Nietzsche e a autossuperação da moral”), fiz a mim a questão: quem é o além-do-homem hoje? Como pensá-lo em nosso tempo? A quais tipos culturais se contrapõe? É interessante pensar que Nietzsche nos legou uma categoria, um tipo conceitual trans-histórico, uma categoria que nos permite pensar a necessidade de autossuperação contínua do homem no devir histórico. (Diferentemente do que julgava eu há algum tempo, não acho que o além-do-homem é um conceito superado, inoperante para nos auxiliar a pensar a condição do animal humano como ser no mundo). Acho que se trata de uma categoria filosófica sumamente valiosa, que descerra o horizonte teórico à luz do qual o homem é um experimentador de si mesmo, um criador de mundos históricos, um criador de si mesmo. Ocorre que Nietzche soube bem denunciar o tipo humano que vicejou na cultura ocidental com a mudanização do cristianismo. Nestes pouco mais de 2.000 anos de subsistência do sistema cristão de interpretação moral-religiosa, ainda predomina entre nós o tipo humano asceta, infestado pela vontade de nada, habitado pelas forças reativas do ressentimento, submisso aos poderes constitutivos da moral de rebanho. Se como escreve Giacoia, “ pode-se legitimamente caracterizar a filosofia de Nietzsche, em linhas gerais, como um ousado esforço teórico para levar a cabo uma crítica radical das formas superiores da cultura no Ocidente, que são por ele interpretadas como produto e superfície da reflexão do tipo histórico-cultural constitutivo do homem moderno”, como, então, pensar o tipo humano hegemônico em nossas sociedades hipermodernas (Lipovetsky), pós-modernas... em relação ao qual o além-do-homem, que Deleuze pensa caracterizar-se por uma “nova maneira de sentir e de pensar”, e poderíamos dizer “de viver, de afirmar”, se constitui agonisticamente? Nietzsche não assistiu ao terror dos totalitarismos, não viveu para assistir às duas Grandes Guerras Mundiais, não acompanhou o predomínio e expansão do homem-massa no pós-guerra, homem-massa hoje transfigurado no escravo digital... Nietzsche não assistiu ao avanço do fascismo histórico, como também não pôde pensar seu além-do-homem contra o que Reich chama de “peste fascista” “uma certa concepção de vida e uma atitude perante o homem, o amor e o trabalho”. O fascismo como estrutura do caráter, da personalidade do animal humano que continua entre nós, que continua a ameaçar não só nosso modo de vida democrático liberal, mas a própria vida em geral. Reich disse que “o fascismo é a atitude emocional básica do homem oprimido da civilização autoritária da máquina, com sua maneira mística e mecanicista de encarar a vida”. Como pensar o além-do-homem como horizonte de autossuperação do homem autoritário, do tipo humano fascista, que persiste entre nós? Enfim, o além-do-homem é um dos mais significativos legados filosóficos de Nietzsche, uma categoria trans-histórica, atemporal que nos permite pensar a necessidade de autossuperação das formas-homem historicamente constituídas como formas infestadas da negatividade, do ódio contra a vida, contra a diferença, contra a diversidade. Mas que fique bem claro: o além-do-homem é sempre pensado no registro do individual, não no da coletividade. Não caracteriza o homem em geral (abstrato), mas cada indivíduo humano. Pensar o além-do-homem é pensá-lo no campo de forças que é o mundo, onde ele se afirma em combate com outros tipos humanos hegemônicos. Entre nós hoje, o campo agonístico tem cada vez mais sido disputado e ocupado pelos tipos humanos da política ressentida, que reanimam e querem impor os valores decadentes forjados no imaginário-simbólico cristão e ultraconservador. Esses tipos e grupos humanos querem reativar a absolutidade dos sentidos e valores dessa tradição, querem nos fazer funcionários da servidão moral contra a qual há mais de um século se insurgiu Nietzsche. Aqui como em outras partes do mundo, a libertação niilista ainda não encontrou terreno para prosperar e dar frutos. O Brasil é hoje como o tem sido em sua relativamente curta história tão espiritual quanto social, política, economicamente atrasado.





A Lucidez niilista: é possível ser niilista sem ser decadente?

