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terça-feira, 12 de maio de 2020

"Existe apenas um bem, o saber, e apenas um mal, a ignorância." (Sócrates)



Sócrates e o consumo de carne como símbolo da injustiça e das ...




A medicina socrática da alma
Sócrates ou o mais sábio entre os homens


Neste texto, tenho a tenção de discorrer sobre o que é possível determinar, levando-se em conta os testemunhos que chegaram até nós, como sendo propriamente o pensamento socrático. Ao me debruçar sobre essa tarefa, venho preencher uma lacuna que até então não fora preenchida neste blog: disponibilizar ao público leitor um texto cuja tenção central seja Sócrates e o seu pensamento. Fixado, então, o objetivo basilar da presente exposição, passo a concatenar algumas considerações preliminares que, reunidas, compõem um preâmbulo à discussão propriamente dita do assunto a ser tratado.


1. O mundo do filósofo e o mundo do homem comum

Toda a discussão que será desenvolvida nas seções seguintes esteia-se sobre o pressuposto de que a filosofia antiga, consoante propõe Hadot (2010, 2014), é exercício espiritual, é um modo de vida, uma escolha de vida. Suas mais diversas manifestações em escolas de pensamento e em discursos realizam verdadeiros exercícios existenciais, porque carreiam um valor existencial que toca à nossa maneira de viver, ao nosso modo de ser no mundo. Tais exercícios espirituais (expressão adotada e preferida por Hadot) são parte integrante de uma orientação no mundo, uma orientação que opera uma transformação radical da personalidade, do modo de ser e de viver daquele que se engaja nesses exercícios. A filosofia socrática é, pois, um exemplo de exercício espiritual, de uma escolha de vida, de uma atividade concreta e prática que visa a cunhar modos de ser.
À medida que se ia refinando e se aprofundando minha cultura filosófica, foi-se tornando cristalino para mim o abismo que se interpõe entre o mundo da vida filosófica e o mundo da vida do homem comum. Faz algum tempo, comuniquei a um amigo da sabedoria o meu sentimento que consiste em interpretar ser o modo de vida filosófico análogo, em alguma medida, ao de um esquizofrênico, não porque sofra de delírios e alucinações, mas porque marcado por uma profunda e insolúvel cisão, separação (donde o termo grego “skhízô”, que significa ‘dividir’, ‘separar’). Refiro-me, para ser mais claro, à percepção que tenho de que o filósofo parece viver como que cindido entre dois mundos: o mundo da vida filosófica, que é o mundo da prática do cuidado de si e do cuidado da vida do espírito; e o mundo da vida cotidiana, onde “habita” o homem comum cujo modo de ser é, sobremaneira, condicionado por relações de ordem prática e interesses pragmáticos pelo mundo. Essa percepção ou sentimento confirmam-se numa página em que Hadot faz a seguinte consideração, da qual vale aqui o devido registro:


“O filósofo vive, assim, num estado intermediário: não é sábio, mas não é não sábio. Ele está, pois, constantemente cindido entre a vida não filosófica e a vida filosófica, entre o domínio do habitual e do cotidiano e o domínio da consciência e da lucidez. Na medida em que ela é prática de exercícios espirituais, a vida filosófica é um desraizamento da vida cotidiana, ela é uma conversão, uma mudança total da visão, de estilo de vida, de comportamento”. (Hadot, 2014, p. 58, grifos meus).


A cisão entre a vida não filosófica e a vida filosófica a que se refere Hadot não só repercute o meu sentimento à luz do qual tomei consciência do caráter ‘cindido’ ou ‘esquizo-frênico’ do modo de ser filosófico, mas também enseja e fornece apoio a minha visão de que a vida filosófica deve ser vivida como ‘destino’, ou seja, como uma necessidade existencialmente imperiosa e inescapável. Tendo compreendido que há uma cisão inegável entre o domínio do habitual e cotidiano, onde se enraíza a vida do homem comum, e o domínio da vida filosófica, onde o filósofo faz morada e exercita a vida do espírito, impõe-se a quem quer que, como eu, aceite a inevitabilidade dessa cisão, o problema que consiste em determinar se tais “mundos” são ou não comensuráveis entre si. Como nem todos os seres humanos são predispostos para o exercício da filosofia e para a vida filosófica, tendo a acreditar que o mundo do homem comum e o mundo do filósofo são incomensuráveis entre si; jamais se confundem e estão destinados a existir numa cisão tensionada. Disso não se segue, evidentemente, que o filósofo, talvez na maior parte das vezes, não frequente esse mundo comum, não tenha de partilhar interesses e ocupações típicas do homem comum. É sempre oportuno recordar, contra o preconceito há milênios em voga, que o filósofo não é um homem alienado do mundo, alienado da experiência cotidiana do mundo; todavia, é igualmente certo que seu “mundo próprio” é outro. Assim como um transeunte que, tendo frequentado os espaços públicos da vida cotidiana precisa retornar a casa para fruir o descanso e a proteção, assim também o filósofo, tendo frequentado o mundo da rua e, por vezes, o perturbado com suas indagações, precisa retornar à sua morada onde frui do convívio com os bens do espírito e a companhia vivificante da solidão da lucidez.
É preciso, por fim, estar bem atento à radicalidade do “desenraizamento da vida cotidiana” experienciado pelo filósofo. Como bem ensina Hadot, a medida exata desse desenraizamento só pode ser compreendida, se tivermos em conta o fato de que “a prática dos exercícios espirituais implicava uma inversão total dos valores recebidos”. (ibid.). Assim, a prática dos exercícios espirituais leva o filósofo a renunciar “aos falsos valores, às riquezas, às honras, aos prazeres para se voltar para os verdadeiros valores, a virtude, a contemplação, a simplicidade de vida, a simples felicidade de existir”. (ibid.).
Se o modo de vida filosófico se caracteriza fundamentalmente por um “desenraizamento da vida cotidiana”, é porque a filosofia, enquanto prática de exercícios espirituais, visa à transformação radical do modo de ser de quem filosofa.


