Advérbios modalizadores
Um estudo de usos
Um livro didático em cuja capa se estampa o título gramática reflexiva, como a Gramática Reflexiva: texto, semântica e
interação (2005), de Cereja & Magalhães, porquanto pretende contribuir
para o aperfeiçoamento da capacidade de uso da língua pelos seus usuários, não
poderia oferecer exercícios como o exercício em que se solicita ao aluno a
identificação do valor semântico do advérbio nunca, extraído de uma tirinha, a qual, enquanto gênero do
discurso, poderia ser mais bem aproveitada para fomentar um trabalho com a
língua que contribuísse para conscientizar os estudantes das formas como as
unidades linguísticas produzem sentido.
No exercício a que me refiro, à
pergunta “que valor semântico o advérbio nunca
exprime?” seguem-se cinco alternativas entre as quais uma deve ser assinalada
como a que corresponde ao valor semântico de “nunca”: condição, negação, tempo, intensidade, modo. Os
autores assinalam “tempo” como a resposta correta; mas silenciam sobre o fato
de que “nunca” quantifica negativamente o predicado “consigo me balançar no
balanço”. Ora, “nunca” cumula com a noção de “tempo” a função de negação e
significa “em tempo nenhum”. Vê-se, então, a dificuldade em que se encontra o
professor: afinal, “nunca” deve ser classificado como advérbio de tempo ou de
negação? As gramáticas normativas o classificam como advérbio de tempo;
todavia, como negar que “nunca” sirva à negação da relação predicativa entre o
sujeito “eu” e o predicado “vi este garoto” em “Eu nunca vi esse garoto”? Resta alguma dúvida de que “nunca”
nega a possibilidade de atribuição de um determinado predicado a um determinado
sujeito?
Está claro, portanto, que o primeiro
problema ignorado pelos autores diz respeito ao fato de a operação de negação poder atualizar-se por meio de outros
elementos diferentes do operador “não”. A língua disponibiliza uma gama variada
de recursos que servem para a expressão da negação. Alguns exemplos desses
recursos são, além de nunca, as
formas nenhum, jamais, ninguém, nem, nada, senão, verbos de valor
negativo como “recusar”, “impedir”, “abster-se”, “sem” combinado ou não com a
conjunção “que” (cf. sem que), entre outros.
O problema que, no entanto,
considero mais grave consiste no fato de o exercício apresentado não atender ao
objetivo previsto por uma gramática que se denomina de gramática reflexiva. Uma gramática reflexiva, segundo Travaglia
(2003, p. 142), deve favorecer o desenvolvimento da competência comunicativa
dos usuários da língua, ainda que esse modelo de gramática tenha como preocupação básica possibilitar aos
aprendizes uma reflexão sistemática sobre o conhecimento intuitivo que eles têm
dos mecanismos gramaticais da sua língua materna. Está claro que a gramática
reflexiva deve favorecer a reflexão sobre a estrutura e o funcionamento da
língua, em seus níveis morfossintático e semântico; está claro que entre as
atividades previstas por esse modelo de gramática se acham a distinção de
classes de palavras, a determinação das propriedades semânticos e sintáticas
das classes de palavras, o reconhecimento da existência de categorias
gramaticais como tempo, modo, voz, gênero, número, pessoa e aspecto, etc. – em
uma palavra, está claro que esse modelo de gramática contempla o objetivo que
consiste em levar os estudantes a tomar consciência de um conhecimento que lhes
é intuitivo ou “quase inconsciente”. Está claro, portanto, que o objetivo dela
é submeter à reflexão aquele conhecimento que o falante já tem sob um modo não
refletido. Mas o trabalho de explicitação dos mecanismos gramaticais não pode
dispensar a preocupação com a reflexão sobre os efeitos de sentido obtidos com
o uso das expressões linguísticas em textos cuja funcionalidade deve ser
preservada e considerada no momento da reflexão.
Ora, se o objetivo do ensino de
português a falantes nativos dessa língua é – insisto - o
desenvolvimento da competência comunicativa deles,, um exercício como o
que solicita a classificação semântica do advérbio “nunca” se demonstra
claramente inadequado à consecução desse objetivo. Ademais, tampouco estimula
uma reflexão satisfatória e sistemática sobre o modo como as unidades
linguísticas se estruturam e funcionam no uso real da língua. O exercício
simplesmente não leva em conta, por exemplo, o escopo da negação, ou seja, o
segmento do enunciado sobre o qual a negação, expressa por meio de “nunca”,
incide. Vimos que, em “eu nunca vi esse menino”, “nunca” nega a atribuição do
predicado “vi esse menino” ao sujeito “eu”. Analogamente, na tirinha, “eu nunca
consigo me balançar no recreio”, “nunca” nega a atribuição do predicado
“consigo me balançar no recreio” ao sujeito “eu”.
Uma gramática reflexiva, segundo
Travaglia (2003, p. 150), não deve apenas servir ao propósito de tornar
possível uma reflexão sobre a estrutura da língua; deve também orientar-se por
atividades “que focalizam essencialmente os efeitos de sentido que os elementos
linguísticos podem produzir na interlocução”. Ora, uma vez que ainda se pode
encontrar materiais didáticos que perpetuam uma metodologia de ensino de
português calcada sobre um modelo de estudo formalista da língua desinteressado
de quaisquer questões que recobrem o domínio do uso das expressões linguísticas
e dos efeitos de sentido produzidos nesse uso, nunca será demais tornar a
afirmar a necessidade de promoção de um ensino de língua portuguesa que, mesmo
interessado em demonstrar como a gramática dessa língua se estrutura, não perca
de vista o fato de que a organização da gramática está a serviço da produção de
sentidos. Se o professor pretende que suas aulas sejam ocasiões efetivas para
que se desenvolvam reflexões sobre a língua que contribuam para que seus
estudantes sejam cada vez mais competentes no uso de sua língua materna, é
indispensável que ele reconheça, desde o momento em que planeja suas aulas, que
as regras que governam as construções gramaticais, os princípios que tornam
possível a produção de enunciados, que permitem aos usuários da língua
portuguesa formar frases gramaticalmente aceitáveis nessa língua, estão a
serviço da necessidade que têm eles de se fazerem entender pelo parceiro de
comunicação. Ao se preocupar com o modo como se estruturam as expressões
linguísticas, o professor não pode se esquecer de que a forma (estrutura) que
nossos enunciados assumem é determinada pelas funções a que eles servem na
interação social. Trata-se de não perder de vista um princípio que é básico em
todas as teorias funcionalistas: as
escolhas linguísticas que fazemos e o modo como as estruturamos para construir
nossos enunciados são determinados pelas funções a que esses enunciados servem.
Cada escolha linguística que fazemos cumpre um determinado propósito
comunicativo e/ou argumentativo. Num estudo desenvolvido por ocasião de meu
doutoramento, mostrei que a escolha do tema, na construção das orações, é
determinada por ou atende às necessidades argumentativas do produtor do texto. Em outras palavras, os processos de
tematização refletem as necessidades argumentativas do produtor. Não se trata, portanto, de considerar a
estruturação das unidades da língua em si mesma, mas de se perguntar sempre a
que funções, a que propósitos sociointeracionais dada maneira de estruturá-las
serve, que efeitos de sentido se produzem ao articular as expressões
linguísticas - nossos textos - de tal ou qual maneira.
Tendo em vista a insistência em
limitar o estudo do tópico advérbio
no ensino de português a atividades de mera classificação semântica[1], prática
da qual nos deu testemunho o livro didático por mim considerado, proponho-me
apresentar e discutir, neste texto, a importância do advérbio modalizador na construção da orientação argumentativa de
textos pertencentes aos gêneros reportagem e artigo de
opinião. A escolha de artigos de opinião para efeito de
análise do comportamento discursivo do advérbio se deve ao fato de que, sendo o
artigo de opinião um gênero discursivo que cumpre explicitamente uma função argumentativa,
é o lugar privilegiado onde se podem encontrar usos de advérbios modalizadores.
Enfocarei, portanto, o uso do advérbio como modalizador e procurarei mostrar de
que modo o ensino de português pode se tornar muito mais proveitoso ao
explorá-lo, isto é, pode, de fato, conciliar-se com o objetivo que se postula
para o ensino de língua materna.
Antes de me debruçar sobre a tarefa
principal a cuja realização se destina o presente texto, farei incursão no
tratamento dispensado pelas gramáticas normativas ao advérbio, a fim de que o
leitor perceba que, ao se propor considerar o comportamento discursivo do
advérbio, o professor estará operando, forçosamente, uma mudança de foco. As
gramáticas limitam a abordagem do advérbio (e de todas as demais classes
gramaticais) ao âmbito estritamente sintático ou frasal, e o professor deverá ultrapassar
essa abordagem limitadora.
1. O advérbio nas gramáticas
normativas
Começarei considerando como as
gramáticas normativas definem o advérbio. Não pretendo empreender uma análise
propriamente crítica e tampouco exaustiva do modo como esse capítulo do estudo
gramatical é apresentado. Meu intento é mais modesto. Pretendo tão-só chamar a
atenção para as propriedades que são privilegiadas quando da definição dessa
classe gramatical, não descurando, contudo, de apontar algumas dificuldades que
se encontram no modo como ela é enfocada e que podem passar ao largo de um
exame crítico. Deve-se dizer, desde já, que as gramáticas normativas não se
preocupam em estabelecer uma hierarquia entre os critérios utilizados na
definição das classes de palavra. Ao longo da apresentação de uma classe
gramatical, esses critérios aparecem misturados entre si. São três os
critérios, tradicionalmente, empregados para definir uma classe gramatical: 1) o critério semântico (que é o mais
privilegiado nas gramáticas); 2) o
critério morfológico e 3) o critério
sintático.
Atendo-me à apresentação do tópico
“advérbio”, darei a saber como essa classe de palavra é definida na Nova Gramática do Português Contemporâneo
(2001), de Cunha & Cintra. Segundo
os autores, “o advérbio é, fundamentalmente, um modificador do verbo”. ( grifo meu, p. 541). Na página 542, eles ajuntam: “os advérbios
recebem a denominação da circunstância ou de outra ideia acessória que
expressam”. Veja-se que se apresentam dois modos de definir o advérbio: 1) ele
é um modificador do verbo; 2) ele expressa uma circunstância ou ideia
acessória. Trata-se de duas “faces” de uma mesma definição de advérbio. Essas
duas “faces” se acham em páginas distintas. A parte 2) da definição é a parte
na qual mais claramente é possível apreender o aspecto semântico do advérbio: o
advérbio é uma palavra que expressa circunstâncias – acresça-se – do fato verbal. A parte 1) traz alguma
dificuldade, pelo menos para o professor não familiarizado com a terminologia
da Linguística. Refiro-me à dificuldade que se impõe à compreensão do que
significa ser um modificador. O que
significa dizer que o advérbio é um modificador?
O que é um modificador? Antes de
elucidar essa questão, é importante ver que a definição de Cunha & Cintra
não esclarece o que significa dizer que o advérbio é um modificador do
verbo.
Em primeiro lugar, modificador é o nome de uma função
sintática. Essa função sintática se
define pela conjunção de dois aspectos: um sintático e outro semântico.
Sintaticamente, modificador é a função desempenhada por termos da oração que se
prendem ao núcleo de um sintagma verbal, nominal, adjetival ou adverbial[2].
Semanticamente, o modificador acrescenta um ingrediente semântico ao
significado da palavra que funciona como núcleo do sintagma ao qual está
integrado. As duas classes de palavra que funcionam como modificadores são o
advérbio (modificador verbal) e o adjetivo (modificador do substantivo)[3].
Na modificação, o termo modificador acrescenta um conteúdo semântico ao
significado do temo que modifica. O modificador incide semanticamente sobre a
extensão do significado do termo modificado. Vejamos os dois exemplos
seguintes:
(1) Eles conversaram.
(1a) Eles conversaram demoradamente.
(2) Dois deputados foram presos.
(2a) Dois deputados corruptos foram presos.
No exemplo (1a), o advérbio “demoradamente” acrescenta
o conteúdo ‘de modo prolongado’ ao significado ‘interagir verbalmente’, do que
resulta o conteúdo estendido ‘eles interagiram verbalmente de modo
prolongado (= demoradamente)’. No exemplo (2a), o adjetivo “corrupto”
acrescenta oconteúdo ‘que se deixou corromper’
ou ‘que agiu ilegalmente’ ao significado ‘membro de uma assembleia deliberante
eleito por voto direto’, do que resulta o conteúdo estendido “dois membros de
uma assembleia deliberante eleitos por voto que agiram ilegalmente”.
Acresça-se que, sintaticamente, o
modificador é parte integrante de um sintagma a cujo núcleo ele adere. Em (1a),
“demoradamente” adere ao núcleo verbal “conversaram”; em (2a), “corrupto” adere
ao núcleo nominal “deputado” do sintagma nominal (SN) “dois deputados corruptos”.