 

Não obstante ter Nietzsche entendido o niilismo como a lógica da decadência, o niilismo, em Nietzsche, não se reduz ao anúncio da morte de Deus. A teorização nietzscheana do niilismo se desenvolve por muitos trajetos, abre-nos diversos caminhos semânticos. O fenômeno do niilismo em Nietzsche é polimórfico (há diversas variantes do niilismo) e polissêmico ( há vários temas a ele associados). No registro do anúncio da morte de Deus, o niilismo se revela como uma experiência do Nada como abismo sem fundo dos valores superiores que até então davam sentido e sustentação à existência do homem ocidental. O niilismo é, nesse contexto de problematização, a lógica do movimento agonizante dos nossos valores superiores. Mas Nietzsche não para por aí: é preciso levar o niilismo até suas últimas consequências lógicas. É necessário completar a travessia do niilismo. Enquanto o homem se ressente da derrocada dos valores superiores que o Deus cristão representava, ele ainda vive mortificado, enfraquecido por um niilismo incompleto. É preciso superar este estágio do niilismo do cansaço, da fraqueza, da vontade de nada, para transfigurá-lo na forma de “pensamento divino”, portanto, na condição necessária para a criação de novos valores afirmativos, de um novo imaginário-simbólico à luz do qual a vida se posiciona como valor supremo e o homem se reconhece como verdadeiro criador. Vattimo tanto quanto Giacoia nos lembram que o niilismo, em Nietzsche, tem caráter ambíguo. Ele tanto pode significar uma síndrome de declínio, a experiência do cansaço da vida, quanto pode ser uma potência ascendente do espírito. Meu esforço teórico consiste em inscrever o niilismo como parte do projeto nietzscheano de desmitificação do homem e de transvaloração dos valores que o tornaram um animal doente, esgotado e habituado ao autoengano. Não é o niilismo que deve ser superado, mas suas formas decadentes. Porque, se tudo que há são vontades de potência em relações agonísticas, também o niilismo é um campo agonístico de vontades de potência. A forma assumida pelo niilismo dependerá do predomínio da qualidade das forças em combate em seu interior. No Ocidente, por força da hegemonia do sistema de interpretação moral-religioso que é o Cristianismo, predominaram no niilismo entre nós as vontades de poder decadentes, negadoras. Nós vivenciamos o Nada como déficit de ser, como vazio de sentido, como aniquilação, como perda de esteios valorativos, como ausência de sentido, experiência muito diferente que têm os orientais do Nada e do Vazio. Se o niilismo é a lógica de um movimento histórico-cultural de desmoronamento, de derrocada dos valores superiores, de todo um imaginário-simbólico que dotava de sentido a vida humana, então o niilismo, entre nós, é o mais radical processo de desmitificação do homem. É esta a tarefa do niilismo ativo em Nietzsche: desmitificar, desilusionar. Mas este trabalho não se faz senão como uma guerra não apenas contra os valores e sentidos postos a serviço da negação da vida, mas também contra as forças reativas da vontade de nada que ainda persistem no interior do niilismo. Como ensina Vattimo:

“ Se (...) o niilismo tem a coragem de aceitar que Deus está morto, ou seja, que não existem estruturas objetivas dadas, torna-se ativo em pelo menos dois sentidos: antes de tudo, não se limita a desmascarar o nada que está na base de significados, estruturas, valores; produz e cria, também, novos valores e novas estruturas de sentido, novas interpretações. É só o niilismo passivo que diz que não há nenhuma necessidade de fins e significados”.

Longe de ser o deserto do pensamento, o seu veneno e impedimento, o niilismo é a condição sine qua non do pensamento, porque pensar é desmascarar as supostas certezas, é corroer as empedernidas crenças e convicções insuspeitas, é derribar os alicerces do que julgamos saber, daquilo que tomamos por verdades inabaláveis. Por isso, todo pensamento, se se pretende radical, é pensamento niilizante.





      A VONTADE ASCETA E A DÉCADENCE

 

Vista à luz do conceito de DÉCADENCE, a aproximação que Nietzsche faz entre Sócrates-Platão e o Cristianismo, permite-nos inferir dentre os dois termos dessa aproximação, o traço que lhes é comum: a vontade ascética, a qual se expressa de modo paradigmático na figura do sacerdote asceta, como nos patenteia Nietzsche em GENEALOGIA DA MORAL. O sacerdote asceta é a formação típica da vontade de potência infestada pelo negativo. Ela se configura paradoxalmente na medida em que transforma a negatividade que a constitui em condição de triunfo e conservação da existência. Como fenômeno da DÉCADENCE, a vontade ascética só pode afirmar-se e dominar aniquilando aquilo a que se contrapõe, a saber, a natureza, a vida. Por isso, Nietzsche via o ascetismo como a expressão histórica de antinatureza. Para ele, na interpretação ascética de mundo e da vida, domina a vontade de poder do sacerdote ascético e sua perspectiva valorativa em face da vida e de tudo quanto integra a vida dos homens, a natureza, o mundo, o devir.

