Capítulo terceiro do trabalho A maximização da figura do filósofo e do estatuto da filosofia
no Fedro à luz do misticismo religioso de
Platão apresentado na disciplina
Filosofia Antiga IV do curso de Filosofia da UERJ.
No livro IV de A República, Platão apresentará sua
psicologia que assenta na divisão da alma em três partes ou funções. É
importante, antes de explicar quais são essas partes e a que finalidades elas
servem, dar a conhecer o contexto temático no qual a teoria da alma será
desenvolvida, visto que essa teoria se apresenta como um desdobramento da
questão central que ocupa Sócrates naquela altura do diálogo. A questão do que
é a justiça, que atravessa todo o diálogo de A República, demanda, no livro IV, uma investigação sobre as
condições necessárias para que a cidade, na medida em que exibe uma ordem
justa, se torne feliz. Lembremos que Platão sustenta que uma cidade justa deve
ser, necessariamente, uma cidade feliz. Platão faz a felicidade da cidade depender
de sua ordem justa. Ora, uma cidade que não se organizasse segundo a justiça (e
a questão de todo o diálogo consiste em investigar o que é justiça com o
objetivo de determinar o Estado ideal ) não poderia ser uma cidade feliz.
A questão sobre a qual
Sócrates irá se debruçar é prefigurada na pergunta, formulada por Adiamanto, no
início de sua fala, a respeito da situação social da classe dos guardiães. Adimanto
solicita a Sócrates que explique como é possível que tais homens sejam felizes
se vivem privados do usufruto de bens a que outros chefes têm acesso em
abundância. Adimanto está interessado particularmente na situação de privação
econômica da classe dos guardiães e sugere que a essa situação devemos a
impossibilidade de torná-los felizes. Como se vê, o problema que se impõe
reconhecer, desde início, - e Sócrates não se esquiva de reconhecê-lo – é que
as desigualdades sócio-econômicas constituem um obstáculo para o
estabelecimento da harmonia da cidade. Na medida em que uma cidade justa é uma
cidade cujas partes estão em harmonia, a existência de desigualdades
sócio-econômicas favoreceriam a desarmonia entre as partes; logo estorvariam o
estabelecimento de uma cidade justa.
Depois de, forçosamente,
concordar com Adimanto em que sua questão apresenta um problema que demanda
consideração, Sócrates opera um deslocamento da questão, a fim de que seu
interlocutor perceba que o problema a ser resolvido não diz respeito
circunscritamente à situação dos guardiães, mas toca à cidade inteira. Para
Sócrates, a fundação da cidade deve favorecer a felicidade de todos que nela
vivem. A esta altura, não poderia deixar de frisar que o deslocamento da
questão, operado por Sócrates, não tinha o fito de dar conta do problema das
desigualdades sócio-econômicas que, na mentalidade dos antigos, eram vistas
como naturais. Segundo a visão de mundo dos antigos, as desigualdades sociais
existem, porque os homens são, por natureza, desiguais – assim pensavam os
antigos gregos. Sócrates, portanto, reconhecia a existência das desigualdades
no domínio social, mas não estava (e não podia estar) preocupado em saná-las.
Na cosmovisão grega, somos um fragmento eterno do cosmos; cada homem tem um
lugar no interior da ordem cósmica, que é considerada boa e justa. Uma das
finalidades da vida humana é, portanto, encontrar seu justo lugar no seio da
ordem cósmica. Para garantir a harmonia dessa ordem, era indispensável que cada
homem realizasse a função que lhe é própria por natureza.
No âmbito da pólis, a justiça só poderá ser garantida
se os cidadãos forem educados segundo a prática de três virtudes: a sabedoria, a
coragem e a temperança . A sabedoria é a virtude própria dos governantes; a
coragem, dos guardiães da cidade, cuja função é defendê-la quando estão no
campo de batalha. No tocante à temperança, ela é “uma espécie de ordenação, e
ainda o domínio de certos prazeres e desejos, como quando dizem, não entendo
bem de que maneira, “senhor de si””[1].
Sócrates dirá que a temperança deve ser extensiva a toda a cidade.
A justiça da cidade é
correlativa à justiça no indivíduo, ou melhor, a justiça da cidade se identifica
com a justiça no indivíduo. Pensando a conformação da pólis correlativamente com a conformação das naturezas individuais,
Platão desenvolverá sua teoria da alma calcada sobre a ideia de que a alma é
uma unidade múltipla, dividida em três partes. O trecho em que a analogia entre
a estrutura da cidade e a estrutura da alma é explicitada merecerá um lugar
neste texto; mas, antes de apresentá-lo, convém atentar para o passo em que se
tornam claras a correlação entre a justiça da cidade e a justiça do indivíduo,
a dependência da justiça na cidade com respeito ao cumprimento por cada homem
de sua função própria e a introdução do tema da estrutura da alma:
- Dessa forma, prossegui eu -, se uma pessoa
nomear da mesma maneira uma coisa, quer seja maior ou menor, serão diferentes,
na medida em que são designadas da mesma maneira, ou semelhantes?
- Semelhantes –
respondeu.
- Por conseguinte, o homem justo, no que respeita à noção de
justiça, nada diferirá da cidade justa, mas será semelhante a ela.
- Sim.
- Mas a cidade pareceu-nos justa, quando existem
dentro dela três espécies de naturezas, que executam cada uma a tarefa que lhe
era própria; e, por sua vez, temperante, corajosa e sábia, devido a outras
disposições e qualidades dessas mesmas espécies.
- É verdade.
- Logo, meu amigo,
entenderemos que o indivíduo que tiver na sua alma estas mesmas espécies merece
bem, devido a essas mesmas qualidades, ser tratado pelos mesmos nomes que a
cidade.
- É absolutamente
forçoso – confirmou ele.
- Ora, lá caímos nós, meu caro amigo, numa questão de pouca monta sobre a
alma: saber se possui em si três partes ou não.[2]
Um pouco adiante Sócrates
pretende que seu interlocutor concorde em que “em cada um de nós estão
presentes as mesmas partes e caracteres que na cidade”. Fique claro, pois, que
a justiça, para Platão, consiste na realização por cada homem da função que lhe
é própria; por outro lado, constitui injustiça o tomarem os homens como sua a
tarefa que não é consonante com a sua natureza. Vê-se que a justiça só pode
realizar-se, no Estado ideal, com a preservação do status quo, ou seja, de uma organização política na qual cada homem
deve desempenhar a tarefa que lhe é própria por natureza (porque em
conformidade com suas disposições ou caracteres naturais) sem “se meter na dos outros”[3]. O
Estado ideal, fundado no regime aristocrático e tendo como governante o
filósofo, único capaz de garantir a justiça e favorecer o bem e a felicidade da
comunidade, porque conhecedor da realidade imutável, amigo do saber e, por
consequência, capaz de viver com moderação e retidão moral, não carece de
muitas leis, que poderiam ser reduzidas a umas poucas essenciais. Da garantia
da harmonia – portanto, da justiça nesse Estado – deve encarregar-se uma
educação que prepare os indivíduos para
viver de modo disciplinado e racional. Esse Estado ideal precisa,
portanto, ser portador de quatro virtudes: sabedoria, coragem, temperança e
justiça. A justiça é a virtude mais importante do Estado e, tendo demonstrado o
que é um Estado justo, Sócrates se ocupará de mostrar o que é um indivíduo
justo. É justamente nesse momento, em que Sócrates se volta para a explicação
do que é um homem justo, que ele discorrerá sobre a natureza da alma como uma
unidade múltipla, cujas partes tratará de discriminar e definir.
Considere-se, pois, no
que consiste a teoria da alma proposta por Platão. Escusa lembrar que a
compreensão dessa teoria iluminará o que sobre a alma nos conta o mito da
Parelha Alada, no Fedro. Se
revisitamos o contexto filosófico de A
República, não foi senão por cuidarmos estar aí explicitada a psicologia
platônica. Nossa revista dessa obra não constitui um desvio do curso fixado por
nosso objetivo; ao contrário, é um momento do desenvolvimento de um discurso em
cujo bojo reside a preocupação em investigar os desdobramentos doutrinários que
levaram à maximização da figura do filósofo e da importância da filosofia no Fedro. Naturalmente, Platão desenvolveu
suas doutrinas, recuperando-as, aprofundando-as em diversos diálogos seus, o
que exige de nós a revisita aos “lugares” onde elas aparecem (certamente não a
todos os “lugares”, já que tal empresa supõe um “recorte” de questões definido
pelo domínio de referência que constitui para nós a obra de Fedro). No mito da Parelha Alada,
pode-se identificar, além da doutrina das partes da alma, a da reminiscência, a
da imortalidade da alma, a da metempsicose e um aprofundamento da visão de
Eros, de que nos dá testemunho Platão em O
Banquete. Constituem estes os momentos previstos pelo desenvolvimento desta
exposição, sem os quais cremos não lograr nosso intento.
