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segunda-feira, 13 de maio de 2013

"Amo como ama o amor. Não conheço nenhuma outra razão para amar senão amar. Que queres que te diga, além de que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo?" (Fernando Pessoa)


                            

                            
                              A liquidez do romântico


Duas questões porão em movimento minhas reflexões neste texto: O que é o romantismo? e Quem é o romântico?. Para tentar respondê-las, proporei um passeio, que se pretende breve, pela história do movimento romântico. O movimento romântico, na verdade, recobriu um conjunto diversificado e díspar de tendências, de tal modo que parece mais adequado falar em romantismos.
Como um movimento estético, o romantismo surge num período que se estende do final do século XVIII aos meados do século XIX. A cena história em que se deve situar o romantismo é marcada pelo declínio da aristocracia do século XVIII e a eclosão do cientificismo urbano-industrial da segunda metade do século XIX (período longo em que se deu a chamada Revolução Industrial). O romantismo teve diversos desdobramentos nos três países em que vicejou: a Inglaterra, a Alemanha e a França.
Sendo mais do que um programa de ação que congregou poetas, filósofos, artistas, romancistas e músicos, o romantismo foi um movimento que abrigou atitudes conservadoras e libertárias, a inovação estética e a repetição de padrões consagrados, a íntima relação com o poder e a revolta radical. Não se pode negar que liberdade, paixão e emoção constituem os pilares do movimento romântico. Mas não foi só disso que viveu o romantismo.
Uma maneira de compreender mais facilmente o drama romântico é pensar na natureza do herói romântico. Ele é marcado pela inadaptação ao mundo, pelo desacordo com a sociedade, pelo descontentamento com ela. O herói romântico é um sujeito deslocado ou marginalizado. Seu destino é solitário e suas disposições psíquicas levam-no às diversas formas de fuga (o sonho, a morte, a idealização do amor, da mulher, da pátria, etc.).
O romantismo nasce – é preciso frisar - permeado por contradições, assentado sobre afirmação e negação que instauram o conflito entre o eu e o mundo, entre o indivíduo e o Estado, produzindo as condições necessárias à eclosão de um individualismo de profundidade jamais antes sentida no Ocidente. O sujeito romântico é um sujeito problemático, porque em desarmonia com o seu tempo e com a História. Devemos entender que a exacerbação lírica ou o sentimentalismo exagerado, a melancolia, o pessimismo e a valorização da morte são algumas das formas pelas quais o romântico expressa sua insatisfação ou espanto em face dos valores de sua época que, em sua visão, se tornaram inaceitáveis. O romântico é, assim, um sujeito social inconformado, que vive em constante conflito com o mundo.  A insatisfação com a realidade sócio-histórica levava os românticos a acentuar as sensações, os sentimentos e as imagens oníricas.
Nada mais distante de um romântico que o homem comum deslumbrado com a vida, bem satisfeito com as condições sociais de existência. Nada mais longe de um romântico que o indivíduo bem adaptado ao social, ao seu mundinho egóico. Não se é romântico se não se vê à volta com um profundo sentimento de mal-estar. Ser romântico não se reduz a ser afetuoso, extremamente carinhoso e cortês. Quem está bem arranjado em sua própria pele não é um romântico; quem olha para o mundo e se sente em casa não é um romântico.  Tampouco é romântico quem não se confronta com o mundo e se abandona ao desejo de sua própria morte como fuga derradeira em face das desilusões. Todo romântico se caracteriza, fundamentalmente, pelo desencanto, pela tendência à melancolia e pela valorização da morte, ao mesmo tempo em que alimenta um espírito revolucionário ou de revolta.
Um olhar sobre o romantismo hoje revela, segundo Citelli (2007), o seguinte:

“O que existe hoje são presentificações de gestos e valores que vicejaram pelo século XIX: um olhar sonhador, um comportamento evasivo, um certo saudosismo e crença de que o mundo já não é tão bom como antes, a viagem proporcionada pelas drogas, o intenso e muitas vezes platônico sentimento amoroso, são alguns dos múltiplos aspectos a que se chama comumente de postura romântica. É preciso ponderar, portanto, que ao se falar hoje em romantismo considera-se um conjunto de experiências humanas decorrentes de uma situação histórica precisa e que já não se confunde mais com aquele quadro de referências do século XIX”.
(p. 9)



Não tenho a intenção aqui de contar a história do amor romântico, mas de examinar qual é o espaço destinado ao amor romântico em nossa modernidade líquida. Outra questão também me ocupará: o que é ser romântico numa época em que os valores do mercado permeiam as relações interpessoais, de modo a torná-las cada vez mais frágeis e descartáveis? Tenho, forçosamente, de começar por entender a relação entre o amor-paixão e o amor romântico. Giddens, em seu A transformação da sexualidade (1993), propõe uma distinção entre amor-paixão e amor romântico. Segundo Giddens, o amor paixão exige dos amantes a abstração das suas atividades rotineiras. O envolvimento emocional entre eles é invasivo e avassalador. Destarte, imersos no amor paixão, os apaixonados ignoram as obrigações do dia-a-dia.  Por ser um sentimento subversivo, e, portanto, capaz de sacrificar as exigências da vida social, é encarado como perigoso (Giddens, 1993, p. 48).
Claro é que o amor romântico incorporará um pouco do amor-paixão, mas, ao contrário deste, procurará responder melhor aos anseios sociais. O amor romântico acena com as necessidades de liberdade e auto-realização ainda muito presentes em nosso século. Seus valores estão associados ao casamento e ao papel da mulher como dona de casa e mãe. Se, por um lado, o amor romântico estava associado à subordinação da mulher ao lar e à sua limitada participação nas esferas públicas, por outro lado, serviu também a elas para a expressão de seu poder e autonomia. Para os homens, a tensão entre o amor-paixão e o amor romântico ligava-se à separação entre o amor “respeitável” experienciado com a esposa e o amor sensual experienciado, fora da esfera do lar, com a prostituta. Segundo Giddens,