Em linguística, o modificador
distingue-se do determinante, função esta desempenhada por unidades
linguísticas que, dispondo-se à direita do núcleo do sintagma nominal a que
pertencem, servem para tornar possível o acesso ao referente, quer no nível da
situação espaço-temporal, quer no nível do conhecimento partilhado pelos
interlocutores, ou ainda serve para delimitar o número do substantivo a que eles
se prendem. A classe dos determinantes inclui os artigos, numerais, os
pronomes possessivos, demonstrativos, indefinidos adjetivos. Os numerais,
os pronomes indefinidos e os advérbios de intensidade (muito, demais, pouco, etc.) são determinantes quantificadores. Assim, quando dizemos “alguns
jogadores” delimitamos um subconjunto de jogadores dentro de uma totalidade de
jogadores, mas não precisamos o número de jogadores que compõe o subconjunto. A
extensão do substantivo fica, portanto, quantitativamente indefinida. A
quantificação operada por “algum” é parcial. Além disso, “algum” não permite
identificar o referente do substantivo ao qual se liga, por isso, dizemos que é
desprovido do traço semântico ‘identificabilidade’. Naturalmente, os numerais
também são desprovidos desse traço, mas se opõem aos pronomes indefinidos por
apresentarem quantificação definida (sabemos o número exato de referentes
designado pelo substantivo, como “dois cavalos” x “alguns cavalos”).
A classe dos determinantes é
bastante heterogênea, mas seus membros têm em comum a função de delimitar a
extensão da referência do substantivo a que se vinculam. Para efeito de
distinção entre determinante e modificador, podemos recorrer ao aspecto
semântico, ou melhor, semântico-referencial: os determinantes delimitam a
extensão referencial do substantivo, ou quantificam o significado do
substantivo, do adjetivo ou do advérbio aos quais se vinculam (cf. Um menino
esperto/ um menino muito esperto). Mas podemos também recorrer ao
aspecto formal, observando que os determinantes se dispõem exclusivamente à
esquerda do núcleo, ao passo que os modificadores dispõem-se, via de regra, à
direita, mas pode haver modificadores que admitem à anteposição ao núcleo (cf. O
velho homem). Os
modificadores verbais (os advérbios modalizadores, em geral terminados em
“-mente”) se distinguem dos determinantes por se prestarem a uma mobilidade
distribucional que falta a estes, isto é, os advérbios podem ser mais facilmente
deslocados na estrutura da oração. Os determinantes, por seu turno, não
permitem a mesma liberdade distribucional que tem os advérbios. Assim, podemos
ter “os três garotos”, mas não “três os garotos”; “todos
os três garotos”, mas não “os todos três garotos”; “Ele é naturalmente
esperto”, “Naturalmente, ele é esperto”, “Ele, naturalmente, é
esperto”, mas não ““Ele é esperto muito”*. O modificador adverbial
“talvez”, que pode ocupar os seguintes lugares na cadeia da fala: (1) Eles não
conseguiram chegar talvez; (2) Talvez eles não tenham conseguido
chegar; (3) Eles, talvez, não tenham conseguido chegar; (4) Eles não
conseguiram, talvez, chegar (?).
Volvendo à apresentação feita por
Cunha & Cintra do advérbio, cumpre ainda observar que os autores elencam, à
página 543, as classes semânticas dos advérbios reconhecidas pela NGB: a) advérbios de afirmação: sim,
certamente, efetivamente, realmente, etc. ; b) advérbios de intensidade: assaz, bastante, bem, demais, mais,
menos, muito, pouco, quase, etc.; c) advérbios
de dúvida: acaso, porventura, possivelmente, provavelmente, talvez, etc.;
d) advérbios de lugar: abaixo,
acima, aqui, aí, ali, além, atrás, através, cá, etc.; e) advérbios de modo: assim, bem, debalde, depressa e quase todos os
advérbios terminados em “-mente”; f) advérbio
de negação: não; g) advérbios de
tempo: agora, ainda, amanhã, ontem, etc.
Em seguida, Cunha & Cintra
referem, de modo marginal, outras três classes, das quais dizem que serão
tratadas sob a designação de palavras
denotativas. Essas três classes marginais são: a) advérbios de ordem: primeiramente, ultimamente, depois, etc.; b) advérbios de exclusão: apenas, senão,
salvo, só, somente; c) advérbios de
designação: eis. Consoante os autores, as chamadas palavras denotativas são “por vezes enquadradas impropriamente
entre os advérbios” (p. 552). E a razão, segundo os autores, por que é
impróprio incluí-las entre os advérbios é que elas não modificam nem o verbo,
nem o adjetivo, nem outro advérbio.
1.2. O caso de primeiramente, a seguir e finalmente
É importante notar o que a descrição
tradicional deixa escapar nessa proposta taxionômica. Tomemos a classe dos
chamados advérbios de ordem. A
própria denominação da classe é vaga. Que função cumprem os advérbios de ordem?
O que eles fazem? De que natureza é essa ordem que eles estabelecem? Na
gramática de Cunha & Cintra, não se encontra qualquer esclarecimento sobre a
função discursiva desses advérbios. A própria designação mascara a importância
funcional desses advérbios na construção da coerência textual. A mesma
observação se estende aos advérbios ditos “de exclusão”. Essa classe encerra
unidades da língua que cumprem funções argumentativas das mais importantes.
Formas como “só”, “somente” e “apenas” são marcadores de pressuposição, isto é,
ativam conteúdos implícitos que podem encaminhar o discurso de tal modo a
produzir determinados efeitos de sentido. Por exemplo, considerando-se o
contexto seguinte:
Contexto: O professor solicita que
seus alunos, reunidos em grupos, desenvolvam trabalhos de pesquisa.
Suponhamos que um integrante de um
dos grupos, se queixe produzindo (3):
(3) Professor, somente eu fiz o trabalho.
Ora, o uso de “somente”, cujo escopo
é o sujeito “eu”, veicula a informação “uma única pessoa fez o trabalho” e essa
pessoa é o produtor do enunciado. Essa é a informação explícita que se pretende
transmitir com o uso de “somente”. Mas, implicitamente,
com o uso de “somente”, diz-se também “os demais integrantes do grupo não
fizeram o trabalho”. Nossa reflexão sobre a funcionalidade do marcador de
pressuposição “somente” não pode parar aí, se quisermos compreender sua força
argumentativa, enfim, todo seu valor funcional. Tendo em vista o contexto
(trata-se de um aluno que se encarregou de fazer todo o trabalho que deveria
ter sido feito em conjunto com os colegas e que informa ao professor que apenas ele se encarregou da tarefa), o
enunciador pode pretender produzir sentidos como 1) sou o único que merece uma
premiação (a nota); 2) sou um aluno aplicado, inteligente; 3) sou um aluno
responsável; 4) todos os demais colegas são irresponsáveis, desleixados, etc.
Da parte do produtor de (3), há um projeto de sentido que pode ou não ser
aceito pelo interlocutor. Por exemplo, (3) pode sugerir o desejo do enunciador
de que seus colegas recebam nota “zero”; mas o professor, embora parabenizando
o empenho do enunciador, pode decidir dar outra chance aos que não se ocuparam
da tarefa. Outro aspecto importante diz respeito ao modo como o enunciador
escolheu organizar a estrutura tema-rema. O tema é o segmento da oração que, dispondo-se à esquerda, é
comunicacionalmente mais saliente. É o segmento da oração do qual se diz alguma
coisa; é, em suma, o elemento
escolhido pelo falante que serve de âncora (cognitiva?) da organização da
mensagem para o interlocutor. O rema, por seu turno, é a parte da
oração que encerra a mensagem; é todo o segmento restante que se segue ao tema
e que sobre ele informa alguma coisa. Assim, em “O garoto estudou bastante”, “o
garoto” é o tema (o segmento do qual
se diz alguma coisa) e “estudou bastante” é o rema (o segmento que encerra aquilo que se diz do tema). Tema e rema não são funções sintáticas, mas funções pragmáticas. Tema e
rema designam modos de estruturação informacional da oração. Tema e rema são
posições ou ‘lugares’ de distribuição informacional. O sujeito ocupa,
canonicamente, em português, a posição temática, isto é, figura na posição à
esquerda do núcleo da oração. Isso significa dizer que, em sua posição canônica,
o sujeito preenche a função temática. O predicado, cujo núcleo é o verbo, segue-se
preenche a função temática. Mas, pode suceder – e é frequente o caso – que a
posição temática seja ocupada por outro termo que não o sujeito, como em “No
próximo domingo, iremos à praia”. Nessa oração, o tema é “no próximo
domingo” e o rema é “(nós) iremos à praia”.
No exemplo que venho analisando, a
posição temática é ocupada pelo conjunto “somente eu”[4]. A
escolha por conferir ao conjunto “somente eu” o estatuto temático cumpre uma
função claramente argumentativa. Se a intenção do enunciador é destacar suas
qualidades, como seu empenho, dedicação, senso de responsabilidade, capacidade
intelectual, se sua intenção é deixar claro que ele foi o único que se ocupou
da tarefa, então é de esperar que ele ponha em foco justamente a informação
veiculada por “somente eu”. Em outras palavras, novamente aqui, chamo a atenção
para o fato de que a forma – isto é, a configuração estrutural de nossos
enunciados – é determinada e/ou influenciada pelas funções sociocomunicativas a
cuja realização servem nossos enunciados.
O enunciado (3) foi produzido para atender dadas funções ou propósitos
que não se reduzem à mera necessidade de informar. É interessante ver que o
efeito de sentido pode ser outro, se o enunciado assumir outra forma, como, por
exemplo, em (3a):
(3a) Professor, ninguém fez o
trabalho, exceto eu.
O leitor há de concordar que a
informação “exceto eu” não está saliente na estrutura informacional. Não
constitui ela o tema da oração. Agora, o tema é “ninguém”; e o rema é “fez o
trabalho”. Já o segmento “exceto eu” tem, informacionalmente, um estatuto
secundário em relação à organização tema-rema. Esse segmento é
informacionalmente muito menos saliente; figura como uma informação que foi
dada por acréscimo. Atente-se para a forma do enunciado “Não constitui ela o
tema da oração”, que eu produzi acima, neste parágrafo. O tema dessa oração é
“não constitui ela”, já que é este segmento que, colocado à direita, iniciando
a frase, torna-se informacionalmente mais saliente. Eu poderia ter dado outro
torneio à oração, escrevendo algo como “Ela não constitui o segmento da
oração”, caso em que o sujeito “ela” ocuparia a posição temática. A opção por
dar estatuto temático ao segmento “não constitui ela” atende a, pelo menos,
duas necessidades: a) manter ativa na memória de curto prazo do leitor a
relação sinonímica entre “não estar saliente” e “não constituir tema”; b)
convencer o leitor de que a informação que não está saliente jamais é tema.
Voltemos nossa atenção para as
formas “primeiramente”, “a seguir” e “finalmente”, que estão entre as formas
adverbiais integrantes da classe dos advérbios de ordem, segundo a gramática de
Cunha & Cintra. Disse que essa classificação deixa escapar, ou melhor,
silencia sobre um aspecto importante dessas formas adverbiais: trata-se de seu
comportamento textual-discursivo.
As formas “primeiramente”, “a
seguir” e “finalmente” são elementos seqüenciadores coesivos, isto é, são
sinais de articulação textual, são organizadores textuais. Eles são
responsáveis por estruturar linearmente o texto.
A justaposição, que é um modo de
manifestação do encadeamento de sequências textuais, pode dar-se com ou sem
elementos seqüenciadores. A justaposição com elementos seqüenciadores
estabelece um seqüenciamento coesivo entre porções maiores ou menores do texto.
As formas adverbiais que estamos considerando aqui são exemplos desses
seqüenciadores que organizam o texto em uma sucessão de fragmentos
complementares, com o propósito de facilitar o processo interpretativo. Eles
operam no nível inter-sequencial, permitindo, portanto, relacionar sequências
textuais ou episódios narrativos entre si. Ao articular sequências textuais
entre si, esses sinais de articulação demarcam episódios da narrativa
(ordenadores temporais), segmentos de uma descrição (ordenadores espaciais) ou
indicam ordenação textual. Seguem-se os exemplos:
(4) Muitos anos mais tarde, eu a encontrei por acaso. (organiza
temporalmente episódios da narrativa)
(5) Adiante, do lado esquerdo,
via-se a catedral. (organiza espacialmente segmentos de uma descrição)
(6) Considerarei, primeiramente, os aspectos
morfossintáticos dos advérbios; e, a
seguir, tratarei de seu comportamento discursivo. (organizam textualmente
as etapas de um procedimento).
1.3. A Gramática Normativa da Língua Portuguesa (2001)
A Gramática Normativa da Língua Portuguesa (2001), de Rocha Lima
patenteia-nos a seguinte definição de advérbio: “advérbios são palavras
modificadoras do verbo. Servem para expressar as várias circunstâncias que cercam a significação verbal” (ênfase no
original, p. 174). Adiante, acrescenta Lima que os advérbios de intensidade
“podem também prender-se a adjetivos, a outros advérbios, para indicar-lhes o
grau”. Essa característica dos advérbios de intensidade pode ser depreendida da
frase “Érica é mais alta (do) que Joana”.
Outro exemplo é fornecido pela frase “Érica é muito alta”, em que temos o advérbio “muito” indicando grau superlativo absoluto analítico.