No livro IV de A República, a determinação das funções
da alma supõe, por um lado, as relações da alma com o corpo (o que chamamos de
homem é, para Platão, o conjunto da alma com o corpo, muito embora a essência
do homem consista na alma); por outro
lado, a determinação daquelas funções está calcada sobre duas constatações
feitas por Sócrates: em primeiro lugar, nota Sócrates que ignoramos se desejar
ou apetecer, irritar-se e compreender são realizados pela alma como um todo ou
por diferentes partes da alma; em segundo lugar, Sócrates também observa que,
no mesmo indivíduo e relativamente ao mesmo objeto, é de esperar que a alma não
possa assumir disposições contrárias, como, por exemplo, ter o desejo e beber
água e não tê-lo. Se o corpo sequioso de um indivíduo produz em sua alma o
desejo de beber água, a alma não quererá outra coisa senão beber água. Mas a
experiência prova que, muitas vezes, há um conflito no interior da alma humana,
de sorte que um mesmo indivíduo, relativamente ao mesmo objeto, pode assumir, num
mesmo lapso de tempo, uma dada disposição e o seu contrário. O indivíduo, em
cena, pode desejar beber água, mas decidir por não fazê-lo. Em vista disso, é
forçoso concluir que a tendência para beber água e a decisão por não obedecer a
essa tendência não podem depender da mesma parte da alma, mas de partes
diferentes. Por conseguinte, a alma se divide em partes diferentes, embora
relacionadas.
Em Platão, a concepção da
estrutura do homem é psicossocial, na medida em que Platão correlaciona a
estrutura do Estado com a estrutura da alma humana. O Estado compõe-se de três classes: a dos governantes,
à qual corresponde a parte racional da alma; a dos guardiães auxiliares, à qual
corresponde a parte irascível; e a dos artesãos, à qual corresponde a parte
apetitiva. Esta última classe, mais numerosa, compreende os médicos,
agricultores, pedreiros e outras profissões necessárias ao bem-estar da
comunidade. O equilíbrio entre as classes constitui a unidade e harmonia
(justiça) do Estado, assim como do equilíbrio entre as partes da alma resulta a
harmonia ou justiça do indivíduo.
Platão discrimina, então,
entre três funções da alma: a conservação
do corpo, a proteção do corpo e a produção do conhecimento. Situada no
baixo-ventre e destinada à conservação do corpo, acha-se a parte apetitiva ou concupiscente
da alma. Essa parte da alma é responsável por levar o corpo a buscar comida,
bebida, prazeres, sexo. Como se vê, ela impele o corpo a buscar tudo quanto é
indispensável à conservação dele e à geração de outros corpos. Por seu turno, a
parte irascível ou colérica, situada acima do diafragma na
cavidade do peito, é responsável pela emoção de raiva contra tudo quanto seja
prejudicial e possa causar sofrimento ao corpo. Ela incita o indivíduo a
combater as ameaças à vida. Assim é que à parte irascível da alma cabe proteger
o corpo. Em comum, ambas as partes da alma – a apetitiva e a irascível – têm o
fato de serem mortais e irracionais.
Finalmente, a parte
racional da alma cumpre a função de dominar as outras duas partes,
harmonizando-as com a razão. Dessa qualidade da parte racional da alma, Platão
nos dá testemunho, fazendo Sócrates dizer a Adiamanto:
- Diremos além disso que há pessoas que,
quando têm sede, recusam beber?
- Sim, há muitas, que o fazem muitas
vezes.
- Então, que se dirá acerca delas? Que na alma delas não está presente o
elemento que impele mas sim o que impede de beber, o qual é distinto do que
impele e superintende nele?
- É o que parece.
- Porventura o elemento que impede tais
atos não provém, quando existe, do raciocínio, ao passo que o que impele e
arrasta deriva de estados especiais e mórbidos?
- Acho que sim.
- Não é, portanto, sem razão que consideramos que são dois elementos, distintos um do outro,
chamando àquele pelo qual ela raciocina, o elemento racional da alma, e aquele
pelo qual ama, tem fome e sede e esvoaça em volta de outros desejos, o elemento
irracional e da concupiscência, companheiro de certas satisfações e desejos.[4]
A parte racional é a
parte espiritual e imortal da alma. É a função superior da alma, o princípio
divino em nós. A psicologia proposta e descrita por Platão se articula com sua
teoria ética. Não podemos perder de vista essa articulação, já que, ao dividir
a psykhé em três partes Platão está
interessado em determinar as condições necessárias para que um homem pratique o
bem e seja virtuoso. Se dominado pelas partes apetitiva e irascível, esse homem
não pode tornar-se virtuoso. É preciso, para tanto, que a parte superior e
melhor da alma comande as demais partes. A própria possibilidade de haver
justiça, discutida no livro IV de A
República, demanda o comando do superior e melhor sobre o que é inferior e
pior. Em outras palavras, para haver justiça, a parte racional da alma, que é a
parte superior e melhor, deve governar as partes inferiores, a apetitiva e
irascível. Que não reste dúvida sobre a relação necessária que Platão
estabelece entre a vida virtuosa e a parte racional da alma. Esclarecemo-la.
Platão sustenta a crença – que deve a seu mestre Sócrates – de que as paixões
do desejo e da cólera levam à produção de apetites em nosso corpo, os quais
concorrem para toldar a inteligência. O obscurecimento da inteligência por
esses apetites que decorrem das paixões do desejo impedem-na de realizar sua
atividade própria, que é conhecer. O que resulta daí é a ignorância, que é o
próprio vício. Logo, incapaz de exercer a razão, o indivíduo fica
impossibilitado de conhecer as virtudes e de tornar-se virtuoso. É assim que a
vida virtuosa dependerá unicamente da parte racional da alma.
Se nos perguntarmos sobre
qual é a tarefa ética da parte racional da alma, a resposta deve já nos saltar
evidente: dominar as outras partes da
alma, de modo a harmonizá-las com a razão. O domínio da razão sobre a
concupiscência é o que chamamos temperança
(sophrosýne). Sophrosýne é moderação. A temperança é a virtude da alma
concupiscente que se deixa dominar pela razão. Uma alma que se dispõe para a
temperança resiste aos impulsos e prazeres, modera os apetites e impõe-lhes uma
medida racional.
A vida se diz virtuosa,
quando cada uma das partes da alma realiza sua própria virtude sob o comando da
razão. Por outro lado, a vida viciosa é aquela na qual todas as partes da alma
falham na tarefa de realizar a sua excelência ou virtude que lhe é própria.
Acresça-se que nos falta dizer qual é a virtude própria da parte irascível da
alma. A parte irascível da alma serve de intermediário na ação da razão sobre a
parte concupiscente da alma. A razão não atua diretamente sobre a parte
concupiscente, já que é preciso que no comando da concupiscência pela razão
intervenha o sentimento de defesa da vida pelo qual é responsável a parte
irascível. A virtude da parte irascível da alma é a coragem (thýmos) ou a prudência (phrónesis). Dominando a parte irascível
da alma, a razão possibilita a ela discernir entre o que é bom e o que é
prejudicial para a vida do corpo.
3.1.
A doutrina da imortalidade da alma
Doravante, faremos uma incursão
pela dimensão místico-religiosa do pensamento de Platão. Os temas da
imortalidade da alma, da metempsicose e do destino das almas de que nos vamos
ocupar, nesta e nas próximas subseções, têm sua origem no pensamento
órfico-pitagórico de que Platão foi um herdeiro.[5]
Mas dizer que Platão foi um herdeiro não significa afirmar que ele não foi
responsável por imprimir um caráter próprio na recepção do pensamento
órfico-pitagórico. O ponto de partida para o que poderíamos chamar inovação platônica na doutrina órfica da
imortalidade da alma prende-se ao fato de Platão conferir a essa doutrina um
lugar de importância no tratamento da ética e da política. Sócrates disse que o
homem é a psyché (a alma), mas dizer
isso apenas era insuficiente para Platão, pois que seu mestre deixou por
resolver o problema que consiste em saber se a psyché é imortal ou não.
A cosmovisão
órfico-pitagórica assenta numa clara oposição entre a alma e o corpo: o corpo
está destinado a morrer; a alma está destinada a viver eternamente. Quem vive
em função do corpo vive para aquilo que está destinado a perecer; quem vive em
função da alma vive para aquilo que está destinado a viver para sempre, logo
viver tendo em vista a purificação da alma, mediante um contínuo progresso de
desapego do corpo. As injustiças
sofridas pelos justos só afetam o seu corpo e podem, em casos extremos, levar à
morte este corpo; mas, sendo justo um homem, o que ele perde é apenas o corpo; a alma é
salva para gozar da eternidade. Novamente, deve-se enfatizar que essa visão da
vida não foi simplesmente apropriada por Platão, “ela alcança um novo
significado depois da “segunda navegação”, isto é, depois da descoberta do
mundo inteligível” (Reale, 2007, p. 183). Platão se encarregou de demonstrar
racionalmente a imortalidade da alma, crença sem qual a visão órfica da vida
deixa de ter sentido. Consoante ensina Reale a respeito da inovação platônica, entendida
como uma ressignificação da doutrina órfico-pitagórica,
No orfismo tratava-se de
uma simples doutrina misterosófica; nos pré-socráticos que tinham aceitado a
visão órfica, era um pressuposto em contraste com seus princípios físicos; em Platão, ao contrário, está fundamentada e
apoiada perfeitamente sobre a metafísica, isto é, sobre a doutrina do
supra-sensível, da qual se torna como que um corolário (...). (ib.id.,
ênfase no original).
No Fédon, é possível distinguir entre três provas da imortalidade da
alma.[6] A primeira delas, que não irá nos interessar
aqui, tem base heraclitiana e, por isso, envolve a percepção da realidade como
atravessada pelos contrários (justo/injusto; belo/feio/ vida/morte, etc.). Essa
prova encontrará seu bom termo na doutrina da reminiscência. Vamo-nos deter na
apresentação das duas outras provas oferecidas por Platão e que ele mesmo
julgava mais importantes.