“(...) a fusão do amor romântico e da maternidade permitiu às mulheres o desenvolvimento de novos domínios de intimidade. (...) Como especialistas do coração, as mulheres estabelecem contato uma com a outra em uma condição de igualdade pessoal e social, dentro dos aspectos amplos das divisões de classe. As amizades entre mulheres ajudaram a mitigar os desapontamentos do casamento, mas também mostraram-se por si sós compensadores. As mulheres falavam das amizades, assim como os homens frequentemente o faziam, em termos de amor, e ali encontraram um verdadeiro confessionário”.
(p. 55)



O amor romântico supõe certo grau de autoquestionamento (como eu me sinto em relação ao outro?). Importa ver que o amor romântico é incompatível com a luxúria. Na realidade, a consumação do ato sexual, no amor romântico, tende a enfraquecê-lo. O amor romântico é amor de almas. No amor romântico, o outro preenche um vazio no eu. O eu só se torna inteiro pelo outro. O amor romântico, não deixando de incorporar resíduos do amor-paixão, é amor voltado para a transcendência. Seu fim pode ser trágico, mas também pode produzir triunfos. O amor romântico se baseia na idealização do outro. Há, como no amor-paixão, a absorção do outro. As heroínas românticas são agentes produtoras do amor. O amor delas faz com que sejam amadas pelo outro.
Não se pode negar o caráter subversivo do amor romântico, mas, como nota Giddens,


“O caráter intrinsecamente subversivo da ideia do amor romântico foi durante muito tempo mantido sob controle pela associação do amor com o casamento e com a maternidade, e pela ideia de que o amor verdadeiro, uma vez encontrado, é para sempre”. (p. 58)



No tangente ao amor-paixão, Furtado, em seu livro Amor (2008), nota que:

“O amor-paixão implica a ideia da eleição do outro e da busca da fusão erótica com ele – fusão que não depende necessariamente da realização de um ato sexual sem o que a própria vida perderia o sentido. O outro é elevado ao estatuto de ser absoluto, paradoxalmente, para mim”.

(pp. 39-40)


Qual é a forma de amor predominante na modernidade atual? Há quem entenda que o amor de nossa época é um amor epidérmico, ou seja, um amor que se manifesta ao nível superficial da pele. Bauman (2004), enfatizando a fragilidade dos vínculos humanos, chama ao amor da modernidade atual “amor líquido”. O amor líquido é a forma de amor característica da modernidade líquida (Bauman, 2009).

“A vida líquida” e a “modernidade líquida” estão intimamente ligadas. A “vida líquida” é uma forma de vida que tende a ser levada adiante numa sociedade líquido-moderna. “Líquido-moderna” é uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir. A liquidez da vida e a da sociedade se alimentam e se revigoram mutuamente. A vida líquida, assim como a sociedade líquido-moderna, não pode manter a forma ou permanecer por muito tempo”.

(p. 7)


Segundo Bauman, as relações amorosas estão hoje entre os dilemas mais árduos com que precisam lidar homens e mulheres. A maioria deles tem necessidade da ajuda de um companheiro fiel “até que a morte os separe”. No entanto, o “até que a morte os separe” os assusta e os desencoraja: outras pessoas não podem nos aprisionar; não podemos permitir que elas nos impeçam de viver as múltiplas possibilidades de usufruir cada vez mais prazer. Temos de seguir o ritmo frenético desta “vida líquida” cujas condições mudam num curto espaço de tempo. Temos de buscar prazeres cada vez mais urgentes e sempre renováveis. O “até que a morte nos separe” condena-nos ao tédio, causa aborrecimento e nos acarreta uma vida sexual-afetiva de privações. Os compromissos que aspiram a conservar-se por tempo indeterminado devem ser evitados, porque podem nos impedir de viver algo melhor no futuro. Prefiram-se as “conexões”, facilmente desfeitas caso as circunstâncias não nos beneficiem mais.
Nas condições da vida líquida – ou “no império do efêmero”, termo com que o filósofo francês Gilles Lipovetsky denominou a modernidade, - o amor tornou-se uma mercadoria cuja aquisição, por um preço módico, todos desejam rapidamente. As leis da sociedade de consumo – obsolescência, sedução e diversificação – passaram, por meio de processos ideológicos e socioeducativos, a invadir as esferas privadas de relacionamentos, produzindo, assim, as condições favoráveis à experiência dos amores líquidos. Os amores líquidos se definem por duas características essenciais: a incessante busca por novos relacionamentos e a recusa de vínculos duradouros. Os amores líquidos, sempre fluidos e frágeis, se regem pelo imperativo da libido, o qual leva os envolvidos a buscar incessantemente novas possibilidades de prazer. Consoante nota Bauman (2009) a respeito das condições de existência na modernidade líquida,

“A vida numa sociedade líquido-moderna não pode ficar parada. Deve modernizar-se (leia-se ir em frente despindo-se a cada dia dos atributos que ultrapassaram a data de vencimento, repelindo as identidades e assumidas) ou perecer. (...) A necessidade aqui é correr com todas as forças para permanecer no mesmo lugar, longe da lata de lixo que constitui o destino dos retardatários”.

