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sexta-feira, 22 de março de 2013

Memórias 1



                     

                              A Morte do Romântico
                               E a liquidez do Amor

O eminente crítico literário Alfredo Bosi expressou-se assim, acerca da temática dos escritores do Romantismo (2006: 93):

“A natureza romântica é expressiva (...). Ela significa e revela. Prefere-se a noite ao dia, pois à luz crua do sol o real impõe-se ao indivíduo, mas é na treva que latejam as forças inconscientes da alma: o sonho, a imaginação”
(ênfase no original)

A menos que presenciemos nitidamente a vulgarização do sentido de ser romântico e, consequentemente, um novo modelo imaginário pós-moderno do que é ser romântico – decerto, ralo e trivial -, não me parece errôneo acreditar que as formas de existência românticas já feneceram. Os cadáveres do Romantismo jamais ressuscitarão e seus fantasmas há muito foram exorcizados.
Na sua obra Amor Líquido, um dos mais renomados sociólogos da atualidade Zygmunt Bauman (2004: 19)afirma:


“(...) a definição romântica do amor como “até que a morte nos separe” está decididamente fora de moda, tendo deixado para trás seu tempo de vida útil em função da radical alteração das estruturas de parentesco às quais costumava servir e de onde extraia seu vigor e sua valorização”.


Zygmunt cuida haver uma ambivalência nos relacionamentos pós-modernos, a qual consiste no desejo de estreitar os laços, acompanhado da necessidade de, cada vez mais, mantê-los frouxos.
É preciso, em princípio, conter meu ímpeto verbal, a fim de que apresente algumas palavras que justifiquem a produção deste texto. Uma vez satisfeito o meu intento, darei a conhecer ao leitor os estágios nos quais se desenvolverão as minhas reflexões.
Hegel dizia serem páginas em branco as páginas felizes no amor romântico. E me sobejaram páginas vãs, algumas das quais recuperei da fogueira da depressão. Vivi segundo o governo de meu coração, durante muitos anos, e bebi do cálice da desilusão e sofrimento. Dei ouvidos aos devaneios de minha alma e acabei desditoso, descrente da possibilidade de experienciar um relacionamento inundado de um amor celestial, bem ao gosto dos Azevedos. Quiçá, a esta altura, na face, leitor, se lhe estampe um sorriso zombeteiro e se lhe afigure ao espírito que sou afeito a pieguice. Ou, talvez, endossando a afirmação de Zygmunt, acima referida, conclua ser meu desafogo o testemunho de um modo de ser e existir que se poderia chamar ‘brega’.
Alhures, esforcei-me por definir o que é ser romântico; por isso abstenho-me; apenas direi que não é romântico aquele que não vive exageradamente ou que “não vê numa gotícula de água toda a complexidade do oceano”.
A par de minha clara insatisfação e frustração decorrente de ter de me contentar com a insipidez amorosa pós-moderna, as palavras que faço deitar sobre estas páginas encontram sustento em minha insaciável necessidade de pensar, refletir, conhecer. Anuindo à verdade da afirmação socrática, segundo a qual “a vida não examinada não merece ser vivida”, emprego meu espírito na busca por compreender o declínio do amor, cujos padrões, para Zygmunt, foram baixados:


“Em vez de haver mais pessoas atingindo mais vezes os elevados padrões de amor, esses padrões foram baixados. Como resultado, o conjunto de experiências às quais nos referimos com a palavra amor expandiu-se muito. Noites avulsas de sexo são referidas pelo codinome “fazer amor”.
(p. 19)

Este fato a que fez menção o sociólogo já me foi caro, consoante se pode perceber neste poema de minha autoria, que refiro abaixo:

Apoestasia

Que me vale bradar às rosas
Se no mundo as que vejo...perfumadas
Empinam as nádegas dengosas
Ao cravo que as querem tresloucadas?

Que me vale falar às flores
De delírios ou desamores
Se os corpos à vista dos mercados
Ufanos por cachês são desnudados?

E às que são inda mocinhas
Que vivem a falar das roupinhas
Das bocas que experimentaram nas festinhas?

E mesmo às que contam vinte
Se não lêem e às cegas vivem – andorinhas!
Silabam AMOR removendo as calcinhas!

(BAR)


A concepção do amor como uma forma de ‘negócio’, ‘um contrato com prazo de validade’ e dos relacionamentos como ‘formas descartáveis de existir’ (pois existir é manter relação com) já me sorria ao espírito, muito antes de eu conhecer a obra de Zygmunt, cujo valor para mim foi propiciar-me a oportunidade de levar a efeito o intento de realimentar algumas ideias sobre o amor na pós-modernidade, de modo mais sistemático e teoricamente mais consistente.
O rigor da reflexão filosófica exige que os pensamentos pautem-se por regras que o conduzam à formação de um todo coerente e compreensível; portanto, não-contraditório. A despeito do esforço espiritual empreendido na tentativa de se chegar, com exatidão, a esse todo, não se conclua daí que se esgote a realidade posta sob o exame do espírito. Todo estudioso deve ter em conta que a realidade é sempre mais complexa e abrangente e que o conhecimento humano não pode pretender esgotar-lhe a totalidade. A totalidade do real escapa à pretensão do conhecimento à totalização. Por conseguinte, estou ciente de que não esgotarei as questões que podem ser levantadas no tocante às experiências do amor pós-moderno. Urge traçar o plano de construção, doravante.
Em princípio, é necessário situar a temática na pós-modernidade e procurar compreender como o amor tem sido experienciado numa era caracterizada por avanços tecnológicos e consumismo. Em seguida, revisitarei o discurso filosófico sobre o amor e considerarei o que dele nos disse Platão, Descartes, Kant, Spinoza e outros autores contemporâneos cuja maior contribuição foi tratá-lo de uma perspectiva cognitivo-fisiológica. Na terceira parte, lançarei olhares sobre o capítulo apaixonar-se e desapaixonar-se, que se topa na obra Amor Líquido, de Zygmunt Bauman e avaliarei algumas de suas posições criticamente. A parte final encerra as conclusões a que chegarei e que, espero, venham corroborar a tese segundo a qual o amor da pós-modernidade é um amor de conveniência.