A primeira das duas provas
que devemos elucidar começa pela asserção segundo a qual a alma humana é capaz
de conhecer as coisas imutáveis e eternas. Todavia, para a alma poder apreender
essas coisas imutáveis e eternas, ela deve possuir como conditio sine quo non uma natureza que lhes seja afim. Em outras
palavras, a alma deve ser também imutável e eterna, para que possa conhecer as
coisas imutáveis e eternas.
Essa prova assenta na
premissa de que há dois domínios de realidade, conforme já vimos, a saber, o do
sensível (visível) e o do inteligível (invisível). O domínio inteligível é
imutável, suas condições não variam; o do sensível, por outro lado, é mutável.
Platão estabelecerá uma correlação do corpo e da alma com esses dois domínios
do real. Ora, notará Platão que o corpo é visível e passível de sofrer mudança e, por isso, assemelha-se ao mundo visível ou
das coisas sensíveis; a alma, porque é invisível e imutável, assemelha-se ao
mundo inteligível, que é invisível e imutável.
Uma vez que se oriente
pelas percepções sensíveis, a alma incorre, facilmente, em erro e se confunde,
porquanto as percepções sensíveis são mutáveis tanto quanto os objetos a que
elas se referem. Quando, entanto, a alma se eleva para além do domínio das
coisas sensíveis, recolhendo-se em si mesma, ela não erra mais e pode
contemplar as Ideias puras, bem como o objeto que lhes é correspondente no
mundo inteligível. Uma parte fundamental desse argumento consiste em ver que,
conhecendo no mundo inteligível o objeto adequado das Ideias, a alma reconhece
também que é afim a essas Ideias e, dado que pensa as coisas imutáveis, a alma
permanece, ela mesma, imutável.
A alma, portanto, é
imutável e eterna assim como imutáveis e eternas são as Ideias por ela
contempladas e às quais ela é afim. Resta demonstrar que a alma também é dotada
de um caráter divino. Para tanto, argumentará Platão que, quando unida ao
corpo, a alma comanda o corpo, e o corpo lhe deve obediência. Ora, uma
característica importante do divino é comandar, e do que é mortal é ser
comandado. Por conseguinte, a alma é afim ao divino; e o corpo, ao mortal.
Acompanhemos o testemunho desta primeira prova:
- Admitamos, portanto,
que há duas espécies de seres: uma visível, outra invisível.
-Admitamos.
- Admitamos, ainda, que
os invisíveis conservam sua identidade, enquanto que com os visíveis tal não se
dá.
-Admitamos também isso.
- Bem, prossigamos –
tornou Sócrates. – Não é verdade que nós somos constituídos de suas coisas, uma
das quais é o corpo e a outra, a alma?
- Nada mais verdadeiro!
- Com qual dessas duas
espécies de seres podemos dizer, pois, que o corpo tem mais semelhança e
parentesco?
- Eis uma coisa que é
clara para toda a gente: com a espécie visível.
- Por outro lado, que é
a alma? Coisa visível ou coisa invisível?
- Não é visível, pelo
menos aos homens, Sócrates!
- Todavia, quando
falamos do que é visível e do que não o é, fizemo-lo com relação à natureza
humana? Ou talvez creias que foi a propósito de qualquer outra coisa?
- Foi a propósito da
natureza humana.
- Portanto, que diremos
da alma? Que ela é coisa visível, ou que não se vê?
- Que não se vê.
- Vale dizer, por
conseguinte, que ela é uma coisa invisível?
- Sim.
- Logo, a alma tem com a
espécie invisível mais semelhança do que o corpo, mas este tem, com a espécie
visível, mais semelhança do que a alma?
- Necessariamente,
Sócrates.
(...)
- Penso não haver
ninguém, Sócrates, por mais dura que tenha a cabeça, que seja capaz de não
concordar, seguindo este método, em que, em tudo e por tudo, a alma tem mais
semelhança com o que se comporta sempre do mesmo modo, do que com as coisas que
não o fazem.
- E o corpo, por seu
lado?
- Com a outra espécie.
- Tomemos agora um outro
ponto de vista. Quando estão juntos a alma e o corpo, a este a natureza
consigna servidão e obediência, e à primeira comando e senhorio. Sob este novo
aspecto, qual dos dois, qual dos dois, no teu modo de pensar, se assemelha ao
que é divino, e qual o que se assemelha ao que é mortal? Ou acaso pensas que o
que é divino existe, por sua natureza, para dirigir e comandar, e o que é
mortal, ao contrário, para obedecer e ser escravo?
- Penso como tu.
- Com qual dos dois,
portanto, a alma se assemelha?
- Nada mais claro,
Sócrates! A alma, com o divino; o corpo, com o mortal.
- Bem, examina agora,
portanto, Cebes, se tudo o que foi dito nos conduz efetivamente às seguintes
conclusões: a alma se assemelha ao que é divino, imortal, dotado da capacidade
de pensar, ao que tem uma forma única, ao que é indissociável e possui sempre
do mesmo modo identidade: o corpo, pelo contrário, equipara-se ao que é humano,
mortal, multiforme, desprovido de inteligência, ao que está sujeito a
decompor-se, ao que jamais permanece idêntico. Contra isso, meu caro Cebes,
estaremos em condições de opor uma outra concepção e provar que as coisas não
se passam assim?
- Não, Sócrates.
- Que se segue daí? Uma
vez que as coisas são assim, não é acaso uma pronta dissolução o que convém ao
corpo, e à alma, ao contrário, uma absoluta indissolubilidade, ou pelo menos
qualquer estado que disso se aproxime?
- E por que não, com
efeito?[7]
A segunda prova de que
trataremos no Fédon exige que
consideremos um aspecto da teoria da alma que, com ter sido omitido quando da
consideração desse tema alhures, apresenta-se-nos indispensável a esta altura,
já que se trata de um saber pressuposto por essa segunda prova.
No Timeu, narrando a origem do mundo sensível como um cosmo, uma
totalidade ordenada fabricada pelo demiurgo, Platão diz ser esse mundo um
organismo vivo ou animado. O que o anima é a alma (psykhé). Em grego, psykhé se diz vida ou princípio vital
que anima um ser ou lhe confere vida. Uma vez que a vida é movimento ou
mudança, psykhé “é o princípio de
auto-atividade e de auto-conservação do cosmo” (Chauí, 2002, p. 291). Sendo
responsável pela atividade e conservação do cosmo, psykhé é a Alma do Mundo. A Alma do Mundo é também a fonte de
conhecimento, já que o demiurgo a fabricou com os mesmos elementos que empregou
na fabricação da alma humana individual. Assim, participando da Alma do Mundo,
a alma humana é princípio vital do corpo e, ao mesmo tempo, está destinada por
sua natureza mesma ao conhecimento. Também no mito da Parelha Alada, em Fedro, encontramos a ideia de uma Alma
do Mundo que, existindo no princípio, deu origem à alma dos deuses e à dos
homens. Em princípio, tanto as almas dos deuses quanto as dos seres compostos
permaneciam reunidas à abóboda celeste, de onde contemplava a Verdade ou as
Ideias. As dos seres compostos, quando incapazes de acompanhar as revoluções
celestes e vindo a perder as asas, fazem morada, depois de uma longa queda, em
fragmentos de matéria aqui na terra. Os corpos onde residem esses fragmentos
são capazes de se mover justamente em função da força da própria alma que o
anima. É assim que o homem é um composto de corpo e alma. A alma humana é de
natureza intermediária entre o divino (junto ao qual habitava outrora) e o
mundo. Ela está destinada ao conhecimento, mas, porque unida ao corpo, é
suscetível de incorrer em erro e se deixar arrastar por suas paixões, que a
afastam de seu destino natural. Psykhé
é, aqui, portanto, princípio cognoscente. É princípio da vida mental e
espiritual. A alma, em nós, é o que conhece e o que permite conhecer. Vejamos o
fragmento onde, no Timeu, narrando-se
a constituição do mundo pelo demiurgo, diz-se que ele é um ser dotado de alma; ipso facto, um ser vivo. Ressalte-se
que, diferentemente do que sucede no Timeu,
em que todos os seres são dotados de alma, no Fedro, apenas os homens possuem alma, a qual, residindo num corpo e
sendo dele distinta, é a própria razão.
Assim, a constituição do
mundo tomou cada um destes quatro elementos na sua totalidade. Foi a partir da
totalidade do fogo, da água, do ar e da terra que aquele que constituiu o mundo
[isto é, o demiurgo], não deixando de fora parte alguma nem propriedade alguma,
pois este era o seu desígnio: em primeiro lugar, que fosse, acima de tudo, um
ser vivo completo e perfeito, constituído a partir de partes perfeitas; em
seguida, que fosse único, posto que não sobraria nada a partir do qual pudesse
ser gerado um outro da mesma natureza; e ainda, que estivesse imune ao
envelhecimento e à doença, pois ele tinha perfeita consciência de que o calor,
o frio e outras forças violentas, cercando de fora um corpo composto e caindo
sobre ele, dissolvem-no e, impondo-lhe doenças e envelhecimento, causam a sua
destruição. Foi por este motivo, e com base neste raciocínio, que a partir da
globalidade dos todos produziu um só todo perfeito, imune ao envelhecimento e à
doença.
Além disso, deu-lhe a
figura adequada e congénere. De facto, a
forma adequada ao ser vivo que deve compreender em si mesmo todos os seres
vivos será aquela que compreende em si mesma todas as formas (...).
(...)