 

 

“A esfera inteira do vir-a-ser e da transitoriedade é posta em referência a uma existência outra, com a qual ela está em relação de oposição e exclusão, a não ser que eventualmente se volte contra si própria, negue a si mesma: neste caso, no caso de uma vida ascética, a vida vale como uma ponte para aquela outra existência... Uma tal monstruosa maneira de valorar não está inscrita como um caso de exceção e curiosidade na história do homem: É UM DOS MAIS AMPLOS E LONGOS FATOS QUE HÁ. Lida a partir de um astro longíquo, essa escrita em maiúscula de nossa existência terrestre induziria talvez à conclusão de que A TERRA É PROPRIAMENTE A ESTRELA ASCÉTICA, UM RINCÃO DE CRIATURAS DESCONTENTES, PRESUNÇOSAS E REPUGNANTES, QUE DE UM PROFUNDO FASTIO POR SI, PELA TERRA, POR TODA VIDA, NÃO SE DESVENCILHARIAM NUNCA E A SI PRÓPRIAS FARIAM TANTO MAL QUANTO POSSÍVEL, PELO CONTENTAMENTO DE FAZER MAL: PROVAVELMENTE SEU ÚNICO CONTENTAMENTO. (...)”

(Genealogia da Moral, III, § 11)





Como muito perspicaz e apropriadamente nos lembra Byung-Chul Han, “quanto mais poderoso for o poder, mais SILENCIOSAMENTE ele atua. Onde precise dar mostras de si, é porque já está enfraquecido”. Decerto, os poderes nos constituem, nos atravessam, moldam nossos hábitos, nossos gostos, constituem nossos discursos, nosso modo de ser social, e o fazem de modo a que não percebamos sua ação sobre nós. Surpreender os poderes lá onde eles operam silenciosamente, com disfarces e máscaras, é a condição para a formação de homens e mulheres deveras emancipados e livres.




Do lamento à resistência

 

É lamentável, é revoltante que nós, professores, amarguemos salários tão baixos que, associados à precarização das condições de trabalho da categoria, nos desestimulam ao mesmo tempo que nos coagem a aceitar qualquer coisa por necessidades de subsistência. Enquanto padecemos as agruras da falta de um projeto político-desenvolvimentista-educacional no Brasil, carência que é um problema crônico de nossa história social e política, vigora ainda no imaginário social o cinismo da romantização do magistério, o cinismo das ideias, das representações coletivas da Educação e do professor como a atividade mais nobre e como o agente social e político mais admirável de uma “Pátria amada” que o maltrata, que os põe à margem das preocupações de um sistema político que atende aos interesses mercadológicos do capital financeiro. Chegamos ao ponto de sermos perseguidos por defendermos política e pedagogicamente os interesses dos oprimidos, por lembrarmos a obra de Paulo Freire, de Darcy Ribeiro, por nos posicionarmos firmemente contra uma racionalidade neoliberal que estende a lógica do mercado para muito além das fronteiras do mercado, produzindo subjetividades contábeis por meio do estímulo da concorrência contínua entre os indivíduos. Se nos posicionamos contrariamente a essa racionalidade neoliberal cuja característica principal é a generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação, se nos recusamos a aceitar passivamente as condições socioeconômicas impostas por um sistema econômico (o capitalismo) que a tudo transforma em mercadoria de consumo, que estende a lógica do capital a todas as esferas da vida social, somos tachados pelas vozes da estultícia e do autoritarismo estrutural de “esquerdistas”, “comunistas”, “esquerdopatas”, embora seja o “páthos” da paranoia, do delírio que alimente os discursos beligerantes dos militantes da irracionalidade, da desrazão, da política como máquina de produção de guerra e de morte. Se não nos curvamos a essas vozes da intolerância, a essas vozes reacionárias que reduzem a complexidade do real aos limites estreitos de sua insanidade perversa, enquanto não cedemos aos seus gritos, ao seu ódio que em tudo inocula veneno, aos tentáculos de sua burrice, à violência de seu obscurantismo, é que compreendemos o que significa verdadeiramente a Educação: uma prática de resistência! Educadores são, portanto, agentes da resistência contra os poderes instituídos que oprimem, que coagem, que escravizam, que querem fazer calar as vozes daqueles que são forçados a viver às sombras, à margem.



