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terça-feira, 1 de dezembro de 2015

"Ou a aprovação é trágica ou não há aprovação" (Clément Rosset)

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Naturalismo ou Artificialismo
Uma decisão filosófica






Cosmovisão será o termo por mim adotado para denotar uma maneira geral de compreender o universo e nossa relação com ele. Ainda que a entrada cosmovisão seja apresentada nos dicionários como sinônimo de visão de mundo, a semântica de cosmovisão supõe que, na compreensão do universo e na relação com ele, está envolvido um modo de ser e de viver próprio do indivíduo que compreende o mundo e se relaciona com ele. A cosmovisão se estrutura em torno de pressupostos atinentes ao significado da vida, ao que é importante para a sua realização e reafirmação e ao modo como o mundo funciona. Naturalmente, não se deve perder de vista que a cosmovisão varia segundo um grupo ou uma sociedade; igualmente variável é o grau em que dela compartilham os indivíduos.
Neste texto, duas cosmovisões serão tematizadas – a cosmovisão naturalista e a cosmovisão artificialista[1]. Competir-me-á não só dilucidar os conceitos fundamentais nos quais se esteiam as duas cosmovisões, mas, máxime, sustentar a posição segundo a qual, se à filosofia deve-se destinar a tarefa de cunhar modos de ser – como creio seja a sua tarefa mais própria -, então quem quer que se dedique a ela com um compromisso existencial deverá decidir-se a assumir com fidelidade uma ou outra cosmovisão, ciente de que essa assunção implica o indivíduo por completo, isto é, demanda dele um compromisso psicofisiológico e/ou existencial com a cosmovisão adotada. Também manterei a hipótese de que tal decisão não é resultado de um ato puramente racional, intelectual, de um sujeito autônomo e absolutamente livre, mas é motivada por suas disposições, que são responsáveis por orientar suas ações, seus julgamentos e comportamento. As disposições são integrantes da personalidade de cada indivíduo e se moldam como resultado de experiências corporalmente vividas na fase chamada primeira infância, que compreende os cinco primeiros anos de vida da criança.
As duas cosmovisões que serão contempladas nessa discussão – a naturalista e a artificialista – são incomensuráveis entre si. A escolha de uma delas pelo indivíduo, preocupado em levar adiante seu compromisso existencial com a filosofia, implica toda a sua existência, todo um modo de ser e de apreender-se com o mundo em vivências orgânicas que mobilizam a sua estrutura fisiológica e que o expõem ao modo de funcionamento desse mundo. Insisto em que a decisão não redunda numa escolha meramente intelectual (embora a envolva), que definiria um horizonte interpretativo de mundo desvinculado de nossa tonalidade afetiva. Pensar assim significaria assumir que o intelecto é um princípio imaterial e separado do corpo, e que a decisão envolve algum cálculo racional sem qualquer relação com a forma como somos afetados pelas configurações vitais. A referida decisão a que o indivíduo humano não pode esquivar-se implica toda a sua integralidade enquanto existente que se constitui na relação necessária com o Todo (o mundo). A decisão envolve a integração de seus afetos, de suas experiências psicofisiológicas, de suas crenças, conhecimentos, disposições, de todo um complexo de formas de sentir o mundo e nele agir. Afeto é, sem dúvida, uma instância desse complexo que tem destaque na decisão, pois que a decisão envolve nossos sentimentos, e afeto, em filosofia, de um modo geral, designa tanto o sentimento quanto a impressão que causamos nos outros e os outros em nós. Um afeto é um estado de alma, como tal é uma marca do modo como nos inclinamos para o mundo, para os demais indivíduos.

