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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Trabalho apresentado como requisito para a aprovação na disciplina EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO LINGUÍSTICO no curso de doutoramento / 2010

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O CONCEITO DE COMPETÊNCIA NAS ABORDAGENS FORMALISTA E FUNCIONALISTA: UMA BREVE DISCUSSÃO


1. Introdução

“(...) é o ponto de vista que cria o objeto”

(Saussure)

 

As reflexões que se estenderão ao longo destas páginas se orientam pela admissão de que a pluralidade teórica da Linguística é necessária e inevitável, porquanto seu objeto de estudo – a linguagem – é heterogêneo, multifacetado e heteróclito. Rechaçamos, portanto, qualquer visão teórica que se pretenda reducionista ou radical e nos baseamos na lição de Neto, em Ensaios de Filosofia da Linguística (2004), segundo a qual cada teoria opera um recorte sobre a realidade, instaurando, assim, seu objeto observacional, o qual constitui “a “região” que a teoria privilegia como foco de sua atenção e é constituído por um conjunto de fenômenos observáveis” (p. 35). É na base do estabelecimento de seu objeto observacional que se erigirá o objeto teórico; este se define por um conjunto de entidades básicas, de pressupostos e de objetivos, além de se fundamentar numa metodologia específica. Veja-se, a título de esclarecimento, o seguinte passo de Neto:

 

“Teorias diferentes podem construir objetos teóricos distintos sobre um objeto observacional que é supostamente o mesmo, bastando para isso reconhecer entidades básicas, predicados e relações no objeto observacional”.

(p. 37)

 

 

Das palavras do eminente linguista, pode-se depreender que o objeto observacional diante do qual estão os gerativistas e os funcionalistas, por exemplo, é o mesmo, a saber, a linguagem. No entanto, o modo como ela será concebida, o aparato conceitual e metodológico de que lançarão mão para estudá-la, os objetivos perseguidos, os pressupostos em que se apóiam serão determinantes da diferença entre dois objetos teóricos – o dos gerativistas e o dos funcionalistas. Destarte, gerativismo e funcionalismo não se ocupam do mesmo objeto teórico. E devemos reconhecer, eticamente, que isso não constitui problema algum; problema há quando se notam atitudes que engendram rivalidades e menosprezo pelo trabalho do outro.

Conquanto nos alinhemos com a perspectiva funcionalista, acreditamos ser equivocada qualquer atitude ou posição que ignore a herança formalista da qual a Linguística moderna, desde Saussure, é devedora. Que a língua seja um sistema de signos, uma estrutura, um sistema de frases, um sistema simbólico responsável por estruturar a realidade, uma atividade intersubjetiva socialmente fundada, etc. – disso não temos dúvida. Resta avaliar as vantagens que nos proporciona a escolha de uma ou outra concepção.

 

1.2. Objetivo

 

Nosso intento é discutir de que modo as abordagens formalista e funcionalista se diferenciam, tendo como parâmetro orientador o conceito de competência.

Evidentemente, dada a natureza desta exposição, não se empreenderá uma discussão exaustiva; vamo-nos cingir aos aspectos fundamentais da distinção entre as duas abordagens, que estejam intrinsecamente relacionados ao conceito de competência.

Visto que os rótulos formalismo e funcionalismo recobrem um vasto espectro de teorias ou abordagens, será necessário fazer algum tipo de abstração. Como representante da abordagem formalista, consideraremos, para efeito de discussão, o gerativismo, tal como foi desenvolvido e propalado pelo seu maior expoente – Noam Chomsky (1957)[1]; por outro lado, vamo-nos ater ao funcionalismo desenvolvido e divulgado por Halliday.

 

 

2. Formalismo e Funcionalismo: uma breve discussão

 

 

Entendendo ser toda teoria um conjunto sistemático de enunciados e conceitos, portanto, um todo coeso e coerente, é lícito afirmar que cada conceito terá sua validade dentro do universo teórico específico no qual é desenvolvido. Ademais, a reflexão sobre um dado conceito permite-nos apontar caminhos que nos levarão ao reconhecimento das bases em que se estabelece a distinção entre duas (ou mais) correntes teóricas.

Para o que nos compete aqui, o conceito de competência é um grande indicador da distinção entre uma e outra corrente teórica. Vamo-nos ocupar, num primeiro momento, em defini-lo no interior do gerativismo; posteriormente, traremos à baila o modo como ele foi reinterpretado e desenvolvido na abordagem funcionalista.