2.  Sócrates: o filósofo e o seu tempo

Sócrates (470 ou 469 a.C. – 399 a.C) nasceu em Atenas e viveu a maior parte de sua vida no século V a.C. Foi nesse período que a pólis  ateniense alcançou seu apogeu econômico, político e cultural. Fundada graças às reformas de Clístenes, no final do século VI, a democracia ateniense se consolidou após a derrota dos persas no século V. Seu auge aconteceu quando Péricles tornou-se arconte (magistrado). As práticas democráticas carreavam a valorização da linguagem. Assim, os homens passaram a se valer das palavras em vez da violência para resolverem seus problemas e conflitos. O uso cada vez mais frequente das palavras fez surgir os grandes oradores, a retórica, os professores da técnica da palavra e a sofística. Homens como Protágoras, Górgias e Hípias, que se autoproclamavam sábios, percorriam as grandes cidades gregas prometendo ensinar, em troca de um valor monetário, a virtude da palavra.
Evidentemente, o diálogo, gênero em que Sócrates foi mestre, é inseparável da experiência democrática. A arte do diálogo e da dialética prende-se inextricavelmente ao movimento geral de valorização da palavra e do reconhecimento do outro. Decerto, a democracia ateniense, entre todas as grandes realizações do período, ocupava um lugar central. Todavia, a democracia ateniense foi a organização estatal que começou a desenvolver, de maneira ampla, a utilização do trabalho escravo. Nela e por meio dela, desenvolveram-se projetos de opressão imperial mesmo em relação às próprias cidades gregas vizinhas de Atenas. Foram esses projetos que motivaram a Guerra do Peloponeso, que, inicialmente, envolveu Atenas e Esparta, mas, depois, quase todas as cidades gregas. Esse conflito estendeu-se por cerca de 30 anos (431-404), levando, finalmente, Atenas à ruína.
Havia grandes diferenças sociais entre os próprios cidadãos na democracia ateniense. As mulheres sofriam opressão: não tinham direitos políticos e não participavam das decisões políticas. Desde muito cedo, grupos poderosos, sempre preocupados em defender seus interesses privados, contratavam profissionais de oratória (discípulos de sofistas), manipulavam a escolha de cargos e a assembleia popular. O povo, não obstante poder decidir e votar, era enganado, e seu voto era feito, não raro, contra seus próprios interesses reais. Sócrates, assim como seus discípulos, entre os quais Platão, atento a essas contradições da democracia ateniense sempre foi crítico desse regime. Sócrates sabia quão ilusória e formal era a liberdade ateniense; por isso, nem ele nem seus discípulos jamais defenderam esta forma de democracia, jamais a consideravam como a melhor forma de todos os governos. Ao contrário, como atestam Xenofonte e Platão, Sócrates e seus discípulos idealizaram outras formas de organização da pólis.

2.1. Sócrates e suas imagens

Todo ato de enunciação, toda prática discursiva implica a construção de imagens recíprocas. O locutor, ao usar a palavra, constrói uma imagem de si (ethos, para Aristóteles), ao passo que o interlocutor constrói uma imagem da imagem que o locutor faz de si. A imagem de si é a imagem do locutor como ser do discurso. Essa imagem de si é discursivamente construída. Para construir uma imagem de si, não é necessário que o locutor fale de si explicitamente, destacando suas qualidades. Para a construção da imagem de si, são suficientes as competências linguística e enciclopédia, as crenças implícitas e o estilo de linguagem do locutor. São esses elementos que permitem ao locutor fazer uma representação de sua pessoa. A imagem que o interlocutor constrói do locutor também se baseia nas manifestações discursivas deste. Deliberadamente ou não, o locutor faz, no discurso, uma apresentação de si. Essa apresentação de si não se restringe a uma técnica aprendida, mas se realiza, frequentemente, à revelia dos parceiros de comunicação, nas circunstâncias mais corriqueiras do uso da língua.
Assim, como Sócrates nada escreveu, o que sabemos sobre ele nos vem pela pena de outros que, tendo-o conhecido pessoalmente ou não, nos contam sobre ele. Isso significa dizer que o que sabemos a respeito de Sócrates são as imagens dele discursivamente construídas por outros enunciadores. Os três testemunhos realmente diretos sobre Sócrates são os de Aristófanes, Xenofonte e Platão. Cada um fornece-nos uma imagem discursiva de Sócrates. Antes de dar a conhecer o que disseram essas fontes diretas acerca de Sócrates, convém fazer uma breve apresentação biográfica de Sócrates.
Sócrates, nascido em 470 ou 469 a.C., foi filho de Sofronisco, um talhador de pedra, e de Fainarete, uma parteira. Sua obra confunde-se com sua vida. Nasceu pobre e permaneceu assim até a sua morte, em 399 a.C, quando contava 70 anos. Orgulhoso de seu trabalho, Sócrates sempre elogiou o esforço do trabalho e fez deste o modelo para a sua filosofia. Ele costumava andar pelas ruas de Atenas, no verão e no inverno, descalço e vestindo sempre o mesmo manto simples. Sócrates teve três filhos: Lamprocles, Menexeno e outro chamado Sofronisco, que tinha, como se vê, o mesmo nome de seu pai. Sócrates foi casado com Xantipa, mulher muito famosa por suas constantes reclamações. Sócrates dizia que de tanto discutir com ela aprendeu a arte de dominar a si mesmo. É provável que tenha tido outra esposa, chamada Mirto, já que a poligamia foi permitida e incentivada por decreto durante os últimos anos do século V para solucionar o decréscimo populacional ocorrido nas sucessivas guerras.
Sócrates foi cidadão exemplar no exercício dos deveres políticos e militares. Malgrado o fato de contestar filosoficamente a sabedoria das leis que regiam a cidade, nunca deixou de obedecer a elas. Destarte, devido à sua retidão moral e à sua busca permanente da verdadeira justiça, acabou por angariar muitos inimigos e terminou sendo condenado à morte.
Logo após seu julgamento, estando Socrátes na prisão à espera da execução da sentença, Críton, um discípulo fiel, lhe propôs um plano infalível de fuga: subornaria os carceireiros e o conduziria ao exílio na Tessália. Mas Sócrates recusou a proposta que lhe salvaria a vida, alegando, conforme nos conta Platão em seu diálogo Críton, que, mesmo morrendo vítima da injustiça dos atenienses, não desobedeceria às leis da cidade. Para Sócrates, aceitar fugir através do suborno seria cometer também uma injustiça; preferiu, por isso, resignar-se à morte. As façanhas socráticas e a resistência às dificuldades da guerra e da coragem provinham, tal como a sua filosofia, do esforço e do exercício permanentes. Sócrates  exercitava-se diariamente e exortava os seus discípulos a fazerem o mesmo.
Como já disse, Sócrates nada escreveu e não existe uma obra filosófica propriamente atribuída a ele. Dele sabemos a partir do acesso ao que sobre ele nos disseram outras personalidades. Os principais testemunhos, os únicos realmente diretos, são aqueles fornecidos por Aristófanes (o autor de comédias), de Xenofonte e de Platão (estes últimos foram seus discípulos). Todos três o conheceram pessoalmente. Mas há ainda fragmentos indiretos do pensamento socrático que sobreviveram graças a outros discípulos, como Antistenes, Diógenes, Euclides de Mégara e Aristipo. Diversos outros autores antigos, tais como Aristóteles, Diógenes Laércio, Aulo-Gélio e Cícero também reproduziram indiretamente tradições a respeito dos feitos de Sócrates e comentaram os seus supostos ensinamentos.
Durante muito tempo e até hoje, os historiadores da filosofia se perguntam qual seria o verdadeiro Sócrates ou, ao menos, qual seria aquela versão mais próxima do Sócrates histórico. Muitos o consideram um enigma insolúvel e sustentam que jamais o conheceremos. O problema da identidade de Sócrates é recente. Na Antiguidade, na Idade Média, da Renascença ao Romantismo, esse problema não existia, pois, ao longo desses períodos históricos, o Sócrates de Platão ou a imagem que Platão construiu de Sócrates era considerada o verdadeiro Sócrates. O problema começa quando Hegel, em sua História da filosofia, afirma que o Sócrates histórico corresponde à versão fornecida por Xenofonte e que o Sócrates de Platão, na verdade, é o próprio Platão. O fato é que, atualmente, os estudiosos não se ocupam mais da questão de determinar o Sócrates autêntico. Os estudiosos se contentam em falar de um Sócrates provável, com base na combinação dos diferentes testemunhos sobre ele. Assim, passados duzentos anos de pesquisa e produção de um número de livros suficientemente grande para preencher uma enorme biblioteca, renunciou-se ao problema do Sócrates histórico, ou melhor, aceitou-se a aporia. (Chauí, 2002).