Este foi, de um modo
global, o desígnio do deus que é eternamente para o deus que havia de vir a
existir um dia; tendo assim raciocinado, fez-lhe um corpo liso e totalmente
uniforme, em todos os pontos equidistante do centro e perfeito a partir de
corpos perfeitos. Depois, no centro pôs
uma alma, que espalhou por todo o corpo e mesmo por fora, cobrindo-o com ela.
Constituiu um único céu, solitário e redondo a girar em círculos, com
capacidade, pela sua própria virtude, de conviver consigo mesmo e sem depender
de nenhuma outra coisa, pois conhece-se e estima-se a si mesmo o suficiente.
Foi por todos estes motivos que engendrou um deus bem-aventurado.[8]
(ênfases nossas).
Tomemos, então, a segunda
prova que se acha no Fédon e que nos
interessa dar a saber. Essa prova se estrutura em torno da proposição: as Ideias contrárias não podem combinar-se entre
si nem permanecer juntas. Daí se segue que elas são mutuamente excludentes.
Da impossibilidade de elas se combinarem resulta também a impossibilidade de
elas se combinarem com as coisas sensíveis que delas participam essencialmente.
Platão observará, então, que entrando a fazer parte de uma determinada coisa,
uma Ideia leva a desaparecer a Ideia que lhe é contrária e que até então estava
nessa coisa. Em outras palavras, se uma Ideia entra numa coisa, a Ideia
contrária que estava na coisa anteriormente à entrada dessa Ideia é “expulsa”
da coisa onde estava. As duas Ideias, por serem contrárias, não podem coexistir
na mesma coisa. Assim, por exemplo, o Grande em si e o Pequeno em si se excluem
mutuamente; a mesma exclusão mútua é necessária quando tais Ideias entram a
fazer parte das coisas. Assim, uma coisa grande não pode ser pequena e
vice-versa. O mesmo princípio de exclusão mútua é extensivo às coisas que, não
sendo contrárias entre si, apresentam atributos que são contrários uns aos
outros. Por exemplo, o fogo e a neve, embora não sejam contrários entre si,
apresentam atributos essenciais que são contrários entre si; sejam: [quente] e
[frio]. Ora, o fogo não é compatível com a Ideia do frio, nem a neve é
compatível com a Ideia do quente. A presença do quente faz a neve dissolver; a
presença do frio faz o fogo apagar-se.
Procuremos, agora,
estender esse argumento ao caso da alma. A alma, conforme vimos, é vida. Psykhé encerra a Ideia de vida. Ela é
que dá vida ao corpo, conforme também vimos. Justamente porque, para um grego,
a alma tem como marca essencial a vida, jamais poderá admitir em si a morte ou
tornar-se mortal. A morte, portanto, não pode afetar a alma; a morte só
corromperá o corpo. A alma, por sua vez, por ocasião da morte do corpo, se desprende
deste e se dirige para outro lugar.
Podemos, então,
compreender, a título de conclusão, que a alma, na medida em que essencialmente
encerra a vida, sendo a vida seu atributo estrutural, não pode abrigar a morte,
visto que a Ideia de vida e a Ideia de morte, segundo o princípio da exclusão
mútua dos contrários, são totalmente excludentes. É por essa razão que um grego
recusa como absurda uma combinação como “alma morta”. Trata-se de um sintagma
tão antitético, para um grego, quanto a combinação “neve quente”.
Pondo termo a esta
subseção, consideremos um último argumento em favor da imortalidade da alma,
que nos é apresentado no Fedro.
Trataremos de transcrevê-lo, não sem antes elucidá-lo. No Fedro, Platão procura provar a imortalidade da alma deduzindo-a do
conceito de psykhé. Já observamos que
psykhé é vida e que vida é movimento.
Logo, psykhé é princípio de
movimento. Porque é princípio de movimento, ou seja, na condição de princípio,
que move a si mesmo, não pode deixar de sê-lo. Atente-se para o argumento, que
transcrevemos abaixo na íntegra:
A alma toda é imortal, pois o
que move a si mesmo é imortal; porém, o que movimenta outra coisa ou é
movido por outra coisa deixa de viver quando cessa o movimento. Somente o ser que a si mesmo se movimenta, pelo
fato de nunca abandonar-se, é que não para de mover-se, como é fonte e
princípio de movimento para tudo o que recebe movimento de fora. Só o princípio não é gerado. Muito ao
revés disso: dele, necessariamente é que
se origina tudo o que nasce, ao passo que ele mesmo não provém de nada, pois se
se originasse de alguma coisa, não seria princípio. Ora, uma vez que nunca
nasceu, terá também de ser indestrutível, pois se o princípio viesse a perecer,
nem ele poderia renascer de alguma coisa, nem nada teria nascimento nele, a ser
verdade que tudo terá de provir de algum princípio. Surge daí ser princípio de movimento o que se move a si mesmo;
donde se colhe que ele não pode começar a existir nem vir a destruir-se, sob
pena de cair e parar todo o céu e toda geração, que nunca mais encontrariam
outra fonte de vida e de movimento. Demonstrada, assim, a imortalidade do que
se movimento por si mesmo, não terá de que envergonhar-se quem afirmar que
nisso consiste a essência e a própria ideia de alma. Todo corpo que recebe de fora o movimento é inanimado, sendo, pelo
contrário, animado o que tira de si mesmo, de dentro, o movimento, pois nisso,
precisamente, consiste a natureza da alma. Ora, se as coisas se passam,
realmente, desse modo, se a alma é o que a si mesmo se movimenta,
necessariamente a alma não pode ser gerada e é imortal. A respeito da
imortalidade, é quanto basta.[9]
O que, em princípio, deve
suscitar uma observação, nesse argumento, é que Platão nega que a alma tenha
uma origem, ou seja, um nascimento. Essa condição da alma como algo que não
teve um nascimento, em Fedro,
contrasta com a sua condição no relato do Timeu[10],
no qual se narra que ela foi gerada pelo Demiurgo, embora não estivesse
suscetível à morte em virtude uma decisão divina.
O texto supracitado e
colhido do Fedro, em que se prova a
imortalidade da alma, começa com o anúncio da tese cuja verdade se procura
provar – a alma é imortal, pois o que move
a si mesmo é imortal. Mas a tese inclui uma proposição que precisa ser
demonstrada, antes de que a outra proposição – “a alma é imortal” - possa ser
verdadeira. Trata-se de provar a verdade de “o que move a si mesmo é imortal”.
Platão demonstrará que a imortalidade do que move a si mesmo segue-se,
necessariamente, do fato de que aquilo que se move a si mesmo jamais pode
suster em si seu próprio movimento. A suspensão do movimento ocorreria, em caso
contrário, se a coisa que fosse movida recebesse seu movimento de outra coisa,
que poderia deixar de mover o que antes movia.
Em seguida, Platão nos faz ver que o que move a si mesmo é princípio de movimento de tudo que não
pode mover a si mesmo, mas que é, ao contrário, movido por esse princípio. O
princípio, até aqui, cumula duas propriedades: move a si mesmo e é fonte de
movimento de tudo quanto não pode mover a si mesmo. Pensar o princípio não
só como o que dá origem ao movimento dos corpos sensíveis, mas também como o
que se move a si mesmo é consonante com a concepção da alma como princípio de
vida: se vida é movimento, a alma, enquanto princípio, também deve mover-se e
mover. Platão acrescentará outra característica ao princípio: ele não é gerado. É na condição de não
gerado que é princípio; princípio, por definição, não pode provir de outra
coisa, mas é aquilo donde provém todas as coisas existentes. No entanto, Platão
deixa ao leitor a tarefa de inferir a relação entre “o fato de o princípio não
ter uma origem” e “o fato de mover a si mesmo e ser fonte de movimento de tudo
o mais”. O que o leitor deve fazer assomar à superfície textual por inferência é
a ideia de que, se gerado, o princípio receberia seu movimento daquilo que o
gerou, deixando, assim, de ser princípio de seu próprio movimento. Nesse caso,
o que geraria o princípio é que manteria o princípio em movimento, mas, nesse
caso, o princípio deixaria de ser princípio, porque gerado, e aquilo que o
gerou passaria a ser princípio. Para escapar a uma aporia, o princípio deve ser
fonte de seu próprio movimento e isso significa dizer que não pode ser gerado
por outra coisa que, na condição de aquilo que gera, seria princípio. Está
claro que o arkhé não é aquilo que dá
origem e faz mover permanecendo imóvel; ao contrário, é o que dá origem e move
a si mesmo enquanto faz mover todas as coisas. E porque move a si mesmo, o arkhé não pode ter sido gerado. Porque
nunca foi gerado, não é perecível. O que é perecível tem como condição de
existência uma outra coisa que o gerou. O que explica o caráter perecível de
algo é o fato de ter nascimento. O que é interessante no argumento é que a
ideia de geração implica a ideia de que a coisa gerada não pode mover-se a si
mesma, pois seu movimento é dado por aquilo que a gerou e que, por não ter sido
gerado, mas sendo o que gera, pode mover a si mesmo. Geração é movimento que dá
vida, que, por sua vez, é movimento que move. A alma dá vida ao corpo, porque é
vida, é movimento de si, e porque é movimento de si não pode ser gerada. Não
sendo gerada e ipso facto sendo
princípio de seu movimento é, necessariamente,
imortal.