 

 

2.1. A competência linguística no gerativismo

 

Em Estruturas Sintáticas (1980)[2], Chomsky se refere à competência linguística da seguinte forma:

 

“(...) capacidade de um falante do inglês para produzir e compreender novos enunciados rejeitando, simultaneamente, outras sequências novas como não pertencentes à língua”.

(p. 26)

 

 

Dispensando o fato de que neste trabalho, na medida em que constitui uma descrição do inglês, o autor trate da competência relativamente a uma comunidade linguística específica – a dos falantes de inglês, importa notar que esse conceito envolve duas espécies de conhecimento: um operacional; outro avaliativo. Assim, é a competência linguística de que todo falante nativo dispõe que lhe permitirá produzir (e compreender) enunciados em sua língua materna, bem como avaliar as construções dessa língua relativamente ao conjunto de regras previstas pela sua gramática.

 Destarte, serão consideradas gramaticais as construções que resultaram da aplicação das regras previstas pela gramática de sua língua materna; e agramaticais, as que não resultaram dessa aplicação. Evidentemente, a gramaticalidade não se resolve em polos opositivos, mas sobre uma gradação em termos de aceitabilidade.

Em Linguagem e Linguística – uma introdução (1987), Lyons apresenta aquilo que será um aspecto determinante da diferença de compreensão do conceito de competência nas abordagens gerativa e funcionalista.

 

“A competência linguística de um falante é um conjunto de regras que ele construiu em sua mente, pela aplicação de sua capacidade inata para a aquisição da linguagem aos dados linguísticos que ele ouviu à sua volta na infância (...)”.

(p. 173)

 

 

Note-se que o autor alude à relação entre a competência linguística e a hipótese inatista da aquisição da linguagem, segundo a qual a criança nasce com um programa, geneticamente determinado, chamado de Gramática Universal, que lhe permitirá, por um processo de desenvolvimento e maturação, o conhecimento e domínio de sua língua materna. A Gramática Universal é a própria faculdade da linguagem e constitui um conjunto de princípios e parâmetros, na base dos quais a criança irá operar com vistas a se tornar um falante competente em sua língua materna[3]. Os princípios constituem as regras “gerais”, isto é, comuns a todas as línguas; os parâmetros são as regras (ou valores) específicas de uma dada língua. Cabe à criança selecionar, a partir de um input (um conjunto determinado de produções linguísticas a que ela está exposta), a forma que um dado parâmetro tomará na língua em cuja aquisição ela se empenha.

Acrescente-se que a Gramática Universal pode ser vista como uma espécie de programa computacional, responsável pela produção dos enunciados linguísticos. Consoante essa perspectiva, a língua passa a ser considerada um conjunto de sentenças resultantes da operação das regras dessa gramática.

A competência linguística se desenvolve, portanto, na base de uma aptidão inata para a aquisição da linguagem. Na perspectiva gerativista, não é possível pensar a competência sem postular a existência de uma gramática universal inata que está inscrita na mente/cérebro do falante nativo. Nisso residem a coesão e a coerência a que nos referimos anteriormente: não podemos discutir o conceito de competência sem pensá-lo em sua relação com outros conceitos e sem situá-lo na totalidade do quadro teórico de que se origina. É a essa tarefa que nos dedicaremos doravante.

O conceito de competência linguística evoca o conceito de performance ou desempenho. A relação entre competência e desempenho, na forma como Chomsky a apresenta, deve ser pensada dicotomicamente. De um ponto de vista heurístico, a dicotomia competência/ desempenho tem o mesmo valor da dicotomia saussureana langueparole: visa a delimitar o objeto de estudo e, portanto, a determinar a área de interesse da ciência linguística. Tanto a parole saussureana quanto o desempenho chomskiano constituem domínios que estão fora da alçada da Linguística. Lyons dá-nos a saber a definição de desempenho.

 

Desempenho (...) é o comportamento linguístico; e é determinado não apenas pela competência linguística do falante, mas também por uma variedade de fatores não linguísticos que incluem, por um lado, convenções sociais, crenças acerca do mundo, as atitudes emocionais do falante em relação ao que está dizendo, seus pressupostos sobre as atitudes de seu interlocutor, etc. e, por outro lado, o funcionamento de mecanismos psicológicos envolvidos na produção de enunciados”.

 

 

É interessante ver a cisão entre o que diz respeito propriamente ao conhecimento do sistema de regras da língua (da sua gramática) e o que diz respeito ao uso desse sistema. O objeto de estudo do gerativismo será, pois, a competência linguística, e os modelos teóricos ou as gramáticas produzidas constituem hipóteses que visam a descrever e explicar essa forma de conhecimento inato e específico que todo falante nativo tem de sua língua materna.