2.1. 2. O Sócrates dos Cristãos

Os pensadores cristãos insistiram incansavelmente em comparar Sócrates com Jesus. De fato, ambos foram condenados por causa de seus ensinamentos, ambos compareceram aos tribunais e não se defenderam, ambos nada deixaram escrito, ambos criaram uma posteridade sem limites, e tudo quanto sabemos a respeito de ambos depende de fontes indiretas, de registros escritos produzidos depois de eles morrerem. A essas características que Sócrates tem em comum com Jesus, se deve acrescentar que Sócrates levava uma vida ascética, simples e pautada pela frugalidade, tal como era o modo de vida de Jesus, segundo os Evangelhos. Também Sócrates, por meio do seu daímon, considerava-se investido de uma missão divina.
Não obstante, diferentemente de Jesus, Sócrates não se apresentava como divino, nem como a encarnação da verdade (ou como o verbo de Deus). Outrossim, não tinha nenhuma verdade divina a revelar, tampouco dogma a impor. Tudo que sabemos que Sócrates dizia é o seu célebre “só sei que nada sei”.

2.1.3. As imagens de Sócrates como herói e como sábio

Houve quem fizesse de Sócrates um herói, imagem esta que se justificaria pelo seu comportamento na guerra e sua atitude perante a Assembleia nas três ocasiões em que diante dela esteve. Contudo, ocorre que um herói não discute e questiona os valores e as ideias de sua pátria. A imagem de Sócrates como herói, portanto, não lhe parece convir. Mas, se a Sócrates não convinha associar a imagem de herói, teria ele sido um sábio? Para responder adequadamente essa questão, é preciso saber, em primeiro lugar, quem é o sábio.
Desde o Banquete de Platão, os filósofos antigos consideravam a figura do sábio como um modelo inacessível que o filósofo (aquele que ama a sabedoria) se esforça por imitar, esforço este sempre renovado por um exercício praticado a cada instante. (Hadot, 2014). Recorde-se que o pressuposto com base no qual se desenvolve o presente estudo sobre o pensamento socrático é que a filosofia não é apenas um domínio discursivo; mas é, sobretudo, uma escolha de vida, um exercício vivido, “porque ela é desejo de sabedoria”. (Hadot, 2010, p. 313). E o que é sabedoria? A sabedoria é um modo de ser, consoante ensina Hadot (ibid.):


“A sabedoria é considerada em toda a Antiguidade um modo de ser, um estado no qual o homem é de maneira radicalmente diferente dos outros homens, no qual é uma espécie de super-homem. Se a filosofia é atividade pela qual o filósofo prepara-se para a sabedoria, esse exercício consistirá necessariamente não só em falar e em discorrer de certa maneira, mas em ser, agir e ver o mundo de certa maneira”.