Lima observa também que toda palavra
que se presta à anexação do sufixo “-mente” torna-se um advérbio. Em outras
palavras, todas as formas terminadas em “-mente” são categorizadas como
advérbios. Além disso, observa o gramático que os advérbios constituem uma
classe de palavras invariáveis em gênero e em número. Em Lima, há alusão a
propriedades morfológicas (anexação de “-mente”, invariabilidade mórfica) do
advérbio, mas, como toda gramática normativa, não deixa de dar especial
destaque à propriedade semântica.
Seguindo a prática das gramáticas normativas, cuja descrição se limita
ao nível frásico, a gramática de Rocha Lima não se preocupa com o comportamento
discursivo dos advérbios.
1.4.
Fundamentos de Gramática do
Português (2002)
A gramática descritiva do professor
José Carlos de Azeredo opta por uma abordagem predominantemente formalista, sem
descurar de fazer alusões proveitosas a aspectos discursivos dos fenômenos
linguísticos contemplados. O tópico do advérbio é estudado na seção destinada à
descrição das espécies de sintagma adverbial. Por isso, será necessário
dilucidar o conceito de sintagma,
antes de examinarmos os tipos de sintagmas adverbiais e as suas propriedades.
Azeredo (p. 142, § 286) define o
advérbio como “a palavra invariável que serve de núcleo a um sintagma
adverbial”. Uma outra maneira de definir o advérbio, sem apelar para suas
propriedades semânticas, é dizer que são advérbios as palavras que podem ser
precedidas por “tão” (ou bem, muito). Por exemplo, “caminhávamos tão/ muito/ bem depressa”,
“a casa ficava bem longe”.
Há, evidentemente, restrição. Advérbios quantificadores como meio, mais, menos, demais não se deixam
preceder de “tão”.
Passemos a considerar o que é o
sintagma.
1.4.1. O sintagma
Desde Saussure, o sintagma recobre toda e qualquer
construção que resulta da articulação de duas ou mais formas mínimas numa
unidade hierarquicamente superior. Nesse sentido, o sintagma não se identifica
exclusiva e nocionalmente com os constituintes imediatos da oração. O conceito
de sintagma é mais lato e recobre, segundo Câmara (2002), “a combinação de
formas mínimas numa unidade linguística superior”. Essa definição apresentada
por Câmara, que remonta à contribuição de Saussure, diz-nos que o sintagma é
uma construção resultante da articulação de duas unidades hierarquicamente
menores. A construção que daí resulta – o sintagma – é uma unidade de nível
superior. Essa definição estende à noção de sintagma a palavras complexas como
“reler”, “criado-mudo”, “aguardente”. Ora, em “reler”, temos a combinação de
duas formas mínimas “re-” e “ler” numa unidade linguística superior
“reler”. Em sentido lato, o sintagma
pode coincidir até mesmo com construções mais complexas que a palavra, como,
por exemplo, com orações, frases ou períodos. A oração “Pedro estudou a lição”
é um sintagma, visto que é uma unidade de nível hierarquicamente superior aos
constituintes que entram em sua formação. É um sintagma (sintagma oracional),
porque é uma construção complexa formada pela articulação entre os
constituintes “Pedro”, “estudou” e “a lição”.
O sintagma é, então, uma construção
linguística resultante de relações de dependência e/ou interdepedência entre
unidades pertencentes a um nível hierarquicamente inferior. A condição para que
uma sequência de unidades seja um sintagma é que haja aderência das partes ao
centro. Os constituintes que compõem o sintagma estabelecem relações que não
são lineares, mas hierarquicamente definidas. Assim, por exemplo, em (7) abaixo
(7) A casa de praia de Saquarema
As relações de dependência que se
estabelecem com o núcleo “casa” não são lineares. O que temos é uma
estruturação em camadas. Ademais, os
elementos internos, isto é, situados à direita do núcleo, são mais
aderentes do que elementos externos, situados à esquerda do núcleo. Quanto mais
próximo do núcleo é uma unidade linguística, mais aderente ela é. Disso resulta
que, na análise dos sintagmas, no processo de decomposição deles, os elementos
menos aderentes são retirados primeiro, começando pelo elemento mais afastado
do núcleo, por ser ele o menos aderente, numa sequência ascendente de aderência;
o mais aderente ao núcleo será o último a ser destacado. Como os elementos que
se dispõem à esquerda do núcleo são menos aderentes do que os que se dispõem à
direita, começamos destacando o menos aderente dos elementos que ocupam a posição
à direita do núcleo; em seguida, o segundo menos aderente, até que destaquemos
o que está mais próximo do núcleo. Terminada essa etapa, passamos a destacar as
unidades que se dispõem à direita do núcleo, começando pela menos aderente
(mais afastada) até que destaquemos a mais aderente, isto é, a mais próxima do
núcleo.
Tome-se a seguinte construção
sintagmática “A casa de praia de Saquarema”. Toda essa construção constitui um SN (sintagma
nominal), cujo núcleo é “casa”. O sintagma “de praia” está encaixado no SN,
anexando-se primeiramente ao núcleo “casa” (cf. a casa de praia). Depois de formado o sintagma nominal “casa
de praia” é que o sintagma “de Saquarema” é encaixado. Assim, podemos
formalizar a composição desse SN da seguinte maneira:
CASA núcleo
CASA
de praia 1ª etapa
CASA de
praia de Saquarema 2ª
etapa
A CASA de praia de Saquarema 3ª
etapa
Está claro que, dada a maior
proximidade do sintagma “de praia” ao núcleo “casa”, é esse sintagma mais
aderente e, portanto, será o último elemento a ser retirado na decomposição do
SN. Já o sintagma “de Saquarema” está encaixado no sintagma então formado “casa
de praia”. O determinante “a” só adere
ao núcleo depois que se formou toda a construção “casa de praia de
Saquarema”. O determinante “a”, por ser o último a entrar a fazer parte do SN,
é o menos aderente e o primeiro elemento a ser destacado na decomposição desse
sintagma. Assim, usando-se colchetes [ ], na análise do sintagma, destacam-se
as unidades que se prendem direta ou indiretamente ao núcleo na seguinte ordem:
CASA núcleo
[a ]
casa de praia de Saquarema 1ª etapa
casa de praia
[de Saquarema]
2ª etapa
casa [de
praia]
3ª etapa
Na decomposição, retiramos o
elemento menos aderente ao núcleo dentre todos os demais, que é o determinante
“a”; em seguida, retiramos o segundo elemento menos aderente ao núcleo, que é o
modificador “de Saquarema”. Seu grau de aderência é, no entanto, maior que o
grau de aderência de “a”, já que ele situa-se entre os constituintes internos
ao sintagma.[5]
Por fim, retiramos o sintagma “de praia”, que se articulou primeiramente ao
núcleo “casa” e que é o mais aderente e, por isso, o último a sair.[6]
Os sintagmas “de praia” e “de
Saquarema” podem também ser decompostos. Como sejam sintagmas preposicionais,
seu núcleo é a preposição (“de”). Todo sintagma preposicional é formado da
articulação de uma preposição com outro sintagma. Assim, temos que “de praia” é
resultado da combinação da preposição “de”, núcleo do sintagma “de praia”, com
o sintagma nominal “praia”, cujo núcleo é o próprio substantivo “praia”. Assim,
deve-se representar o SP “de praia” (sintagma
preposicional) com o seguinte modelo arbóreo:
O traço que liga o SP ao SN indica que o SN está
sob o domínio do SP. O SN deve aparecer abaixo do SP e do seu núcleo,
justamente para sinalizar a hierarquização sintagmática. O SN, assim, é
hierarquicamente inferior ao SP no domínio do qual se situa. Todo SP é um
sintagma derivado, pois que se forma com base em outro sintagma, como mostra o
exemplo examinado. Assim, “de praia” é um SP formado com base no SN “praia”.
Todo sintagma caracteriza-se por
apresentar, pelo menos, um núcleo, que pode constituir sozinho a totalidade do
sintagma ou vir acompanhado de outros elementos que se lhe aderem.
Em sentido estrito, o sintagma é uma
construção sintática que se compõe de um núcleo ou de um núcleo ao qual se
articulam outras unidades e que ocupa uma determinada posição na oração. Nesse
sentido, os sintagmas são os verdadeiros constituintes da oração. Podemos então
definir o sintagma como um bloco significativo e funcional formado
de uma ou mais unidade linguística de nível imediatamente inferior.
Resta ainda dizer que uma construção
será considerada um sintagma se atender a pelo menos uma das seguintes
condições:
a)
ser
deslocável para outra posição;
b)
ser comutável
com uma forma simples.
O que se explicita em a) e b) acima é
dois expedientes formais de determinação de sintagmas. Assim, se queremos
determinar se o conjunto “com entusiasmo” é um sintagma, podemos deslocá-lo
para outra posição no interior da estrutura oracional. Se, no deslocamento, não
há prejuízo na organização sintático-semântica, o grupo deslocado é um sintagma:
(8) Os funcionários receberam a
notícia com entusiasmo.
Com
entusiasmo, os funcionários
receberam a notícia.
Os funcionários receberam, com entusiasmo, a notícia.
Suponhamos que quiséssemos
determinar se “os funcionários” é um sintagma. Valendo-nos do expediente
apresentado em b), que é o da comutação, procuremos aplicá-lo a esse sintagma.
(9) Os funcionários receberam a
notícia com entusiasmo.
Eles
receberam a notícia com entusiasmo.
Aplicando o expediente de comutação também
ao conjunto “a notícia”, veremos que esse conjunto constitui um sintagma.
(10) Os funcionários receberam-na (= a notícia) com entusiasmo.
Do que se expôs até aqui, creio ter
sido possível depreender que os sintagmas se distribuem em classes. São cinco
as classes de sintagma:
a) sintagma nominal (SN);
b) sintagma verbal (SV);
c) sintagma adjetival (Sadj.);
d) sintagma preposicional (SP);
e) sintagma adverbial (Sadv.).
a) SINTAGMA NOMINAL (SN): tem
como núcleo um substantivo ou palavra de valor substantivo (tais como pronomes
retos, oblíquos, indefinidos, possessivos (quando antecedidos de artigo),
demonstrativos, indefinidos-interrogativos, numerais substantivos, etc.).
b) SINTAGMA VERBAL (SV): tem como núcleo um verbo e pode incluir os
complementos e adjuntos adjacentes a esse núcleo, ou constituir-se apenas do
núcleo. Assim a extensão do SV varia conforme haja apenas o verbo ou este e os
elementos a ele adjacentes.
c) SINTAGMA ADJETIVAL (SAdj.):
tem como núcleo um adjetivo, mas pode constituir-se também de advérbios (de
intensidade, de modo, em geral, terminados em “-mente”) ou sintagmas
preposicionais que se atrelam ao núcleo.
d) SINTAGMA PREPOSICIONAL (SP): o sintagma preposicional é sempre um
sintagma derivado, já que se forma mediante a combinação de uma preposição com outro
sintagma. O índice formal do sintagma preposicional, pelo qual podemos
reconhecê-lo, é a preposição.
e) SINTAGMA ADVERBIAL (SAdv.): tem como núcleo um advérbio, o qual,
eventualmente, pode ser modificado por outro advérbio.
Citem-se os seguintes exemplos:
a) As asas do pica-pau quebraram. (SN)
Os seis alunos estão em
recuperação. (SN)
Os cinco podem descer agora!
(SN)
Aqueles garotos xingaram a pobre mulher. (SN)
Alguns alunos não foram aprovados. (SN)
Alguns dos eleitos não
assumiram o cargo. (SN)
Júnior escrevia cartas aos seus. (SN)
b) As asas do pica-pau quebraram. (SV)
Os seis alunos estão em
recuperação. (SV)
Aqueles garotos xingaram a pobre
mulher. (SV)
Alguns alunos não foram aprovados
neste ano. (SV)
Alguns dos eleitos não assumiram o
cargo. (SV)
Júnior escrevia cartas aos seus
habitualmente. (SV)
c) Aqueles garotos xingaram a pobre mulher. (SAdj.)
Os trabalhadores da empresa de gás cobram melhores condições de trabalho. (SAdj.)
Os deputados cassados tiveram
seu sigilo bancário quebrado. (SAdj.)
Os leões fugitivos foram muito bem alimentados pelos funcionários
do zoológico. (SAdj.)
d) As asas do pica-pau quebraram. (SP)
Os seis alunos estão em
recuperação. (SP)
Alguns alunos não foram aprovados neste
ano. (SP)
Júnior escrevia cartas aos seus.
(SP)
e) Os leões fugitivos foram capturados
depressa. (SAdv.)
Júnior escrevia cartas aos seus habitualmente.
(SAdv.)
Clarice não gostava de acordar muito
cedo. (SAdv.)
No último exemplo, o sintagma
adverbial “muito cedo” compõe-se de um determinante quantificador atrelado ao núcleo
“cedo”.
1.4.2. O sintagma adverbial
O sintagma adverbial, cujo núcleo é
um advérbio, é sempre constituinte de um sintagma maior. Destarte, o sintagma
adverbial é um constituinte adjacente ao núcleo de um sintagma maior do qual
faz parte. Do ponto de vista sintático, isto é, considerando-se a posição que o
sintagma adverbial ocupa na estrutura sintagmática maior de que faz parte,
pode-se-lhe atribuir cinco subfunções, segundo Azeredo (2002).