Na medida em que é feita a separação rigorosa entre competência e desempenho, o primeiro conceito ganha coerência na sua relação com a ideia de um falante nativo ideal inserido numa comunidade linguística homogênea. A preocupação repousa em descrever a competência desse falante abstraído do contexto sócio-cultural; não de um falante concreto e específico, mas do falante-modelo concebido para representar a perfeição atribuída à competência linguística.

Sabe-se que o gerativismo privilegia o estudo da forma em detrimento do uso da língua, o que justifica o fato de ser considerado uma corrente representante do formalismo. No entanto, é preciso reconhecer que a forma (estrutura) é estudada de um ponto de vista interno, o que o diferencia, em parte, do estruturalismo, que se apóia num ponto de vista externo. Assim é que a estrutura da língua resulta da operação das regras da gramática internalizada do falante. A preocupação gerativista recairá sobre o componente subjacente, implícito, não-verificável imediatamente. É claro que não se pode ter acesso à competência linguística do falante nativo senão por meio de suas produções; mas tais produções não exibem tudo que é necessário para descrever e explicar essa competência. Para tanto, os linguistas gerativistas postulam a existência de um nível subjacente, chamado estrutura profunda[4], sobre a qual é calcada a estrutura superficial, dotada de configurações fonético-fonológicas e imediatamente perceptível auditiva ou visualmente.

Como não seja nosso objetivo fazer densa incursão nas especificidades da abordagem gerativa, cuidamos ser necessário retomar a questão central em torno da qual nossa discussão se desenvolve. A esta altura, cumpre notar que o modelo gerativo surge como reação à visão reducionista e mecanicista de linguagem comum aos behavioristas, dos quais o linguista Leonard Bloomfield foi um representante.

O conceito de competência linguística foi a solução encontrada por Chomsky para as dificuldades que permeavam a explicação da aquisição da linguagem pelos behavioristas. Tratava-se de uma explicação de base mecanicista, orientada por um modelo do tipo estímulo-resposta, com o qual era explicado também o comportamento de certos animais. Com o conceito de competência, Chomsky fez ver à comunidade científica a importância da criatividade no processo de aquisição da linguagem; e mais ainda: a criatividade, segundo o eminente linguista, é uma propriedade basilar que distingue os homens dos animais (e das máquinas).

Gostaríamos de pôr termo a essa seção insistindo em que a separação rigorosa entre competência e desempenho implica a necessidade de pensar o conhecimento linguístico inato como algo desvinculado de outras capacidades cognitivas humanas. Assim, cremos não incorrer em erro ao afirmar que a competência linguística é considerada uma forma de conhecimento autônomo.

 

 

2.2. A competência linguística no funcionalismo: uma perspectiva estendida

 

No artigo intitulado de Language, Context, and Text: Aspects of Language in a Social-semiotic Perspective (1989), Halliday e Hasan suscitam a questão sobre o conceito de função. Note-se o que nos ensinam os autores:

 

“In the simplest sense, the word ‘function’ can be thought of as a synonym for the word ‘use’, so that when we talk about functions of language, we may mean no more than the way people use their language, or their languages if they have more than one”.

(p. 15)

 

 

Como se vê, função identifica-se com uso. Pensar em função é pensar na finalidade com que a linguagem é usada, no papel que ela desempenha para os seres humanos. Para os autores, “people do different things with their language” (ib.id.).

Em An Introduction to Functional Grammar (1994), Halliday, no capítulo Clause as exchange, apresentará as quarto funções do discurso que considera primárias: offer (oferta), command (ordem), statement (declaração) e question (pergunta) (p. 69). Pensar a função é, então, pensar o que fazemos quando usamos a língua.

Num estudo exaustivo e minucioso, intitulado de A Gramática Funcional (2004), Neves, discutirá, no primeiro capítulo, a questão das funções da linguagem, preocupando-se, inicialmente, em nos oferecer um quadro sintético, mas não menos esclarecedor, das diferentes formas de se entender o conceito de função. Segundo a autora,

 

“(...) função pode designar as relações:

a) entre uma forma e outra (função interna);

b) entre uma forma e seu significado (função semântica);

c) entre o sistema de formas e seu contexto (função externa)”.

(p. 6)

(ênfase no original)

 

 

Claro está que a última concepção de função é a mais emblemática da perspectiva funcionalista, uma vez que ela nos permite entrever a necessidade de pensar a função em termos da relação entre língua e uso. Nessa relação é que reside a pedra angular do funcionalismo, que se pode exprimir no seguinte princípio: o uso exerce influência sobre a forma linguística. Na perspectiva de um funcionalista, as línguas têm a forma que têm em virtude do uso que delas é feito. Como o uso demanda a mobilização não só da competência linguística, mas também de outras formas de competência ou capacidades, a forma sofrerá pressões de ordem cognitiva e pragmática.