(pp. 9-10)


Eis o drama amoroso dos homens e mulheres modernos: eles querem o amor verdadeiro, mas não estão dispostos a vivenciá-lo como um longo trabalho intersubjetivo de construção de companheirismo, cumplicidade e fidelidade ao próprio amor. Novamente, devemos ponderar sobre estes excertos de Bauman (2009)

“Não se deixe apanhar. Evite abraços muito apertados. Lembre-se de que, quanto mais profundas e densas suas ligações, compromissos e engajamentos, maiores os seus riscos. Não confunda a rede – um turbilhão de caminhos sobre os quais se pode deslizar – com uma malha, essa coisa traiçoeira que, vista de dentro, parece uma gaiola. E lembre-se, claro, de que apostar todas as suas fichas em um só número é a máxima insensatez”.

(p. 78)


“Quando a qualidade o decepciona, você procura a salvação na quantidade. Quando a duração não está disponível, é a rapidez da mudança que pode redimi-lo”.

(p. 77)


O imperativo da libido, que impulsiona os homens e as mulheres a buscar cada vez mais prazer, em novas formas de relacionamentos, se pauta pela quantidade de conquistas sexuais. Entre os jovens é comum ouvir o conselho “a fila anda”, sempre que percebem que os relacionamentos de outrem fracassaram. É o que nos diz Bauman: nessas circunstâncias, só a rapidez da mudança, do seguir em frente na busca ininterrupta de prazer é que pode nos poupar o aborrecimento ou o tédio.
Instabilidade, fragilidade, urgência de prazer, recusa a manter vínculos duradouros caracterizam as condições dos relacionamentos humanos da modernidade líquida. Tais condições são reforçadas pela influência do que Bauman (2009) chama “síndrome consumista”.

“A síndrome consumista” à qual a cultura contemporânea se rende cada vez mais tem como centro uma enfática negação da virtude da procrastinação e do preceito de “retardar a satisfação” – princípios fundadores da “sociedade dos produtores” ou “sociedade produtivista”. Na hierarquia herdada dos valores reconhecidos, a “síndrome consumista” destronou a duração, promoveu a transitoriedade e colocou o valor da novidade acima do valor da permanência”.


(p. 83)


Na cultura líquido-moderna, a norma é seguir o fluxo das mudanças, libertar-se das condições sufocantes e desagradáveis. É necessário esquecer rapidamente o que passou ou o que já foi superado. Os valores de outrora já não contam mais; os padrões em que se pautavam comportamentos dantes apreciáveis fazem parte do antiquário do esquecimento.

“Evidentemente, seria injusto e imprudente depositar na indústria de consumo, e apenas nela, a culpa da situação em que a criação cultural hoje se encontra. Essa indústria está bem equipada para a forma de vida a que chamo de “modernidade líquida”. Essa indústria e essa forma de vida estão afinadas entre si e reforçam mutuamente o controle sobre as opções que os homens e as mulheres de nossa época podem, de forma realista, fazer. A cultura líquido-moderna não se percebe mais como uma cultura do aprendizado e do acúmulo, como as outras registradas nos relatos de historiadores e etnógrafos. Parece, em vez disso, uma cultura do desengajamento, da descontinuidade e do esquecimento.

(p. 83)



Ocorre, porém, que, pelo menos desde Platão, o amor sempre foi pensado como um sentimento vinculado à ideia de eternidade. Ao contrário, o desejo é instantâneo. Segundo Furtado (2008, p. 28), o gozo não é a realização do amor. Para ele, o amor é um trabalho, é uma dificuldade, muito mais do que uma faculdade. A isso, acrescenta que o amor supõe a crença de que de dois se possa fazer um. Certamente, essa concepção é adequada à imagem do amor romântico. Furtado nota, contudo,

“[que] o sexo desfaz essa crença através da certeza, sempre refeita em cada ato sexual, por melhor que ele seja, de que onde há dois, há sempre e reiteradamente, dois”.

(p. 32)


Lembre-se de que já disse que o amor romântico é incompatível com a luxúria. O amor romântico não supõe consumação do ato sexual. É um amor de almas. Disso se segue que, nas condições atuais, tais como descritas acima, nas quais os relacionamentos se estabelecem sobre o imperativo da urgência de gozo, é pouco provável que haja terreno para o enraizamento do amor romântico ou de seus ideias. No amor romântico e nisso ele acompanha o amor-paixão, o outro é elevado à posição de ser absoluto, muito embora, paradoxalmente, essa elevação seja relativa ao amante (Furtado, 2008 p. 40).
Em O paradoxo amoroso (2011), Pascal Bruckner oferece-nos à apreciação estas palavras bastante felizes:

“Amar é antes de mais nada subtrair um ser da comunidade humana, desertificar o mundo e não saber de nada que não seja ele. Esse sacrifício exige, porém, reembolso e se possível com juros. O eleito deve me provar diariamente que eu estava certo ao colocá-lo sobre um pedestal e desdenhar outros galantes eventuais”.