1) adjunto oracional: é a função do sintagma adverbial que se prende
a todo o período ou frase, sendo, portanto, um constituinte adjacente à oração.
Exemplo: Naturalmente, ela
preferiu esperar a sua ligação.
2) adjunto verbal: é a função do sintagma adverbial que é constituinte
do SV, adjacente ao verbo.
Exemplo: Ele ainda não falou tudo.
3) adjunto secundário: é a função do sintagma adverbial que é
constituinte de um sintagma adjetival e de um sintagma adverbial. O adjunto
secundário é um intensificador, modalizador ou delimitador do alcance da
referência do núcleo do sintagma do qual ele faz parte.
Exemplos: Vocês comem muito depressa.
Vocês estão completamente enganados.
Ele estava surpreendentemente calmo.
Eles andam devagar.
Note-se que, em “Vocês comem muito depressa”, o advérbio
“muito” é um constituinte do sintagma adverbial “depressa”. Assim, o sintagma
oracional decompõe-se da seguinte forma:
[Vocês] SN
comem muito
depressa SV
comem
[muito depressa] Sadv.
comem [muito]
depressa
núcleo DET núcleo
O determinante quantificador “muito”
é, conforme se vê, um constituinte do sintagma adverbial “muito depressa”, cujo
núcleo é “depressa”.
4) adjunto livre: se prende a qualquer classe de sintagma para fins de
restrição de uma informação em consonância com o propósito argumentativo do
enunciador.
Exemplo: Eu pedi apenas
a compreensão dela.
Pelo menos, ele conseguiu fazer a prova.
5) adjunto conjuntivo: adjacente ao SV, serve para estabelecer algum
tipo de relação lógico-semântica com uma parte precedente do texto.
Exemplo: Eles conversavam muito
durante a aula, portanto não sabiam
a matéria.
Ao leitor, talvez, cause algum
estranhamento o considerar “portanto” como um advérbio, já que, ao longo de sua
escolarização, a ele foi ensinado que “portanto” é uma conjunção (coordenativa).
Azeredo conserva o valor conjuntivo dessa forma, embora a considere, em
consonância com o que as recentes pesquisas linguísticas apontam, que
“portanto” é um tipo de advérbio. O que direi a respeito de “portanto” vale
também para as formas “por conseguinte”, “contudo”, porém”, “entretanto”, “no
entanto”. Quando comparamos o comportamento sintático de “portanto” com o de
“mas”, percebemos que “portanto” é dotado de flexibilidade distribucional da
qual “mas” é desprovido, ou seja, “portanto”, pode “migrar” para outra(s)
posição(ões) na cadeia da fala; a conjunção “mas” não pode. (cf. Não estou com
fome, portanto não vou jantar/ Não
estou com fome; não vou, portanto,
jantar/ Não estou com fome; não vou jantar, portanto).
Se quiséssemos deslocar o “mas” para uma posição diferente da posição
interfrásica, que lhe é própria, o resultado seria agramatical (cf. Estou
cansado, mas vou estudar/ Estou
cansado; vou mas estudar*/ vou
estudar mas*). Ademais, apenas “portanto”
admite a co-ocorrência com a conjunção “e” (cf. Ele agiu precipitadamente, e, portanto, se deu mal). A forma
“entretanto” também admite co-ocorrência, quer com “e”, quer com “mas” (cf. Ele
estava muito cansado, mas, entretanto, preferiu sair/ e, entretanto,
preferiu sair).[7]
Ao considerar a importância do
adjunto oracional para a construção do sentido do texto, Azeredo assinala que
por meio dele “o enunciador retrata o grau de seu comprometimento com a verdade
do fato expresso na oração”. (p. 207).
Assim, o advérbio “certamente”, em “Certamente, eles estão viajando”,
marca o grau máximo de comprometimento do enunciador com o valor de verdade do
conteúdo expresso no enunciado. Ainda, segundo Azeredo, pelo uso do adjunto
oracional “o enunciador define o ponto de vista ou domínio de conhecimento do
qual depende a validade do conteúdo da oração”. Assim, em “Pragmaticamente,
esta expressão é inadequada”, “pragmaticamente” delimita o domínio sob o qual
se deve situar a validade do que é dito no enunciado. “Pragmaticamente” opera
um enquadramento epistêmico à luz do qual o conteúdo “esta expressão é
inadequada” deve ser considerado. O uso desse tipo de adverbial implica que a
validade do enunciado tem alcance limitado. Assim, ele pode ser válido, pode
provocar a adesão dos enunciadores ao seu conteúdo, pode produzir consenso
quanto à sua validade apenas nos limites marcados por “pragmaticamente”. Se o
que se considera inadequado é o uso de uma expressão como “bater as botas” ao
se transmitir os profundos sentimentos ao parente de alguém falecido, essa
inadequação não é extensiva ao domínio gramatical, desde que a frase esteja bem
formada (cf. Pena que seu marido bateu as botas). Portanto, dizer
“Pragmaticamente, “pena que seu marido bateu as botas” é uma forma de falar
inadequada” é dizer que a rejeição a esse modo de falar só vale quando
consideramos sua inadequação pragmática, ficando inválidada essa rejeição se o
domínio de referência assumido para a avaliação do enunciado fosse outro, como
o gramatical. Assim, poder-se-ia dizer “gramaticalmente, isto é, do ponto de
vista gramatical, “Pena que seu marido bateu as botas” não apresenta problema
algum”, isto é, “gramaticalmente” (isto é, avaliando-a do ponto de vista
gramatical) trata-se de uma frase bem-formada em português.
Ainda, consoante Azeredo, o adjunto
oracional pode permitir ao enunciador exprimir um efeito psicológico que o
conteúdo da oração lhe provoca. Assim, por exemplo, em “Infelizmente, ele foi reprovado”, pelo
uso de “infelizmente” o enunciador projeta sobre o enunciado uma disposição de
espírito: sua insatisfação, seu desagrado, seu descontentamento com o fato
comunicado. Darei uma atenção especial a esses tipos de advérbios mais adiante.
Passo a considerar na próxima seção
o fenômeno da modalização.
Em princípio, necessário será fazer
um enquadramento teórico à luz do qual o fenômeno da modalização deverá ser
considerado. Esse enquadramento teórico assenta na seguinte concepção de discurso. Entendo por discurso uma prática social que se realiza pelo uso da língua e na qual se engajam
sujeitos historicamente situados que buscam influenciar-se reciprocamente numa
dada situação social, cultural e política.
Assumirei também, com Koch (2004),
que a argumentatividade é um princípio inerente ao uso da língua. Nesse
tocante, vale referir as palavras de Koch (2004, p. 17):
“A interação social por
intermédio da língua caracteriza-se, fundamentalmente, pela argumentatividade.
Como ser dotado de razão e vontade, o homem, constantemente, avalia, julga,
critica, isto é, forma juízos de valor. Por outro lado, por meio do discurso – ação verbal dotada de intencionalidade –
tenta influir sobre o comportamento do outro ou fazer com que compartilhe
determinadas de suas opiniões [sic.]. É por esta razão que se pode afirmar que
o ato de argumentar, isto é, de orientar
o discurso no sentido de determinadas conclusões, constitui o ato linguístico fundamental, pois a todo e
qualquer discurso subjaz uma ideologia, na acepção mais ampla do termo. A
neutralidade é apenas um mito: o discurso que se pretende “neutro”, ingênuo,
contém também uma ideologia – a da sua própria objetividade”.
A língua é uma forma de ação social. Ao usarmos a língua, ao produzirmos nossos
enunciados, quer falados, quer escritos, realizamos ações. Ao usar a língua,
buscamos agir sobre o outro de modo a produzir nele algum efeito, alguma
reação, quer verbal, quer não verbal. Assim, todo dizer é fazer. O uso da língua é uma forma de ação social. Na
interação social pelo uso da língua, agimos sobre o nosso interlocutor, seja
com o objetivo de que ele aceite nossos argumentos, nossas opiniões, seja com o
objetivo de modificar-lhe o comportamento. Pelo uso da língua, influenciamos o
outro de algum modo; visamos a que ele manifeste determinado comportamento ou
reação (verbal ou não verbal). Por isso, a língua é lugar de interação; é uma
atividade intersubjetiva, na qual estão engajados sujeitos sociais que, ao
produzirem enunciados, estão a produzir atos de linguagem com o objetivo de
agir reciprocamente um sobre o outro e, assim, obter um efeito ou reação
pretendida.
A exposição do fenômeno de modalização será feita de modo a
satisfazer dois requisitos fundamentais: a minúcia e a clareza. Tentarei
esclarecer o leitor sobre o fenômeno da modalização, esforçando-me por
combinar, tanto quanto possível, o rigor que se espera no tratamento de um tema
de estudo científico com a clareza desejável numa abordagem que se pretende
pedagogicamente eficiente.
Intentando satisfazer o primeiro dos
requisitos, começo observando que os estudos da modalização na linguagem são
devedores de uma tradição que remonta à Lógica modal aristotélica. A
longevidade desse estudo só pode surpreender o leitor que ignora o fato de que
as especulações sobre a linguagem foram, originalmente, levadas a efeito pelos
antigos gregos há mais de 2.000 anos. O que se costuma chamar de Gramática Tradicional recobre um
conjunto de atitudes e métodos que permearam o estudo gramatical cuja origem
encontra-se na Antenas dos séculos V-IV. Foi Platão o primeiro pensador a
refletir sobre os problemas fundamentais da linguagem. A tradição gramatical,
tendo origem na Grécia Clássica, recobre também o trabalho dos gramáticos
romanos, dos autores do Renascimento e dos gramáticos prescritivistas do século
XVIII.
A palavra linguística só viria a aparecer em meados do século XIX, para
caracterizar uma abordagem da língua que se diferenciava da abordagem mais
tradicional da filosofia.
Muito esquematicamente, pode-se
dizer que o linguista preocupa-se em observar, descrever e analisar os
fenômenos linguísticos num dado estado sincrônico de sua história. O linguista,
embora possa interessar-se por fenômenos linguísticos tomados de um corpus representativo da modalidade
escrita, tende a priorizar fenômenos linguísticos que se verificam em textos da
modalidade oral. O filólogo, ao contrário, está circunscritamente interessado
no desenvolvimento histórico das línguas, segundo dele nos dão testemunho
textos escritos, sobretudo os do domínio literário levando em conta aspectos
culturais que lhe estão associados.
Retomando-se a herança grega do
estudo da modalização, é preciso enfatizar que Aristóteles não se ocupou, a
rigor, da modalização tal como hoje a compreendemos. Aristóteles estava
preocupado em determinar as modalidades
dos enunciados, entendendo por modalidade um conjunto de relações entre o
locutor, o enunciado e a realidade objetiva. Originalmente, portanto,
modalidade recobria as expressões que remetem às oposições entre os conceitos
de possibilidade, realidade e necessidade.
As primeiras modalidades foram,
pois, determinadas por Aristóteles em seu quadrado lógico. Nele, Aristóteles
estabeleceu as modalidades fundamentais do possível
e do necessário, a partir das quais,
por negação, definiu os respectivos contrários, a saber, o impossível e o contingente.
Coube a Aristóteles, portanto, estabelecer o quadro da modalidade alética, que
toca às noções de verdade e falsidade das proposições.
Estabelecidas as modalidades
aléticas, lógicos posteriores viriam a definir outros dois âmbitos conceituais
da modalidade: o do conhecimento (modalidade epistêmica) e o da conduta
(modalidade deôntica).
O estudo da modalização,
desenvolvido em Linguística, é devedor das contribuições da Lógica modal. De
fato, ao buscarmos compreender e descrever a modalização, não podemos evitar a
consideração de conceitos lógicos como “possibilidade” e “necessidade”. À
medida que nos debruçamos sobre as formas como se marca a modalidade no uso
real da língua, no entanto, somos levados a aceitar forçosamente o fato de que
as línguas naturais são alógicas (Neves, 2006). Ora, ao contrário da Lógica
modal, a Linguística não está interessada em determinar a estrutura formal das
modalidades em termos de valor de verdade sem levar em conta as relações entre os
interactantes. Para o linguista, saber que uma proposição p é obrigatória ou necessária é saber para quem p é obrigatória
ou necessária, é saber também quem
aprecia o valor modal do enunciado de p
e em função de qual sistema de normas.