Convém ter em conta até aqui o deslocamento operado pela perspectiva funcionalista: da ênfase sobre a forma passa-se para a ênfase sobre a função; da preocupação com a forma passa-se para a preocupação com o uso. A forma passa a ser um meio para a realização das funções. Destarte, o objeto de estudo do funcionalismo é a língua em uso, ou seja, tomada na sua relação com o contexto sócio-cultural e com as funções às quais ela serve. Não estamos mais diante de um falante ideal, mas de um construtor linguístico social e culturalmente situado. É de se esperar que o conceito de competência linguística ganhe outra dimensão.

Em primeiro lugar, a preocupação com o uso linguístico e, consequentemente, com os fatores contextuais que o determinam impõe a necessidade de repensar o conceito de competência linguística. Os funcionalistas observaram que o uso da língua demanda outras formas de competências ou capacidades. Não basta ao falante nativo conhecer apenas as regras da gramática de sua língua materna, graças às quais é capaz de produzir e compreender enunciados nessa língua. Para ser bem-sucedido nas mais variadas situações comunicativas de que participa, além do conhecimento das regras dessa gramática, ele precisa utilizar suas produções linguísticas de modo adequado. Em suma, dispensando-se pormenores, a competência linguística é reinterpretada como competência comunicativa[5], a qual consiste na capacidade de o falante utilizar sua língua adequadamente para fins comunicativos. A competência comunicativa pressupõe a competência linguística, embora não exatamente nos termos como a concebe Chomsky; mas demanda dos especialistas a percepção de que usar uma língua é muito mais do que saber construir enunciados na base de um sistema de regras gramaticais.

A assunção do conceito de competência comunicativa implica o reconhecimento da importância de levar em conta a habilidade do falante para usar o seu conhecimento linguístico de acordo com as convenções sócio-culturais ou pragmáticas implicadas num contexto. Assim é que a competência comunicativa interage com outras formas de competências ou capacidades. Neves (id.), baseando-se em Dik, apontará quatro capacidades às quais a competência linguística está relacionada: a capacidade epistêmica, a capacidade lógica, a capacidade perceptual e a capacidade social. Todas essas formas de capacidade envolvem manutenção e mobilização de conhecimentos variados. A capacidade social é, particularmente, interessante, por estar intrinsecamente relacionada à competência comunicativa. Referimos o excerto em que Neves define essa capacidade abaixo:

 

“d) a capacidade social: o usuário não somente sabe o que dizer mas também como dizê-lo a um parceiro comunicativo particular, numa situação comunicativa particular, para atingir objetivos comunicativos particulares”.

(p. 77)

 

Deve-se ficar claro, pois, que pensar sobre competência à luz das abordagens formalista e funcionalista implica a necessidade de pensar o modo como elas entendem a aquisição da linguagem. Na medida em que a abordagem funcionalista contempla o papel do contexto e se preocupa com a descrição da língua em uso, a sua concepção de aquisição da linguagem será diferente da concepção formalista.

O paradigma formal advogará que a criança desenvolve sua competência linguística na base de um input desestruturado e empobrecido - trabalho este que será compensado pelo fato de ela ser habilitada inatamente para fazê-lo. A criança é pré-disposta geneticamente a adquirir qualquer língua com uma facilidade e rapidez notáveis. O paradigma funcional, a seu turno, destacará a importância do ambiente, do entorno social na aquisição da linguagem e, portanto, no desenvolvimento da competência linguística (entendida como “competência comunicativa”). Para o funcionalista, o input compreende um conjunto de dados linguísticos estruturado e adequado ao nível de desenvolvimento da criança.

O processo de aquisição de linguagem, na perspectiva funcionalista, se dá pelo desenvolvimento de necessidades e habilidades comunicativas da criança em situações reais de interação com a sua língua. Assim é que a competência linguística não constitui um conhecimento estanque, ou seja, não é separado de todo o complexo cognitivo que permite a aprendizagem pela criança de outras habilidades necessárias à sua vida social.

 

  3. Conclusão

 

Coube-nos patentear, nesta exposição, a importância de se compreender duas correntes teóricas, que, tradicionalmente, são avaliadas de uma perspectiva antagônica, tendo em conta a articulação de seus conceitos com o domínio teórico em que surgiram e se desenvolveram. Ademais, parece-nos conveniente considerar o contexto histórico em que tais modelos apareceram, o que implica também a consideração das motivações que os engendraram. 