1. O Mal-estar da pós-modernidade

O título que encabeça esta seção é o nome da obra de Zygmunt Bauman, cujas lições nortearão nossa reflexão. Buscarei a brevidade tanto quanto possível; é necessário, contudo, sumariar o conteúdo do primeiro capítulo deste livro, o qual se intitula de O sonho da pureza. O autor advoga ser a pós-modernidade instaurada sob o ideal da pureza, que constitui “uma visão da condição que ainda precisa ser criada, ou da que precisa ser diligentemente protegida contra as disparidades genuínas ou imaginadas” (p. 13).
A pureza a que se refere Bauman identifica-se com a ordem, a saber, situação em que cada coisa está em seu devido lugar. A ordem serve de um meio para regular e estabilizar nossos atos. Se um dado estado-de-coisas não se encontra organizado segundo o ideal de ordem (pureza), considera-se, pois, essa situação impura. O autor adverte-nos de que as coisas não são puras ou impuras por natureza; essas qualidades não intrínsecas a elas; são atributos resultantes de sua localização. Nesse tocante, esclarecedoras são as palavras seguintes:

“Sapatos magnificamente lustrados e brilhantes tornam-se sujos quando colocados na mesa de refeições. Restituídos ao monte dos sapatos, eles recuperam a prístina pureza”.
(p. 14)


Evidentemente, observa Bauman, que cada época e cada cultura têm seu próprio padrão de pureza. Ao interesse pela pureza, associa-se o interesse pela higiene. Higienizar para manter a pureza – nisso consiste o objetivo da ação pós-moderna. No entanto, cada ordem encerra em si suas desordens. Cada modelo de pureza tem a sua sujeira, a qual precisa ser varrida inapelavelmente. Nesse contexto, todo esforço empreendido pelas sociedades pós-modernos é orientado para combater os estranhos.
Segundo Bauman – e este é um aspecto fundamental para a nossa discussão sobre o amor -, o mundo moderno é instável e sua constância está relacionada apenas à hostilidade a qualquer coisa constante. Elenco, abaixo, as características da pós-modernidade, que  pude inferir do trabalho do autor:

·         Inconstância e insaciabilidade;
·         Velocidade, movimento, perpetuidade;
·         Diversidade de estilos e padrões de vida livremente concorrentes;
·         Atuação massificante de um mercado para consumidores, que são seduzidos com infinitas possibilidades e promessas de constante renovação de felicidade;
·         Incessante busca por intensas sensações e inebriantes experiências;
·         Flutuação de identidades: veste-se e despe-se de identidades continuamente;

As utopias modernas, em geral, se afinam com a ideia de um “mundo perfeito”, a saber, um mundo que permaneça inalterado ou idêntico a si mesmo, de modo que o que se aprende hoje possa ser válido amanhã e para todo o sempre. Observa Bauman, que


“O mundo retratado nas utopias era também, pelo que se esperava, um mundo transparente – em que nada de obscuro ou impenetrável se colocava no caminho do olhar; um mundo em que nada estragasse a harmonia; nada “fora do lugar”; um mundo sem “sujeira”; um mundo sem estranhos”.
(p. 21)

Dentre os aspectos que caracterizam a era pós-moderna, destaque-se a influência do consumismo nos relacionamentos humanos. Mais adiante, dispensarei a devida atenção a esse problema. Por ora, atente-se para a descrição que faz o autor dos homens e mulheres pós-modernos:



“Um número sempre crescente de homens e mulheres pós-modernos, ao mesmo tempo que de modo algum imunes ao medo de se perderem, e sempre ou tão frequentemente empolgados pelas repetidas ondas de “nostalgia”, acham a infixidez de sua situação suficientemente atrativa para prevalecer sobre a aflição da incerteza. Deleitam-se na busca de novas e ainda não apreciadas experiências, são de bom grado seduzidos pelas propostas de aventura e, de um modo geral, a qualquer fixação de compromisso, preferem ter opções abertas”
(pp.22-23)

A frouxidão dos vínculos estabelecidos nos relacionamentos decorre, em parte, ou melhor, é favorecida, segundo Bauman, por “um mercado inteiramente organizado em torno da procura do consumidor e vigorosamente interessado em manter essa procura permanentemente insatisfeita” (p. 23). Note-se aqui a insaciabilidade do homem pós-moderno referida em nosso elenco de características da pós-modernidade. O mercado incita o apetite dos consumidores, que passam a conservar um desejo por sensações cada vez mais intensas e por novas experiências.
As pessoas que se tornam incapazes de amoldar-se aos padrões estabelecidos pelo mercado configuram a classe dos consumidores falhos, portanto, excluídos. Como o conceito de liberdade, na pós-modernidade, está associado às esferas de consumo (na medida em que o indivíduo livre é definido em termos de poder de escolha do consumidor), os consumidores falhos, de acordo com a lógica do mercado, são indivíduos incapazes de ser livres.
À questão da sociedade de consumo e sua relação com as formas de experienciar o amor, na pós-modernidade, dada a sua relevância, será dedicada a próxima seção. Antes de levar a cabo as nossas considerações sobre a pós-modernidade, deve-se ter em conta que a busca pela pureza expressa-se numa tendência cada vez maior de tratar problemas socialmente produzidos como crimes. Lembrou-me a canção “problema social”, interpretada por Seu Jorge, da qual um dos versos diz “se eu pudesse, eu não seria um problema social”, numa clara referência à situação dos meninos de rua, rotulados pela sociedade como um “problema” e, não raro, tratados como casos da alçada da polícia.
Por fim, a (pós)-modernidade caracteriza-se por uma rejeição à tradição. Destarte, ensina Bauman:


“A modernidade viveu num estado de permanente guerra à tradição, legitimada pelo anseio de civilizar o destino humano, num plano mais alto e novo, que substituísse a velha ordem remanescente, já esfalfada, por uma nova e melhor. Ela devia, portanto, purificar-se daqueles que ameaçavam voltar sua intrínseca irreverência contra seus próprios princípios”.
(p. 26)

Devemos pensar sobre o amor à luz da concepção segundo a qual a era pós-moderna se funda na busca cada vez mais premente pelos indivíduos de prazer – um prazer, todavia, fugaz, insuficiente, cuja qualidade consiste em conservá-los na insaciabilidade do desejo.


1.2. Relacionamentos consumistas

Pode-se identificar, com Featherstone (1995), três principais grupos de teorias que se ocupam da questão da cultura do consumidor: o primeiro dos quais entende a cultura do consumidor como consequência da expansão do capitalismo, que gerou o aumento da produção por meio dos métodos tayloristas e fordistas. Nesse contexto, a criação de novos mercados serve para “educar” as pessoas, tornando-as consumidoras. Tal “educação” se dá mediante mecanismos de sedução e manipulação ideológica operados pelo marketing e a propaganda. Donde se segue uma consequência considerada negativa por alguns teóricos, qual seja, o abandono de valores e tipos de relações que eram, então, encaradas como verdadeiras e autênticas.
Ainda aqui avulta a importância de se considerar o conceito de indústria cultural, advindo da Escola de Frankfurt. Featherstone procurou estudar a transformação da cultura em mercadoria, por força da atuação da indústria cultural. Esse processo leva à formação de consumidores culturais e à redução do valores da alta cultura aos mais baixos níveis.
Com Jean Baudrillard (1995), a sociedade de consumo passa a ser compreendida do ponto de vista do valor simbólico da mercadoria. O signo é a mercadoria. A sociedade pós-moderna caracteriza-se, assim, pela saturação das imagens. Como ensina Barbosa (2008: 39):

“O presente se torna o tempo permanente e as imagens são unidas cacofonicamente, sem qualquer preocupação com uma lógica histórica que as reúna numa narrativa cronológica e espacialmente coerente”.