Sem pretender adentrar na discussão
da intricada relação entre lógica modal e o estudo linguístico da modalização e
reconhecendo que “apesar de as línguas naturais não se comportarem de maneira
lógica, as pesquisas têm mostrado que os domínios da Lógica e da Linguística
são inseparáveis” (Neves, 2006, p. 157), limito-me a observar o que separa o
estudo da modalização, levado a efeito pela Linguística, do estudo da
modalidade, levado a efeito pela Lógica modal, é a preocupação quem tem a
Linguística em descrever as formas como se marca a modalização dos enunciados
tendo em vista o envolvimento dos interactantes que atuam linguisticamente numa
situação de interação determinada, na qual estão em jogo suas crenças e
expectativas. Portanto, se a Lógica modal silencia sobre as condições de uso da
língua no estudo das modalidades, a Linguística traz para a cena descritiva da
modalização todo o contexto sociocomunicativo, do qual fazem parte os
interlocutores, seus atos de linguagem, suas intenções e seus contextos
sociocognitivos. A esse propósito, citem-se as palavras de Neves (2006, p. 158):
“(...) a investigação das modalidades na língua em uso,
embora indissociável das bases lógicas que definem as proposições individuais,
se redefine em função de sua inserção pragmática, ou seja, da sua inserção no
evento comunicativo, no qual a expressão linguística – e, portanto, as proposições
que a compõem – é apenas um elemento dentro das relações entre falante e
ouvinte, suas intenções e suas reconstruções de intenções. Reconstruídas como
parâmetros comunicativos, as modalidades proposicionais, tanto da tradição
antiga (por exemplo, a necessidade) como da mais recente (por exemplo, a
pressuposição) se redefinem, substituindo-se verdade e falsidade das
proposições pelas atitudes, crenças e expectativas dos participantes da
comunicação, considerados os enunciados reais como atos de fala que contêm
proposições”.
A modalidade alética ou aristotélica
relaciona-se com o mundo ontológico e exprime a escala que se estende do
necessário ao impossível, passando pelo possível e pelo contingente. Assim, as
modalidades aléticas dizem respeito ao domínio da existência, já que determinam
o valor de verdade das proposições. Consoante nota Neves (2006, p. 159).
“embora central na Lógica, a
modalidade alética é dificilmente detectada nas línguas naturais, já que o
comprometimento da modalização alética com a verdade relacionada a mundos
possíveis torna pouco claros no discurso comum casos de sentenças que sejam
apenas aleticamente modalizadas. É muito
improvável que um conteúdo asseverado num ato de fala seja portador de uma
verdade não filtrada pelo conhecimento e julgamento do falante”.
Resta perguntar o que então está em
jogo no exame do fenômeno da modalização. A resposta só pode ser: as diversas formas como o enunciador marca
sua relação com o enunciado que produz. Modalizar é, numa primeira aproximação,
o mecanismo pelo qual o enunciador marca sua atitude relativamente ao conteúdo
do enunciado que produz. Decerto, há uma classe de modalizadores que são
especializados para a manifestação de várias atitudes ou formas de afeto do
enunciador no enunciado que ele produz. Na modalização, o enunciador deixa
registrada no seu enunciado uma marca de sua presença enquanto sujeito de
valoração. A modalização marca, assim, algum tipo de intervenção do enunciador
no seu próprio enunciado. O que a modalização deixa apreender é o grau de
engajamento do enunciador com relação ao conteúdo proposicional de que é
expressão o seu enunciado.
Definirei, pois, modalização como a expressão do grau de maior ou menor adesão do enunciador ao
conteúdo de seus enunciados. A modalização é, portanto, um fenômeno
linguístico, pragmático que diz respeito ao grau de adesão, de comprometimento
do enunciador com o conteúdo comunicado em seu enunciado. A modalização
permite-nos avaliar o grau de adesão do enunciador ao seu enunciado. Na medida
em que a modalização se realiza mediante recursos linguísticos, ela constitui
um procedimento extremamente relevante e eficaz no processo de construção da
orientação argumentativa do discurso. Destarte, manifestar o nosso grau de
adesão aos nossos enunciados, marcar o tipo de envolvimento que temos com
aquilo que comunicamos, é argumentar. Chamam-se modalizadores, por conseguinte, aos recursos linguísticos
responsáveis pela expressão da modalização. Eles constituem marcas ou registros
linguísticos que o enunciador deixa no enunciado e que permitem ao interlocutor
reconhecer o tipo de envolvimento, o grau de adesão do enunciador relativamente
ao seu enunciado.
2. 1. Advérbios modalizadores
Os graus de maior ou menor adesão do
falante ao seu enunciado se marcam relativamente às esferas: epistêmica (quanto ao valor de
verdade), deôntica (dever,
obrigatoriedade, necessidade), atitudinal,
de delimitação de domínio e de avaliação da própria formulação linguística[8].
Funcionalmente, os advérbios modalizadores
permitem ao enunciador avaliar o conteúdo de seus enunciados. Passemos, então,
a considerar as diferentes classes de advérbios modalizadores.
1) Modalizadores epistêmicos
Servem à expressão de uma avaliação
que faz o falante do conteúdo de seu enunciado com base no conhecimento de que
ele dispõe. O que está no escopo da apreciação do falante é o valor de verdade
do que diz no enunciado. Nesse sentido, os modalizadores epistêmicos marcam a
adesão do enunciador ao estado-de-coisas designado no enunciado com base em seu
saber a respeito das ocorrências do mundo.
Os modalizadores epistêmicos são advérbios asseverativos. Uma vez que a
asseveração pode ser positiva, negativa ou relativa, os advérbios modalizadores epistêmicos podem ser
classificados de acordo com o tipo de asseveração que realizam. Assim, temos:
1.1.) asseverativos afirmativos
Os asseverativos afirmativos
pertencem à classe da factualidade (= eu
sei que, é certo que). Pelo uso
desses modalizadores adverbiais, o falante sinaliza que o conteúdo afirmado ou
negado no enunciado está fora de dúvida, é um fato. Tais advérbios assertivos
indicam:
a) evidência: evidentemente,
reconhecidamente;
b) irrefutabilidade: incontestavelmente,
indiscutivelmente e indibitavelmente;
c) verdade dos fatos: verdadeiramente,
realmente, na realidade;
d) naturalidade dos fatos:
naturalmente, obviamente, logicamente;
e) crença ou certeza do falante:
efetivamente, certamente, seguramente,
com certeza, sem dúvida (alguma), mesmo.
1.2.) asseverativos negativos
Indicam contrafactualidade (= sei
que não, é certo que não). O falante apresenta o conteúdo comunicado como
indubitavelmente não factual.
Exemplo: De forma alguma, ele concordaria com essa decisão.
1.3.) asseverativos relativos
Os modalizadores adverbiais
asseverativos relativos marcam a crença do falante na possibilidade ou
impossibilidade, na probabilidade ou improbabilidade do conteúdo comunicado.
Com tais modalizadores, o enunciador não se compromete com a verdade do que é
dito; por isso, seu uso é indicativo do baixo grau de adesão do enunciador ao
seu enunciado.
Exemplo: Talvez, não haja ninguém em casa.
Há duas formas bastante comuns de
marcar maior incerteza no tocante ao conteúdo do enunciado: o emprego do subjuntivo ou o emprego do futuro do pretérito. Podem ocorrer
também verbos auxiliares modais indicativos de eventualidade.
Exemplo: Eventualmente, eu poderia
buscar as crianças na escola.
Talvez,
ela não estivesse tão apaixonada assim.
Por outro lado, pode-se marcar certo
grau de certeza ou probabilidade com o uso do indicativo, como em
Ele provavelmente se esqueceu de trazer as toalhas.
Faz-se mister salientar que os
advérbios assertivos não garantem que o conteúdo do que se diz é, de fato,
verdadeiro, ou falso, ou possível, etc. O uso de tais advérbios indica,
certamente – e é isto que mais interessa à descrição linguística – que o
enunciador pretende assumir seu enunciado como digno de crédito. A modalização,
nesse caso, opera como uma estratégia pela qual o enunciador busca proteger sua
própria face.[9]
O uso de advérbios assertivos que atenuam o grau de adesão do enunciador ao
conteúdo do seu enunciado cumpre, pragmaticamente, a função de proteção de
face. Assim, o enunciador procura salvar sua própria face positiva, evitando a
desconfiança do interlocutor quanto ao lugar que ele, enunciador, pretende
ocupar, enquanto sujeito epistemicamente legitimado para afirmar ou negar o que
diz. Em outros termos, se eu disponho de poucas evidências ou de nenhuma para
dizer “sei que p”, evito que se levante
contra mim alguma desconfiança ou suspeita (não quero que me tomem por
mentiroso, por farsante, por desonesto, etc.), modalizando o que eu digo com
uma forma como “talvez”. Assim, ao produzir “talvez, ela esteja trabalhando”,
marco, pelo uso de “talvez”, baixo grau de adesão ao conteúdo comunicado. Não
assumo como factual “ela esteja trabalhando” (note-se o uso do subjetivo, por
força da ocorrência do “talvez”, que confere ao estado-de-coisas o caráter de
eventualidade, de possibilidade). Ser
bem-sucedido ao jogar o jogo da linguagem depende de nossa capacidade de saber
delimitar a extensão de nosso comprometimento argumentativo. Ao usar a língua
queremos provocar a adesão de nosso interlocutor (aos nossos argumentos,
opiniões, crenças) – é verdade -, mas não a qualquer custo; pois, nos jogos de
linguagem também está em jogo nosso éthos,
nossa reputação, nosso desejo de continuar jogando.
2) Modalizadores delimitadores
Os advérbios modalizadores delimitadores não servem para marcar o grau
de comprometimento do enunciador com o valor de verdade do conteúdo
proposicional do enunciado. Eles servem para delimitar o âmbito no limite do
qual se deve buscar a factualidade ou não do que é dito. Vejam-se os dois
exemplos abaixo:
Profissionalmente,
Júlio é muito dedicado.
Pragmaticamente, esta expressão linguística é inadequada.
É possível delimitar a validade do
enunciado segundo a perspectiva do falante, como no exemplo a seguir:
Pessoalmente, não me oponho a sua decisão.
Há advérbios que delimitam o domínio
de conhecimento à luz do qual se deve considerar a validade do enunciado.
Segue-se o exemplo abaixo:
Cientificamente,
não existem evidências que
sustentem a crença na existência de Deus.
Há advérbios delimitadores que
marcam uma totalidade genérica. Esses advérbios operam uma generalização, e não
uma restrição como os demais.
Em
geral, essas terras são
produtivas.
O advérbio quase opera uma generalização que recobre apenas aproximação de um
limite.
O rapaz quase não sai.
Ele está quase (praticamente)
falido.
Há advérbios delimitadores que
operam, por sua natureza lexical, exclusivamente restrição.
Todos os indícios apontam para a
culpabilidade do acusado, especificamente
os indícios encontrados na varredura que fizemos em seu apartamento.
3) Modalizadores deônticos
Os advérbios que pertencem a essa
classe servem para marcar a crença do falante na necessidade ou obrigatoriedade
da ocorrência do estado-de-coisas designado. Esses advérbios indicam que o
falante toma o estado-de-coisas representado no enunciado como algo que deve
necessariamente ocorrer.
Exemplo: Estamos aqui para necessariamente protestar.
Tais advérbios co-ocorrem,
frequentemente, com auxiliares modais deônticos. Veja-se o exemplo a seguir:
Ele deve necessariamente obedecer ao regulamento do clube.
O modalizador deôntico pode incidir
sobre toda a oração ou sobre um constituinte dela.
ed=1254
id=5403=j1: O que acontece, naturalmente, é que, dado que há outras exigências
de linguagem na televisão, se tem ido para outras formas de ficção audiovisual,
não necessariamente o teatro.
Nesse exemplo, “necessariamente”
incide sobre o SN “o teatro”.
O advérbio modalizador deôntico pode
incidir sobre toda a oração.
Necessariamente, todos devem cumprir o regulamento.
4) Modalizadores afetivos[10]
Através do uso dos modalizadores
afetivos, o enunciador exprime reações afetivas, isto é, manifesta uma
disposição de espírito em relação ao conteúdo de seu enunciado.
Essa forma de modalização pode
envolver simplesmente a projeção de emoções ou sentimentos do falante, tais
como felicidade, curiosidade, surpresa, espanto, etc., ou pode ser também de
natureza interpessoal, caso em que o sentimento que se marca pela expressão
modalizadora se define na relação entre o locutor e o interlocutor.
Constituem exemplos de modalizadores afetivos subjetivos
Felizmente,
infelizmente, surpreendentemente, lamentavelmente, espantosamente,
curiosamente.
Constituem exemplos de modalizadores afetivos interpessoais
Sinceramente,
francamente, honestamente
3. Distribuição e posição dos advérbios
modalizadores
Os advérbios modalizadores podem
incidir sobre:
a) um sintagma adjetival na função de modificador ou predicador. Nesse
caso, o advérbio figura anteposto.
Exemplos:
As palavras realmente importantes não podem ser silenciadas.
modificador
Este homem é realmente honesto.
predicador
b) um sintagma verbal
O rapaz praticamente não sai.
SV
c) um sintagma nominal
Conheço quase todos os professores desta escola.
SN
Não sei quase nada.[11]
SN (pronominal)
d) um sintagma adverbial
Com advérbio anteposto ou posposto:
Ele falou quase inaudivelmente.
Tente falar com ela, abertamente
talvez.
e) uma predicação (estado-de-coisas)
O advérbio pode vir posposto:
Conto com você realmente.
O advérbio pode figurar intercalado
entre o verbo e o seu complemento, ou entre o verbo e o seu predicador.
Espero realmente
notícias.
Você é realmente especial.
O advérbio pode também figurar entre
o verbo auxiliar e o verbo principal, como em:
Tenho evidentemente
de fazer o trabalho de novo.
Vou realmente
falar com ele.
f) um enunciado
Talvez, nós devêssemos ser apenas amigos.
Provavelmente, ele não a reconheceu.