Uma vez que tenhamos nos
convencido da validade dos três argumentos, apresentados aqui, em favor da
imortalidade da alma, não podemos renunciar a aceitar que a existência da alma
e sua imortalidade em Platão só faz sentido se, com ele, admitimos haver um ser
suprassensível – o mundo das Ideias puras e perfeitas. Em última análise, a
aceitação dessa dependência de sentido redunda na aceitação de que a alma é uma
dimensão suprassensível, inteligível e incorruptível no homem (Reale, 2007, p.
191).
3.2.
A doutrina da reminiscência[11]
A doutrina da
reminiscência, enfocada no interior da gnosiologia platônica, se desenvolve
como resposta a dois problemas que encaminhavam para uma aporia: como é
possível procurar aquilo que não se conhece e, mesmo encontrando o que se
procura, como é possível reconhecê-lo? Se o que se procura já é conhecido, por
que razão se deve procurá-lo? A doutrina da reminiscência foi formulada para
dar conta dessa aporia. Essa doutrina se assenta na afirmação segundo a qual
conhecimento é anamnese, isto é,
recordação. O conhecimento não é produzido pelo indivíduo a partir de fora, mas
se acha dentro de si. Mas o acesso ao
que está dentro de si se faz pela recordação daquilo que, em outra vida, a alma
contemplou. A reminiscência que ocorre na alma e que a faz conhecer é a reminiscência das Ideias. Com essa
doutrina, Platão descobre um a priori
objetivo (não kantiano, que era subjetivo)[12].
Nesse sentido, Platão sustentou a objetividade absoluta das Ideias, as quais se
impõem à razão humana por meio da anamnese.
A razão capta as Ideias, que preexistem independentemente do sujeito, mas não
as produz. A experiência cumpre algum papel nessa recordação das Ideias, que
constitui o conhecimento, mas apenas na medida em que constitui ocasião para a
recordação, não porque deduzimos as Ideias das coisas sensíveis (como, aliás,
preconizaria Aristóteles).
Sem ignorar que a
doutrina da reminiscência exibe um aspecto mítico-religioso e um aspecto
teorético ou dialético (este último evidente no exemplo do escravo no Mênon), aproveitaremos, para efeito de
discussão, visto sua adequação à temática da imortalidade da alma, apenas o
aspecto mítico-religioso, cujas raízes estão, como já o dissemos, em doutrinas
órfico-pitagóricas. Os sacerdotes órfico-pitagóricos mantinham que a alma é
imortal e que renasce muitas vezes. A morte põe fim a uma das vidas da alma num
corpo; o nascimento é um começar de uma outra vida que se acrescenta a vidas
precedentes.[13]
A alma, então, teria conhecido a totalidade da realidade tanto no além quanto
no aquém. Platão concluiu daí que, se é assim que se deu, a alma deve apreender
em si mesma a verdade que outrora conhecera essencialmente. Essa verdade, que
um dia a alma contemplou, ela, a alma, a possui desde sempre. O recordar é
justamente esse tirar de si operado pela alma.
Ora, se conhecer é, para
a alma, recordar aquilo que ela já sabe, aquilo que ela viu antes de habitar o
corpo e que, na recordação, se faz presente a ela nela mesma, segue-se que a
alma é imortal. A dedução da imortalidade da alma a partir da doutrina da
reminiscência está resumida neste trecho do Fédon.
- Em verdade, Sócrates –
tornou então Cebes – é precisamente esse também o sentido daquele famoso
argumento que (suposto seja verdadeiro) tens o hábito de citar amiúde.
Aprender, diz ele, não é senão recordar. Se esse argumento é, de fato
verdadeiro, não há dúvida que, numa época anterior, tenhamos aprendido aquilo
de que no presente nos recordamos. Ora,
tal não poderia acontecer se nossa alma não existisse em algum lugar antes de
assumir, pela geração, a forma humana. Por conseguinte, ainda por esta razão é
verossímil que a alma seja mortal.[14]
(ênfase nossa).
No Fedro, em dois momentos, pode-se encontrar a referência à doutrina
da reminiscência em seu aspecto mítico-religioso. Destaquemos um desses
momentos, dada a sua relevância para a compreensão da figura do filósofo nesta
obra.
(...) Realmente, a
condição humana implica a faculdade de compreender o que denominamos ideia,
isto é, ser capaz de partir da multiplicidade de sensações para alcançar a
unidade mediante a reflexão. É a reminiscência do que nossa alma viu quando
andava na companhia da divindade, desdenhando tudo a que atribuímos realidade
na presente existência, alçava a vista para o verdadeiro ser. Daí, justificar-se só ter asas o pensamento do
filósofo, pois este se aplica com todo o empenho, por meio da reminiscência, às
coisas que asseguram ao próprio deus a sua divindade. Só atinge a perfeição o
indivíduo que sabe valer-se da reminiscência e foi devidamente iniciado nos
mistérios. Indiferente às atividades humanas e ocupado só com as coisas
divinas, geralmente passa por louco, pois o vulgo não percebe que ele é
inspirado[15].
(ênfase nossa)
Esses passos de Fédon e de
Fedro, respectivamente, patenteiam, de modo irrecusável, o aspecto
mítico-religioso do pensamento platônico. Ajunte-se a isso o aspecto relacional
com as realidades divinas próprio do pensamento do filósofo. O filósofo se
destaca dentre os indivíduos por ser o único que pode alcançar uma vida
perfeita (a saber, aquela que mais se aproxima da felicidade divina), visto que
é o único que se ocupa, em sua busca do saber, de ascender às coisas divinas,
ignorando as ocupações ordinárias dos homens cujas vidas se passam inteiramente
na caverna de sombras e simulacros. É esta uma magnífica imagem do filósofo: aquele
cuja alma, tendo recordado as belas coisas que outrora viu, inflama-se pelo
desejo de tornar a contemplar o Belo em si. Teremos a oportunidade de precisar
a importância da Ideia do Belo em si e de retomar a significação do filósofo e
da filosofia na narrativa de Fedro.
3.3.
A metempsicose e os destinos escatológicos da alma
A metempsicose foi
difundida entre os gregos pela tradição órfica, tendo encontrado em Pitágoras o
primeiro filósofo a ensiná-la, certamente após o contato com o orfismo (Reale,
2012). A metempsicose é a doutrina segundo a qual a alma pode reencarnar muitas
vezes, existindo em corpos que têm não só a forma humana, mas também a forma de
animais. Essa crença na possibilidade de a alma migrar, após a morte, para
outros corpos era muito difundida na Antiguidade. Os antigos egípcios nutriam-na;
os jainistas na Índia e, com alguma ressalva, os budistas tibetanos, por
exemplo, ainda a nutrem.
A metempsicose baseia-se
num significado moral, que viria a ser muito destacado por Platão. Ora, as
sucessivas existências da alma que reencarna já em corpos humanos, já em corpos
de animais, visam a expiar alguma culpa cometida em existências anteriores. No Fédon, conta-nos Platão que a alma que viveu
demasiadamente ligada ao corpo e entregou-se, assim, às paixões, aos prazeres
não chega a separar-se inteiramente do corpo após a morte. Essa alma teme o
Hades e fica a rondar “os monumentos funerários e as sepulturas”[16].
Uma alma com tal sorte só pode ser a dos maus indivíduos. Depois de muito vaguear
entre as sepulturas e tendo se libertado do corpo em estado de impureza, essa
alma não cessa de desejar encontrar outro corpo onde possa residir. Sua ligação
ao corpo, que pode ter forma humana ou de animal, dependerá da afinidade ou
identidade de hábitos desse corpo com aqueles aos quais elas se dispuseram na
vida pregressa. No Fédon, conta-nos
Platão o seguinte, nesse tocante:
- (...) São as [almas]
dos maus, que se vêem obrigadas a vaguear nesses lugares, que recebem assim o
castigo de sua maneira de viver anterior, que foi má. E vagueiam desse modo até
o momento em que encontram o companheiro desejado, algo corporiforme, e tornam a entrar num corpo! Ora, aquilo a
que elas assim novamente se juntam deve ser, como é natural, possuidor dos
mesmos atributos que as distinguiram no curso de sua vida.
- Quais são, Sócrates,
esses atributos de que falas?
- Exemplo: em corpos de
asno ou de animais semelhantes é que muito naturalmente irão entrar as almas
daqueles para quem a voracidade, a impudicícia, a bebedeira constituíram um
hábito, as almas daqueles que jamais praticaram a sobriedade. Não pensas assim?
- Perfeitamente, é muito
natural com efeito.[17]
É fácil ver que a
doutrina da metempsicose se prende à doutrina dos destinos escatológicos da
alma, sobre a qual versaremos, muito brevemente, doravante. Para mostrar o
significado dessa doutrina, vamo-nos ater, inicialmente, ao mito da Parelha
Alada, em Fedro. Nesse mito, a
complexidade da representação do além liga-se, segundo Reale (2007, p. 200), ao
fato de ser apresentada “a causa da descida das almas nos corpos, as origens
primigênias das almas e as razões de sua afinidade com o divino”. Façamos,
pois, um resumo da narrativa.
Conta-se que, na origem,
a alma, na companhia dos Deuses, vivia uma vida divina no Séquito dos Deuses. A
queda da alma num corpo que habita a terra se deu devido a uma culpa. No mito
da Parelha Alada, a alma é como um carro puxado por dois cavalos sob o comando
de um cocheiro. Os cavalos dos deuses e seus aurigas são bons; mas os dois
cavalos dos homens têm natureza diversa: um é bom; o outro é mau. O cocheiro,
que é responsável por comandar os dois cavalos, identifica-se, por analogia,
com a parte racional da alma. Os dois cavalos, por seu turno, são as partes
irracionais da alma: a parte apetitiva é representada pelo cavalo mais
resistente à obediência, que puxa para baixo, que se deixa dominar pelo desejo;
a parte irascível corresponde ao cavalo bom, mais dócil, mais diligente em
atender aos comandos do cocheiro.[18]
Em virtude da natureza diversa dos cavalos – um é belo e nobre; do outro,
diz-se o contrário disso -, constitui tarefa árdua conduzi-los.