Em cada escola filosófica, a figura do sábio é tomada como norma transcendente pela qual se pauta o modo de vida do filósofo. Portanto, nunca é demais lembrar que o filósofo não é o sábio, pois o sábio é um modelo ideal de vida a que aspira o filósofo e em relação ao qual o modo de vida filosófico se orienta. São características prototípicas do sábio ou do modo de vida do sábio: a igualdade de alma, a ausência de necessidade e a indiferença às coisas indiferentes. Essas qualidades do sábio tornam-no um tipo humano cuja vida repousa na ataraxia: o sábio frui a tranquilidade de alma e a ausência de perturbação.
Dado que o sábio mantém uma perfeita igualdade de alma, ele é feliz em qualquer que seja a circunstância. No Banquete de Platão, Sócrates conserva as mesmas disposições de alma, quer quando tem de suportara fome e o frio, quer quando se encontra na abundância. O sábio encontra sua felicidade em si mesmo. Assim é que o sábio estoico se caracteriza pela coerência consigo e a permanência de identidade, porquanto a sabedoria, aos olhos de um estoico, consiste em querer sempre e sempre não querer a mesma coisa. Como encontre sua felicidade em si mesmo, o sábio é independente das circunstâncias e das coisas exteriores, ou seja, o sábio possui a autarquia. Sócrates, conforme relata Xenofonte, bastava-se a si mesmo e não se deixava apegar-se a coisas supérfluas.
Segundo Aristóteles, no livro X da Ética a Nicômaco, o sábio vive uma vida contemplativa, porque não tem necessidade de coisas exteriores para nela se exercitar e porque, exercitando-se na contemplação, encontra a felicidade e a perfeita autossuficiência em si:


“(...) a atividade do intelecto (...) parece tanto ser superior em mérito quanto não visar a fim algum que transcenda a si mesma, além de dispor de um prazer que lhe é próprio (o que intensifica essa atividade), e apresenta autossuficiência, a presença do lazer ou ócio, e isenção de fadiga (na medida do que é humanamente possível) – e todos os outros atributos reservados ao indivíduo bem-aventurado [o sábio] são evidentemente aqueles vinculados a essa atividade -, conclui-se que essa será a felicidade completa humana, desde que seja concedida uma completa duração da existência, pois nada que diga respeito à felicidade pode ser incompleto. (Aristóteles, 2013, p. 308, 15-27).



Na medida em que o modo de vida do sábio é completamente diferente do modo de vida comum dos mortais, o sábio tende a habitar na vizinhança com os deuses ou Deus. Como pontuou Epicuro, o sábio vive como “um deus entre os homens”. Como os deuses, o sábio vive mergulhado numa perfeita serenidade e não está, de modo algum, ocupado com os negócios humanos. Para Epicuro, dado que a essência do divino consiste na serenidade e na ausência de perturbação no prazer e na alegria, de alguma maneira, os deuses são sábios imortais; o os sábios, são deuses mortais. Aristóteles, outrossim, entendida ser o divino o modelo do sábio. O sábio vive uma vida consagrada ao exercício do pensamento. Sua condição humana, no entanto, torna frágil e intermitente esse exercício espiritual, o qual está irremediavelmente disperso no tempo e sujeito ao erro e ao esquecimento. Somente Deus é um espírito cujo pensamento se exercitará perfeita e continuamente em um eterno presente. O pensamento divino pensará a si mesmo, em um ato eterno. Deus ou o Primeiro Motor Imóvel, causa do universo, para Aristóteles, conhece eternamente a felicidade e o prazer que o espírito humano só conhece em raros e breves momentos. O que o sábio vive de maneira intermitente Deus vive de modo contínuo. Mas, ao procurar imitar o modo de vida divino, o sábio vive uma vida que transcende a condição humana comum e que corresponde ao que há de essencial no homem: a vida do espírito.
Cuidando ter esclarecido a relação entre o filósofo e o sábio, faz-se mister atender na lição de Hadot acerca do que é, deveras, filosofar:

“Contemplar o mundo e contemplar a sabedoria é, finalmente, filosofar, é, com efeito, operar uma transformação interior, uma mutação da visão, que me permite reconhecer aos mesmo tempo duas coisas às quais raramente se presta atenção, o esplendor do mundo e o esplendor da norma que é o sábio: “o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim”. (Hadot, 2010, p. 328,).

O sábio, portanto, é aquele que realiza as grandes e difíceis virtudes: o domínio de si (enkráteia), a moderação, equidade, probidade, desprezo pelos valores materiais, afastamento das coisas do mundo. Acontece que os relatos dos amigos e discípulos de Sócrates patenteiam que ele gostava da boa mesa, do bom vinho, bebia e comia à vontade nos banquetes de que participava. Ele gostava de sexo – do sexo viril dos gregos, em que um homem adulto tem amantes masculinos jovens e belos (e os jovens disputavam o amor de Sócrates). Sócrates perdia a paciência com facilidade sempre que seu interlocutor não parecia interessar-se pela discussão. Também costumava agredir verbalmente, zombar e fazer críticas virulentas aos adversários. A humanidade de Sócrates parece, portanto, proibir-nos de vê-lo como um exemplar de Sábio: ele apreciava dançar e tocar lira; entretinha-se com prostitutas e se deleitava em grandes bebedeiras.
Não resta dúvida, como se vê, de que o comportamento de Sócrates era excêntrico. Quando caminhava com um amigo, costumava parar atrás dele absorto numa meditação. Embora fosse um conviva refinado e educado, não tinha os bons modos de chegar na hora marcada. Chegava sempre no meio do banquete; vivia sempre como um maltrapilho, mas frequentava a alta sociedade. Conta-se que gostava apenas de meninos, mas adorava filosofar com as prostitutas. Dizem que ele carecia do dom da oratória, mas, quando falava, silenciava o adversário e fazia apaixonar-se um seguidor.
Malgrado todo o exposto, há uma sabedoria socrática e Sócrates é lembrado pela tradição como o mais sábio entre os sábios. É o que veremos mais adiante. Considerem-se, doravante, as imagens que Aristófanes, Xenofonte e Platão nos legaram de Sócrates.