O advérbio pode figurar no fim do
enunciado também:
Todas as medidas adotadas pelo
governo foram ineficazes politicamente.
4. Advérbios modalizadores em reportagem
e artigo de opinião: uma análise funcional-argumentativa
Quando
interagimos por meio da linguagem (quando nos propomos jogar o “jogo”), temos
sempre objetivos, fins a serem atingidos; há relações que desejamos
estabelecer, efeitos que pretendemos causar, comportamentos que queremos ver
desencadeados, isto é, pretendemos atuar
sobre o outro de determinada maneira, obter dele determinadas reações
(verbais ou não-verbais). É por isso que se pode afirmar que o uso da linguagem
é essencialmente argumentativo: pretendemos orientar os enunciados que produzimos
no sentido de determinadas conclusões (com exclusão de outras). Em outras
palavras, procuramos dotar nossos enunciados de determinada força argumentativa.
A
argumentatividade é constitutiva da linguagem, e o ato de argumentar consiste no ato de orientar o discurso no sentido
de determinadas conclusões. A distinção entre argumentação e dissertação, uma
vez que se aceite o fato de que a argumentatividade é uma propriedade que
atravessa a dinâmica dos usos da língua, não mais se sustenta. Assim, quando
dissertamos, a simples seleção de opiniões ou perspectivas sinaliza um
posicionamento nosso. A argumentação é,
portanto, uma atividade linguística que pretende causar a adesão de espíritos
às teses apresentadas.
Ao
produzir um discurso, o homem se apropria da língua, não só com o fim de
veicular mensagens, mas, principalmente, com o objetivo de atuar, de interagir
socialmente, instituindo-se como EU e constituindo, ao mesmo tempo, como
interlocutor, o outro, que é por sua vez constitutivo do próprio EU, por meio
do jogo de representações e imagens recíprocas que entre eles se estabelecem. Sublinho
que o “Eu” se constitui na relação necessária com o “outro” por meio da palavra;
nessa relação de interação verbal, o “Eu” se
constitui constituindo o Eu-do-outro e por esse “Eu-outro” é constituído.
O
discurso, enquanto prática social, enquanto atividade intersubjetiva, tem em
vista sempre a produção de efeitos de sentidos. O texto, por sua vez,
materializa o discurso. O texto se caracteriza pela tessitura, ou seja, pela
rede ou teia de relações que fazem com que um texto seja texto (e não uma
somatória de frases). Todo texto apresenta uma conexão entre as intenções, as
idéias e as unidades lingüísticas que o compõem, por meio do encadeamento de
enunciados.
Seguindo
Marcuschi (2008), endosso a compreensão de gênero
textual como fenômeno histórico, como forma de ação social, como entidade
sócio-discursiva que está intrinsecamente relacionada à vida cultural e social.
O gênero textual se caracteriza muito mais por suas funções comunicativas,
cognitivas e institucionais do que por seus aspectos estruturais. Disso não se
segue que os aspectos formais do gênero devem ser subestimados. Há gêneros
textuais em que tais aspectos serão determinantes.
Os
gêneros textuais que tomo para fins de análise dos modalizadores adverbiais são
paradigmáticos para a avaliação da orientação argumentativa assumida pelo autor
quando do uso desses modalizadores. Em meu exame da funcionalidade dos
adverbiais modalizadores na construção da orientação argumentativa, os gêneros
textuais que considerarei são a reportagem
e o artigo de opinião.
Na
reportagem, embora o objetivo pretendido (ou declarado) seja informar o leitor,
há sempre uma tentativa de convencê-lo do valor de verdade do que é comunicado.
O jornalista, ao produzir a notícia, não está pura e simplesmente relatando
acontecimentos do mundo extralinguístico, mas reconstruindo o próprio mundo,
segundo seu ponto de vista, seus interesses, valores, ideologia ou o ponto de
vista, interesses, valores e ideologia do jornal que representa. Na medida em
que o discurso jamais espelha a realidade, jamais é uma fotografia do mundo, a
própria reportagem dará testemunho de uma versão pública sobre o mundo, de uma
forma de significá-lo, constituí-lo. O texto jornalístico não opera uma
tradução linguística de um mundo já “pronto”, mas o reconstrói de forma
interativa com o leitor em potencial, que é uma imagem de leitor construída por
ocasião da própria produção do texto, e levando em conta os valores e as
crenças da sociedade em um dado momento histórico.
4.1. O artigo
de opinião
O artigo de opinião é um gênero textual, que, sendo divulgado em
jornal, em revista, em periódico, na TV ou no webjornalismo, traz a opinião do
autor sobre um fato noticiado ou tema de interesse político, cultural,
científico, etc. No artigo de opinião, pode-se apreender mais claramente as
construções do tipo textual argumentativo, já que, nesse gênero textual, o
produtor do texto procura sustentar uma tese, uma proposição com base na
apresentação de argumentos que buscam produzir a adesão do leitor à validade da
tese que se vai sustentando.
Com
vistas a examinar a função discursiva dos advérbios modalizadores, tomarei os
dois textos a seguir. Neles, destaquei, em negrito, os advérbios modalizadores.
TEXTO
1
Reportagem
Bate-papos
na Internet e e-mails não ajudam a escrever bem no vestibular
Ficar
horas em bate-papos na internet ou trocar e-mails frequentemente com os amigos dificilmente pode ajudar o vestibulando
a fazer uma boa redação.
Nos bate-papos, a linguagem usada é coloquial,
diferentemente do padrão culto do português, que deve ser adotado na redação.
“Na internet, também existe um interlocutor em
concomitância de tempo. Se ele não entende algo que é dito, pode pedir
explicações. Isso não acontece em uma dissertação, em que uma pessoa, que não
se conhece, irá ler o texto pronto”, disse Francisco Platão Savioli, professor
do Anglo.
Apesar de serem textos acabados, como as
dissertações, os e-mails geralmente
trazem muitas abreviações e sua pontuação é descuidada. Por isso não ajudam a
desenvolver a linguagem escrita.
TEXTO 2
Depois
de crises e escândalos, qual é o futuro do PT?
Luiz Carlos Borges da Silveira, empresário, médico e professor, foi
ministro da Saúde e deputado federal.
Recente levantamento indica que o
Partido dos Trabalhadores é o que nominalmente
tem menos parlamentares com mandato envolvidos na Operação Lava Jato, o
escândalo de corrupção na Petrobras. De acordo com o andamento das
investigações, o Partido Popular (PP) tem 32 integrantes; o PMDB conta com 12
citados; e o PT, dez nomes. Depois estão outros, com reduzido número.
Não se trata de nenhum mérito petista –
ao contrário: isso deixa claro que o PT, como partido, assumiu o controle
central dos atos, seus parlamentares não têm autonomia para atuar em
negociatas, propinas e corrupção ativa ou passiva, todos devem obedecer às
diretrizes do núcleo diretivo do poder partidário. Nos outros partidos, os
integrantes, parlamentares ou não, agem por contra própria, muitas vezes à
revelia da direção das siglas a que pertencem.
Corrupção sempre existiu – e provavelmente sempre existirá –, geralmente pontual e cometida por
pessoas individualmente. Com a chegada do PT ao governo, esse nefasto sistema
assumiu proporções exageradas, deixou de ser prática pessoal de políticos e
agentes públicos de má índole e desonestos para se tornar esquema de governo e
de partido, institucionalizado; por isso os escândalos proliferaram a partir de
2003.
O partido perdeu credibilidade, as
lideranças dignas que deram aval ao PT sentem-se hoje envergonhadas
A constatação dessa situação é
lamentável; uma pena para a política brasileira, porque o PT foi criado com
ideologia séria e firme em princípios e ideias capazes de promover mudanças nas
velhas práticas e restabelecer a verdadeira ética política. E agora, qual é o
futuro do PT? Não se sabe exatamente,
mas é possível, depois de tantos escândalos de corrupção, prever que dificilmente haverá superação plena e
volta aos ideais e bandeiras de outrora porque a depuração é lenta, demorada e
existem sequelas para curar, o que somente o tempo de uma geração poderá
superar e, mesmo assim, se for estabelecida e seguida uma nova conduta
partidária.
O ideário petista, a pregação
político-ideológica do partido, conquistou importantes segmentos da sociedade
brasileira que contribuíram para o crescimento e consolidação da sigla nascida
no meio sindical, no ambiente dos trabalhadores. Lideranças da
intelectualidade, da cultura e até do empresariado progressista engajaram-se na
luta. Como se sentem, hoje, essas forças do pensamento nacional? O PT não era
aquilo que pregava? A partir desses questionamentos é que se avalia o futuro
petista.
Intelectuais, sociólogos, teóricos e
formadores de opinião a quem a doutrina petista muito deve para sua expansão
estão quietos, sem ânimo para defender um partido mergulhado nos escândalos. O
partido perdeu credibilidade, as lideranças dignas, decentes e honestas que
deram aval ao PT sentem-se hoje envergonhadas, o caminho seguido afastou as
pessoas de bem. A militância, tão aguerrida, está retraída e a cada ato público
que encena encontra oposição e resistência nas ruas, pois é difícil defender um
partido ou um governo com tantas mazelas.
O que restará ao Partido dos
Trabalhadores para se recompor e reconquistar a confiança da sociedade? Teria o
PT, por seus fracos líderes e mal-intencionadas lideranças, cavado esse futuro?
Continuará perdendo adeptos e colaboradores de prestígio? Somente o tempo
responderá.
Antes de encetar a análise da
contribuição dos advérbios modalizadores na construção da argumentação, nos
dois textos referidos acima, preciso chamar a atenção para o fato de que há
outras construções modalizadoras, que são igualmente importantes para a
orientação argumentativa, mas que não serão por mim consideradas. Por exemplo,
o uso do auxiliar modal “pode” (pode ajudar, pode pedir explicações) no TEXTO
1; a ocorrência da construção “acho que”, “é verdade”, “devemos” (devemos
confessar”), etc. no TEXTO 2 são exemplos de formas modalizadoras. No entanto,
circunscreverei minha preocupação analítica às ocorrências dos advérbios
modalizadores, tema do presente texto.
Vou-me debruçar sobre o exame dos
dois advérbios modalizadores destacados, em negrito, no texto 1. O texto 1, embora seja uma reportagem, não
deixa, por isso, de ter uma orientação argumentativa. A tese que se anuncia e
de cuja validade se pretende fazer com que o leitor comungue apresenta-se já de
início: os bate-papos prolongados na internet ou a troca de e-mail com amigos dificilmente
ajudam a ter bom desempenho nas redações de vestibular. Quer-se, então,
demonstrar que o bate-papo virtual (ou o uso de e-mail) afeta negativamente a
competência do estudante na produção de redações de vestibular. Redações de
vestibular são gêneros do discurso para cuja produção se espera dos alunos o
domínio de recursos coesivos, de articuladores discursivos, de estratégias
argumentativas, enfim, a competência necessária para sustentar uma tese com a
articulação lógica-semântica e discursiva de argumentos. O primeiro argumento
em favor da tese que se pretende sustentar é o da diferença de registros linguísticos
empregados nas duas situações de uso da língua. No bate-papo de internet, a
norma é o emprego da variedade coloquial da língua; nas redações de vestibular,
exige-se o emprego da variedade de prestígio.
Essa diferença de registros de linguagem tem uma implicação importante:
o aluno que se habitou a usar a língua, com muito frequência, nos bate-papos de
internet acaba por limitar sua competência comunicativa no uso de uma variedade
linguística que, embora adequada à situação sociocomunicativa da rede virtual
de relacionamentos, não é adequada à situação de produção de redação de
vestibular. Há um segundo argumento, que é anunciado polifonicamente, já que é
de responsabilidade de outra voz no discurso – a do professor Francisco Platão
Savioli – que consiste na observação de que o rigor de clareza e exatidão na
construção do texto é maior numa modalidade escrita em que se espera o uso da
variedade formal da língua. O argumento pretende assinalar uma observação importante
sobre as condições de produção dos dois gêneros discursivos – o bate-papo da
internet e a redação de vestibular: no primeiro, reproduz-se de modo mais ou
menos aproximado o gênero da conversação face-a-face, isto é, há
co-participação dos interlocutores na construção interacional do discurso, de
modo que, se o locutor diz algo pouco claro ou de difícil compreensão, o
interlocutor pode ele mesmo corrigir ou solicitar ao locutor que reformule o
que disse, ou seja, como há co-produção do discurso, a exigência de exatidão e
clareza na construção do texto é atenuada pela possibilidade sempre presente de
que problemas que ocorram na produção do texto possam ser sanados on-line. A situação da redação de
vestibular é completamente diversa: primeiramente, porque se trata de um texto
escrito, cujo interlocutor não se faz presente no momento de sua produção;
segundo porque, em decorrência da ausência do interlocutor, cabe ao produtor a
inteira responsabilidade pela construção do texto; em terceiro lugar, porque é
ele o único responsável pelo texto que produz, deve tomar as devidas precauções
para atender aos requisitos de clareza e exatidão, ou, em outras palavras, deve procurar construir
seu texto de modo que o interlocutor possa reconstruir-lhe a coerência. Na conversação
de internet, os momentos da produção e da recepção do texto quase sempre são coincidentes, o que não
ocorre na produção do texto escrito canônico. Digo “quase sempre”, porque nas
interações que se dão nas redes de relacionamento da internet, o locutor pode
não ser satisfeito em sua expectativa de resposta responsivo-ativa por parte do
interlocutor. Muitas vezes, o locutor faz sua contribuição linguística num dado
momento e só obterá resposta em momento bem mais tarde, às vezes, até no dia
seguinte ao da produção de seu enunciado. Cabe ainda acrescentar, como parte
importante do argumento do professor Francisco Platão, o fato de que, no
bate-papo da internet, à semelhança do que ocorre na conversação face-a-face, há
sincronia entre as condições de produção e o processamento textual, de modo que
as pressões de ordem pragmática se sobrepõem às exigências da sintaxe. No caso
da redação de vestibular, o leitor já encontra o texto como produto acabado. Na
conversação da internet, em geral, ou pelo menos quando se conservam as variáveis
da circunstância da conversação
face-a-face, o texto vai acontecendo, exibindo seu próprio processo de
construção. Em outras palavras, ele põe a nu seu próprio processo de
construção, de modo que planejamento e verbalização ocorrem simultaneamente
(essa é, sem dúvida, uma característica definidora do texto falado na
conversação face-a-face; no bate-papo da internet, como já notei, nem sempre há
coincidência entre o momento de produção e de recepção, nem sempre o
planejamento do texto e sua verbalização coincidem. Podemos produzir um texto
para ser postado na caixa de diálogo do interlocutor, sem que ele esteja on-line, e aguardar uma resposta, que
pode aparecer muito tempo depois).