O segundo grupo, que encerra os modos de consumo, refere-se ao uso de mercadorias para demarcar relações sociais. As mercadorias tornam-se sinalizadores de posição de prestígio; os seus consumidores, ao se apropriarem delas, ganham status sócio-econômico pela transferência para si mesmos das propriedades simbólicas que as caracterizam. Para Bourdieu, as práticas de consumo situam-se no cerne da criação e manutenção de relações de poder, tais como dominação e submissão.
Finalmente, no terceiro grupo, se nota o consumo de sonhos, imagens, prazeres, estilos de vida. A preocupação dos estudiosos repousa em estudar os aspectos emocionais que estão relacionados ao consumo; trata-se de investigar os desejos e os sonhos que são estimulados no imaginário da cultura do consumidor.
Segundo Barbosa (p. 44), citando Featherstone, existem forças contraditórias na sociedade contemporânea que estimulam a produção e o trabalho árduo na mesma proporção que prometem prazer e satisfação dos desejos.
Campbell (2000), a seu turno, entende ser a sociedade de consumo caracterizada fundamentalmente pela insaciabilidade de seus consumidores. Houve, no hedonismo moderno, um deslocamento da preocupação que, outrora, centrava-se nas sensações, para as emoções. O controle absoluto recai sobre a imaginação do indivíduo. O consumismo preenche o lugar ocupado pela emoção e pelo desejo no domínio da subjetividade. Sua característica basilar é um irrestrito individualismo. Cabe aos indivíduos decidi quais bens e serviços desejam obter.
Campbell e Bauman divergem no que toca às consequências do consumismo na vida dos indivíduos: o primeiro considera o consumismo responsável por resolver a famigerada e tão debatida “crise de identidades”; já o segundo entende ser o consumismo capaz de causar a degradação social.
O objetivo fundamental do consumismo é a satisfação do prazer imaginativo que a imagem do produto estimula. Assim é que o prazer não decorre do acúmulo e consumo de bens, já que o descarte é rápido e incessante, mas da busca pela novidade. Um fato ilustrativo dessa obsessão social pelo novo é a rapidez com que novos modelos de celulares, com designe e funções sofisticadas surgem no mercado: há celulares que filmam, tiram fotos e ainda permitem acesso à internet. A rapidez com que esses produtos são descartados, já que novos modelos são oferecidos aos consumidores, patenteia a dissociação do valor de uso ao valor de troca e sua imediata associação com valor simbólico. Assim, caracteriza-se um estilo de vida, o qual, a seu turno, indica uma individualidade ou estilo pessoal. Como observa Barbosa,


“A roupa, o corpo, o discurso, o lazer, a comida, a bebida, o carro, a casa, entre outros, devem ser vistos como indicadores de uma individualidade, propriedade de um sujeito específico, ao invés de uma determinação de um grupo de status”.
(p. 23)
]

As discussões sobre o consumismo levam alguns estudiosos a se perguntarem sobre as condições que produzem a necessidade de consumo cada vez maior. Assim, a questão é: as pessoas são naturalmente insaciáveis e, portanto, propensas a consumir ou o aumento do poder aquisitivo leva a uma tendência irresistível ao consumo desenfreado?
Creio em que a resposta a essa questão não escusa a observação de que o desejo, a sensação de insaciabilidade são produzidos pelo mercado. Parece-me que os indivíduos são condicionados a consumir mais e mais. Tal condicionamento se dá, especialmente, pelo poder das imagens, por meio da publicidade, do marketing e da televisão.
Há, evidentemente, uma distância intransponível, entre o imaginário e a realidade, de sorte que, não experimentando na vida real os prazeres que povoam seu imaginário, o desencanto nos indivíduos é inevitável; do que se segue que, a fim de superá-lo, eles se põem a consumir mais e mais produtos. O consumo encontra sua força motriz justamente na manutenção do estado de insaciabilidade dos sujeitos, com a promessa de que ela poderá ser satisfeita com a aquisição de um novo produto.
A próxima seção é destinada à reflexão sobre o Amor, a qual será conduzida pelo que nos legaram filósofos como Platão, Spinoza, Descartes e Kant, e outros estudiosos contemporâneos.



2. O Amor na filosofia

É consabido que Eros é, na mitologia grega, uma divindade que representa o Amor. Nas diferentes versões das teogonias, Eros é considerado a força que organiza o universo e a que se atribui a responsabilidade da perenidade das espécies e da harmonia do Cosmos.
No Banquete, Platão distingue um Eros ou Amor espiritual e um Eros ou Amor sensual. Vou-me ocupar com a apresentação de algumas das concepções de Amor que se acham nos discursos dos participantes do diálogo platônico. A exposição será grosseira; não obstante, logrará sucesso se o leitor for capaz de perceber donde se originam as ideias sobre o amor que compõem o tecido ideológico da cultura ocidental.
Fedro foi o primeiro dentre os participantes a tomar a palavra. A certa altura, assim se expressou:

“Porque, de fato, o que deve orientar os homens que desejam viver uma vida honesta, isto não o dão nem as linhagens, nem as honrarias, nem a riqueza. Só o amor consegue dar isso. Que pretendo sugerir com isto? Que coisa deve orientar os homens? Julgo que às ações vis e desonestas se liga a desonra e às boas ações está ligado o amor”.
                     (p.103)

Nesse passo, está clara a associação entre ‘Amor’ e ‘Bem’: o amor é responsável pela boa conduta dos homens, por seus valores mais elevados.
Posteriormente, citando o caso de Alceste – figura lendária que morreu para a restituição da saúde de seu marido Admeto, que estava condenado à morte – Fedro concebe o amor como a maior de todas as virtudes. Trata-se do Amor sacrificial, que motiva o ser que ama a dar sua própria vida pela sobrevivência do ser amado.
A ascensão do Amor ao nível do sentimento mais nobre encontra seu ápice na seguinte passagem, na qual observamos  ser o Amor responsável por elevar o ser que o nutre à condição de ser divino:


“(...) o que ama é, de certa maneira, mais divino que o objeto amado, pois possui em si divindade; é possuído por um deus”.
(p. 106)


Pausânias, por sua vez, advertindo a Fedro, chama a atenção de todos para o fato de que as ações não são boas ou más em si; estas qualidades são atribuídas a elas, tendo em conta o modo como essas ações são vivenciadas. Há, em seu discurso, dois aspectos importantes: um deles é a associação do Belo ao Bem e do Feio ao mal. Assim, a ação bela é ação correta e boa; a ação feia é ação incorreta. O outro aspecto diz respeito a existência de duas espécies de Afrodite e, consequentemente, de duas espécies de Eros. Há uma Afrodite, denominada de Urânia, filha de Urânio – esta é mais velha; há outra, mais nova, chamada Paudemiana, filha de Zeus e Dione (Hera). Assim nem todo Eros é belo e louvável, mas o será se nos conduzir a um amor belo e louvável.
A Afrodite mais moça, considerada popular ou vulgar, define-se como o amor que toma por objeto o corpo. Este Eros é suscetível às inconstâncias do acaso. O Eros da Afrodite celeste, que participa unicamente do masculino, ama a inteligência e a força.1
 De uma perspectiva universalizante, Erixímaco, que era médico, conquanto admitisse a necessidade de desfrutar dos dois Eros, recomendou comedimento no desfrute do Eros vulgar, e acrescentou:



“(...) A própria organização das estações do ano se encontra sob a influência desses dois Eros. Se impera o Eros da ordem, a que me referi, e sob sua égide se concerta uma harmonia e boa combinação do quente e do frio, do seco e do molhado, os elementos compõem um bom ano e proporcionam saúde tanto aos homens como a todos os seres vivos e às próprias plantas. Mas, se, pelo contrário, é o Eros anárquico quem exerce domínio sobre as estações, então há muito estrago e muito prejuízo, pois de sua ação resultam geralmente pestes e muitas outras doenças, tanto para as plantas como para os animais”.
(p.117)


O mito do andrógino, que se topa também no Banquete e que se refere ao amor como busca por uma unidade, então, desfeita, ilustra a concepção do amor como busca por experienciar a unidade – unidade que não se realiza no sexo, mas o transcende; trata-se de uma unidade que, aos verdadeiros românticos como eu, é experienciada no calor dos espíritos, no perfume dos olhos, janelas da alma, e nas feições cuja beleza só pode ser percebida pelos sensores aguçados da sensibilidade transcendente.
Custa-me dissimular prazer ao compor estas linhas, pois o que meu espírito experimenta é um repugnante amargo; afinal, tomar o amor para objeto de interesse da razão é uma prática que tenho por inconveniente; no entanto, creio ser a única coisa que me restou, após inúmeras páginas fracassadas. As ideias de amor, que dantes coabitavam com os delírios da paixão romântica em minha alma, já feneceram em função do imperativo da realidade, implacável para com toda forma de devaneio lírico romântico.
Em Espinosa, “o amor é a alegria acompanhada da ideia imaginativa de uma causa exterior” (p. 41). Não é pela busca da unidade, ou melhor, da união com o ser do outro, que devemos entender o amor. Para o filósofo, pensar na existência do ser amado já é suficiente para que o amante experiencie contentamento.
O amor romântico, ao contrário do que entende o senso comum, é o amor da impossibilidade de preencher sua carência. Trata-se de um amor fugaz e ilusório. A impossibilidade de sua realização leva o amante à tristeza, ao desespero, à obsessão pela morte – fuga última a que recorre para findar as dores de sua alma. Sua característica basilar é, como cantou o poeta, o exagero: o amor romântico é o amor do exagero, da desmedida.
A personagem Werther, do romance de Goethe, declara: “Mais de uma vez me embebedei, minhas paixões nunca estiveram longe da demência, e não me arrependi de nenhuma das coisas que fiz”. Esse fragmento dá-nos uma ideia clara da intensidade do amor romântico e de sua capacidade de contrariar a moral e a sensatez da razão. 



1. Há um claro desprezo votado à mulher na época clássica grega: a filha de um deus e de uma deusa era considerada inferior a outra que tivesse nascido apenas de um deus.

sábado, 25 de setembro de 2010

A liquedez do amor


A Transmutação do Amor
Da era romântica à modernidade líquida



1. Introdução

Não é novidade, pelo menos, para os seguidores de meu blog, que minha principal ocupação é o convívio com os livros e o meu envolvimento com o pensamento reflexivo. Tudo que me sabe à alma torna-se matéria para férteis reflexões. E um dos temas de que mais me ocupo é o amor; talvez, porque, na impossibilidade de experienciá-lo num relacionamento com uma mulher que seja recíproca às minhas aspirações amorosas, só me reste tomá-lo para matéria de meditação e discussão. Quiçá, poder-se-ia ver nessa tendência uma forma de sublimação, tal como a definiu Freud, ou seja, a frustração acarretada pela impossibilidade de experienciar o Amor (com maiúscula!) é compensada com longas horas de reflexão sobre as formas como ele se manifesta, mormente em nossa modernidade líquida.
Não obstante, esta exposição, em particular, é motivada por uma questão que me tem visitado o espírito há algum tempo e sobre a qual, finalmente, poderei dizer algumas coisas: existe amor romântico nos tempos de hoje? Qualquer resposta que se dê não pode dispensar uma reflexão sobre o que é o amor romântico, sobre a origem/história dessa forma de amor, suas implicações ideológicas, sua relação com os gêneros (masculino/feminino); enfim, não pode tomá-lo como objeto independentemente de contextos sócio-históricos e ideológicos específicos. Assim, pensarei o amor romântico como fenômeno sócio-histórico.
Acrescente-se ainda que, ao abordar o amor romântico, em particular, não ignorarei a necessidade de refletir filosoficamente sobre a ideia de amor, tal como nos foi legada pela tradição clássica filosófica. Para tanto, tomo como referências as obras Banquete, de Platão, e Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, de Comte-Sponville, onde encontraremos a concepção fundamental de amor como desejo por aquilo que nos falta – o amor como carência, portanto. Discutirei essa concepção alhures.
A maturidade intelectual, decorrente do convívio aturado com os livros, bem como a experiência acadêmica, que já data de nove anos, ensinaram-me que toda questão que se pretende discutir à luz de uma reflexão teoricamente orientada não pode escusar a devida contextualização, ou seja, ela deve ser situada relativamente a certas variáveis pressupostas pela perspectiva teórica. Assim, com vistas a escapar ao senso-comum, reproduzir os lugares-comuns, as fraseologias agastadas, as opiniões correntes e vulgares, todo pensador deve esforçar-se por fornecer à sua audiência ou aos seus leitores, um cenário no interior do qual a questão que se propõe examinar seja devidamente situada, para que ela não fique à deriva ou margeando meras especulações despropositadas.
Este texto se apresenta, portanto, dividido em seções, porquanto acredito ser este um procedimento satisfatório para o atingimento da referida contextualização. Ademais, penso se tratar de um recurso didático que facilitará a leitura e compreensão do texto, cujo tema é, claramente, complexo.