2.1.4. O Sócrates de Aristófanes, Xenofonte e Platão

Aristófanes (450-385 a.C.), como não fosse filósofo, mas comediógrafo, constrói uma imagem de Sócrates como falso sábio. Sua comédia As nuvens, que data de 423 a.C., foi escrita com o único fito de criticá-lo e ridicularizá-lo. Nela, Sócrates se apresenta como corruptor da juventude e como um homem que destrói os valores tradicionais relacionados aos deuses.
 Importa-nos mais o testemunho de Xenofonte (? – 354 a.C.), que, embora não fosse filósofo, mas amante da vida austera, da arte da guerra e dos trabalhos agrícolas, recorda a retidão da vida de Sócrates e as regras morais que propunha aos seus seguidores. Não obstante o fato de não nos oferecer, com precisão, o desenvolvimento dos argumentos socráticos e de pouco nos falar sobre os problemas teóricos complexos de que se ocupava Sócrates, Xenofonte dá-nos uma versão imagística do filósofo que coincide, na maioria dos aspectos, com aquela fornecida por outros autores.
Nos testemunhos de Xenofonte, a despeito da simplicidade, Sócrates se apresenta como aquele que destrói as ideias dominantes. Seguindo o preceito délfico – “o conhece-te a ti mesmo” -, Sócrates começa, tanto na obra de Xenofonte quanto na de Platão, por examinar a si mesmo e por mostrar que a aparente pobreza de sua vida é a riqueza de sua liberdade. Sócrates é retratado como aquele que, ao contrário dos sofistas, não recebe dinheiro por seus ensinamentos e, por isso, é mais livre do que eles, porque não é obrigado a vender a palavra. Em Xenofonte, Sócrates é representado como aquele que faz perguntas sobre o “ser” das coisas: que é a virtude? Que é uma vida boa? Que é uma vida feliz? Tal como sucede nos diálogos de Platão, o Sócrates de Xenofonte combate os sofistas, aqueles que defendem e reproduzem as imagens dominantes, e diferencia-se deles por não aceitar dinheiro em troca de seus ensinamentos.
A Apologia de Sócrates é a obra mais importante que consta dos Memoráveis, que foi escrito, segundo Xenofonte, para provar que Sócrates foi um cidadão altamente patriota, piedoso, justo, que fazia sacrifícios aos deuses e era fiel aos amigos. Xenofonte afirma que a preocupação central de Sócrates recaía sobre a ética, ou seja, sobre a virtude que, conforme veremos, Sócrates identificava com o saber ou a ciência (só o ignorante é vicioso). Sócrates também se preocupava com a utilidade do bem (o bem é a justiça) e com o domínio de si.
A imagem de Sócrates discutindo na ágora e nas ruas, perguntando aos transeuntes o que é a virtude, o que é a justiça, o que é o bem, e deixando-os com raiva e desorientados à medida que refutava cada uma das respostas que lhe eram dadas, provando que são ignorantes e que sequer sabiam que não o são, é uma construção da escrita de Xenofonte.
A imagem de Sócrates fornecida por Platão é nossa última e mais respeitável. Platão, o discípulo amado de Sócrates, viu seu mestre como fundador da filosofia especulativa. Em Platão, Sócrates aparece como inimigo dos sofistas e avesso às ideias dos “socráticos menores”. Sócrates é, para Platão, o modelo de filósofo. Com base na imagem que construiu de Sócrates, Platão se nos desnuda as várias faces do filósofo como “amante da sabedoria”. No Fedro, o filósofo ou Sócrates é um homem-cigarra que, sem se preocupar com a sobrevivência, canta à luz um belo canto – sua filosofia – em homenagem às Musas, até morrer. No Teeteto, é aquele que se distrai em relação às coisas próximas (como Tales que cai num poço), porque justamente está muito atento às questões que investiga. No Fédon, é Sócrates que, à beira da morte e sem temê-la, desenvolve seu discurso e questiona até o fim o significado de viver e de morrer. Na República, o filósofo é aquele que se liberta da caverna das ilusões e eleva seus olhos progressivamente até o Sol que ilumina a realidade; é aquele que, por ter realizado a escalada do conhecimento até seu termo, deve encarregar-se das tarefas políticas e do governo da pólis.
Como vemos, é verdade que a imagem de Sócrates varia na obra de Platão. Os primeiros diálogos platônicos construíram uma imagem mais próxima do Sócrates histórico, enquanto, nos últimos diálogos, Sócrates é o nome de uma personagem que fala através de Platão. Nos diálogos da maturidade, que abordavam temas que constituem o núcleo da filosofia de Platão – Banquete, Fédon, Fedro, Crátilo, Teeteto, República, Sócrates representa um modo de vida, mas as teorias neles desenvolvidas são inteiramente de Platão. É certo que o Sócrates de que nos fala Platão era realmente um homem que se notabilizou como mestre da vida ética; mas não chegava a ser uma espécie de Buda iluminado. Parte da perfeição moral atribuída a Sócrates não foi mais do que resultado de um trabalho de construção imagística elaborado pelos seus discípulos que o admiravam sobremaneira. Platão, decerto, desenvolveu um pensamento completamente original. Assim, por exemplo, a Teoria das Ideias foi corretamente atribuída a Platão e não a Sócrates. Teorias como a utopia política descrita na República e nas Leis, e a do prazer no Filebo são de responsabilidade de Platão, e não de Sócrates. Não há dúvida de que a distinção entre o que pertence a Sócrates e o que é de responsabilidade de Platão encontra um limite, nem sempre facilmente determinável. Uma das tarefas deste texto é lançar alguma luz sobre o que, no limite, constitui aquilo que podemos chamar de filosofia socrática.


3. A filosofia de Sócrates

Principio por notar que a ciência do cosmo é, para Sócrates, inacessível ao homem. Quem quer que se dedique a ela tenta, em vão, conquistar um conhecimento que só um Deus pode possuir. Ademais, para Sócrates, aqueles que se detêm nessas pesquisas, permanecendo totalmente absortos nelas, se esquecem de si mesmos. Ora, o que mais importa, para Sócrates, é o homem e os problemas do homem. Daí a questão preeminentemente filosófica que deve ser examinada, na visão de Sócrates: o que é o homem?