Quando o autor do texto 1, que venho
analisando, considera o caso do e-mail,
ele reconhece que, embora sejam gêneros do discurso da modalidade escrita, é
também vazado numa variedade coloquial, ou, para ser mais preciso, não atende
às exigências da modalidade formal escrita. Pode-se já fazer uma crítica ao
autor da reportagem, que talvez esteja endossando a posição do professor: comete-se o erro comum de identificar
modalidade escrita com variedade linguística formal. A língua escrita não é
sinônimo de “língua padrão”, “língua culta”. Há textos escritos que se
produzem, em consonância com o contexto, numa variedade menos prestigiada; por
outro lado, textos falados não são sinônimos de uso coloquial da língua. Há
textos falados que se produzem de acordo com a norma da língua de prestígio
(por exemplo, os textos falados em conferências, em palestras, em uma
entrevista de emprego, etc.). Assim, nem todos os e-mails podem ser escritos
numa linguagem informal. O grau de formalidade do e-mail vai ser determinado
pelas condições que cercam sua produção: quem é o meu interlocutor? O diretor
de uma escola a quem solicito um emprego? O meu chefe? Meu amigo de faculdade?
Meu pai? O chefe de meu pai? Um cliente da empresa onde eu trabalho? A que
necessidades sociocomunicativas atende o e-mail? Busco apenas comunicar a um amigo o que o
professor deu em aula? Tenho interesse em solicitar ao meu orientador de
doutorado um livro para a minha pesquisa de tese? A variedade linguística que
utilizaremos no e-mail será diferente em cada uma dessas situações.
Retomemos, contudo, a consideração
do propósito argumentativo do texto em análise. Vimos que o autor busca
argumentar no sentido de que uso da língua na internet pode produzir hábitos
linguísticos no usuário que são incompatíveis com o uso da língua na produção
de redação de vestibular. Atendamos, agora, ao uso de “dificilmente”, que
figura na tese, e de “geralmente”, que se topa no último parágrafo do texto.
No
que toca ao uso de “dificilmente” e tendo em vista o objetivo básico do ensino
de língua materna, o professor que se limitasse a sublinhar o comportamento
sintático-semântico desse advérbio contribuiria muito pouco – para não dizer “não
contribuiria” – (observe-se como procurei modalizar o que assumo como fato:
“contribuiria muito pouco”) – para atingir o referido objetivo. É que a
competência comunicativa supõe a capacidade de uso interacionalmente adequado
da língua, capacidade que envolve saber produzir e compreender textos nos mais
diversos contextos de uso. Chamar a atenção do estudante para o fato de que o
advérbio “dificilmente” é um modificador da predicação “pode ajudar o vestibulando a fazer uma boa
redação” é insuficiente, se o que se pretende é torná-lo mais competente no uso
do português. É necessário, portanto, que se vá além do domínio estritamente
sintático no ensino de língua.
Assumindo-se
o comportamento discursivo do advérbio “dificilmente”, deve-se perguntar sobre
a que propósitos, a que necessidades sociocomunicativas
seu uso serve. Deve-se perguntar que efeitos de sentido são produzidos com seu
uso. É preciso pensar que seu aparecimento no texto não é por acaso; foi
produto de uma escolha operada pelo falante entre outras opções que o sistema
lhe disponibiliza. O autor do texto poderia ter feito outras escolhas. Por
exemplo, poderia ter usado o advérbio “não” – “Ficar horas em bate-papos na
internet ou trocar e-mails frequentemente com os amigos não pode ajudar o vestibulando a fazer uma boa redação”. Se assim o fizesse, obteria efeitos de
sentido outros. Nesse caso, o produtor do texto estaria comprometendo-se completamente com a impossibilidade do
estado-de-coisas designado, ou seja, assumiria de modo categórico a crença de
que entreter-se com bate-papos na internet não ajuda o vestibulando a fazer uma
boa redação.
O
uso de “dificilmente”, que é um modalizador
epistêmico assertivo relativo, funciona como uma espécie de quantificador da
adesão do locutor ao estado-de-coisas designado. Numa escala que se estende da máxima
adesão (p. ex. com toda certeza não, não há dúvida alguma de que não) à mínima
adesão (é possível que não, acho que não, talvez não, muito
provavelmente não), o modalizador “dificilmente” situa-se num lugar
aproximativo de menor adesão à possibilidade de o bate-papo de internet ou a
troca de e-mail contribuir para o sucesso do estudante na produção de redação
de vestibular. É importante notar que, em enunciados de polaridade afirmativa,
o modalizador “dificilmente” orienta argumentativamente para a conclusão não-R, isto é, “é o caso que não-p” (cf.
Dificilmente ele virá = ele não
virá). Quando usado em enunciados de polaridade negativa, “dificilmente”
orienta argumentativamente para a conclusão R,
ou seja, “é o caso que p” (cf. Dificilmente
ele não virá = ele virá). Assim, ao dizer que o bate-papo dificilmente poderá ajudar o vestibulando a obter sucesso na
redação de vestibular, o autor argumenta na direção da possibilidade de não-p,
ou seja, o bate-papo não ajudará o
vestibulando a obter sucesso na redação de vestibular. Modalizar com
“dificilmente” enunciados afirmativos
é manifestar uma relativa (maior) adesão ao estado-de-coisas que é contrário ao
estado-de-coisas designado, ou seja, é tender a crer em não-p como conclusão implicada. Assim, se dizemos “dificilmente,
ele virá”, comprometemo-nos com a crença na possibilidade de que “ele não virá”,
conclusão implicada por “dificilmente, ele virá”. Se, por outro lado, dizemos
“dificilmente, ele não virá”,
comprometemo-nos com a crença no estado-de-coisas contrário, a saber, com (a
possibilidade de) “ele virá”, conclusão implicada em “dificilmente, ele não
virá”.
Outro
modo de compreender o uso modalizador de “dificilmente” é assumir que ele é
também um marcador de pressuposição. Nesse sentido, dizer “Dificilmente, o
bate-papo poderá ajudar” é manifestar menor adesão ao conteúdo posto (o
bate-papo poderá ajudar, tendo a não crer
nisso) e maior adesão ao conteúdo pressuposto (o bate-papo não ajudará, nisso tendo a crer). Inversamente,
dizer “Dificilmente, o bate-papo não
poderá ajudar” é manifestar menor adesão ao posto (não creio que o bate-papo não
poderá ajudar) e maior adesão ao pressuposto (pp.), isto é, ao conteúdo “o
bate-papo poderá ajudar” (creio que o bate-papo poderá ajudar).
Em
suma, modalizando a assertiva afirmativa com “dificilmente”, o autor manifesta
sua crença em que o bate-papo e a troca de e-mail não ajudarão o vestibulando
na produção de uma boa redação. “Dificilmente” encaminha a crença para (faz
tendê-la para) a impossibilidade de ocorrer o estado-de-coisas posto no enunciado
(cf. poderão ajudar).
Examino
o uso do modalizador “geralmente”, doravante. Trata-se de um exemplo de modalizador delimitador. Esse adverbial
modalizador opera uma generalização, ou seja, marca uma totalidade genérica.
Semanticamente, ele recorta as circunstâncias linguísticas gerais que
caracterizam o e-mail. Assim, diz-se que, na totalidade genérica dos e-mail,
observam-se “muitas abreviações” e “descuido de pontuação”. Quando lançamos
olhares sobre o âmbito do discurso, a fim de apreender a funcionalidade desse
modalizador, não podemos nos esquivar de reconhecer que esse modalizador não
implica o grau de adesão do enunciador ao valor de verdade do enunciado. Essa
adesão se deixa apreender pela ausência de qualquer modalizador que lhe fixe um
grau. Deverá ficar para uma discussão futura a questão de saber se, mesmo na
ausência de um marcador de modalização, existe adesão do enunciador ao conteúdo
do seu enunciado. Esse problema teórico tem recebido respostas divergentes por
parte dos estudiosos, mas não me ocuparei desse problema aqui. Assumirei que,
na ausência de um modalizador que “afrouxe” o grau de adesão do locutor ao seu
enunciado, o locutor expressa sempre uma tomada de posição, ele autoriza uma
interpretação que se encaminha para a afirmação de seu comprometimento com o
que enuncia, já que enunciar p é crer
que p, salvo, evidentemente, em
contextos em que há ironia e, portanto, descompasso entre enunciação e
enunciado, ou seja, quando se afirma no enunciado, mas se nega na
enunciação. Transcrevo, a seguir, o
trecho em que aparece o advérbio “geralmente”.
Apesar de serem textos acabados, como as
dissertações, os e-mails geralmente
trazem muitas abreviações e sua pontuação é descuidada. Por isso não ajudam a
desenvolver a linguagem escrita.
O
advérbio “geralmente” figura no argumento que tem mais força argumentativa, ou
seja, no segmento do enunciado que se encadeia sobre a oração subordinada
concessiva introduzida por “apesar de”. O operador argumentativo “apesar de
(que)” opõe argumentos orientados para conclusões contrárias. O argumento
introduzido por “apesar de (que)” não tem força para determinar a orientação
argumentativa, ou seja, com o uso de “apesar de” o locutor anuncia, de antemão,
que esse argumento “não vale”, não tem força para encaminhar a conclusão R (os
e-mails podem contribuir para o bom desempenho em redação). O argumento que é
determinante da orientação do discurso é o argumento que se acha na oração
principal “os e-mails geralmente
trazem muitas abreviações e sua pontuação é descuidada”. A conclusão que se
segue daí foi anunciada em “por isso não ajudam a desenvolver a linguagem
escrita”.
Observei
no início desse parágrafo que “geralmente” figura no argumento decisivo para a
referida conclusão. Por indicar uma generalização, o uso desse modalizador faz
apelo ao senso comum, ao conhecimento que se supõe partilhado com o
interlocutor. O produtor busca provocar o consentimento do leitor quanto à
factualidade do que afirma sobre a totalidade indefinida de e-mails. Não está
em questão a existência de e-mails que escapam ao padrão, ao geral, ou seja, a
existência de e-mails em que não se verificam excesso de abreviações e descuido
de pontuação; isso não invalida o fato, assumido pelo locutor, de que a
totalidade genérica de e-mails, ou seja, a maioria dos e-mails se caracteriza
por abrigar muitas abreviações e por descuidar da pontuação.
É
preciso cuidado ao usar um modalizador como “geralmente”, porquanto, às vezes,
esse modalizador pode indicar apenas uma falta de compromisso com um exame mais
apurado, mais consciencioso e crítico das coisas. Por exemplo, dizer algo como
“Em geral, os alunos das universidades públicas são mais aplicados do que os
das universidades particulares” é uma pretensão à generalização que sinaliza a
reprodução de certo preconceito vulgarmente aceito em nossa sociedade, sem
questionamento. O uso de “em geral” ou “geralmente” com enunciados que
expressam juízos de valor pode reproduzir mais uma posição ideológica, um
preconceito de classe, político ou outro qualquer do que uma generalização com
pretensão ao consentimento de factualidade. Em nossa sociedade falocêntrica,
sistemicamente machista, é comum, por exemplo, ouvirmos algo como “em geral, as
mulheres não sabem dirigir”, caso em que “em geral” pretende naturalizar desigualdades
sociais na luta pelo acesso ao poder. Esse uso de “em geral” é, por isso,
ideológico, já que busca legitimar, com base na crença numa “deficiência
natural”, o interesse de manter a dominação sobre um grupo minoritário, de
limitar o acesso desse grupo a um lugar de poder e de autonomia.