2. A modernidade líquida: o imperativo do novo


É em Bauman que busco as bases para fundamentar o contexto sócio-histórico em que minha reflexão sobre amor romântico se desenvolverá. Escreve o autor, na obra Vida Líquida (2009:7):
“”Líquido-moderna” é uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação , em hábitos e rotinas, das formas de agir”.
Assim é que permanência e constância são valores improváveis em tais formas sociais de existência, cujos valores fundamentais são a fugacidade e a inconstância, reforçadas pela necessidade do novo (novos filmes, novas canções, novas novelas, etc.). No âmbito ideológico, tudo que remeta à estabilidade e à permanência é sinal de tédio e provoca sensação de aprisionamento. Manter vínculos mais duradouros representa manter-se num estado de aprisionamento.
Como bem observa Bauman (p. 8), “a vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante”. Se a única constância é a que diz respeito à incerteza, é claro que, com tais condições, confiança, solidariedade e estabilidade, valores exigidos por experiências amorosas com aspiração romântica, são incompatíveis, não passando de fumaças de delírios juvenis.
A sociedade líquida é caracterizada pela descartabilidade, inerente ao consumo de massas. A necessidade de consumo desmedido é alavancada pela fantasia, como herança do Romantismo. A fantasia, herdeira dos ideias românticos, faz surgir o consumidor moderno. Destarte, para Campbell (2001: 130), os consumidores são motivados pela necessidade de buscar um prazer imaginativo, que acreditam ser alcançável na imagem do produto. Essa busca ininterrupta se sustenta na conservação dos consumidores num estado de insaciabilidade permanente.
Embora intente destinar uma seção própria para me ocupar da questão da sexualidade relativamente ao amor, é necessário, desde já, apontar a supervalorização do corpo, alçado à condição de capital, na modernidade líquida, consoante nos ensina a antropóloga Mirian Goldenberg, em seu livro O corpo como capitalestudos sobre gênero, sexualidade e moda na cultura brasileira. No artigo Corpo como capital, atendo-se à realidade brasileira, particularmente à do Rio de Janeiro, a autora nos ensina:
“No Brasil, e mais particularmente no Rio de Janeiro, o corpo trabalhado, cuidado, sem marcas indesejáveis (rugas, estrias, celulites, manchas) e sem excessos (gordura, flacidez) é o único que, mesmo sem roupas, está decentemente vestido. Pode-se pensar, neste sentido, que, além de o corpo ser mais importante do que a roupa, ele é a verdadeira roupa: é o corpo que deve ser exibido, moldado, manipulado, trabalhado, costurado, enfeitado, escolhido, construído, produzido, imitado. É o corpo que entra e sai de moda (...)”.
(p. 47)
Penso a relação entre o consumo de bens culturais (mercadorias) e a supervalorização do corpo (capital), na sociedade líquido-moderna, em dois sentidos: num primeiro sentido, está claro que o consumo se destina também à conservação/construção do corpo (investimentos em lipoaspiração, dietas milagrosas, cirurgias plásticas, academias de ginástica e musculação, etc.); num segundo sentido, uma sexualidade experienciada apenas para o corpo acaba por desbordar para um consumo desenfreado de corpos.
Relacionamentos apenas experienciados sob o regime ditatorial dos corpos (transformados em capital), em condições consumistas, hedonistas e utilitaristas de existência social, estão fadados ao fracasso, dado o inevitável envelhecimento e perecimento do corpo. Não se trata, aqui, evidentemente, de negar a possibilidade de experienciar o amor carnal – o amor pode e deve também encontrar inspiração no enlace dos corpos, manifestado no sexo -, mas deve, uma vez que se pretenda uma experiência transcendente, humanamente mais significativa, fincar suas raízes em um terreno que ofereça nutrientes mais profundos, sem os quais esta forma de amor não será outra coisa, senão uma conexão circunstancial e efêmera.
É ilustrativo da condição do corpo como capital e da supervalorização que se é dada a ele o que nos relata a autora a respeito de uma pesquisa feita com homens e mulheres da cidade do Rio de Janeiro, pertencentes às classes mais favorecidas:
“Também com relação à atração entre os sexos, o corpo tem um papel fundamental. Ao perguntar: O que mais a atrai em um homem? As pesquisadas disseram a inteligência e o corpo. Para a questão: O que mais o atrai em uma mulher? Os pesquisados responderam a beleza e o corpo. Quando a atração é sexual, o corpo ganha um destaque ainda maior. Na pergunta: O que mais a atrai sexualmente em um homem? As mulheres disseram o tórax e o corpo. Para: O que mais o atrai sexualmente em uma mulher? As respostas masculinas foram a bunda e o corpo.”
(p. 51)
Novamente aqui, é preciso enfatizar que não se trata de denegar o corpo como fonte de estímulo para o sexo; afinal, não há sexo de almas, mas de corpos. Curioso é que, entre as mulheres, qualidades como ‘inteligência’ ainda competem com ‘o físico’, no que toca aos atributos masculinos que as atraem; ao contrário, os homens se sentem atraídos sexualmente apenas por mulheres dotadas de atributos corpóreos.