(p. 86)


Claro me parece que a representação que Bruckner faz do amor nesse trecho é incompatível com a forma de amor-líquido, já que esse supõe, dada a fragilidade, a necessidade de buscar novos galantes.  Todavia, Bruckner nos ensina algo importante sobre o amor: todo amor é condicional. Além disso, todo amor é fonte de demandas. No amor, os amantes se elegem em meio a uma multidão de possíveis pretendentes. Isso, evidentemente, implica privações. Ao se elegerem, eles aceitam abrir mão de outros possíveis pretendentes ao posto de objeto do seu amor. Tal sacrifício demanda a garantia da permanência do sentimento eletivo. O Eu te amo passa, assim, a significar eu te elegi para ser senhor de meu coração. O Eu te amo reiterado todos os dias reforça ao amado a sua importância na vida do amante. No amor, todo ser amado é um ser especial. Mas não nos enganemos. Como nos lembra Precht (2012), não raro, amamos os que não nos amam e não amamos os que nos amam. Curiosamente, “não escolhemos sempre a pessoa mais amorosa para amar” (Precht, 2012, p. 172).
E esta lúcida fórmula de Sponville, em O amor à solidão (2006), não nos deixará iludir com o amor:

“Há desespero em todo amor e tanto mais quanto menos ilusões temos”.
(p. 53)

sexta-feira, 22 de março de 2013

Memórias 1



                     

                              A Morte do Romântico
                               E a liquidez do Amor

O eminente crítico literário Alfredo Bosi expressou-se assim, acerca da temática dos escritores do Romantismo (2006: 93):

“A natureza romântica é expressiva (...). Ela significa e revela. Prefere-se a noite ao dia, pois à luz crua do sol o real impõe-se ao indivíduo, mas é na treva que latejam as forças inconscientes da alma: o sonho, a imaginação”
(ênfase no original)

A menos que presenciemos nitidamente a vulgarização do sentido de ser romântico e, consequentemente, um novo modelo imaginário pós-moderno do que é ser romântico – decerto, ralo e trivial -, não me parece errôneo acreditar que as formas de existência românticas já feneceram. Os cadáveres do Romantismo jamais ressuscitarão e seus fantasmas há muito foram exorcizados.
Na sua obra Amor Líquido, um dos mais renomados sociólogos da atualidade Zygmunt Bauman (2004: 19)afirma:


“(...) a definição romântica do amor como “até que a morte nos separe” está decididamente fora de moda, tendo deixado para trás seu tempo de vida útil em função da radical alteração das estruturas de parentesco às quais costumava servir e de onde extraia seu vigor e sua valorização”.


Zygmunt cuida haver uma ambivalência nos relacionamentos pós-modernos, a qual consiste no desejo de estreitar os laços, acompanhado da necessidade de, cada vez mais, mantê-los frouxos.
É preciso, em princípio, conter meu ímpeto verbal, a fim de que apresente algumas palavras que justifiquem a produção deste texto. Uma vez satisfeito o meu intento, darei a conhecer ao leitor os estágios nos quais se desenvolverão as minhas reflexões.
Hegel dizia serem páginas em branco as páginas felizes no amor romântico. E me sobejaram páginas vãs, algumas das quais recuperei da fogueira da depressão. Vivi segundo o governo de meu coração, durante muitos anos, e bebi do cálice da desilusão e sofrimento. Dei ouvidos aos devaneios de minha alma e acabei desditoso, descrente da possibilidade de experienciar um relacionamento inundado de um amor celestial, bem ao gosto dos Azevedos. Quiçá, a esta altura, na face, leitor, se lhe estampe um sorriso zombeteiro e se lhe afigure ao espírito que sou afeito a pieguice. Ou, talvez, endossando a afirmação de Zygmunt, acima referida, conclua ser meu desafogo o testemunho de um modo de ser e existir que se poderia chamar ‘brega’.
Alhures, esforcei-me por definir o que é ser romântico; por isso abstenho-me; apenas direi que não é romântico aquele que não vive exageradamente ou que “não vê numa gotícula de água toda a complexidade do oceano”.
A par de minha clara insatisfação e frustração decorrente de ter de me contentar com a insipidez amorosa pós-moderna, as palavras que faço deitar sobre estas páginas encontram sustento em minha insaciável necessidade de pensar, refletir, conhecer. Anuindo à verdade da afirmação socrática, segundo a qual “a vida não examinada não merece ser vivida”, emprego meu espírito na busca por compreender o declínio do amor, cujos padrões, para Zygmunt, foram baixados:


“Em vez de haver mais pessoas atingindo mais vezes os elevados padrões de amor, esses padrões foram baixados. Como resultado, o conjunto de experiências às quais nos referimos com a palavra amor expandiu-se muito. Noites avulsas de sexo são referidas pelo codinome “fazer amor”.
(p. 19)

Este fato a que fez menção o sociólogo já me foi caro, consoante se pode perceber neste poema de minha autoria, que refiro abaixo:

Apoestasia

Que me vale bradar às rosas
Se no mundo as que vejo...perfumadas
Empinam as nádegas dengosas
Ao cravo que as querem tresloucadas?