                                                        



sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Décadence - uma degeneração da vontade

                              


As duas negações do imoralista


Nietzsche não pretendeu destruir toda e qualquer moral, tampouco preconizou que devemos viver sem moral. Nietzsche edificou uma crítica corrosiva contra uma espécie de moral e um tipo de homem produzido por ela. Uma passagem emblemática de Ecce Homo dá-nos a conhecer a espécie de moral e o tipo de homem que estavam na mira da crítica destrutiva nietzschiana:

No fundo são duas negações que a minha palavra imoralista encerra. Eu nego, por um lado, um tipo de homem considerado até agora como supremo, os bons, os benévolos, os benéficos; nego, por outro lado, uma espécie de moral que, por sua autoridade e supremacia, apareceu como a moral em si– a moral de decadência, em termos mais precisos, a moral cristã.[1] (ênfases nossas).


Nietzsche foi, portanto, um crítico mordaz da moral cristã, que viria a entronizar em Deus todos os valores assumidos como superiores, e de um tipo de homem por ela produzido, o tipo decadente. A forma fatigada do niilismo já estava prefigurada nessa tradição moral. O tipo cristão é um tipo de homem cansado da vida. Seu ideal de salvação pressupõe que este mundo não deve ser aprovado, que sua existência só pode valer, ter algum sentido enquanto se pode crer no ‘em si’ que lhe fornece o fundamento.
Devemos também atentar para o fato de que Nietzsche, ao insurgir-se contra a moral cristã cujos valores foram (e ainda são hoje, em grande medida, em muitas partes do mundo) determinantes da formação cultural do homem ocidental, não pretendeu negar a possibilidade de viver segundo algum conjunto de valores morais. Lembremos que Nietzsche reconhece que nós, enquanto viventes, somos obrigados a valorar, a interpretar, a significar o mundo, uma vez que a vida, sendo essencialmente vontade de poder, é interpretação. No aforismo 114 de A Gaia Ciência, escreve Nietzsche: “não existem vivências que não sejam morais no âmbito da percepção sensível”. Como se pode ver, se a moral é um conjunto de sentidos que servem para nortear o viver, então não pode deixar de ser ela um fenômeno intrínseco à vida.
Nietzsche  mobiliza todo um arsenal crítico poderoso para derribar os alicerces de um tipo de moral que se desenvolveu como antítese da vida, para enfraquecê-la enquanto vontade de poder, enquanto jogo de relações de forças que querem dominar, expandir-se. Atacando essa espécie de moral, Nietzsche ataca o niilismo e a metafísica que lhe estão atrelados.
Nietzsche – o contrário de um niilista –esforçou-se por descortinar ao homem as formas pelas quais ele poderia recuperar a pujança de que o adoecimento moral o privou. Nietzsche encontrou valor, sentido onde o niilista não via senão um abismo intransponível, um vácuo de sentido que condenava o homem a existir sem que lhe fosse possível divisar qualquer referencial balizador. O filósofo de Röcken ensinou seu amor fati – seu “engajamento moral alegre”, subsumido na fórmula “eu quero” – como o grande remédio contra o mal do niilismo. Seu além-do-homem está na origem de uma moral ascendente, que surge como consequência do imperativo “sim à vida”. O além-do-homem é o tipo de homem, que sendo criador de valores afirmadores, pode expandir suas forças e intensificar o poder de sua vontade de viver. A nova moral desse homem dionisíaco, liberto da tirania do “Tu-deves”, grande possuidor do mundo, revigorado pelo fortificante “eu quero” não pretende ser mais uma moral universal ou metafisicamente fundada. Essa nova moral acena com o reconhecimento da individualidade fisiológica desse novo homem. Ela se afina com as especificidades fisiológicas de cada indivíduo. Corporificação da vontade de poder, essa nova moral valoriza o prazer como antípoda do dever. Nietzsche contra o kantismo: o “eu quero” substitui o imperativo categórico. Uma moral que se desenvolve em favor da singularidade não se esquiva a abominar toda tentativa de igualação, de nivelamento dos homens e dos valores.
Em suma, Nietzsche não se furtou a oferecer uma moral que viesse a cumprir o papel que a moral tradicional não conseguiu cumprir. Sua moral é própria dos homens livres, criadores; ela preconiza o prazer, a alegria, o riso, o excesso de vida, de força, de poder.