3. O amor romântico e o amor paixão


Doravante, dedicar-me-ei a refletir sobre o amor romântico e seu correlato, o amor paixão. É preciso, contudo, situar a reflexão em dois domínios: o do imaginário e da realidade sócio-histórica. Ambos são atravessados pelo ideológico.
Em Banquete, ao nos contar sobre o diálogo que travou com Diotima, Sócrates ensinará ser o amor uma carência ou um falta. O amor é desejo do que falta. O objeto do amor é sempre uma falta. Só amamos aquilo que nos falta e que, portanto, não possuímos. O amor é incompletude, é pobreza ávida por devorar. A natureza miserável de Eros decorre de sua origem, já que ele é filho de Pênia, a penúria. O amor é também desejo por fusão irrealizável. Ensina-nos Sponville:
“O amor não é completude, mas incompletude. Não fusão, mas busca. Não perfeição plena, mas pobreza devoradora (...) o amor é desejo, e o desejo é falta”.
(p. 252)
O amor romântico é o amor da desmesura, do exagero e da impossibilidade. É uma forma de amor incompatível com a luxúria, pois que inspirado e alimentado pela alma. Sua consumação pelo sexo representa seu arrefecimento. É na conservação do seu desejo, na busca pelo objeto idealizado e inatingível, pois que também sublimado, que encontra sua vitalidade e sobrevivência. É amor de transcendência, de projeção e idealização. O amor romântico supervaloriza a palavra ou os atos e gestos comunicativos como formas simbólicas de magnetismo entre espíritos. Também é amor que promove um autoquestionamento e propicia aos parceiros a possibilidade de (re)pensar a complexidade do envolvimento emocional; é, portanto, auto-reflexivo.
Decerto, o amor romântico é amor feminilizado, sua força ou vigor encontra-se na alma feminina. Contudo, considerando-o como fenômeno sócio-histórico, é preciso, em primeiro lugar, situar seu surgimento no final do século XVIII e reconhecer que com ele inaugurou-se uma ideologia de casamento e maternidade que subordinava a mulher ao lar e ao relativo isolamento no seio da família. Assim, escreve Giddens:
“A idealização da mãe foi parte integrante da moderna construção da maternidade, e sem dúvida alimentou diretamente alguns valores propagados sobre o amor romântico. A imagem da “esposa e mãe” reforçou um modelo de “dois sexos” das atividades e dos sentimentos”. As mulheres eram reconhecidas pelos homens como sendo diferentes, incompreensíveis – parte de um domínio estranho aos homens”.
(p. 53)
Claro está que, após as conquistas dos movimentos feministas e da chamada revolução sexual, desencadeada na segunda metade do século XX, é inaceitável – embora ainda presente – que se sustente a ideologia romântica da maternidade (“as mulheres nasceram para ser mães, elas têm uma natureza materna”) e da “esposa” (a mulher “respeitável” e dona do lar), visto que não só o direito e o poder sobre a condução de sua própria sexualidade, bem como sua maior participação nas esferas de produção, foram conquistas que contribuíram para maior igualdade em termos de condições sociais entre elas e os homens, muito embora a maior imersão de mulheres no mercado de trabalho não tenha significado o abandono completo das tarefas do lar. Em geral, o que se observa é uma sobrecarga de tarefas ou, em outras palavras, o acúmulo de funções.
Por outro lado, como ensina Giddens (1993), “(...) a fusão dos ideais do amor romântico e da maternidade permitiu às mulheres o desenvolvimento de novos domínios de intimidade” (p. 55). O amor romântico manifestava-se, na literatura, especialmente, em formas de romances, destinados ao público feminino. Neles, os espíritos feminis buscavam o êxtase e a compensação para suportar uma existência social ainda limitada pelo poder do homem. Os ideias românticos serviram de apoio às mulheres na construção de sua autonomia, não obstante viverem uma vida de privação.
O amor romântico é amor que nega o mundo e que deseja a fuga. O ápice desta fuga, como nos dão testemunho inúmeros exemplos da literatura, é a morte. Na história do amor romântico, não há páginas felizes; estas estão sempre em branco.
O amour passion ou amor paixão tem caráter libertador, visto que quebra os grilhões da rotina e do poder. É essencialmente subversivo, infenso às urgências e incumbências do cotidiano. Seu envolvimento é mais invasivo; conturba a estabilidade do espírito.
Convém entender a sexualidade como integrante das relações sociais, portanto, como um fenômeno sócio-cultural, intimamente ligado ao poder. A teorização da sexualidade ensejou a possibilidade de exercer sobre ela um controle maior pelas instituições que se apóiam na autoridade dos especialistas. Como ensina Giddens, se na Europa pré-moderna, notadamente no século XVII, a sexualidade ainda estava vinculada à mera necessidade de reprodução, com a revolução sexual, a sexualidade passou a ser encarada como forma de obtenção de prazer.
“A liberdade sexual acompanha o poder e é uma expressão do poder; em certas épocas e locais, nas camadas aristocráticas, as mulheres eram suficientemente liberadas das exigências da reprodução e do trabalho rotineiro para poderem buscar o seu prazer sexual independente. Evidentemente, isto jamais esteve relacionado ao casamento”.
(p. 49)
Ideais veiculados pelo amor romântico ainda parecem impregnar a consciência feminina. Giddens, citando uma pesquisa desenvolvida por Thompson com moças adolescentes, oferece-nos o seguinte testemunho de uma das adolescentes entrevistadas:
“Desejo o relacionamento ideal com um rapaz. Acho que quero alguém que me ame e cuide de mim, tanto quanto eu dele”.
(p. 65)
(grifo meu)
Note-se que a adolescente fala em um amor que cuide, uma forma de amor idealizada por muitas mulheres e cuja expressão fidedigna parece ser o da mãe pelo filho.
Para Giddens, a modernidade caracteriza-se por uma forma de amor que fragmenta os valores do amor romântico, a saber, o amor confluente, que é um amor ativo, que resiste ao “amor para sempre” (ideal tipicamente romântico). Escreve o autor:
“Na época atual, os ideais de amor romântico tendem a fragmentar-se sob a pressão da emancipação e da autonomia sexual feminina. O conflito entre a ideia do amor romântico e o relacionamento puro assume várias formas, cada uma delas tendendo a tornar-se cada vez mais revelada à visão geral como um resultado da crescente reflexividade institucional”.
(p. 77)
A tendência cada vez maior de rupturas de casamentos é, segundo o autor, consequência do amor confluente. Ao contrário do amor romântico, cujas bases se assentam no envolvimento emocional entre duas pessoas, o amor confluente dá especial valor a critérios sociais externos, tais como estabilidade econômica, poder, etc. Essa última forma de amor é sensível às flutuações das experiências sexuais que se tornaram fundamentais para a manutenção ou, no caso de seu fracasso, para a dissolução do vínculo.
Bauman, em Amor Líquido, à página 111, comenta o conceito de “relacionamento puro”, de Giddens, que se caracteriza “pelo que cada um pode ganhar”. Sua continuidade depende de que ambos os envolvidos se sintam satisfeitos com o quanto cada qual proporciona em termos de prazer um ao outro. Consoante observa Bauman,
“O compromisso com outra pessoa ou com outras pessoas, em particular o compromisso incondicional e certamente aquele do tipo “até que a morte nos separe”, na alegria e na tristeza, na riqueza ou na pobreza, parece cada vez mais uma armadilha que se deve evitar a todo custo”.
Ao considerar as experiências sexuais nas formas ditas de suingue ou trocas de casais, Baumam se pergunta:
“Será possível encontrar lá [nos clubes de suingue] a intimidade, a alegria, a ternura, a afeição e o amor? Bem, o visitante pode dizer de boa-fé: isto é sexo, seu estúpido – não tem nada a ver com nada disso. Mas se ele ou ela estiver certo(a), será que o sexo em si é importante? Ou que, seguindo Sigusch, se a substância da atividade sexual é a obtenção do prazer instantâneo, “então o mais importante não é o que se faz, mas simplesmente que aconteça”.
(p. 72)
Creio ser importante reconhecer que a liberação sexual libertou o sexo das complicações do amor; em outras palavras, para o sexo, não é necessário envolvimento afetivo-emocional, administração de subjetividades e de personalidades. O amor torna-se o terreno do ideal e jurisdição da alma; ao passo que o sexo é do domínio exclusivo de um corpo que se transformou em capital. Essa dissociação entre sexo e amor e a decorrente polarização entre sexo-corpo, de um lado; e amor-alma, de outro, bem como o fato de os relacionamentos serem experienciados segundo a lógica do “custo-benefício”, de modo que sua manutenção ou dissolução depende do balanceamento de vantagens e desvantagens, da contabilidade de ganhos e débitos, inviabilizam a revitalização dos valores do amor romântico que, não deixando de ser sexual, idealiza a união plena entre alma e corpo.