Que me vale falar às flores
De delírios ou desamores
Se os corpos à vista dos mercados
Ufanos por cachês são desnudados?

E às que são inda mocinhas
Que vivem a falar das roupinhas
Das bocas que experimentaram nas festinhas?

E mesmo às que contam vinte
Se não lêem e às cegas vivem – andorinhas!
Silabam AMOR removendo as calcinhas!

(BAR)


A concepção do amor como uma forma de ‘negócio’, ‘um contrato com prazo de validade’ e dos relacionamentos como ‘formas descartáveis de existir’ (pois existir é manter relação com) já me sorria ao espírito, muito antes de eu conhecer a obra de Zygmunt, cujo valor para mim foi propiciar-me a oportunidade de levar a efeito o intento de realimentar algumas ideias sobre o amor na pós-modernidade, de modo mais sistemático e teoricamente mais consistente.
O rigor da reflexão filosófica exige que os pensamentos pautem-se por regras que o conduzam à formação de um todo coerente e compreensível; portanto, não-contraditório. A despeito do esforço espiritual empreendido na tentativa de se chegar, com exatidão, a esse todo, não se conclua daí que se esgote a realidade posta sob o exame do espírito. Todo estudioso deve ter em conta que a realidade é sempre mais complexa e abrangente e que o conhecimento humano não pode pretender esgotar-lhe a totalidade. A totalidade do real escapa à pretensão do conhecimento à totalização. Por conseguinte, estou ciente de que não esgotarei as questões que podem ser levantadas no tocante às experiências do amor pós-moderno. Urge traçar o plano de construção, doravante.
Em princípio, é necessário situar a temática na pós-modernidade e procurar compreender como o amor tem sido experienciado numa era caracterizada por avanços tecnológicos e consumismo. Em seguida, revisitarei o discurso filosófico sobre o amor e considerarei o que dele nos disse Platão, Descartes, Kant, Spinoza e outros autores contemporâneos cuja maior contribuição foi tratá-lo de uma perspectiva cognitivo-fisiológica. Na terceira parte, lançarei olhares sobre o capítulo apaixonar-se e desapaixonar-se, que se topa na obra Amor Líquido, de Zygmunt Bauman e avaliarei algumas de suas posições criticamente. A parte final encerra as conclusões a que chegarei e que, espero, venham corroborar a tese segundo a qual o amor da pós-modernidade é um amor de conveniência.


1. O Mal-estar da pós-modernidade

O título que encabeça esta seção é o nome da obra de Zygmunt Bauman, cujas lições nortearão nossa reflexão. Buscarei a brevidade tanto quanto possível; é necessário, contudo, sumariar o conteúdo do primeiro capítulo deste livro, o qual se intitula de O sonho da pureza. O autor advoga ser a pós-modernidade instaurada sob o ideal da pureza, que constitui “uma visão da condição que ainda precisa ser criada, ou da que precisa ser diligentemente protegida contra as disparidades genuínas ou imaginadas” (p. 13).
A pureza a que se refere Bauman identifica-se com a ordem, a saber, situação em que cada coisa está em seu devido lugar. A ordem serve de um meio para regular e estabilizar nossos atos. Se um dado estado-de-coisas não se encontra organizado segundo o ideal de ordem (pureza), considera-se, pois, essa situação impura. O autor adverte-nos de que as coisas não são puras ou impuras por natureza; essas qualidades não intrínsecas a elas; são atributos resultantes de sua localização. Nesse tocante, esclarecedoras são as palavras seguintes:

“Sapatos magnificamente lustrados e brilhantes tornam-se sujos quando colocados na mesa de refeições. Restituídos ao monte dos sapatos, eles recuperam a prístina pureza”.
(p. 14)


Evidentemente, observa Bauman, que cada época e cada cultura têm seu próprio padrão de pureza. Ao interesse pela pureza, associa-se o interesse pela higiene. Higienizar para manter a pureza – nisso consiste o objetivo da ação pós-moderna. No entanto, cada ordem encerra em si suas desordens. Cada modelo de pureza tem a sua sujeira, a qual precisa ser varrida inapelavelmente. Nesse contexto, todo esforço empreendido pelas sociedades pós-modernos é orientado para combater os estranhos.
Segundo Bauman – e este é um aspecto fundamental para a nossa discussão sobre o amor -, o mundo moderno é instável e sua constância está relacionada apenas à hostilidade a qualquer coisa constante. Elenco, abaixo, as características da pós-modernidade, que  pude inferir do trabalho do autor:

·         Inconstância e insaciabilidade;
·         Velocidade, movimento, perpetuidade;
·         Diversidade de estilos e padrões de vida livremente concorrentes;
·         Atuação massificante de um mercado para consumidores, que são seduzidos com infinitas possibilidades e promessas de constante renovação de felicidade;
·         Incessante busca por intensas sensações e inebriantes experiências;
·         Flutuação de identidades: veste-se e despe-se de identidades continuamente;