Destarte, o gerativismo surge como reação a um modelo teórico de base behaviorista, predominante na primeira metade do século XX, que procurava estudar a linguagem na base de um processo comportamental do tipo estímulo-resposta, ou seja, a criança, num dado ambiente, adquiriria sua língua materna por mera repetição (ou reprodução) dos dados linguísticos a que estivesse exposta. O conceito de competência linguística tem o mérito de apontar a importância da criatividade humana, mormente no que toca à aquisição da linguagem. Chomsky observou que o modelo behaviorista não dava conta do fato de a criança produzir um número, teoricamente, ilimitado de enunciados que nunca teria ocorrido antes em sua experiência linguística, donde se segue que, para ele, a aquisição da linguagem independe de estímulo.

O funcionalismo, a seu turno, também surgirá por uma necessidade de dar conta de certas dificuldades encontradas pelo modelo gerativo. Assim é que muitas questões de que se ocupavam os gerativistas não poderiam ser explicadas satisfatoriamente sem a consideração do uso e do contexto. A crítica basilar dispensada pelos funcionalistas aos gerativistas repousa na tendência destes de fazer completa abstração do uso da língua, operando suas análises em frases apartadas de um contexto real de comunicação, de sorte que, não raro, tais frases eram forjadas pelo próprio analista.

É neste deslocamento de enfoque – da ênfase sobre a forma para a ênfase sobre a função (uso) – que devemos situar a compreensão do conceito de competência, nas duas abordagens em tela. Cremos, assim, que esse conceito, surgido no interior da abordagem gerativa, tem uma inegável importância para o desenvolvimento posterior da Linguística. Disso não se segue que ele será entendido do mesmo modo em outros modelos teóricos, que adotem, por exemplo, uma visão sociointeracional.

O modo como o conceito será entendido dependerá dos pressupostos na base dos quais a teoria foi construída. Na medida em que o funcionalismo adota a concepção de língua como ‘instrumento de comunicação’ (preferimos “lugar de interação”); na medida em que assume como escopo o uso, em que dá ênfase especial às funções comunicativas, em que entende a forma como meio de realizá-las; enfim, em que salienta a importância do contexto situacional e cultural na descrição e explicação do uso da linguagem, é esperado que a sua concepção de competência prescinda da natureza inatista reivindicada pelos gerativistas e que seja compreendida relativamente a outras formas de capacidade.

 

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4. Referências Bibliográficas

 

CHOMSKY, Noam. Estruturas Sintáticas. Lisboa: Edições 70, 1980.

 

CUNHA, Angélica Furtado da. Funcionalismo, in Manual de Linguística. Mário Eduardo Martelotta (org.). São Paulo: Contexto, 2009.

 

HALLIDAY, M. A.K. . An Introduction to Functional Grammar (2ª ed.). London: Edward Arnold, 1994.

 

__________ HASAN, R. Language, Context, and Text: Aspects of Language in a Social-semiotic Perspective. Oxford: Oxford University Press, 1989.

 

HYMES, Dell. On communicative Competence, in The Communicative Approach to Language Teaching. Brumft, C.; Johson, K. (orgs.). Hong Kong: Oxford University Press, 1991.

 

LYONS, John. Linguagem e Linguística: uma introdução. Rio de Janeiro: LTC, 1987.

 

MUSSALIM, Fernanda; Anna Christina Bentes. Introdução à Linguística: fundamentos epistemológicos (vol. 3). São Paulo: Cortez, 2005.

 

NETO, José Borges. Ensaios de Filosofia da Linguística. São Paulo: Parábola, 2004.

 

NEVES, Maria Helena de Moura. A Gramática Funcional. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

 

SANTOS, Raquel. A aquisição da linguagem, in Introdução à Linguística: objetos teóricos. José Luiz Fiorin (org.). São Paulo: Contexto, 2004.

 

TRASK, R. L. Dicionário de Linguagem e Linguística. Trad. Rodolfo Ilari. São Paulo: Contexto, 2008.

 

 



 

[1] Ano em que foi publicado seu trabalho revolucionário Syntactic Structures.

[2] Versão portuguesa traduzida por Madalena Cruz Ferreira.

[3] Trata-se da Teoria de Princípios e Parâmetros (Chomsky, 1981. apud. Santos, 2004: 221).

[4] Entende-se por estrutura profunda “qualquer representação abstrata da estrutura de uma sentença que os linguistas postulam para fins de análise”. (Trask, 2008: 98). Atualmente, ela é considerada um expediente analítico com o qual se podem expressar certas generalizações a partir da estrutura superficial.