4. A morte dos românticos

Finalmente, gostaria de insistir em que os que se autoproclamam românticos o fazem de modo distorcido ou mesmo empobrecido. Os homens que se cuidam românticos apenas pelo fato de serem mais carinhosos, atenciosos e gentis, ou mesmo de ofertar às suas namoradas/ esposas buquê de rosas, acabam por confundir ser romântico com parecer romântico. Tais gestos estão longe de representar a essência do movimento espiritual e o ideário românticos.
Alfredo Bosi (2006), eminente crítico literário brasileiro, nos lembra que o Romantismo, como fenômeno histórico, “expressa os sentimentos dos descontentes com as novas estruturas” (p. 91) (na época, a nobreza a vias de sucumbir e a emergência da burguesia). O romântico é, pois, um ser social descontente, inconformado com a realidade em que vive; negação do mundo e da sociedade, ele encarna os ideais mais sublimes de amor, de mulher, da pátria, da religião. Parece-me difícil pensar o romântico numa época em que muitos vivem comodamente no/com o mundo, numa época em que predomina o conformismo. O romântico exacerba sua sensibilidade e injeta em sua alma sentimentos inflamados pelos quais orienta suas experiências afetivas e sexuais.
No romântico, ver e sentir é um só; ver e sentir se constituem numa forma una de compreensão da realidade e do Outro. A vida é um obstáculo à eternidade do amor que idealiza; a morte, a fuga última às desilusões inevitáveis de uma existência que não lhe é hospitaleira.
Por isso, desconfio daqueles que, em programas televisivos, por exemplo, quando interrogados de suas tendências emocionais, dizem-se românticos. Se o leitor concordar em que, na modernidade líquida, em que as conexões entre homens e mulheres constituem a forma prevalecente de experienciar a sexualidade e a afetividade, então deverá aceitar a morte do amor romântico, pelo menos no que ele tem de mais significativo para a espécie humana.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Quantos amores é possível experienciar? Decerto, muitos, mas muito poucos serão capazes de levar nossas almas a imergir em suas profundezas.





Das conexões aos relacionamentos
O amor descartável



Em matéria de amor, ficamos sempre à deriva,
boiando na superfície das conexões, à espera de um salva-vidas. (BAR)


       É comum ouvirmos pessoas dizerem ter acabado de sair de um relacionamento; difícil é ouvi-las dizer que estão entrando num. Acontece que, não raro, elas entram, mas se esquecem de fechar a porta, ou porque ainda não encontraram a tal “chave do amor”, ou porque a confiou ao parceiro, que, por descuidado, perdeu-a.
É sintomático este fato, uma vez que essa tendência a sair de relacionamentos frequentemente é consequência inevitável das experiências vividas em relacionamentos epidérmicos, frágeis, descartáveis, carecidos de profundidade. As pessoas que só conheceram esse modelo de relacionamentos, que também se caracterizam pela fluidez e inconstância, tendem a se sentirem inseguras e receiam arriscar-se num novo relacionamento. Está clara, pois, a crise de que sofrem as experiências de Eros, na cultura pós-moderna das imagens e simulacros: quanto mais relacionamentos líquidos, frágeis e efêmeros experienciamos tanto mais desesperançosos e inseguros ficamos. Em decorrência disso, há certa descrença generalizada no amor; uma descrença acompanhada, ou melhor, decorrente de uma lucidez. Parece-me que as pessoas, pelo menos, reconhecem não serem aquelas experiências descartáveis a expressão do amor, tal como se lhes afigura ao espírito.
A primeira questão que se me apresenta ao espírito e cuja resposta tentarei propor é: como tornar possíveis experiências de relacionamentos que difiram dos modelos oferecidos pela sociedade de mercado e de imagens?
Na impossibilidade de experienciar o amor, resta-me refletir sobre ele, o que me tem sido uma forma de sublimação, da qual nos fala Freud. Escrevo sobre amor, para que eu não fique por aí papagaiando lugares-comuns, lamentando e verbalizando as mesmas opiniões correntes a respeito da dificuldade de se viver relacionamentos mais sólidos, constantes, intensos e duradouros. O que me proponho aqui é tentar compreender, baseando-me nas leituras que fiz, em que contexto sócio-cultural, econômico e ideológico devemos situar as experiências de relacionamentos epidérmicos. É esse contexto que nos fornecerá a chave para compreendê-los e para, se possível, propor alternativas.
Começo, pois, fazendo um ajuste conceitual, bem como destacando as características mais evidentes das relações afetivas entre homens e mulheres na sociedade do mercado e das imagens. O ajuste, então, consiste em substituir a palavra relacionamento por conexão, com vistas a expressar a fragilidade dos vínculos; ademais, trata-se de um termo bastante sugestivo, já que captura bem a tendência a transpor as formas de relacionamentos que se dão nos espaços cibernéticos da internet para as esferas de relações da vida real e cotidiana. Empregarei, por outro lado, a palavra relacionamento sempre que me referir a formas de relação caracterizadas por constância, durabilidade, intensidade, profundidade, características essas sugeridas pelo sufixo “-mento”, que figura também em “enredamento”, “entrelaçamento”. Creio em que relacionamento deve ser vivido como uma espécie de entrelaçamento de almas e corpos.
Também é necessário definir o que eu entendo por amor. Parece-me que o amor ideal deveria expressar-se pela adequada comunicação entre almas e entre corpos; amar com alma e com corpo é entregar-se de corpo e alma. O amor ideal é, pois, resultado dessa entrega, dessa afinidade entre almas e corpos. Estando consciente de que tudo que toca ao âmbito do idealismo está fadado à não-realização, justamente porque é ideal, proponho que o amor que tantos dentre nós desejamos experienciar deve ter (admitindo-se variações subjetivas), pelo menos, duas características básicas: o zelo e o amparo. É possível que desejemos e busquemos o amor que cuida, que zela, que ampara; decerto, muito diferente dessa forma de amor frágil, inconstante, que tende a desamparar, e cujos exemplos são fartos.
As conexões, até onde pude perceber, têm as seguintes características:
· Descartabilidade;
· Promiscuidade;
· Liquidez;
· Inconstância;
· Superficialidade;
· Esvaziamento;



Tais características, conforme mostrarei, parecem adequar-se às formas de se relacionar na sociedade de consumo de imagens, cujos indivíduos destituídos de capacidade crítica, tornados meros consumidores, ao invés de cidadãos, no sentido próprio do termo, a saber, indivíduos capazes de atuar criticamente, porque intelectualmente emancipados, não parecem conseguir ver para além dos simulacros e das imagens da sociedade do espetáculo.
As sociedades de massa e a saturação das imagens
É no livro Formas da crise – estudos de literatura, cultura e sociedade (2002), que André Bueno nos apresenta o que caracteriza fundamentalmente as sociedades (pós)modernas ou, como sugere Gilles, hipermodernas:
“Talvez o tema mais constante, quase corriqueiro, que tem se apresentado ao debate acadêmico seja o das imagens superficiais e fragmentadas que compõem a presente etapa das sociedades urbanas de massa. Pela via do desencanto, onde não cabe qualquer projeto de emancipação política e social, teríamos o seguinte, e curioso, retrato do presente: um mundo vazio, de fragmentos à deriva, feito de simulacros, de imagens, de superfícies vazias, destituídas de qualquer espessura histórica ou humana”.
(p. 257)