As utopias modernas, em geral, se afinam com a ideia de um “mundo perfeito”, a saber, um mundo que permaneça inalterado ou idêntico a si mesmo, de modo que o que se aprende hoje possa ser válido amanhã e para todo o sempre. Observa Bauman, que


“O mundo retratado nas utopias era também, pelo que se esperava, um mundo transparente – em que nada de obscuro ou impenetrável se colocava no caminho do olhar; um mundo em que nada estragasse a harmonia; nada “fora do lugar”; um mundo sem “sujeira”; um mundo sem estranhos”.
(p. 21)

Dentre os aspectos que caracterizam a era pós-moderna, destaque-se a influência do consumismo nos relacionamentos humanos. Mais adiante, dispensarei a devida atenção a esse problema. Por ora, atente-se para a descrição que faz o autor dos homens e mulheres pós-modernos:



“Um número sempre crescente de homens e mulheres pós-modernos, ao mesmo tempo que de modo algum imunes ao medo de se perderem, e sempre ou tão frequentemente empolgados pelas repetidas ondas de “nostalgia”, acham a infixidez de sua situação suficientemente atrativa para prevalecer sobre a aflição da incerteza. Deleitam-se na busca de novas e ainda não apreciadas experiências, são de bom grado seduzidos pelas propostas de aventura e, de um modo geral, a qualquer fixação de compromisso, preferem ter opções abertas”
(pp.22-23)

A frouxidão dos vínculos estabelecidos nos relacionamentos decorre, em parte, ou melhor, é favorecida, segundo Bauman, por “um mercado inteiramente organizado em torno da procura do consumidor e vigorosamente interessado em manter essa procura permanentemente insatisfeita” (p. 23). Note-se aqui a insaciabilidade do homem pós-moderno referida em nosso elenco de características da pós-modernidade. O mercado incita o apetite dos consumidores, que passam a conservar um desejo por sensações cada vez mais intensas e por novas experiências.
As pessoas que se tornam incapazes de amoldar-se aos padrões estabelecidos pelo mercado configuram a classe dos consumidores falhos, portanto, excluídos. Como o conceito de liberdade, na pós-modernidade, está associado às esferas de consumo (na medida em que o indivíduo livre é definido em termos de poder de escolha do consumidor), os consumidores falhos, de acordo com a lógica do mercado, são indivíduos incapazes de ser livres.
À questão da sociedade de consumo e sua relação com as formas de experienciar o amor, na pós-modernidade, dada a sua relevância, será dedicada a próxima seção. Antes de levar a cabo as nossas considerações sobre a pós-modernidade, deve-se ter em conta que a busca pela pureza expressa-se numa tendência cada vez maior de tratar problemas socialmente produzidos como crimes. Lembrou-me a canção “problema social”, interpretada por Seu Jorge, da qual um dos versos diz “se eu pudesse, eu não seria um problema social”, numa clara referência à situação dos meninos de rua, rotulados pela sociedade como um “problema” e, não raro, tratados como casos da alçada da polícia.
Por fim, a (pós)-modernidade caracteriza-se por uma rejeição à tradição. Destarte, ensina Bauman:


“A modernidade viveu num estado de permanente guerra à tradição, legitimada pelo anseio de civilizar o destino humano, num plano mais alto e novo, que substituísse a velha ordem remanescente, já esfalfada, por uma nova e melhor. Ela devia, portanto, purificar-se daqueles que ameaçavam voltar sua intrínseca irreverência contra seus próprios princípios”.
(p. 26)

Devemos pensar sobre o amor à luz da concepção segundo a qual a era pós-moderna se funda na busca cada vez mais premente pelos indivíduos de prazer – um prazer, todavia, fugaz, insuficiente, cuja qualidade consiste em conservá-los na insaciabilidade do desejo.


1.2. Relacionamentos consumistas

Pode-se identificar, com Featherstone (1995), três principais grupos de teorias que se ocupam da questão da cultura do consumidor: o primeiro dos quais entende a cultura do consumidor como consequência da expansão do capitalismo, que gerou o aumento da produção por meio dos métodos tayloristas e fordistas. Nesse contexto, a criação de novos mercados serve para “educar” as pessoas, tornando-as consumidoras. Tal “educação” se dá mediante mecanismos de sedução e manipulação ideológica operados pelo marketing e a propaganda. Donde se segue uma consequência considerada negativa por alguns teóricos, qual seja, o abandono de valores e tipos de relações que eram, então, encaradas como verdadeiras e autênticas.
Ainda aqui avulta a importância de se considerar o conceito de indústria cultural, advindo da Escola de Frankfurt. Featherstone procurou estudar a transformação da cultura em mercadoria, por força da atuação da indústria cultural. Esse processo leva à formação de consumidores culturais e à redução do valores da alta cultura aos mais baixos níveis.
Com Jean Baudrillard (1995), a sociedade de consumo passa a ser compreendida do ponto de vista do valor simbólico da mercadoria. O signo é a mercadoria. A sociedade pós-moderna caracteriza-se, assim, pela saturação das imagens. Como ensina Barbosa (2008: 39):

“O presente se torna o tempo permanente e as imagens são unidas cacofonicamente, sem qualquer preocupação com uma lógica histórica que as reúna numa narrativa cronológica e espacialmente coerente”.