[5] O conceito foi cunhado por Hymes (1991).

 


terça-feira, 1 de março de 2011

O ensino de língua portuguesa numa orientação funcionalista


O ensino de língua materna tem como objetivo precípuo (senão único) desenvolver a competência comunicativa dos falantes; no entanto, esse objetivo não pode ser atingido sem o reconhecimento de que todos os falantes nativos, independentemente de seu grau de escolaridade, de sua classe social, da origem cultural, de suas experiência de mundo, de sua idade, sexo, etnia, etc., sabem a sua língua materna, ou seja, possuem uma competência nessa língua. Por competência lingüística, portanto, entende-se o conhecimento intuitivo e implícito das regras gramaticais pelas quais os falantes nativos são capazes de produzir e interpretar sentenças em sua língua materna. Evidentemente, é uma definição simplista ademais, já que o conhecimento lingüístico é, decerto, muito mais complexo; todavia, mantenho-a com estar de acordo com a proposição chomskyana (1965). Fique claro que o conhecimento lingüístico do falante nativo consiste não só num conhecimento operacional (“capacidade de produção de sentenças gramaticais”), mas também num conhecimento avaliativo, por que julga certas construções como aceitáveis (isto é, produzidas de acordo com as regras da gramática1 de sua língua nativa) e rejeitam outras.

1. Veja-se no texto seguinte uma discussão sobre os conceitos de gramática.


A competência comunicativa consiste não só na capacidade de o falante codificar e decodificar as expressões lingüísticas, como também na capacidade de utilizar essas expressões de modo adequado aos fins comunicativos, nas mais diversas situações de interação. Destarte, não basta ao falante o conhecimento (implícito) das regras de sua língua para que ele seja bem-sucedido nas várias situações comunicativas, ele precisa utilizar suas produções lingüísticas de sorte, que possa participar do evento comunicativo. Em suma, dispensando-se pormenores, a competência comunicativa é a capacidade de o falante utilizar sua língua adequadamente para fins comunicativos. Com ser a língua um instrumento de comunicação fundamental na vida dos homens, cujo uso reflete, inclusive, a estratificação social, justo é que o ensino de língua portuguesa leve em conta o domínio da norma padrão como um dos meios possíveis para que o falante seja bem-sucedido interacionalmente e não o único meio  possível.
Intentando cumprir o objetivo do ensino de língua materna, proposto no limiar deste texto, será necessário ter em conta que não se poderá privar os aprendizes da apropriação de formas e usos lingüísticos prestigiosos sócio-culturalmente e, tampouco, não se poderá ensinar a língua dita padrão, especialmente em sua modalidade escrita, em detrimento de variedades não-padrão da língua falada ( e também escrita – muito embora, tradicionalmente, associe-se a idéia de língua padrão à de língua escrita, ignorando o fato de que há textos escritos vazados em variedades não-padrão, bem como há textos falados vazados em variedades padrão). O professor, concordante com a proposição aqui apresentada, esforçar-se-á por permitir aos alunos o acesso ao maior número de variedades lingüísticas possível, bem como a utilização adequada delas nas diversas situações de interação, atendendo às diversas demandas sócio-comunicativas.
Reitere-se que a escola tem por objetivo permitir o acesso dos aprendizes à norma padrão, mas, consoante propõem estudiosos como Sírio Possenti, Marcos Bagno, entre outros, não mais ensinará um padrão de língua ideal, fazendo abstração de outras variedades. Em primeiro lugar, o professor terá de reconhecer que muitas formas e usos prescritos pelas gramáticas normativas são arcaicos, portanto, não encontram repercussão no uso atual da língua. Em segundo lugar, não poderá valorizar a variedade padrão em detrimento das variedades não-padrão. Também não poderá ignorar o fato de os pontos de vista dos gramáticos serem, muita vez, conflitantes, isto é, as interpretações sobre as construções que devem ser recobertas pela norma padrão, muita vez, são divergentes.
A competência textual diz respeito à capacidade de o usuário da língua distinguir um texto coerente de um aglomerado de frase, bem como à capacidade de ele operar sobre o material lingüístico, na produção dos seus textos, realizando operações de paráfrase, resumo, ou reconhecendo a completude ou incompletude deles, ou ainda atribuindo-lhes um título adequado, a partir do qual os produz.
Há que reconhecer outrossim outras capacidades que intervêm no uso que os falantes nativos fazem de sua língua. Citem-se as seguintes:

a) a capacidade epistêmica: capacidade pela qual o usuário constrói, conserva e explora uma base de conhecimento estruturado, podendo derivar conhecimento das expressões lingüísticas, arquivar adequadamente esse conhecimento e lançar mão dele quando da interpretação de expressões lingüísticas ulteriores;
b) a capacidade lógica: valendo-se de princípios lógicos, ou seja, do raciocínio, o falante é capaz de extrair parcelas de conhecimentos de outras parcelas de conhecimento que mantém em sua memória;
c) a capacidade perceptual: o usuário se vale de suas percepções para derivar conhecimento; o conhecimento adquirido pela aplicação de sua capacidade perceptual é empregado para interpretar as expressões lingüísticas;
d) a capacidade social: diz respeito ao saber sócio-culturalmente transmitido graças ao qual o falante usa sua língua de acordo com as normas sócio-comunicativas vigentes. Ou seja, o falante sabe o que dizer e como dizer, numa determinada situação de interação.




  Tais capacidades se inter-relacionam, do que decorre a produção de um output, que pode ser importante para que as demais capacidades possam atuar.
Reconheça-se, contudo, que, a fim de levar a efeito o objetivo fundamental do ensino de língua portuguesa a falantes nativos – a saber, desenvolver a competência comunicativa desses falantes -, o professor deverá ter em conta uma outra concepção de língua, ou seja, não poderá entender apenas a língua como um sistema de signos desvinculado da realidade sócio-cultural e histórica dos seus falantes e também como “algo” estranho a eles (a saber, como uma realidade que desconhecem, que lhes é tão “misteriosa” e que deve ser “aprendida” mediante prática de exercitação contínua e exaustiva no ensino formal). O professor deve, portanto, ter em conta que a língua é um produto sócio-cultural, que varia ao longo da história de uma sociedade, que acompanha e se adapta às condições materiais e espirituais de vida dessa sociedade, que serve, entre outras funções, à função comunicativa, ou seja, permite aos membros de uma sociedade a comunicação entre si, etc. A rigor, numa perspectiva funcionalista, o professor deve entender a língua como lugar de interação, atividade social de negociação de significados, mediante a produção de textos, na qual se envolvem interactantes situados social e culturalmente. Ademais, o professor deve considerar a língua como uma propriedade cognitiva, como um conhecimento “inscrito” na mente humana e, mais propriamente, deve encarar a linguagem como uma faculdade da mente que permite aos seres humanos interpretar e estruturar a realidade do mundo, tornando-a ‘dado’ de consciência. Assim é que cada língua refletiria, a priori, uma dada visão de mundo, ou seja, deixaria entrever uma codificação (ou “recorte”) peculiar do mundo relativamente a um determinado grupo sócio-cultural. Assim também é correto dizer que o estudo das línguas pode contribuir para se entender melhor como se estrutura e funciona a mente humana. Disso se segue uma fascinante discussão sobre a inter-relação entre pensamento e linguagem, da qual não me ocuparei aqui, muito embora, como desperte bastante interesse nos estudiosos da linguagem (filósofos, gramáticos e lingüistas) há séculos, deve-se tê-la sempre em conta. Dessa questão tem-se ocupado especialmente a lingüística cognitiva.
Do exposto desse último parágrafo, depreende-se que deve estar consciente o professor de português da variação lingüística, a saber, deve ter em conta a pluralidade e diversidade inerente às línguas. Sabe-se, há muito, que o português constitui um “balaio de variedades lingüísticas”; não existe, pois, uma só língua portuguesa no Brasil. No Brasil, falam-se muitas variedades de língua portuguesa, e não há razões empíricas para a hierarquização dessas variedades, segundo parâmetros avaliativos de espécie alguma: certas formas e usos lingüísticos são considerados “ruins” ou “errados”, em virtude de uma avaliação de ordem social (e ideológica); a sociedade é que, servindo-se de parâmetros de ordem diversa (e não-lingüística!), classificam certas expressões lingüísticas como “certas” ou “cultas” e outras como “erradas”, “ruins” ou “incultas”. É consabido que, especialmente na realidade sócio-cultural brasileira, há uma relação intrínseca entre usos lingüísticos e inserção social: os usos lingüísticos desprestigiados e condenados relacionam-se às classes menos favorecidas economicamente; e os usos prestigiosos constituem marcas das classes mais prestigiosas, isto é, dominantes. Nesse tocante, diz-se, comumente, que a língua é um fator de estratificação social.
No tocante ao conceito de variação lingüística, convém ao professor familiarizar-se com as noções de registro e de dialeto.  Luiz Carlos Travaglia, em seu livro Gramática e Interação: uma proposta para o ensino de gramática (2003), reserva um capítulo em que nos apresenta uma lição sobre variação lingüística. À página 42, refere os dois tipos de variedades lingüísticas, a saber, os dialetos e os registros. Os dialetos são variedades da língua que se definem nas dimensões territorial, geográfico (ou regional) e social (nesse caso, chamam-se socioletos) e se dão em função dos usuários da língua. Os registros, a seu turno, são variedades que ocorrem em função do uso que se faz da língua, de tal sorte que a variação depende do receptor, da mensagem e da situação. Assim é que, ao se referir ao falar nordestino em face ao falar sulista, por exemplo, consideram-se, pois, dois dialetos diferentes. Da mesma sorte, quando se observa o comportamento verbal de uma determinada classe social, em contraste com o comportamento verbal de outra classe social, leva-se em conta a existência de dois dialetos sociais ou socioletos. A variação aqui ocorre em função da esfera sócio-cultural ocupada pelos usuários da língua. A gíria, por exemplo, que se define como um uso da língua próprio de um grupo social – uso por que esse grupo social se identifica e por que se “protege” da influência de outros grupos – constitui um tipo de dialeto social. No âmbito social, a variação pode dar-se em função de parâmetros como idade, sexo e função dos usuários da língua.
No tocante aos registros, importa considerar três tipos de registros: grau de formalismo, modo e sintonia. O grau de formalismo diz respeito à adequação do emprego das expressões lingüísticas às diferentes situações de interação, para atender às necessidades sócio-comunicativas esperadas. Há, pois, no grau de formalismo, uma escala de formalidade que se estende do registro familiar ao registro oratório, na modalidade oral, e do registro pessoal ao hiperformal, na modalidade escrita. A variação de modo diz respeito à oposição entre língua falada e língua escrita, de tal sorte que esta é entendida como um sistema específico, diferente do sistema da língua falada. A sitonia é um tipo de registro que orienta o uso para o ajustamento ou reformulação dos textos produzidos pelo falante, em virtude de ter em conta conhecimentos prévios sobre o seu interlocutor. Esses conhecimentos relacionam-se ao status social do interlocutor, o qual determina a seleção e o emprego dos recursos lingüísticos (não se fala com um garçom da mesma forma como se fala com um médico, por exemplo); à tecnicidade dos conhecimentos do interlocutor acerca de um determinado assunto (o professor de língua falará sobre um determinado assunto de modo diferente, caso esteja em uma conferência perante especialistas ou esteja em presença dos pais de seus alunos, etc.); à cortesia, que diz respeito à dignidade do interlocutor ou ao formalismo exigido pela situação. Por exemplo, num enterro, espera-se que alguém diga algo como (1), mas não como (2) e (3):