Este mundo de simulacros e imagens é o mundo da mercadoria. Nesse mundo, enfatiza-se cada vez mais as trocas de mercadorias, às quais se associam liberdade e pluralidade. A despeito desta sensação de liberdade e evidência de pluralidade, a cultura pós-moderna não é capaz de resolver as exclusões típicas e que são consequência inevitável das sociedades capitalistas.
O consumo desenfreado de imagens, que se desenvolvem pelo avanço rápido e eficaz das tecnologias, se dá num tempo veloz, comprimido num presente eterno. Só existe o aqui-e-agora, mas esse espaço de tempo presente é efêmero e sustentado pelo mito de progresso. Na sociedade das imagens e dos simulacros, deve-se sempre buscar a novidade. Essas imagens tornam mais sólida a coesão social e provocam o consentimento dos indivíduos a este mundo espetacularizado, donde se segue ser difícil imaginar outras formas de existir, de pensar e de sentir, que resistam à penetração maciça das imagens (saturadas) de mercadorias nas mentes e nas emoções dos sujeitos.
Desde já, chamo a atenção para a relação entre a ocupação das imagens, compondo o imaginário dos indivíduos da sociedade de massas e a superficialidade de suas emoções. A influência massificante do mercado contribuiria decisivamente para a formação de indivíduos idiotizados e incapazes, portanto, de atuar criticamente na sociedade, visto que essa influência atua no nível da afetividade e das emoções, conforme ensina Bueno:



“(....) o mundo da mercadoria e das imagens da mercadoria forma um campo de poderosos investimentos imaginários, afetivos e eróticos, uma “força prática” de grande eficácia para persuadir e obter consentimento de baixo, dos pobres e dos trabalhadores pobres, para não mencionar as classes médias urbanas, muito mais diretamente atraídas para esse campo”.
(p. 264)



O mundo da mercadoria é um mundo fetichizado, ou seja, fundamentado no fetiche de mercadoria: um mundo que aparecerá ao trabalhador como estranho e distante, já que este, no processo de produção, tem sua consciência fragmentada, de sorte que ele não se reconhece no produto de seu trabalho. A sedução e o fascínio injetados pelas imagens produzem automatismos de percepção. Atingindo todas as esferas do cotidiano, as imagens aprofundam a crise de valores, de modelos e paradigmas. O que se percebe, nesse contexto, é o abandono de um pensamento reflexivo e crítico, em favor da aceitação do status quo. Embora com certo exagero, alguns teóricos afirmam haver uma tendência a se produzirem indivíduos unidimensionais, bastante esvaziados em termos de força de sua individualidade, numa sociedade cada vez mais administrada e autoritária. No que toca a esta crítica extremista, nos adverte Bueno:



“De fato, supor que uma sociedade urbana de massas possa ser inteiramente unidimensional, administrada e controlada em todos os níveis da vida – trabalho, lazer, prazer, etc. – é aceitar um extremo negativo que não deixa espaço algum para o conflito e para a contradição, produzindo um tipo curioso de pessimismo, em certo momento chamado por Lukács de “inconformismo conformista”.”
(p. 267)




Claro é que, numa perspectiva de análise dialética, há que se levar em conta as contradições constitutivas do real. Concordo, portanto, com a crítica de Bueno. Há nuances e diferenciações no que toca aos efeitos da ocupação das imagens na consciência individual. Deixarei essa questão para outro momento.
Acrescente-se que o mundo das imagens, que atuam nas zonas eróticas das consciências de massas, produzem indivíduos caracterizados pela insaciabilidade. A ordem é consumir mais e mais. Por um lado, há uma necessidade forte de produzir o novo – novos filmes, novas canções, novelas, revistas, livros, espetáculos, etc.; por outro lado, há a necessidade de manter os indivíduos num estado de entorpecimento alienante.
A insaciabilidade consumista parece transferir-se para as esferas das conexões intersubjetivas, particularmente nas conexões entre homens e mulheres. As imagens carregam ideologia e erotismo e são as motivações eróticas e afetivas que fazem com que as pessoas projetem nessas imagens seus modelos de sucesso e de poder. É nessa projeção que buscam compensar a mediocridade e monotonia do seu cotidiano.
Para manter os indivíduos num eterno estado de insaciabilidade, as imagens devem carregar promessas de felicidade, que, por sua vez, produzem uma sensação de conforto. O fio condutor da ideologia é a linguagem, que torna possíveis formas de comunicação distorcidas. Para esta onda de distorções e comunicações enviesadas, contribuem os meios de comunicação de massa, responsáveis também por alimentar a projeção (da consciência) das massas em modelos de sucesso e de poder, representados em jogadores, atores, atrizes, milionários, garotas da playboy, cantor, cantora, etc, donde se segue acentuar-se o que Bueno chama de “carência afetiva e erótica de massa” (p. 270).
A sociedade das imagens vende mitos: do esporte, da política, do cinema, da televisão. Esses mitos povoam o imaginário dos indivíduos massificados e conscientemente regredidos. Trata-se, como se vê, da chamada vida na caverna pós-moderna, cujos habitantes estão incessantemente imersos em simulacros. As conexões são vividas nessa densa atmosfera de imagens de coisa com coisa alguma. E acrescente-se: considerado o conceito de hipermodernidade, proposto por Gilles, devemos reconhecer que, um dos aspectos mais marcantes de nossas sociedades, é o hiperindividualismo. Nesse tocante, nos adverte Gilles:



“O futuro da hipermodernidade depende de sua capacidade de fazer a ética da responsabilidade triunfar sobre os comportamentos irresponsáveis. Estes não vão desaparecer sozinhos, pois se inscrevem necessariamente na lógica da hipermodernidade. De fato, são os próprios mecanismos do individualismo democrático que explicam tanto a responsabilidade de uns quanto a irresponsabilidade de outros, daqueles que preferem corromper a autonomia que herdaram, transformando-a em egoísmo puro”.
(p. 45)



Numa sociedade hiperindividualista, predominam formas de amor egóico, incompatíveis, portanto, com a esperança no amor cujas qualidades basilares referi nas primeiras linhas deste texto. De que modo, então, podemos resistir aos modelos de conexões que contribuem ainda mais para esvaziar nossa individualidade (autenticidade) e nossas emoções e que nos tornam consumidores compulsivos de corpos e líquidos corporais? Essa resposta não poderá ser dada aqui, pois o cansaço cai sobre mim pesadamente. Em todo caso, deixo aqui o que realmente penso: as conexões que se estabelecem no nível epidérmico e que, portanto, são incapazes de propiciar imersões, mantendo-se no nível da superficialidade das aparências, são incapazes de satisfazer o desejo mais íntimo de nossos corações que ainda ousam acreditar num amor transcendente, que supere sua face claramente empobrecida, que se nos apresenta em tais formas de conexão.
Somente o amor desejado pelo espírito é capaz de remover o peso do absurdo de nossa patética existência.

ps. Dos mergulhadores, aguardo comentários e críticas.