As almas voam no séquito
dos Deuses com o propósito de, juntamente com eles, chegar, periodicamente, ao
mais alto dos céus para contemplar o que está além dos céus, ou seja, o mundo
das Ideias. Entanto, as nossas almas têm muita dificuldade para contemplar o
Ser em si, que se situa além do céu, mormente porque o cavalo de natureza má
puxa a alma para baixo.
As almas que são bem
sucedidas e que conseguem ver o Ser, ou uma parte dele, continuam a viver na
companhia dos Deuses. Todavia, as que fracassam, mesmo mobilizando esforços
para obter sucesso, desorientam-se, atropelam-se, chocam-se e perdem as asas
depois de muito disputar umas com as outras. Desprovidas de asas, elas caem no
chão. No trecho abaixo, em que Sócrates menciona a lei da deusa Adastreia (ou
Nêmesis), da qual não se pode escapar, se acha o relato do destino das almas
bem sucedidas e mal sucedidas. A doutrina da metempsicose, que, conforme
notamos, prende-se à do destino das almas, também se deixa entrever.
A razão de tamanha
empenho de contemplar a Planície da Verdade está no fato de nascer justamente
naquele prado o alimento adequado para a porção mais nobre da alma e de nutrir-se
com isso a natureza das asas que confere à alma mais leveza. A lei de Adrasteia
é a seguinte: toda alma que, no séquito de algum deus, consegue contemplar algo
das verdadeiras realidades, fica livre de padecimentos até a revolução
seguinte, e se sempre conseguir isso mesmo, nunca mais virá a sofrer coisa
nenhuma. Quando, ao revés disso, por incapacidade de acompanhar os deuses, nada
percebe das essências, e pelo efeito de alguma desgraça intercorrente, torna-se
pesada e, em consequência desse fato, perde as asas e cai no chão: há uma lei que a proíbe entrar no corpo de
algum animal logo na geração seguinte, como também determina que a que teve
visão mais rica penetre no germe de um homem destinado a ser amigo da sabedoria
e da beleza ou cultor das Musas e do amor; a alma colocada em segundo lugar
dará um rei legítimo, potentado ou guerreiro do prol; a terceira classificada
será um político, ecônomo ou comerciante; a quarta, um ginasta amigo dos
exercícios físicos ou alguém entendido na cura das doenças do corpo; a quinta
terá vida de adivinho ou de iniciado nos mistérios; a sexta será poeta ou
alguém afeito às artes da imitação; a sétima, artista ou lavrador; a oitava,
sofista ou demagogo; e a nona, algum tirano. Em todos esses casos, os que
viveram de modo justo alcançam melhor sorte; quem praticou injustiça, destino
cem vezes pior.[19] (ênfase
nossa).
A alma que consegue
contemplar o Ser e repousar na “Planície da Verdade” não cai num corpo sobre a
terra. De ciclo em ciclo, segue vivendo na companhia dos Deuses e dos daímones. A medida de seu êxito na
contemplação das Ideias é proporcional à perfeição alcançada por sua vida:
quanto mais pôde a alma ver o Ser em si mais perfeita será a sua vida. Em
sentido contrário, será tanto menos perfeita a vida da alma quanto menos capaz
foi de ver o mundo das Ideias.
Estando morto o corpo, a
alma será julgada e por um milênio, segundo nos conta Platão na República, se beneficiará de prêmios ou
sofrerá punições proporcionais aos seus méritos, no primeiro caso, e aos seus
deméritos, no segundo. Passados mil anos, ela tornará a reencarnar. No Fedro, no entanto, Platão conta que
todas as almas não tornam ao lugar de onde partiram, nem readquirem as asas,
antes de decorridos dez mil anos[20],
salvo aquelas que se dedicaram “sem dolo à filosofia” e que “votaram aos jovens
afeição verdadeiramente filosófica”.[21]
As almas que, por três vidas consecutivas, continuaram dedicando-se à
filosofia, “voltam a adquirir asas e dali se afastam no fim de três mil anos”. [22]
De tudo que aqui precede,
não é difícil depreender que a questão basilar suscitada pelo problema do
destino das almas recobre o tipo de sorte que a alma terá quando se desliga do
corpo. A visão místico-religiosa platônica, calcada sobre a cosmovisão
orfico-pitagórica, consagrará, na história do pensamento ocidental, a crença de
que esta vida é transitória e nela o homem é uma espécie de passageiro que deve
estar, no entanto, ocupado de realizá-la como uma tarefa para obter, com seus
méritos, algum benefício no além-mundo. Nessa visão de mundo, a vida terrena e
material é uma provação.[23] A
vida terrena serve para que o homem expie as faltas cometidas em existências
anteriores. A vida verdadeira está no além, no Hades. É aí que a alma será
julgada de acordo unicamente com critérios éticos. Os juízes responsáveis pelo
julgamento da alma não levam em conta a origem do homem cujo corpo a alma
habitou – se foi um grande rei ou um servo, pouco importa. Para efeito de
julgamento, os juízes levam em consideração tão-somente o fato de ela ter
vivido de modo justo ou injusto, com temperança ou devassidão, de modo virtuoso
ou vicioso. Diferenciam-se, assim, três destinos da alma, segundo seus méritos
e deméritos.
1) a alma conhecerá
lugares maravilhosos nas Ilhas dos Bem-aventurados, se tiver vivido uma vida
justa;
2) se tiver vivido uma
vida inteiramente injusta, a tal ponto que não possa mais curar-se, ela
receberá um castigo eterno (será lançada no Tártaro);
3) Mas, se as injustiças
cumuladas forem menos graves e se viveu alternadamente segundo a justiça e a
injustiça, sem ter deixado de arrepender-se de seu modo injusto de viver, ela
será temporariamente punida (expiada a culpa, receberá o benefício merecido).[24]
3.4.
A moral ascética platônica e a função da filosofia
3.4.1. A recepção pitagórica do
orfismo
Como a dimensão
místico-religiosa do pensamento de Platão é devedora da influência de
Pitágoras, a quem devemos a divulgação na grecidade, àquela altura, de muitas
ideias órficas e, na medida em que essas ideias, mediante a divulgação
pitagoriana, puderam penetrar o pensamento platônico servindo-lhe de matriz
inspiradora de várias de suas doutrinas, é forçoso dar a conhecer de que modo
se deu a recepção por Pitágoras das crenças órficas.
Já dissemos que Pitágoras
foi o primeiro filósofo a ensinar a metempsicose que tomou ao orfismo. Agora,
devemos acrescentar que coube a ele reestruturar o orfismo em alguns de seus
aspectos essenciais. Com essa reestruturação, Pitágoras pôde dar ao orfismo um
tratamento filosófico. Se os órficos cultivavam a Dionísio, para quem a orgia
entusiástica era sagrada, Pitágoras honrava Apolo, deus da razão e da ciência.
Assinalemos, pois, o que
pensamos ser as proposições fundantes do orfismo, às quais Pitágoras deu seu
assentimento. Tal como os órficos, Pitágoras manterá que 1) a alma é imortal;
2) a alma preexiste ao corpo e continua existindo depois de desprender-se dele;
3) a união da alma com o corpo é contrária à natureza; 4) a natureza da alma é
divina, portanto, eterna; 5) a natureza do corpo é mortal e corruptível; 6) a
alma, que se acha encerrada no corpo, encontra-se nessa condição para expiar
uma culpa originária que ela cometeu; 7) a união da alma com o corpo é uma
forma de punição da alma.
No entanto, Pitágoras são
foi um mero divulgador da visão órfica de mundo; ele não esteve de acordo com
os órficos em alguns pontos essenciais da doutrina. Comecemos, então, por
sublinhar o ponto de convergência entre os órficos e Pitágoras: o sentido da vida humana supõe um fim
ultraterreno de caráter escatológico e é por meio de purificações que a alma
poderá libertar-se do ciclo de reencarnações e, como consequência, poderá
unir-se ao divino. Mas Pitágoras divergia dos órficos no tocante aos meios
de purificações que deveriam ser empregados. Os órficos acreditavam que as
celebrações e as práticas religiosas dos mistérios sagrados eram suficientes.
Eles se fiavam nos ritos como práticas capazes de elevar a alma gradativamente
a Deus. Pitágoras, por seu turno, preferia atribuir à ciência o caminho
verdadeiro para a purificação. Não significa isso dizer que não houvesse, no
pitagorismo, prescrições empíricas amparadas por superstições a regular a vida
cotidiana dos pitagóricos; todavia, o culto à ciência levado a efeito pelos
pitagóricos foi decisivo para diferençar seu modo de vida do modo de vida
órfico. A ciência passou, assim, a ocupar um lugar privilegiado na comunidade
pitagórica: ela se tornou o mais elevado e eficaz meio de purificação.
O pitagorismo instaurou
um modo de vida inteiramente novo para os gregos. Não só as formas religiosas
tradicionais se tornaram insatisfatórias para dar conta das novas exigências da
vida, como também a religião dos mistérios viu seu alcance tornar-se muito
limitado em face do poder que tinha o modo de vida pitagórico para satisfazer
tais exigências. Destarte, é possível entender por que os êxitos e consensos
obtidos pelos pitagóricos foram bastante expressivos.