Finalmente,
considerarei as ocorrências dos modalizadores que se topam no texto 2. Malgrado eu ter destacado a forma
“dificilmente”, escusar-me-ei de avaliá-la, já que o fiz no texto anterior. O
texto 2 tem como título uma questão sobre qual será o futuro do PT depois das
crises e escândalos que marcam a o contexto político atual de nosso país. O
autor termina o texto sem apresentar uma resposta à questão – “somente o futuro
dirá”. Mas ele defende uma tese sobre a derrocada da credibilidade petista.
Para o autor, foi com a chegada do PT ao governo que a corrupção assumiu a
forma institucionalizada, isto é, tornou-se prática de governo e de organização
partidária.
No
primeiro parágrafo, alude-se a um levantamento recente que teria constatado que
o número de parlamentares do PT citados pela Operação Lava Jato é menor do que
o número de parlamentares de outros partidos. Inicialmente, portanto, o texto
procura encaminhar a conclusão de que o PT é menos corrupto do que os demais
partidos. No entanto, devemos atentar para o uso do adverbial nominalmente, que é um modalizador delimitador de domínio. O
que o autor considera como fato deve ser considerado à luz do âmbito dos
parlamentares cujo nome foi citado na Operação Lava Jato. Nominalmente quer
dizer - individualmente há um número menor de petistas citados pela Operação
Lava Jato no envolvimento de corrupção na Petrobrás. O autor pretende convencer
o leitor da factualidade do que diz no seu enunciado circunscrevendo a
factualidade ao domínio delimitado pelo adverbial modalizador “nominalmente”.
Há, decerto, um problema que não podemos ignorar. O autor recorre à autoridade
de um “recente levantamento”, ou seja, de alguma fonte investigativa confiável
que garante ser menor o número de parlamentares individualmente citados no
envolvimento na corrupção da Petrobrás. Como o autor não cita a fonte
investigativa, isto é, a autoridade que
constatou o que se pretende seja factual, resta ao leitor que não dispõe do
conhecimento que tem o autor sobre o levantamento recente a que ele se refere
confiar em que o autor está seguindo uma das Máximas Conversacionais de Grice –
a Máxima da Qualidade: “só diga
coisas para as quais tem evidência adequada; não falte com a verdade”.
O
parágrafo seguinte procura conduzir o leitor para uma conclusão contrária à que
o primeiro parágrafo autorizava. O segundo parágrafo inicia-se com o enunciado:
“não se trata de nenhum mérito petista”. O fato de que há, nominalmente, menos
parlamentares petistas citados na Operação Lava Jato não constitui nenhum
mérito petista. Para o autor, isso significa outra coisa: significa que a
corrupção, com o PT, não é mais uma prática de indivíduos que teriam autonomia
para envolver-se em negociatas, mas de parlamentares que devem seguir as
diretrizes do núcleo do poder partidário até mesmo quando desejam obter
vantagens ilícitas em esquemas de corrupção.
A
corrupção não é um problema exclusivo do PT – essa é a ideia em torno da qual
se estrutura o argumento do terceiro parágrafo. É nesse parágrafo que o autor
lança mão do advérbio modalizador epistêmico provavelmente para marcar seu grau de adesão ao conteúdo de “a
corrupção sempre existirá”. O uso de “provavelmente” não marca adesão ao valor
de verdade do enunciado. O que ele marca é a crença do autor na possibilidade de ser o caso que p, ou seja, na possibilidade de dar-se o
conteúdo comunicado. Provavelmente sinaliza,
portanto, a intervenção do autor como sujeito que acredita na possibilidade de
a corrupção jamais deixar de existir.
Passemos,
agora, ao uso de geralmente, que se
segue, no mesmo enunciado, ao uso de “provavelmente”. Transcrevo, abaixo, todo
o parágrafo em tela, com vistas a facilitar a compreensão do leitor.
Corrupção sempre existiu – e provavelmente sempre existirá –, geralmente pontual e cometida por
pessoas individualmente. Com a chegada do PT ao governo, esse nefasto sistema
assumiu proporções exageradas, deixou de ser prática pessoal de políticos e
agentes públicos de má índole e desonestos para se tornar esquema de governo e
de partido, institucionalizado; por isso os escândalos proliferaram a partir de
2003.
O
segmento “e provavelmente sempre existirá” figura sob o modo de um comentário
(note-se que vem isolado entre dois travessões). Dar-se conta de como as
informações se organizam sintaticamente é importante, nesse caso especialmente,
para que não nos confundamos quanto ao domínio semântico-sintático em que se
acha o modalizador “geralmente”. Lançando olhares sobre o parágrafo
supracitado, devemos notar que “geralmente” integra o segmento “pontual e
cometida por pessoas individualmente”, o qual se prende sintaticamente ao
segmento “corrupção sempre existiu”. Assim, o domínio semântico-sintático em
que se acha “geralmente” é o seguinte:
Corrupção
sempre existiu, geralmente pontual e
cometida por pessoas individualmente.
O
modalizador “geralmente” incide sobre os sintagmas adjetivais “pontual” e
“cometida por pessoas individualmente” na função de modificador (modificador do
sujeito “corrupção” = a corrupção é que é pontual e cometida por pessoas
individualmente). Já vimos que o modalizador “geralmente” é do tipo delimitador
de domínio. Ele opera uma generalização. O que se generaliza são as qualidades que
definem a prática “padrão” de corrupção – “pontual” e “individual”. O autor não
nega que, historicamente, possam ter existido casos em que a corrupção
impregnou grandes setores sociais (organizações, instituições), mas pretende
nos fazer crer e aceitar o fato de
que, considerada a totalidade das práticas de corrupção, elas foram episódicas
e não tiveram alcance estrutural ou sistêmico. O uso de “geralmente”, porque
delimita uma totalidade genérica, na base da qual devemos considerar a
factualidade do conteúdo afirmado, é uma estratégia argumentativa que exime o
autor de determinar a quantidade numérica dos referentes dos quais predica. O
uso de “geralmente” pode simplesmente ser o único recurso disponível quando não
estamos em condições de afirmar com exatidão, quando é necessário evitar afirmações taxativas, cujo custo é um
comprometimento que nos aproxima do dogmatismo. Por ser uma alternativa à
impossibilidade de quantificação numérica de casos, de referentes dos quais
predicamos, “geralmente” não imuniza o enunciador da responsabilidade por
vagueza, imprecisão ao reportar-se a eventos, situações, por isso seu uso deve procurar
ancorar-se num conhecimento comumente aceito e quase nunca questionável.
Finalmente,
considere-se o uso de “exatamente”, no trecho transcrito abaixo:
O partido perdeu credibilidade, as
lideranças dignas que deram aval ao PT sentem-se hoje envergonhadas
A constatação dessa situação é lamentável; uma pena
para a política brasileira, porque o PT foi criado com ideologia séria e firme
em princípios e ideias capazes de promover mudanças nas velhas práticas e
restabelecer a verdadeira ética política. E agora, qual é o futuro do PT? Não
se sabe exatamente, mas é possível,
depois de tantos escândalos de corrupção, prever que dificilmente haverá
superação plena e volta aos ideais e bandeiras de outrora porque a depuração é
lenta, demorada e existem sequelas para curar, o que somente o tempo de uma
geração poderá superar e, mesmo assim, se for estabelecida e seguida uma nova
conduta partidária.
À questão “ E agora, qual é o futuro
do PT?”, segue-se a afirmação da incerteza. Ao usar “não se sabe exatamente”, o
autor inscreve o não-saber polifonicamente. O não-saber é atribuído a outro(s)
enunciador(es) – provavelmente especialistas, como cientistas políticos,
economistas, sociólogos, etc. O sujeito do discurso se inscreve nesse lugar
(social) de desconhecimento, de não-saber, partilha desse não-saber, mas, em
seguida, afirma sua crença na possibilidade de que será difícil a “superação
plena e volta aos ideais e bandeiras de outrora porque a depuração é lenta,
demorada e existem sequelas para curar”. No que toca ao uso de “exatamente”,
parece claro que funciona como um advérbio
delimitador, ou seja, ele modaliza delimitando o âmbito de incidência do
não-saber. A negação do saber qual será o futuro do PT atinge rigorosamente o
significado do que é “saber algo”: não se sabe com certeza qual será o futuro
do PT, há absoluta ignorância sobre o que acontecerá (logicamente, não se pode
saber o que se dará no futuro) com o PT, mas admitem-se hipóteses sobre seu destino. A
modalização de “exatamente” é do tipo restritiva e significa: tomando-se rigorosamente o significado
de saber, não há saber algum a respeito do que acontecerá com o PT. Ou ainda: literalmente, não há saber a respeito do
destino do PT. O uso de “exatamente” pretende que se aceite a factualidade do
que é enunciado no limite que é por ele fixado.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
AZEREDO, José Carlos de. Fundamentos
de Gramática do Português. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor: 2002
CÂMARA Jr., Mattoso. Dicionário de
Linguística e Gramática. Petrópolis: Vozes, 2002
CUNHA, Celso.
Luís F. Lindley Cintra. Nova Gramática
do Português Contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
KOCH,
Ingedore. Argumentação e Linguagem.
São Paulo: Contexto, 2004.
LIMA, Rocha. Gramática Normativa da Língua Portuguesa. Rio
de Janeiro: Olympio, 2001.
MARCHUSCHI,
Luiz Antônio. Produção textual, análise de gênero e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
NEVES, Maria
Helena de Moura. Gramática de Usos do
Português. São Paulo: UNESP, 2000.
_______________
. Texto e Gramática. São Paulo:
Contexto, 2006.
[1] É muito comum também encontrarmos atividades em que se solicita o reconhecimento da função sintática do “advérbio”. Em qualquer um dos casos, não há nenhuma preocupação em examinar o comportamento discursivo do advérbio, o que demandaria perguntar-se pelos efeitos de sentido produzidos por seu uso.
[2]
Há, também, modificadores oracionais, que representados por sintagmas adverbais
ou sintagmas preposicionais que se ajuntam a toda a oração. Eles são externos à
oração. (cf. Naturalmente, eles foram pescar; De fato, eles
ficaram insatisfeitos).
[3 A
rigor, a função de modificador é desempenhada por três classes de sintagma: o
sintagma adjetival (cf. a bela
menina), o sintagma adverbial (cf. ele andava depressa) e o sintagma preposicional (cf. a casa de Araruama).
[4] “Professor”, porque é vocativo, não integra a estrutura da oração e, por isso, não pode ser considerado “tema”. Tema e rema designam modos de estruturar a informação oracional.
[5] Há, me parece, outros aspectos que definem para o modificador, especialmente para este modificador, um grau de aderência maior que o grau de aderência que tem o artigo. Aqui, apenas levanto duas hipóteses: a) a primeira diz respeito à forma do constituinte, isto é, ao fato de ele prender-se ao conjunto “núcleo + SP” por meio de um instrumento de conexão, que é a preposição; b) a segunda diz respeito ao tipo de relação (semântica) estabelecida. O artigo não traz nenhuma contribuição semântica ao substantivo ao qual se relaciona; determina, na verdade, o estatuto pragmático-cognitivo do referente designado pelo substantivo. Por outro lado, um sintagma preposicional como “de Saquarema” acrescenta um conteúdo semântico – ‘localidade’ – à extensão do substantivo ao qual se prende.
[6] Um expediente que nos ajuda a determinar o baixo grau de aderência do artigo ao núcleo substantivo consiste em intercalar entre o artigo e o núcleo outros determinantes. Sendo a intercalação possível, mostra-se que o artigo é o menos aderente dos determinantes. Assim, por exemplo, dado o sintagma “a garota”, podemos inserir entre o artigo e o núcleo outros elementos. Assim, podemos ter “a bela garota”, “as três belas garotas”, “as três belas interessantes garotas”. Por meio desse expediente, fica claro que o artigo é o menos aderente ao núcleo, já que, à proporção que inserimos um novo item, o artigo vai-se distanciando do núcleo.
[7] Segundo Neves (2006, p. 263), “Em português (...) as partículas adverbiais são fontes de elementos coordenativos, e também são fluidos os limites entre um papel semântico-discursivo e um papel basicamente relacional de tais partículas. Fluida é a própria classificação que pode ser atribuída a elementos ou sintagmas como porém, entretanto, contudo, no entanto, portanto, por conseguinte. As gramáticas em geral arrolam todas essas formas entre as conjunções coordenativas, embora elas não passem nos testes que lhes poderiam dar esse estatuto (...).
[8] Os textos que examinarei não contemplam exemplos de adverbiais modalizadores comentadores da forma de nossos enunciados. Alguns exemplos podem ser, no entanto, oferecidos: “Falando brevemente, estou de acordo”; Apresentando esquematicamente o problema...”.
[9] Num trabalho desenvolvido, em 2010, durante meu doutoramento em Estudos da Linguagem na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro procurei mostrar de que modo os recursos de modalização estão a serviço das estratégias de preservação da face. Nesse trabalho, preocupei-me, especialmente, com a relação intrínseca entre as formas de tratamento e os recursos de modalização como fenômeno de negociação da face.
[10] Em meu artigo “As marcas da valoração em cartas de leitores: a instanciação da categoria de afeto”, publicado na Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, examino a função de expressões que marcam afeto na construção do sentido em cartas de leitores. O artigo pode ser acessado em:
[11] O núcleo de um SN pode ser um substantivo ou pronome substantivo.