1. As duas cosmovisões, segundo Rosset

Com defender a necessidade de uma decisão que defina uma orientação filosófica que deverá fundamentar a existência do indivíduo que se dedica ao exercício aturado da atividade filosófica, não estou sugerindo que, uma vez realizada a decisão, esse indivíduo deve cingir seu interesse ao elenco de pensadores que conformam a cosmovisão assumida. O convívio aturado com a literatura filosófica nos expõe a uma série imensa de formas diversificadas de pensar o homem e o universo. É indispensável, por isso, à consolidação de nossa formação filosófica dedicarmo-nos a estudá-las com obstinação e sem juízos de valor negativos, os quais não contribuiriam senão para estorvar a apropriação compreensiva satisfatória da riqueza do pensamento produzido e legado por homens cujas vidas foram completamente devotadas ao saber. Ademais, nossa atenção às diferentes formas de expressão da tradição filosófica é tanto mais necessária quanto mais cientes estivermos de que as visões de mundo filosoficamente expressas e defendidas pelas muitas gerações de filósofos, situados em determinadas escolas, comprometidos com diferentes sistemas de pensamento, não são, de modo algum, estanques; ao contrário, se constituem numa longa cadeia de discursos dialogicamente estruturada. Nossa formação filosófica é, portanto, devedora do grau com que nos permitimos ser agentes de uma expedição intelectual por diversas paragens filosóficas em cuja extensão os pensamentos se interpelam, se enunciam polifonicamente e as questões se reclamam umas as outras, se imbricam nas diversas formas de enunciação.
Rechaçada qualquer suspeita sobre o estar eu sugerindo a indiferença a outros horizontes hermenêuticos filosóficos, quando da escolha por assumir uma das cosmovisões que serão aqui tematizadas, começo por inscrevê-las no enquadramento teórico proposto por Rosset, em seu A Anti-Natureza: elementos para uma filosofia trágica (1989). Nesse livro, Rosset desenvolve uma defesa da visão artificialista, única capaz de expressar e subsidiar uma concepção trágica da existência. O desenvolvimento de sua posição filosófica, que, reconhecidamente, tem inspiração no pensamento nietzschiano, se faz pela elaboração de uma discussão que passa em revista as formas como as duas visões encaminharam e subsidiaram o pensamento filosófico na Antiguidade e na Modernidade. Rosset, inicialmente, citará, como mote de seu trabalho investigativo, um trecho do aforismo 109 de Nietzsche, que figura em A Gaia Ciência (2012), o qual se reproduz abaixo:

“(...) quando deixaremos nossa cautela e nossa guarda? Quando é que todas essas sombras de Deus não nos obscurecerão mais a vista? Quando teremos desdivinizado completamente a natureza? Quando poderemos começar a naturalizar os seres humanos com uma pura natureza, de nova maneira descoberta e redimida?” (p.126-127, grifo meu).


É o próprio Rosset que responde a Nietzsche, nestes termos:


“(...) o homem será “naturalizado” no dia em que assumir plenamente o artifício, renunciando à própria ideia de natureza, que pode ser considerada uma das principais “sombras de Deus” ou então, o princípio de todas as ideias que contribuem para divinizar a existência (e, desta maneira, depreciá-la enquanto tal”)” (p.9-10).



O leitor deve atentar para o fato de que Rosset considera a ideia de natureza, num primeiro momento, como uma das formas através das quais se projeta a ideia de Deus como causa primeira ou princípio explicativo da existência de todas as coisas. Logo em seguida, essa perspectiva é reforçada com uma nova forma de categorização: “a ideia de natureza é  o princípio de todas as ideias que contribuem para divinizar a existência”. Se é “princípio”, é o que dá origem, o que fundamenta e confere um horizonte de inteligibilidade às ideias que concorreram para divinizar a existência. Disso é forçoso concluir que a oposição entre a cosmovisão naturalista e a cosmovisão artificialista assenta-se na assunção, de um lado, e na recusa, de outro, de um princípio ordenador, produtor de sentido à luz do qual a totalidade do real se explica. A natureza é, assim, tomada como algo já dado, anterior a todas as existências e responsável por dar-lhe uma ordem, uma necessidade, uma finalidade.
Rosset nega a possibilidade de, algum dia, os homens renunciarem à ideia de natureza como princípio explicativo do real. Segundo nota o filósofo,

“(...) a ideia de natureza – qualquer que seja o nome com o qual ela encontre, independendo da época, um meio de expressão – afigura-se como um dos maiores obstáculos que isolam o homem do real, ao substituir a simplicidade caótica da existência pela complicação ordenada de um mundo” (p. 10).