(1) Meus sentimentos pelo falecimento de seu marido.
(2) Meus sentimentos por seu marido ter batido as botas.
(3) Então, quer dizer que o velho abotoou o paletó de madeira?

Finalmente, cumpre mencionar a variação na dimensão da norma, que se refere ao uso lingüístico em consonância com um padrão de linguagem de prestígio. Nesse tocante, ao nos comunicarmos, tendemos a apreciar de modo positivo ou negativo as produções lingüísticas de nosso interlocutor. Consoante ensina Travaglia (2003:57), “usamos uma determinada variedade lingüística porque a julgamos apropriada para falar com aquele(s) ouvinte(s) em particular”. Essa variedade pode ser social, geográfica ou um registro técnico, cortês, etc.
Claro está que a exposição apresentada aqui do conceito de variação lingüística e de suas variedades é bastante sucinta; conveniente, contudo, para efeito de nossa proposição. Cumpre dizer, por fim, que o conceito de dialeto difere do conceito de registro, na medida em que este se refere à suposta influência do interlocutor na seleção e no uso dos recursos lingüísticos adequados a satisfazer às necessidades sócio-comunicativas em uma determinada situação, e aquele se refere ao uso da língua pelo falante, numa esfera geográfica, regional ou social. Os termos registro e variedade são empregados, normalmente, para denotar o mesmo conceito; variedade, muita vez, vale por dialeto. Comumente lê-se “dialeto regional”, “dialeto social” em face de “variedade regional” ou “variedade social”, etc.
Em que pese à confluência terminológica, convém ter em conta o seguinte conceito de variedade, colhido da obra Sociolingüística: uma introdução crítica (2002: 177):
“ sistema de expressão lingüística que pode ser identificado pelo cruzamento de variáveis lingüísticas (fonéticas, morfológicas, sintáticas, etc.) e de variáveis sociais (idade, sexo, região de origem, grau de escolarização, etc.)”.