O segundo grupo, que encerra os modos de consumo, refere-se ao uso de mercadorias para demarcar relações sociais. As mercadorias tornam-se sinalizadores de posição de prestígio; os seus consumidores, ao se apropriarem delas, ganham status sócio-econômico pela transferência para si mesmos das propriedades simbólicas que as caracterizam. Para Bourdieu, as práticas de consumo situam-se no cerne da criação e manutenção de relações de poder, tais como dominação e submissão.
Finalmente, no terceiro grupo, se nota o consumo de sonhos, imagens, prazeres, estilos de vida. A preocupação dos estudiosos repousa em estudar os aspectos emocionais que estão relacionados ao consumo; trata-se de investigar os desejos e os sonhos que são estimulados no imaginário da cultura do consumidor.
Segundo Barbosa (p. 44), citando Featherstone, existem forças contraditórias na sociedade contemporânea que estimulam a produção e o trabalho árduo na mesma proporção que prometem prazer e satisfação dos desejos.
Campbell (2000), a seu turno, entende ser a sociedade de consumo caracterizada fundamentalmente pela insaciabilidade de seus consumidores. Houve, no hedonismo moderno, um deslocamento da preocupação que, outrora, centrava-se nas sensações, para as emoções. O controle absoluto recai sobre a imaginação do indivíduo. O consumismo preenche o lugar ocupado pela emoção e pelo desejo no domínio da subjetividade. Sua característica basilar é um irrestrito individualismo. Cabe aos indivíduos decidi quais bens e serviços desejam obter.
Campbell e Bauman divergem no que toca às consequências do consumismo na vida dos indivíduos: o primeiro considera o consumismo responsável por resolver a famigerada e tão debatida “crise de identidades”; já o segundo entende ser o consumismo capaz de causar a degradação social.
O objetivo fundamental do consumismo é a satisfação do prazer imaginativo que a imagem do produto estimula. Assim é que o prazer não decorre do acúmulo e consumo de bens, já que o descarte é rápido e incessante, mas da busca pela novidade. Um fato ilustrativo dessa obsessão social pelo novo é a rapidez com que novos modelos de celulares, com designe e funções sofisticadas surgem no mercado: há celulares que filmam, tiram fotos e ainda permitem acesso à internet. A rapidez com que esses produtos são descartados, já que novos modelos são oferecidos aos consumidores, patenteia a dissociação do valor de uso ao valor de troca e sua imediata associação com valor simbólico. Assim, caracteriza-se um estilo de vida, o qual, a seu turno, indica uma individualidade ou estilo pessoal. Como observa Barbosa,


“A roupa, o corpo, o discurso, o lazer, a comida, a bebida, o carro, a casa, entre outros, devem ser vistos como indicadores de uma individualidade, propriedade de um sujeito específico, ao invés de uma determinação de um grupo de status”.
(p. 23)
]

As discussões sobre o consumismo levam alguns estudiosos a se perguntarem sobre as condições que produzem a necessidade de consumo cada vez maior. Assim, a questão é: as pessoas são naturalmente insaciáveis e, portanto, propensas a consumir ou o aumento do poder aquisitivo leva a uma tendência irresistível ao consumo desenfreado?
Creio em que a resposta a essa questão não escusa a observação de que o desejo, a sensação de insaciabilidade são produzidos pelo mercado. Parece-me que os indivíduos são condicionados a consumir mais e mais. Tal condicionamento se dá, especialmente, pelo poder das imagens, por meio da publicidade, do marketing e da televisão.
Há, evidentemente, uma distância intransponível, entre o imaginário e a realidade, de sorte que, não experimentando na vida real os prazeres que povoam seu imaginário, o desencanto nos indivíduos é inevitável; do que se segue que, a fim de superá-lo, eles se põem a consumir mais e mais produtos. O consumo encontra sua força motriz justamente na manutenção do estado de insaciabilidade dos sujeitos, com a promessa de que ela poderá ser satisfeita com a aquisição de um novo produto.
A próxima seção é destinada à reflexão sobre o Amor, a qual será conduzida pelo que nos legaram filósofos como Platão, Spinoza, Descartes e Kant, e outros estudiosos contemporâneos.



2. O Amor na filosofia

É consabido que Eros é, na mitologia grega, uma divindade que representa o Amor. Nas diferentes versões das teogonias, Eros é considerado a força que organiza o universo e a que se atribui a responsabilidade da perenidade das espécies e da harmonia do Cosmos.
No Banquete, Platão distingue um Eros ou Amor espiritual e um Eros ou Amor sensual. Vou-me ocupar com a apresentação de algumas das concepções de Amor que se acham nos discursos dos participantes do diálogo platônico. A exposição será grosseira; não obstante, logrará sucesso se o leitor for capaz de perceber donde se originam as ideias sobre o amor que compõem o tecido ideológico da cultura ocidental.
Fedro foi o primeiro dentre os participantes a tomar a palavra. A certa altura, assim se expressou:

“Porque, de fato, o que deve orientar os homens que desejam viver uma vida honesta, isto não o dão nem as linhagens, nem as honrarias, nem a riqueza. Só o amor consegue dar isso. Que pretendo sugerir com isto? Que coisa deve orientar os homens? Julgo que às ações vis e desonestas se liga a desonra e às boas ações está ligado o amor”.
                     (p.103)

Nesse passo, está clara a associação entre ‘Amor’ e ‘Bem’: o amor é responsável pela boa conduta dos homens, por seus valores mais elevados.
Posteriormente, citando o caso de Alceste – figura lendária que morreu para a restituição da saúde de seu marido Admeto, que estava condenado à morte – Fedro concebe o amor como a maior de todas as virtudes. Trata-se do Amor sacrificial, que motiva o ser que ama a dar sua própria vida pela sobrevivência do ser amado.
A ascensão do Amor ao nível do sentimento mais nobre encontra seu ápice na seguinte passagem, na qual observamos  ser o Amor responsável por elevar o ser que o nutre à condição de ser divino:


“(...) o que ama é, de certa maneira, mais divino que o objeto amado, pois possui em si divindade; é possuído por um deus”.
(p. 106)


Pausânias, por sua vez, advertindo a Fedro, chama a atenção de todos para o fato de que as ações não são boas ou más em si; estas qualidades são atribuídas a elas, tendo em conta o modo como essas ações são vivenciadas. Há, em seu discurso, dois aspectos importantes: um deles é a associação do Belo ao Bem e do Feio ao mal. Assim, a ação bela é ação correta e boa; a ação feia é ação incorreta. O outro aspecto diz respeito a existência de duas espécies de Afrodite e, consequentemente, de duas espécies de Eros. Há uma Afrodite, denominada de Urânia, filha de Urânio – esta é mais velha; há outra, mais nova, chamada Paudemiana, filha de Zeus e Dione (Hera). Assim nem todo Eros é belo e louvável, mas o será se nos conduzir a um amor belo e louvável.
A Afrodite mais moça, considerada popular ou vulgar, define-se como o amor que toma por objeto o corpo. Este Eros é suscetível às inconstâncias do acaso. O Eros da Afrodite celeste, que participa unicamente do masculino, ama a inteligência e a força.1
 De uma perspectiva universalizante, Erixímaco, que era médico, conquanto admitisse a necessidade de desfrutar dos dois Eros, recomendou comedimento no desfrute do Eros vulgar, e acrescentou:



“(...) A própria organização das estações do ano se encontra sob a influência desses dois Eros. Se impera o Eros da ordem, a que me referi, e sob sua égide se concerta uma harmonia e boa combinação do quente e do frio, do seco e do molhado, os elementos compõem um bom ano e proporcionam saúde tanto aos homens como a todos os seres vivos e às próprias plantas. Mas, se, pelo contrário, é o Eros anárquico quem exerce domínio sobre as estações, então há muito estrago e muito prejuízo, pois de sua ação resultam geralmente pestes e muitas outras doenças, tanto para as plantas como para os animais”.
(p.117)


O mito do andrógino, que se topa também no Banquete e que se refere ao amor como busca por uma unidade, então, desfeita, ilustra a concepção do amor como busca por experienciar a unidade – unidade que não se realiza no sexo, mas o transcende; trata-se de uma unidade que, aos verdadeiros românticos como eu, é experienciada no calor dos espíritos, no perfume dos olhos, janelas da alma, e nas feições cuja beleza só pode ser percebida pelos sensores aguçados da sensibilidade transcendente.
Custa-me dissimular prazer ao compor estas linhas, pois o que meu espírito experimenta é um repugnante amargo; afinal, tomar o amor para objeto de interesse da razão é uma prática que tenho por inconveniente; no entanto, creio ser a única coisa que me restou, após inúmeras páginas fracassadas. As ideias de amor, que dantes coabitavam com os delírios da paixão romântica em minha alma, já feneceram em função do imperativo da realidade, implacável para com toda forma de devaneio lírico romântico.
Em Espinosa, “o amor é a alegria acompanhada da ideia imaginativa de uma causa exterior” (p. 41). Não é pela busca da unidade, ou melhor, da união com o ser do outro, que devemos entender o amor. Para o filósofo, pensar na existência do ser amado já é suficiente para que o amante experiencie contentamento.
O amor romântico, ao contrário do que entende o senso comum, é o amor da impossibilidade de preencher sua carência. Trata-se de um amor fugaz e ilusório. A impossibilidade de sua realização leva o amante à tristeza, ao desespero, à obsessão pela morte – fuga última a que recorre para findar as dores de sua alma. Sua característica basilar é, como cantou o poeta, o exagero: o amor romântico é o amor do exagero, da desmedida.
A personagem Werther, do romance de Goethe, declara: “Mais de uma vez me embebedei, minhas paixões nunca estiveram longe da demência, e não me arrependi de nenhuma das coisas que fiz”. Esse fragmento dá-nos uma ideia clara da intensidade do amor romântico e de sua capacidade de contrariar a moral e a sensatez da razão. 



1. Há um claro desprezo votado à mulher na época clássica grega: a filha de um deus e de uma deusa era considerada inferior a outra que tivesse nascido apenas de um deus.