Dois são os objetivos perseguidos pelo autor: o primeiro dos quais consiste em demonstrar que a ideia de natureza não é outra coisa senão uma ilusão do desejo humano. Nesse sentido, poder-se-ia dizer, com Rosset, que é no desejo humano que devemos buscar a necessidade de compreender o mundo como uma totalidade ordenada e dotada de finalidade. O segundo objetivo consiste em opor à ideia de natureza a noção de mundo como artifício, em consonância com a qual o que existe é da ordem dos fatos, da qual está excluído qualquer princípio anterior.
O que se encena, por conseguinte, no desenvolvimento da proposta do autor é a oposição irredutível entre a (cosmo)visão naturalista e a (cosmo)visão artificialista. Rosset empreende a defesa da cosmovisão artificialista, a qual redunda na aprovação do caráter trágico da existência. Na verdade, aprovar a existência, segundo o autor, é aprovar o trágico, e aprovar o trágico significa prescindir de qualquer referencial ontológico, como “ser”, “finalidade”, “necessidade”, “ordem”, etc. Para Rosset, “ou a aprovação é trágica, ou não há aprovação”.
Nas subseções seguintes, apresentarei as duas cosmovisões contempladas neste estudo, definindo as categorias conceituais sobre as quais elas repousam.


1.2. A cosmovisão naturalista

Ao nos concentrarmos na descrição da cosmovisão naturalista, o conceito fundamental que será preciso definir e sem cuja definição é impossível compreender o que significa qualificar de naturalista uma cosmovisão é o de natureza. Antes de fazê-lo, é oportuno lembrar que, segundo Rosset, “toda filosofia é, inevitavelmente, de tendência naturalista” (p. 125). Por quê? (talvez esteja se perguntando o leitor) Porque toda filosofia se pretende um sistema e porque está interessada em determinar princípios. Por princípios, deve-se entender aqui as causas primeiras. Já se vê que a filosofia naturalista supõe a existência de um princípio metafísico que dá origem a tudo que existe (independentemente do nome que lhe atribuamos). Segundo a cosmovisão naturalista, o que existe é efeito de princípios que, em sua totalidade, não se reduzem ao acaso.
No que tange ao conceito de natureza, podemos começar por defini-la como um modelo de inteligibilidade do real. Mas essa definição provisória não dá conta da extensão da significação do conceito de natureza nem na história da filosofia nem no enquadramento teórico proposto por Rosset. Considere-se, num primeiro momento, a significação do conceito de natureza na história da filosofia, visto que da elucidação da significação no contexto histórico filosófico depende a compreensão de sua significatividade no enquadramento teórico proposto por Rosset. Comecemos, pois.
Do latim natura, natureza é a tradução da forma grega phýsis. Para os antigos gregos, phýsis recobre as ideias de processo de surgimento, de nascimento e de crescimento, porque derivado do verbo phýo, que quer dizer “fazer crescer”, “fazer brotar”, “fazer nascer”. A phýsis ou a natureza é uma potência autônoma que organiza ou comunica a vida.
Dois sentidos básicos podem ser distinguidos no conceito de phýsis.

1) natureza universal: como natureza universal, a natureza é a ordem do Todo, que é o mundo. Ela é a lei que rege todos os fenômenos e a alma que confere vida ao corpo.