1. Décadence: uma degeneração da vontade

O conceito de decadência é apresentado na forma de um projeto teórico por Nietzsche em Vontade de Potência (2011). A seção Para uma teoria da decadência é principiada com a colocação do problema da decadência.  Nietzsche observa aí que o fenômeno da decadência é necessário “como o desabrochamento e o progresso da vida”[2]. Nietzsche nega haver meios de suprimi-la. Em seguida, censura os teóricos do socialismo por cuidarem haver condições sociais “nas quais o vício, a doença, o crime, a prostituição, a miséria não mais se desenvolvam... Isso seria condenar a vida”.[3] Devemo-nos acautelar de concluir que Nietzsche seja partidário do conformismo: ele não está comprometido com alguma tendência sociopolítica que visa a manter os homens resignados. Parece-nos que seu alvitre encaminha-se na direção de nos chamar a atenção para o fato de que a degenerescência é um fenômeno inevitável e inerente à dinâmica vital. Mais adiante, Nietzsche notará: “a própria decadência não é algo que se deva combater: é absolutamente necessária e peculiar a cada época, a cada povo”[4]. Agora, a decadência, sendo parte inerente do processo vital, é necessária à constituição da vida social. Por que o é? Porque a ela devemos a possibilidade do “desabrochamento e do progresso da vida”.
O que se costumou entender como causas da decadência – o vício, o crime, a doença, o pessimismo, o anarquismo, etc. – é, para Nietzsche, a sua consequência. Entendamos bem: Nietzsche não vê o vício e o crime, por exemplo, como causas da decadência de uma sociedade, mas como sintomas de sua decadência. Se a decadência é inerente ao processo vital, se é necessária à dinâmica social, que devemos, pois, combater? Segundo Nietzsche, “o que devemos combater com todas as forças é a importação do contágio para as partes sãs do organismo”.[5]
A corrupção dos costumes encontra sua origem na decadência. Como podemos, então, definir a decadência? Podemos defini-la como esgotamento do instinto, como desagregação da vontade. Ao referir os tipos gerais de decadência, Nietzsche nos lembra que o cristianismo prima entre os tipos que levam ao adoecimento do espírito. Os tipos decadentes são tipos esgotados. Seus valores são “virtude”, “desinteresse”, o “sofrer junto” (moral altruísta), a negação da vida, etc. Os tipos decadentes aspiram a uma condição na qual não mais sofram; mas isso significa negar a vida, dado que o sofrimento é inerente aos modos de conformação do tecido vital. Para os tipos decadentes, “a vida é considerada a causa de todos os males”[6]. Para eles, o enfraquecimento é tomado como sua verdadeira missão. O que eles querem? O enfraquecimento dos desejos, das sensações de prazer e desprazer; o enfraquecimento da vontade de poder, do sentimento de altivez, etc.
Consoante mostra Nietzsche, Deus é o nome para aquilo que enfraquece, para aquilo que ensina a fraqueza. Ora, Deus é, portanto, antítese da vida. Se vida, enquanto vontade de poder, é aumento de poder, Deus, enquanto nome para o que enfraquece, é impedimento desse aumento de poder.
Para Nietzsche, o tipo forte age e pretende, em sua ação, aumentar seu poder, expandir suas forças, a fim de alcançar, com a expansão da vontade (poder), mais alegria, mais prazer. O tipo fraco, por seu turno, aspira à inação, quer permanecer impassível. Assim, prejudica a si mesmo. Autodestruição – eis um tipo de decadência.

Todas as práticas das ordens religiosas, dos filósofos solitários, dos faquires, são inspiradas por uma justa avaliação do mundo que afirma que uma certa espécie de homem é mais útil a si mesma quando se abstém, tanto quanto possível de agir.[7]