3.1. A alma como a essência do homem

Para Sócrates, todas as contradições e todas as incertezas dos sofistas decorriam do fato de eles terem se ocupado dos problemas do homem sem que determinassem, de maneira correta, a essência do homem. À questão que é o homem?, Sócrates responde inequivocamente: o homem é a sua alma (psyché), visto que a alma é o que o distingue de todas as outras coisas. Ninguém antes de Sócrates entendeu por alma aquilo que ele entendeu. Para Sócrates, a alma é a nossa consciência pensante, a nossa razão; é a sede de nossa atividade de pensamento. A alma é o eu consciente, é a personalidade intelectual e moral do homem. Consoante ensina Reale (2009, p. 93), coube a Sócrates dar origem à tradição moral e intelectual da qual a Europa se tornou herdeira. Toda a filosofia socrática pode ser resumida nessas fórmulas convergentes: 1) conhecer a si mesmo e 2) cuidar de si mesmo. Conhecer a si mesmo não é conhecer o próprio nome nem o próprio corpo, mas examinar o interior de si mesmo e a própria alma. Cuidar de si mesmo não é cuidar do próprio corpo, mas cuidar da própria alma. Sócrates acreditava estar investido de uma tarefa por Deus: ensinar os homens a conhecer e cuidar de si mesmos.
Sócrates, no Protágoras de Platão, era apresentado como médico da alma. Ele ensinava o homem a cuidar não do corpo e das riquezas, mas antes e acima de tudo da alma, para que ela se torne virtuosíssima. É da virtude que advêm as maiores riquezas. Ora, a alma (psyché) é aquilo que em nós participa do Divino e é o que em nós tem o domínio. Platão compreendeu isso e insistiu no fato de que Sócrates, ao contrário dos sofistas, tendo compreendido que o homem se distingue de qualquer outra coisa pela sua alma, pôde determinar qual era a areté (excelência, virtude) humana. Ela é o que permite à alma ser boa, ser aquilo que pela sua natureza deve ser. Destarte, cultivar a areté ou virtude significa tornar boa a alma; significa realizar plenamente o eu espiritual, de sorte a alcançar o fim próprio do homem e também a felicidade.
A virtude, para Sócrates, é ciência (epistéme) ou conhecimento. O contrário da virtude é o vício. O vício é a privação da ciência ou do conhecimento, a saber, a ignorância. Se o homem é sua alma, e se a alma é o seu eu consciente e inteligente, então a virtude é aquilo que atualiza plenamente essa consciência e inteligência, isto é, a ciência ou o conhecimento. Eis, portanto, qual é o maior valor para o homem: o conhecimento. É o conhecimento que faz a alma ser aquilo que ele deve ser e que realiza o homem, cuja essência é a alma. Como pondera Reale (ibid., p. 101), “Sócrates revoluciona assim a tradicional tábua de valores à qual até então se atinha toda grecidade (...)”. Os valores fundamentais da tradição eram aqueles, sobretudo, vinculados ao corpo, quais sejam, a vida, a saúde, a beleza, o vigor físico, ou  os bens exteriores como a riqueza, o poder, a fama e congêneres. É clara a superioridade hierárquica da alma em relação ao corpo e a identificação da essência do homem e do verdadeiro homem com a alma e não mais com o corpo. Os valores da alma situam-se num plano ascendente e, em particular, os valores da ciência superam todos os valores ligados ao corpo. Entretanto, não devemos concluir daí que Sócrates tenha rejeitado totalmente os valores tradicionais. Apenas Platão o fará, ao distinguir entre alma e corpo e ao advogar que o corpo está hierarquicamente subordinado à alma. Na verdade, Platão contraporá o corpo à alma. É de Platão a imagem do corpo como cárcere da alma, ou prisão da alma. Sócrates, de fato, subordinou os “bens” tradicionais da grecidade ao seu bom uso, e manteve que o bom uso depende exclusivamente do conhecimento e da ciência. A ciência é um bem; a ignorância, um mal. Essa será a consequência da tese socrática que sustenta a sua teoria ética a virtude é ciência.
Cuido conveniente fazer aqui uma breve écbase a fim de esclarecer o que os antigos entendiam por “ciência” e, em particular, qual é o objeto da ciência-virtude no pensamento de Sócrates.
Os gregos chamavam “ciência” ou épisteme ao conhecimento teórico das coisas mediante raciocínios, provas e demonstrações. Épisteme é também conhecimento teórico por meio de conceitos necessários e universais. Épisteme é conhecer pelo pensamento, é ter um conhecimento por meio do raciocínio. Em Platão, a ciência ou épisteme tem como objeto o Mundo Inteligível, as Essências (eidos). Épisteme é aí conhecimento das Realidades verdadeiras, do que existe em si, do Ser ou também dos Seres. Para Platão, que opunha ciência a dóxa (opinião), a ciência visa o Ser absoluto, ao passo que a opinião tem por objeto o ser relativo, as aparências.
Retornando à questão socrática da identidade entre virtude e ciência, deve-se ter em mente que a tese socrática virtude é ciência implica, em primeiro lugar, a reunião das virtudes tradicionais, tais como a sapiência, a justiça, a sabedoria, a temperança, a fortaleza sob o domínio de uma única virtude, a saber, a da ciência ou do conhecimento. Ademais, a tese socrática virtude é ciência implica a redução do vício à ignorância, que é o contrário do conhecimento. Segue-se daí a conclusão de que quem faz o mal o faz por ignorância e não porque queira o mal sabendo que é mal. Assim também, não é possível fazer o bem sem conhecê-lo. Para Sócrates, portanto, a virtude é conhecimento, é ciência, mas não qualquer conhecimento ou ciência. A virtude é a mais elevada e sublime ciência: a ciência do que é o homem e do que é bom e útil ao homem.
Em suma, o verdadeiro eu do homem repousa na sua alma, no seu espírito, e a alma é a sede de todos os valores mais tipicamente humanos. Por conseguinte, os verdadeiros valores são os valores da alma, para Sócrates.