2) natureza íntima: como natureza íntima, phýsis é a substância ou essência dos seres que têm em si o princípio de seu movimento. Este significado encontramos na pena de Aristóteles, o qual passou em revista os diferentes sentidos em que se empregou a palavra na tradição. Aristóteles discriminou entre quatro sentidos:

1) geração (gênesis) dos seres dotados de crescimento;
2) causa interna do crescimento, lei imanente à vida;
3) matéria-prima dos seres;
4) substância (ousia) dos seres naturais.

Como natureza universal, o emprego da palavra phýsis é antigo na história da filosofia. Encontramo-lo em Tales, na escola pitagórica, em Xenófanes, Parmênides, Zenão de Eléia, Empédocles e Anaxágoras. Para Pitágoras, por exemplo, a Natureza recobria mais do que o mundo sensível; além desse mundo, ela abrigava, como ensinara Porfírio, os deuses imortais.
Platão, em Fedro, via a Natureza como Lei Espiritual que rege o Universo. Os estóicos, por seu turno, pensaram-na como o Todo e o absoluto. A natureza é a alma que governa o mundo, o qual, por seu turno, era compreendido como um grande organismo vivo. Destarte, de acordo com os estóicos, a natureza rege eternamente o Todo (o mundo) com leis racionais e perfeitas.
Para Plotino, a natureza é a forma do Universo; é também a alma, mas não do mundo; é a alma segunda produzida por uma alma primeira que possui sensações e inteligência.
Cumpre ainda notar que, no sentido de essência, natureza também figura no pensamento de grande parte dos filósofos da tradição. Os estóicos compreendiam-na como aquilo que a coisa é ou que faz dela aquilo que é – como essência, portanto. Como essência, a natureza é o ser mesmo das coisas. Nesse caso, trata-se da natureza íntima de um ser. No entanto, esta natureza não se concebe isoladamente do Todo; na perspectiva estóica, a lei da minha natureza – a saber, daquilo que faz de mim quem eu sou – é estar incorporado ao Todo.
O que externamos a respeito da significação do conceito de natureza está longe de constituir uma exposição exaustiva, mas suficiente para esclarecer a significatividade do conceito no interior da proposta filosófica de Rosset. Pode-se, pois, formular uma definição de natureza que lança luzes sobre o próprio horizonte hermenêutico recoberto pelo naturalismo: a natureza é a causa do desenvolvimento imanente das coisas. Todavia, essa definição não elide a noção de essência como uma região da significação da ideia de natureza. Na verdade, os dois sentidos gerais, anteriormente definidos, são abrigados pela cosmovisão naturalista.
A phýsis ou natureza é o princípio donde se origina o Kósmos; é a realidade primeira e última de todas as coisas. Como força criadora originária de todas as coisas, a natureza é responsável pelo surgimento, transformação e perecimento delas.
Aproximando-se ao fim desta seção, ajunte-se que quem assume a cosmovisão naturalista do real endossa a compreensão de mundo como uma Totalidade ordenada cuja origem se identifica com um princípio primeiro – a natureza. Quem endossa a doutrina metafísica, deturpada mas de inspiração platônica, segundo a qual há um ser como suporte das aparências sensíveis, há uma ordem transcendente à desordem do mundo fenomênico endossa uma visão naturalista.


1.3. A Cosmovisão artificialista

Nesta seção, estarei interessado em definir a cosmovisão artificialista tendo em vista os aspectos que a tornam distinta da cosmovisão naturalista. Na seção anterior, vimos o que significa natureza, conceito fulcral da cosmovisão naturalista. Doravante, faz-se mister definir dois conceitos também fundamentais em vista dos quais a cosmovisão artificialista se estrutura como sistema filosófico de compreensão do mundo: o artifício e o acaso.
Não é escusável dizer, antes de nos lançarmos à tarefa cujo desenvolvimento se nos apresenta imperioso, que o traço fundamental com base no qual a cosmovisão naturalista se distingue da cosmovisão artificialista toma forma na proposição: nada se poderia produzir sem alguma razão. No passo seguinte, Rosset enfatiza a característica distintiva da cosmovisão naturalista:

“A ideia fundamental do naturalismo é uma neutralização da atuação do acaso na gênese das existências: afirma que nada se poderia produzir sem alguma razão e, consequentemente, as existências independentes das coisas introduzidas pelo acaso ou pelo artifício dos homens resultam de outra ordem de causas, a ordem das causas naturais. Sabe-se somente que a natureza é aquilo que resta quando em todas as coisas neutralizam-se os efeitos do artifício e do acaso: ninguém determina exatamente isso que resta, no entanto, para que se constitua a ideia de natureza, basta supor a existência de qualquer coisa que resta” (p. 24, grifos meus).



A distinção entre natureza e artifício está na base da separação tradicional entre o mundo natural e o mundo humano (o da cultura). A cultura é vista, assim, como artifício, como produto da prática humana. O domínio da cultura recobre, além das crenças, conhecimentos, valores produzidos pelo homem, as técnicas de transformação da natureza. A cultura é parte do ambiente resultante da transformação da natureza pelo homem. Essa transformação é operada pelo homem por meio de seu trabalho. O que daí resulta – a cultura – é o domínio do artificial e do convencional.
A natureza, por sua vez, recobre o domínio das existências presentes e independentes da ação dos homens. No escopo da crítica de Rosset, está justamente o postulado da separação entre natureza e cultura. A ideia de um mundo como natureza implica a recusa da facticidade do real, bem como uma exigência prévia de justificação do real. O artificialismo proposto por Rosset assenta na imprevisibilidade de todo ser e assume o acaso de toda constituição. Assim, a ideia de acaso implica a insignificância radical de todo pensamento ou acontecimento, bem como a supressão das fronteiras entre os domínios do natural e do artificial.
A ontologia proposta por Rosset é trágica, porque descerra um mundo desnaturado e privado de sentido. Entanto, não é um mundo absurdo o que se desvela; é um mundo frágil, simples e inocente, como diz o autor. O mundo se diz frágil porque o acaso – a soma fortuita de circunstâncias – o constitui. O mundo se diz simples, porque é um mundo em que tudo o que existe é singular. Finalmente, o mundo é inocente, porquanto a existência permanece incapaz de se reduzir a qualquer natureza.
A esta altura, o leitor deve ser prevenido de que a ideia de artifício, que está implicada na caracterização do pensamento artificialista, não recobre aquilo que resulta da ação humana. Não se deve pensar o artifício como aquilo que imita o natural, ou como uma capacidade ou método utilizado para fabricar algo. A cosmovisão artificialista se assenta na ideia de artifício como um marcador de independência em relação a todo princípio natural. O que se tem em vista com o termo artifício é a descrição de um mundo desprovido de natureza.
O artifício compreende o conjunto dos fatos existentes, ao qual se opõe a natureza como o domínio das leis não existentes (ou existentes enquanto projeções do pensamento humano). Leis naturais não são princípios objetivamente verificáveis, mas resultam de um processo de construção/abstração da mente humana com base na crença numa regularidade dos eventos fenomênicos. Só se pode postular leis naturais na suposição de que existe uma ordem natural. É isso que a cosmovisão artificialista rejeitará: não há leis naturais, porque não há tal ordem natural, porque não há tal natureza que confere ordem ao mundo.
No tangente ao conceito de acaso, a cosmovisão artificialista toma-o como anterior à constituição de toda série causal e de toda ordem. O acaso, no sentido trágico que nos interessa esclarecer, é anterior a todo acontecimento e a toda necessidade. Em Lógica do Pior (1989), Rosset denominará esse acaso de acaso original ou constituinte: original, porquanto não supõe nenhuma natureza na origem de sua possibilidade; e constituinte, porque é a origem produtora de tudo que se representa como dotado de natureza, de ordem. O pensamento trágico tem em vista o acaso original que, como se vê, prevê certa estabilidade de combinações, sempre, no entanto, temporária. Pontuando esse aspecto do acaso, escreve Rosset:

“(...) produzindo tudo, o acaso produz também seu contrário que é a ordem (donde a existência, entre outros, de um certo mundo, esse que o homem conhece, e que caracteriza a estabilidade relativa de certas combinações” (p. 96).