O asceticismo pitagórico
incluía regras médicas de purgação e
regras de abstinência, as quais visavam a purificar o corpo e torná-lo
domesticável para a alma. Por sua vez, as práticas de purificação da alma
incluíam concentração na música que funcionava como uma etapa preparatória para
a dedicação ao estudo da teoria dos números e do sistema aritmético-geométrico
pitagórico. Aos noviços era dada uma formação científica que lhes exigia, no
primeiro período de admissão à ordem, silêncio e escuta (hábitos difíceis de
adquirir). Tendo-os adquirido, podiam formular perguntas acerca de música,
aritmética e geometria, bem como escrever tudo aquilo que aprenderam.
3.4.2. A moral ascética
platônica
Sob a influência do
orfismo-pitagorismo, a concepção dualista da relação entre alma e corpo
torna-se, no pensamento de Platão, mais do que uma concepção metafísica à luz
da qual a alma é suprassensível; e o corpo, sensível. Nessa concepção,
introduz-se um componente religioso, por força daquela influência. A partir
daí, o corpo passa a ser concebido muito mais como um túmulo ou cárcere da alma
do que um receptáculo da alma ao qual ela dá vida.
Essa mudança na forma de
compreender o corpo, influenciada pelo orfismo-pitagorismo, leva Platão a
defender que, enquanto vivemos num corpo (já que somos essencialmente alma),
estamos mortos; e a alma, que se acha no corpo, está aprisionada como num
cárcere ou jaz como num túmulo. Necessário será que o corpo morra para que a
alma se liberte de seu cárcere. Morrendo o corpo, somos transportados para a
verdadeira vida, ou melhor, passamos a verdadeiramente viver. O corpo é a
origem de todo mal: é fonte de amores doentios, de paixões destrutivas, de
ignorância, de discórdia, loucura, etc.[25]
No Fédon, Platão diz que, mesmo
chegando ao Hades, depois da morte, a alma que viveu para os prazeres e os
desejos cuja sede está no corpo ainda está contaminada por ele. Pode-se
concluir que esse corpo que aprisiona a alma pode ser para ela também como uma
doença. Vejamos a passagem em que Platão nos dá a conhecer as linhas mestra de
sua moral ascética. Lembremos – e nos deteremos nesse ponto mais adiante – que a
filosofia deve estar a serviço da libertação e purificação da alma, por isso
Sócrates censura aqueles que vivem na contramão da filosofia:
(...) Acreditando que
não deve agir em sentido contrário à filosofia, nem ao que ela proporciona para
libertar-nos e purificar-nos, esse homem volta-se para o lado dela e segue-se
na rota que ela lhe aponta.
- De que modo, Sócrates?
- Vou dizer-te. É uma
coisa bem conhecida dos amigos do saber que sua alma, quando foi tomada sob os
cuidados da filosofia, se encontrava completamente acorrentada a um corpo e
como que colada a ele; que o corpo
constituía para a alma uma espécie de prisão, através da qual ela devia
forçosamente encarar as realidades, ao invés de fazê-lo por seus próprios meios
e através de si mesma; que, enfim, ela estava submersa numa ignorância
absoluta. E o que é maravilhoso nesta prisão, a filosofia bem o percebeu, é que
ela é obra do desejo, e quem concorre para apertar ainda mais as suas cadeias é
a própria pessoa! Assim, digo, o que os amigos do saber não ignoram é que, uma vez tomadas sob seus cuidados as almas
cujas condições são estas, a filosofia entra com doçura a explicar-lhes as suas
razões, a libertá-las, mostrando-lhes para isso de quantas ilusões está inçado
o estudo que é feito por intermédio dos olhos, tanto como o que se faz pelo
ouvido e pelos outros sentidos; persuadindo-as
ainda a que se livrem deles, a que evitem deles servir-se, pelo menos
quando não houver imperiosa necessidade; recomendo-lhes que se concentrem e se
voltem para si, não confiando em nada mais do que em si mesmas, qualquer que
seja o objeto de seu pensamento. Que não creiam, enfim, senão no próprio
testemunho desde que tenham examinado bem o que cada coisa é na sua essência e
que se persuadam de que as coisas que são examinadas por meio de um
intermediário qualquer nada possuem de verdadeiro, e pertencem ao gênero do
sensível e do visível enquanto que o que elas veem pelos seus próprios meios é
inteligível e, ao mesmo tempo, inteligível!
“Contra essa libertação
a alma do verdadeiro filósofo persuade-se de que não se deve opor, e por isso
se afasta tanto quanto possível dos prazeres, assim como dos desejos, dos
incômodos e dos terrores. Ela sabe com efeito que, quando sentimos com
intensidade um prazer, um incômodo, um terror ou um desejo, por maior que seja
o mal que possamos sofrer nesse momento, entre todos os que se podem imaginar –
cair doente, por exemplo, ou arruinar-se por causa de suas paixões – ela sabe
que não há nenhum desses males que não seja ultrapassado por aquele que é o mal
supremo; é deste mal que sofremos, e não o notamos!”.
- E que mal é esse,
Sócrates?
- É que em toda alma
humana, forçosamente, a intensidade do prazer ou do sofrimento, a propósito
disto ou daquilo, se faz acompanhar da crença de que o objeto dessa emoção é
tudo o que há de mais real e verdadeiro, embora tal não aconteça. Esse é o
efeito de todas as coisas visíveis, não é?
- Efetivamente.
- E não é em tais afetos
que no mais alto grau a alma fica sujeita às cadeias do corpo?
- De que modo, dize?
- Assim: todo prazer e todo sofrimento possuem uma
espécie de cravo com o qual pregam a alma ao corpo, fazendo, assim, com que ela
se torne material e passe a julgar a verdade das coisas conforme as indicações
do corpo. E pelo fato de se conformar a alma ao corpo em seus juízos e
comprazer-se nos mesmos objetos, necessariamente, deve produzir-se em ambos,
segundo penso, uma conformidade de
tendências assim como também uma conformidade de hábitos; sua condição é
tal que, em consequência, ela jamais
atinge o Hades em estado de pureza, mas sempre contaminada pelo corpo de que
sai; o resultado é que logo recai num outro corpo, onde de certa forma se
planta e deita raízes. E por força disso fica desprovida de todo direito a
participar da existência do que é divino e, portanto, puro e único em sua
forma.
- Tuas palavras são
sábias, Sócrates – disse Cebes – são a própria verdade![26]
(ênfases nossas).
No excerto supracitado de
Fédon, figuram ideias que
consubstanciam a moral ascética platônica; tratemos de explicitá-las. Em
primeiro lugar, por ocasião do ingresso da alma no corpo, este passa a ser para
ela uma prisão, raiz de suas ilusões. O corpo impõe a alma uma maneira de ver
as realidades, impedindo-a de fazê-lo por conta própria. A alma torna-se
incapaz de atingir a verdade, permanecendo imersa na ignorância total. Em
segundo lugar, os prazeres, o sofrimento e os desejos, desde que a alma se
abandone a eles, contribuem ainda mais para a permanência dela naquele estado
de ignorância em que se acha enquanto aprisionada no corpo. De que modo? Platão
nos conta que o prazer e o sofrimento “pregam a alma ao corpo”, isto é, tornam-na
ainda mais aderente ao corpo, de sorte que ela passa a adquirir materialidade.
Nessa condição, a alma é incapaz de julgar a verdade senão segundo os ditames
do corpo – porque sua materialidade, sua maior aderência ao corpo é um
impedimento –. Por um lado, a maior aderência da alma ao corpo priva-a de uma
visão da verdadeira realidade (a alma encontra-se na ilusão, pois toma como
verdadeira realidade aquela que as indicações do corpo faz parecer ser a verdadeira realidade). Em terceiro lugar, quanto mais aderente ao
corpo está a alma mais conforme às tendências e aos hábitos dele ela está.
Segundo Platão, quando a alma, conformada ao corpo, forma seus juízos com base
na materialidade dele, da qual, agora, ela não se distingue, e quando se
compraz nos mesmos objetos que o satisfazem, o que se dá, em última instância,
é uma contaminação da alma pelo corpo. Essa contaminação persiste na alma mesmo
quando ela deixa de habitar o corpo. Ademais, a contaminação decorre da forte
aderência da alma ao corpo, circunstância esta em que a alma assume tendências
e hábitos afins às tendências e aos hábitos do corpo.
Tendo esclarecido o que
cuidamos ser as ideias fundadoras da moral ascética platônica, examinemos,
doravante, com mais acuro, essa moral, com vistas, principalmente, a destacar o
papel da filosofia e do filósofo nessa teoria moral. A moral ascética de Platão
apóia-se em dois pressupostos: a alma é afim
ao inteligível, e o corpo é afim ao
sensível. Essa distinção metafísica alicerça a primeira proposição da moral
platônica, que assume a seguinte forma deôntica: a alma deve empenhar-se para fugir do corpo. Como o verdadeiro filósofo vive sua vida segundo a
alma, ele deseja a morte (bem entendida, como morte do corpo), e a verdadeira
filosofia é um exercício de preparação
para a morte.