Para Nietzsche, a configuração do modo de ser do tipo cristão é perversão do caráter criador da vida; não porque ele não é criador de valores, mas porque cria valores decaídos, valores que levam à deterioração da vontade de poder. O esgotamento desse tipo decadente empobrece o valor; torna-o nocivo à própria vida. Por isso, é necessário combater a moral cristã e seu tipo decadente de homem. E Nietzsche o fez da seguinte forma: “ensino o não em face de tudo quanto torna fraco – de tudo quanto esgota. Ensino o sim em face de tudo quanto fortifica, do que acumula forças, do que justifica o sentimento de vigor”.[8]
Concluímos esta segunda parte de nosso estudo, referindo uma passagem de Ecce Homo, em que Nietzsche nos conta como veio a se tornar o contrário de um decadente. Ao apresentar essa passagem, gostaríamos de que não passassem despercebidos os seguintes ensinamentos de Nietzsche, que ela nos permite entrever: 1) a filosofia de Nietzsche é uma filosofia inteiramente interessada na criação de um modo de ser; 2) a filosofia de Nietzsche é a expressão de sua própria vontade de poder que se quer a si mesma como vida que se afirma incondicionalmente; 3) a filosofia de Nietzsche é um processo vital consequente dos modos como ele foi afetado pela vida. Por isso, pode-se dizer, seguramente, que o modo como Nietzsche viveu sua filosofia é consequência necessária de um modo próprio de experimentação feita por ele do destinar-se da vida. O destinar-se da vida se encarregou de cunhar um modo de ser nietzschiano, e Nietzsche, por sua vez, soube apropriar-se desse modo de ser para convertê-lo em sabedoria de vida; em uma palavra, em filosofia fortificante e combatente de todas as forças debilitantes da vida.

A parte o fato de que sou um decadente, sou também o contrário disso. Minha prova a respeito é, entre outras coisas, que instintivamente sempre escolhi os remédios adequados para as piores situações: enquanto que o decadente sempre escolheu os remédios mais nocivos a si próprio. Como summa summarum, eu era saudável; como detalhe, como especialidade, eu era decadente (...). Tomei-me a mim mesmo em minhas próprias mãos, recobrei a saúde por mim mesmo: a condição para chegar a isso – todo fisiologista deve admiti-lo – é a de estar fundamentalmente sadio. Um ser tipicamente mórbido não pode tornar-se saudável, muito menos recobrar ele próprio sua saúde; inversamente, para um ser tipicamente saudável, estar doente pode até mesmo constituir enérgico estimulante da vida, de mais vida. Assim, é que vejo agora, de fato, esse longo período de enfermidade: descobri, por assim dizer, novamente a vida, a mim mesmo inclusive, apreciei todas as coisas boas e até as pequenas, como não é fácil que os outros possam apreciá-las – construí minha vontade de saúde, de vida, minha filosofia (...): o instinto do auto-restabelecimento me proibiu uma filosofia de pobreza e de desânimo...[9] (grifos nossos).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRAGA, Antonio C. Nietzsche: o filósofo do niilismo e do eterno retorno. São Paulo: Lafonte, 2011.

BRUCKNER, Pascal. A Euforia Perpétua: ensaio sobre o dever de felicidade. Trad. Rejane Janowitzer. São Paulo: Difel, 2010.

CABRAL, Alexandre Marques. Niilismo e Hierofania: Nietzsche, Heidegger e a tradição cristã – Nietzsche, cristianismo e o deus não-cristão, vol. 1. Rio de Janeiro: Mauad, Faperj, 2014.

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São Paulo: Loyola, 2000.

COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 129.

FOGEL, GILVAN. O que é Filosofia? – Filosofia como exercício de finitude. Aparecida, SP: Ideia e Letras, 2009.

GAARDER, Jostein. et.al. O livro das religiões. Trad. Isa Maro lando. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

LYTOARD, J.F. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olimpyo, 2008.
                                                
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

________________ Vontade de Potência. Trad. Mario Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

________________ Além do Bem e do Mal. Trad. Mario Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

________________ Assim Falou Zaratustra. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

________________ Aurora. Trad. Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2013.
_________________ Ecce Homo. Trad. Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2013.
_________________ O Anticristo. Trad. Renato Zwick. Porto Alegre, RS: L&PM, 2012.
_________________ A Gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

________________ Crepúsculo dos Ídolos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

_________________ Humano Demasiado Humano. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.


PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Martins Fontes, 2005.


ROSSET, Clément. A Anti-natureza: elementos para uma filosofia trágica. Trad. Getulio Puell. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.


ROSSET, Clément. Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.

SOUSA, Mauro A. A morte de Deus em Nietzsche: fim da metafísica? In: Maraschin, Jaci; Pires, Frederico Pieper (Orgs.). Teologia e Pós-modernidade: novas perspectivas em teologia e filosofia da religião. São Paulo: Fonte Editorial, 2008. p. 61-90.

VOLPI, Franco. O Niilismo. São Paulo: Edições Loyola, 1999.












[1] Por que sou um destino, § 4.
[2] § 72.
[3] Ibid.
[4] § 73.
[5] Op.cit.
[6] § 76.
[7] § 78.
[8] § 86.
[9] Por que sou tão sábio, § 2.