O acaso é, na realidade, um antiprincípio, porque somente ele permite explicar o caráter fortuito, aleatório, isto é, artificial- não submetido a uma natureza e suas leis – de toda existência.



3. Considerações finais

A cosmovisão naturalista tem uma longa história na filosofia. Sua vertente antiga se estende do século IV AEC. ao século XV EC – um vasto período no qual encontraremos defensores como Sócrates, Platão, os Cínicos, Aristóteles, passando por pensadores da Antiguidade Cristã e da Idade Média e encontrando ressonância no início da Idade Moderna.
Todavia, entre o século XVI e a primeira metade do século XVII, num período de aproximadamente cinquenta anos que precede a restituição do naturalismo feita por Descartes, a cosmovisão artificialista pôde desfrutar de algum prestígio. Entre os defensores dessa cosmovisão, se acham Maquiavel, Pascal e Hobbes. É, no entanto, na modernidade, mais precisamente na segunda metade do século XVII, que a cosmovisão naturalista ressurgirá com Descartes e será ratificada na filosofia das Luzes, depois no idealismo alemão e em todas as formas modernas de filosofia da história.
A decisão que se impõe ao estudioso de filosofia em face das duas cosmovisões que se lhe apresentam como dois horizontes hermenêuticos que permearam a história da filosofia é condição de possibilidade para a assunção de seu compromisso existencial com a filosofia, a qual ou deve-lhe ser um exercício metamorfoseador de seu modo de ser, ou, suprimindo-se enquanto tal, se reduzir a um compêndio de ensinamentos entregues à mera prática de assimilação intelectiva. Como se vê, a decisão sobre a cosmovisão em que fundará sua existência envolve a escolha pelo indivíduo de quem serão os seus mestres na tarefa de (re)edificação e reafirmação de seu modo de ser próprio.
A oposição entre a cosmovisão naturalista e a cosmovisão artificialista supõe a separação entre aqueles para quem o mundo se explica por recurso a um princípio que lhe confere uma razão de ser e aqueles para quem o mundo é desprovido dessa razão de ser, não sendo mais do que resultado de encontros fortuitos produzidos pelo acaso. O que se opõe não são apenas duas cosmovisões, mas dois modos de existir, dois modos de ser, de se relacionar cognitiva e afetivamente com mundo, sem que dessa relação esteja alijado o investimento fisiológico do indivíduo cuja vida é devotada profundamente à filosofia. Na decisão, está em jogo a determinação do modo próprio de relação fisiológica do indivíduo com o mundo.
É o ser próprio de quem escolhe, de quem assume um compromisso efetivo com uma ou outra cosmovisão filosófica, com uma ou outra forma de compreender o Uni-verso que se determina na escolha. A decisão também define quais serão os filósofos que orientarão o trabalho permanente envolvido na constituição da coerência de seu modo próprio de ser - trabalho com cuja realização o indivíduo se compromete no momento da decisão. Essa decisão, portanto, opõe os que viverão na companhia cotidiana de um Platão, de um Epicuro, de um Rousseau, de um Schopenhauer aos que viverão na companhia de sofistas, de um Lucrécio, de um Maquiavel ou de um Nietzsche.




[1] Rosset (1989) usa apenas o termo “visão” para designar essas duas formas de compreensão do real. Mas o termo “cosmovisão” me pareceu mais adequado para descrever tanto a extensão totalizante da visão (pois se trata da visão do Todo) quanto o grau de envolvimento com o mundo por parte de quem a assume.