3.2. A dialética socrática

O diálogo é a medicina socrática da alma. A dialética socrática é o método dialógico de Sócrates que tem, fundamentalmente, finalidades de natureza ética e educativa. Somente, em segundo lugar, tem finalidades de natureza lógica e gnosiológica. A dialética socrática visa a exortar o homem à virtude, visa ao convencimento do homem de que a alma e o cuidado da alma são o sumo bem para o homem. A dialética socrática visa à purificação da alma por meio de perguntas e respostas que servem para libertá-la dos erros e torná-la inclinada à verdade.
Da alma, da alma individual só se cuida com o diá-logo, ou seja, com o lógos que, mediante perguntas e respostas, leva mestre e discípulo a uma experiência espiritual única de pesquisa em comum da verdade. Em face de um interlocutor, Sócrates buscava suscitar-lhe o desejo de saber – tal como o médico suscita no paciente o desejo de cura. A medicina socrática da alma afirma que a verdade existe e que podemos conhecê-la. O verdadeiro e o falso, bem como a mentira e a contradição, estão em nós, em nossa alma. A verdade provém de nossos juízos sobre as coisas. Se a maioria dos homens tem dificuldade de encontrá-la, é que eles vivem como autômatos que obedecem cegamente às regras e aos costumes de sua sociedade e acolhem passivamente os preconceitos socialmente estabelecidos.
O método socrático, expressando-se na forma de diálogo, consta de duas partes. Na primeira parte, chamada protréptico, que é exortação, Sócrates convida seu interlocutor a filosofar, a buscar a verdade. Na segunda parte, chamada élenkhos, isto é, indagação, Sócrates elabora perguntas e comenta as repostas, tornando a perguntar, num processo dialógico no qual orienta o interlocutor na busca da definição da coisa procurada.
O élenkhos é dividido em duas partes, as quais, reunidas, constituem o método socrático. Na primeira parte, tendo feito a pergunta, Sócrates comenta as várias respostas oferecidas, com vistas a mostrar que elas são sempre preconceitos recebidos, imagens sensoriais percebidas, ou opiniões subjetivas e nunca a definição buscada. Esta primeira parte é chamada ironia (eiróneia), isto é, a parte destinada à refutação. Pela ironia, Sócrates busca destruir a pretensa solidez dos preconceitos recebidos. Na segunda parte, Sócrates, ao perguntar, vai abrindo caminhos ao interlocutor até que ele chegue à definição procurada. Esta segunda parte chama-se maiêutica (maieutiké), que significa ‘a arte de realizar um parto’. No caso em questão, trata-se da arte de realizar o parto de uma ideia verdadeira.
A ciência ou épisteme socrática resulta de sua dialética. Consoante ensina Aristóteles, a ciência visa a encontrar as definições universais e necessárias das coisas, ou a essência universal das coisas, tornando-a uma ideia passível de ser alcançada pela razão apenas. Assim, a ideia, para Sócrates, manifesta racionalmente o que a coisa é em sua essência universal e necessária, porque apresenta a causa pela qual ela é o que é, por que e como ela é o que é. Ao contrário das definições universais e necessárias que nos dão a essência das coisas, as opiniões são definições parciais, subjetivas, confusas, contraditórias.

3.2.1. O não saber socrático: só sei que nada sei

Se a finalidade da dialética socrática foi revolucionária, igualmente revolucionário é seu ponto de partida. Sócrates assumia constantemente a afirmação de seu não saber, pondo-se em face de seu interlocutor como quem deseja tudo aprender. Contrariamente aos sofistas, em virtude de sua afirmação de não saber, Sócrates negou a pretensão de saber quase ilimitada. Ao assumir, de partida, nada saber, Sócrates denunciou a inconsistência quase total decorrente do fato de o saber próprio dos políticos, dos poetas e cultores de várias artes “patinar” na superfície dos problemas. Sócrates denunciou a presunção deles de saber tudo pelo simples fato de dominarem uma única arte. Mas, além de sua relação com o saber dos homens, o significado do não saber socrático se esclarece em relação com o saber de Deus. Deus é onisciente. Quando comparado à medida do saber divino, o saber humano se revela em toda a sua fragilidade e limitação.

3.2.2. A ironia socrática

Ironia significa dissimulação, e a ironia socrática é um jogo de múltiplos e variados disfarces e fingimentos que Sócrates realizava a fim de fazer com que seu interlocutor se dê conta de seu aparente saber. Pela ironia socrática, Sócrates dá a si, por meio de atos e palavras, uma imagem inconsistente, uma espécie de máscara discursiva, pela qual se mostra amigo do interlocutor, se representa como alguém que admira suas capacidades e méritos, pede-lhe conselho, etc. No entanto, ao mesmo tempo, seu fingimento é transparente e se combina com uma finalidade séria, pois que a ironia de Sócrates é o meio essencial de realização da dialética moral. Nas dissimulações, Sócrates finge adotar as ideias e opiniões do interlocutor (mormente se este é um homem culto), para caricaturá-las ou invertê-las, seguindo a mesma lógica que as tornou possíveis e expondo-lhes a contradição.
Entre as máscaras discursivas empregadas por Sócrates, a principal era a máscara do não saber e da ignorância. E era por meio dessa máscara que Sócrates suscitava a raiva dos adversários. A máscara da ignorância empregada por Sócrates servia-lhe como meio para demonstrar o aparente saber dos outros e de expor-lhes a radical ignorância deles. Por outro lado, era por meio dessa máscara que Sócrates ajudava aqueles que, com plena disponibilidade, entregavam-se ao magistério socrático e aceitavam reconhecer-se como possuidores de um aparente saber. A dialética socrática, enquanto tal, é ironia, ou “a ironia é a cifra da filosofia socrática”. (Reale, ibid., p. 144).