Compreendamos por que o
verdadeiro filósofo deseja a morte. Para Platão, o corpo, como vimos, é um
obstáculo, devido ao seu peso sensível, para a alma, cujo desejo é ascender às
realidades inteligíveis para a contemplação da Verdade. A morte só atinge o
corpo e, nesse sentido, constitui a realização completa da libertação a que
aspira o filósofo quando, em vida, dedica-se à busca do conhecimento através do
exercício da filosofia. A morte não somente não afeta a alma, como também a
beneficia enormemente, porquanto, liberta do corpo, a alma pode, enfim, viver a
vida mais verdadeira, qual seja, a vida em que a alma pode, recolhida em si
mesma, contemplar, sem os véus que sobre ela lança o corpo, o mundo das Formas
puras. Ora, a morte do corpo desvela para a alma a vida verdadeira. Destaque-se
em que consiste o paradoxo da ética platônica: a morte põe a descoberto a
verdadeira vida para a alma. O filósofo deseja a vida verdadeira que não se descerra
senão com a morte do corpo; e a filosofia é o exercício de preparação para a
vida verdadeira, isto é, para a vida vivida na dimensão pura do espírito. A
filosofia deve libertar a alma do jugo das paixões, das solicitações dos
prazeres e dos sofrimentos, tomando o divino e o verdadeiro como medida de
realização do filósofo. Que deve pretender o verdadeiro filósofo? Unir-se às
coisas divinas, pela libertação e purificação da alma.
O asceticismo platônico
propõe, portanto, a fuga ao corpo, ao mal que ele representa, mediante o
conhecimento e a virtude. Fugir do mal do corpo significa fugir do mal do
mundo, sempre mediante a virtude e o exercitar-se na busca do conhecimento.
Assim, quem, à semelhança do verdadeiro filósofo, vive sua vida segundo a
virtude e o conhecimento, assemelha-se a Deus ou ao divino, que é o horizonte
de medida para a realização da perfeição humana.
Finalmente, cumpre dizer
que Platão foi o primeiro filósofo da Antiguidade a fornecer uma tábua de
valores, em cujo topo situou os valores religiosos, pertencentes aos Deuses;
logo abaixo, dispôs a alma como a parte superior no homem e cujos valores são a
virtude e o conhecimento; em seguida, como se estivesse a construir degraus,
colocou o corpo com seus valores mantenedores da vida; e, por fim, no lugar
último da escala de valores, situou os bens da fortuna, as riquezas e os bens
exteriores. Mais afastados da filosofia são, portanto, os homens que fundam sua
vida nesses últimos valores, que nada contribuem para elevação ao divino tão
anelada pela alma do verdadeiro filósofo.
[1] A
República, 430e.
[2] Ib.id.,
435a-d.
[4]
Ib.id.,439d.
[5] Excederia os limites de nosso estudo o
pretender discorrer sobre o que foi a tradição órfica. Bastar-nos-á enfatizar
que as doutrinas das quais Platão dará uma demonstração racional se situam na
esteira da tradição órfico-pitagórica.
[6] Considerando-se Fédon, Fedro, República e Leis, o número das provas podem aumentar para cinco (Chauí, 2002).
[7] Fédon,79a-80b.
[8] Timeu,32d;
33a-b; 34b.
[9] Fedro,245c-246a.
[10] Segundo nota Reale (2007, p. 190), nos
diálogos anteriores ao Timeu, esse
parece ser o caso das almas. Neles, ela era apresentada como sem origem e sem
termo.
[11] A doutrina da reminiscência
apresenta-se, no Mênon, sob duas
formas: uma mítica e outra dialética. Para uma exposição sumária dessas duas
formas de apresentação da doutrina, ver (Reale, 2007).
[12] O a
priori kantiano e neokantiano caracterizava um modo de aquisição do
conhecimento pelo sujeito, modo que dispensava a experiência, porque o
conhecimento, nesse caso, era deduzido de princípios universais da mente humana
que independiam da experiência.
[13] Registre-se que algumas das ideias
órficas fazem eco a ideias budistas e hinduístas. Não pretendemos sugerir que
tenha havido algum tipo de contato do orfismo com essas tradições orientais,
mas apenas assinalar que há muita semelhança entre essas três tradições de
pensamento quando consideramos alguns pontos essenciais de suas doutrinas. Por
exemplo, o budismo inclui a doutrina das reencarnações da alma, tem como um de
seus corolários a ideia da Roda da vida ou samsara,
que constitui o ciclo de nascimento-morte-renascimento, do qual o homem deve
esforçar-se por libertar sua alma; a ideia de karma, que em sânscrito, quer dizer “ação”, como intimamente ligada
à primeira, e que consiste numa lei assentada sobre a relação de causa-efeito,
que rege as ações humanas e à qual devemos a recompensa ou sofrimento merecido
nesta e noutra vida. Ações boas levam a renascimentos em reinos superiores;
ações más, ao contrário, causam renascimentos em reinos inferiores (Gyatso,
2009).
[16]
Fédon,
81d.
[17]
Ib.id.,81e-82a.
[18] Inicialmente, os adjetivos “bom” e
“mau”, usados para caracterizar os dois cavalos fornecem pistas pouco seguras
para tal correspondência, já que as duas partes da alma – a apetitiva e a
irascível – beneficiam o corpo, sempre que a parte racional impõe-lhe a justa
medida. No entanto, se interpretamos “mau” como aquilo que se diz do que é
desprovido da qualidade desejável, do que é avesso a obedecer, do que tende a
ser sublevado, insubordinável, cremos possível aproximar o cavalo mau à parte
apetitiva da alma. Essa correspondência, talvez, fique mais clara, caso levemos
em conta o fato de que a parte apetitiva é mais diligente em atender às
solicitações do corpo, bem como o fato de o cavalo mau puxar a carroça para
baixo, ou seja, para o sensível, o corpóreo.
[19] Fedro,
248b-e.
[20] Não devemos esquecer que o místico
Platão foi muito influenciado pelo pensamento de Pitágoras. A referência aos
dez mil anos evoca a mística pitagórica em torno do número 10, fundada na
figura chamada tetráktys da década – um
triângulo equilátero cujos lados são constituídos cada um por quatro (tetra) pontos, com um ponto no meio. O
número dez é o número sagrado e mais perfeito, pois que, entre outras razões, é
resultante da soma dos quatro primeiros números – representando assim a síntese
da unidade. A perfeição da tetráktys deu
origem ao que passaria a ser conhecido como sistema decimal. No pensamento
baseado no sistema decimal, o dez simboliza o retorno à unidade em grau mais
elevado. No pitagorismo, o dez simboliza a harmonia. Ao atingir o dez, uma nova
série inicia-se ad infinitum. Talvez,
tenha sido esse significado que apela para o caráter cíclico, de movimento
circular do número dez que Platão tenha pretendido evocar na esteira do
ensinamento pitagórico, ao se referir aos dez
mil anos como período em que se inicia um novo ciclo de vida para a alma.
[21] Ib.id. 249a.
[22] Ib.id.
[23] É notável quão devedor dessa concepção
metafísico-religiosa é o Kardecismo. Não se segue dessa reconhecida filiação
doutrinária que o Espiritismo kardecista tenha seguido, linha por linha, o que
nos chegou pela pena de Platão a respeito da tradição órfico-pitagórica. A metempsicose
é, por exemplo, rejeitada pelos kardecistas. Mas a ideologia do kardecismo é
impressionantemente afim ao sistema de crenças de que é expressão a visão
órfico-pitagórica da vida. Naturalmente, o espiritismo não se apresenta como um
simples desdobramento ideológico de uma tradição que o precedeu, mas, como toda
religião revelada, supõe-se portadora de uma verdade divina, que no seu caso em
particular, foi ressignificada à luz de pressupostos doutrinários revelados por
entes espirituais transcendentes, que se apresentam ao médium como
confirmadores e, em alguns casos, reparadores da consagrada interpretação da
verdade revelada por Deus. No livro O
Evangelho segundo o Espiritismo (2008, p. 42-43), se acha uma seção
intitulada Sócrates e Platão, precursores
da ideia cristã e do espiritismo. Na seção seguinte – Resumo da doutrina de Sócrates e Platão (p.44-53), Kardec revisita
vários temas místico-religiosos tratados pelo pensamento platônico, entre os
quais a doutrina da preexistência da alma, da intuição que a alma tem da
existência do outro mundo, da sua sobrevivência ao corpo, de sua reencarnação,
etc. A leitura que Kardec faz de Platão o permitirá ver no pensamento do
filósofo grego a verdade de que o Espiritismo é portador e da qual ele deu
testemunho aproximadamente vinte e três séculos mais tarde. Não se pode perder
de vista que o kardecismo também assume explicitamente a doutrina cristã,
conforme se infere do título do próprio livro citado. O Deus cuja existência é
suposta pelo espiritismo é o Deus da tradição judaico-cristã. Kardec chega a
dizer que Santo Agostinho “foi um dos maiores vulgarizadores do Espiritismo”
(p. 65). Estando Kardec com razão ou não no tocante à contribuição agostiniana
para a popularização do Espiritismo, certo é que o Espiritismo bebeu na fonte
dos Pais da Igreja. O que nos parece inegável é que o Espiritismo é uma
religião que se formou pela sistematização de duas frentes doutrinárias: a do
misticismo metafísico platônico, que terá em sua linhagem especulativa a
decisiva contribuição do orfismo-pitagorismo; e a do judaísmo-cristianismo,
cujo modelo do divino será explicitamente assumido.
[24] Reale, 2007, p. 192.
[25] Não perdemos de vista a advertência
feita por Reale (2007, p. 204), quando escreve: “essa concepção negativa do
corpo atenua-se em parte nas últimas obras de Platão, sem desaparecer de todo”.
[26] Fédon,
82e-82e.