3.3.3. Confutação (élenkhos) e Maiêutica

Vimos que pela ironia Sócrates levava aquele com quem dialogava a reconhecer a própria presunção de saber, ou seja, a própria ignorância. Sócrates começava por exigir que seu interlocutor definisse o assunto que constituiria o escopo da pesquisa; depois aprofundava, de vários modos, a definição, explicitando as falhas, as contradições às quais a definição levava; em seguida, convidava o interlocutor a fazer uma nova definição e, com o mesmo método, confutava-a, até o momento em que o interlocutor se reconhecia ignorante.
Foi justamente o momento confutatório que acarretou a Sócrates as mais severas aversões e as mais duras inimizades, as quais lhe valeram a condenação à morte. E é claro que os medíocres reagiam negativamente a essa confutação; afinal, eram eles que se viam privados de suas ingênuas certeza e segurança de saber. Privados da segurança do saber, os medíocres experimentavam uma crise que se expressava tanto como ofuscamento e desorientação quanto como carência de novas certezas nas quais pudessem encontrar apoio. Tamanha era a soberba dos homens medíocres, que eles se recusavam a admitir que nada sabiam efetivamente, preferindo acusar Sócrates de confundir-lhes as ideias e de entorpecê-los. Disso se seguiu a acusação que recaiu sobre Sócrates de ser ele um semeador de dúvidas e um corruptor da juventude.
Inversamente diferente era, contudo, o efeito da confutação  sobre os homens mais bem predispostos. Neles, ela exercia a purificação ao extirpar as certezas que julgavam ter. Perdê-las não os perturbava, pois que compreendiam estar dispostos no caminho para alcançar a verdade. Ora, enquanto existem na alma falsas opiniões e falsas certezas, é impossível buscar a verdade. Todavia, uma vez que estejam eliminadas aquelas falsas opiniões e certezas, a alma fica purificada e apta para alcançar a verdade – se dela, é claro, estiver grávida. E daqui em diante devemos descer a alguns pormenores sobre a arte da maiêutica socrática.
A alma só pode alcançar a verdade se dela estiver grávida. Enuncia-se aqui, desde o início, a aporia da maiêutica socrática: só algumas almas são grávidas da verdade. Há almas não grávidas da verdade e, portanto, há almas que, por encontrarem-se nessa condição, não podem beneficiar-se da maiêutica, porque incapazes de dar à luz a verdade. Sócrates parece, então, sugerir que nem todas as almas, ou nem todos os homens, são predispostas para, ou estão aptas para a filosofia. A doutrina da maiêutica consiste na arte de fazer a alma dar à luz uma ideia verdadeira. Em trabalho conjunto com Sócrates, o interlocutor é levado a dar à luz ideias próprias e mais fundamentadas. Sócrates era, por isso, conhecido como “parteiro”, já que auxiliava o interlocutor a parir suas próprias ideias. Assim, graças a Sócrates, o interlocutor ia se apossando, progressivamente, da sua própria alma. Esse autoconhecimento é um caminho que implica a definição adequada do significado (ou conceito) das palavras que ele vinha usando de modo entorpecido, sem disso ter consciência clara.
De fato, Sócrates dizia-se ignorante e negava decididamente ser capaz de comunicar aos outros algum saber determinado. Mas, assim como a mulher que está grávida no corpo tem necessidade de obstetra para dar à luz, assim também o discípulo que tem a alma grávida da verdade tem necessidade de uma espécie de parteiro espiritual, que o ajude a dar à luz essa verdade. É esta a função que cumpre a maiêutica socrática: ela pretende parir a verdade de que está grávida a alma.
A maiêutica é a arte de obstetra dirigida à psyché. É a arte dominada por Sócrates que melhor representa o papel central da alma em sua dialética.

3.4 A ética socrática: enkráteia, autarquia e eleuthería

Vimos que virtude, para Sócrates, é ciência do que é o homem e do que é bom e útil ao homem. O indivíduo a quem falta a enkráteia (o autodomínio) está totalmente privado da virtude, já que, carecendo de autodomínio, é o corpo e os instintos que passam a governá-lo. A enkráteia, é, pois, domínio de si quando nos encontramos no estado de prazer e dor, nas fadigas e no movimento dos impulsos e das paixões. A enkráteia ou autodomínio constitui a base da virtude. Deve-se, assim, procurar ter na alma autodomínio, o que significa tornar a alma senhora do corpo, tornar a razão senhora dos impulsos e paixões. Sócrates, ademais, identificou a enkráteia com a ‘liberdade’ ou eleuthería. Destarte, com Sócrates, a liberdade passa a ter um significado moral mais do que exclusivamente político-jurídico.: a liberdade é domínio da razão sobre os impulsos, sobre as paixões do corpo. Liberdade é submeter ao domínio da razão aquela parte de animalidade que há em nós.
Ligado aos conceitos de enkráteia e liberdade (eleuthería), coube a Sócrates cunhar o conceito de autarquia, que designa a autonomia da virtude e do homem virtuoso. São dois os traços semânticos do conceito de autarquia: 1) autonomia em relação às necessidades e aos impulsos corporais, alcançada pelo controle exercido pela razão sobre eles; 2) a suficiência da razão ou da alma para alcançar a felicidade.
Segundo Sócrates, aquele que se deixa arrastar pela satisfação dos desejos e dos impulsos torna-se escravo das coisas, dos homens e da sociedade. Submetido pelas forças que não são controláveis e necessitado de tudo quanto é dificílimo de alcançar, o homem perde a liberdade, a tranquilidade e a felicidade. A autarquia é, portanto, a qualidade, por excelência, do sábio. Dado o fato de que o modo de vida do sábio calca-se sobre o modelo de vida divino, a autarquia do sábio supõe o desdobramento das seguintes teses: 1) é divino de nada necessitar; 2) o divino é a própria perfeição, já que de nada carece; 3) quem está mais próximo do divino está mais próximo da perfeição. Para habitar na vizinhança ou na proximidade com o divino, logo com a perfeição, o homem deve limitar e dominar seus desejos, seus impulsos e tendências instintivas pelo poder da razão.
Recapitulando o que se expôs acerca dos conceitos de enkráteia, liberdade e autarquia, deve-se reter, resumidamente, que enkráteia é domínio da razão e do conhecimento sobre os desejos e impulsos sensíveis; liberdade é a capacidade que tem a razão de impor seu poder e domínio sobe as tendências instintivas de nossa animalidade; e autarquia é independência das necessidades instintivas, é a autossuficiência da razão (lógos) humana. Como observa Reale (ibid., p. 113), “(...) esses conceitos nascem da mesma matriz da qual nasce a doutrina da virtude-ciência e da onipotência da ciência, e carrega a mesma marca”.


4. Considerações finais: a sabedoria socrática

Se, quando consideramos certas tendências do comportamento socrático, o vemos como distando do modelo de vida do sábio, não há dúvida de que o pensamento socrático é um verdadeiro exercício de preparação para a sabedoria. E mais ainda: não deve haver dúvida de que há uma sabedoria socrática, de que a vida de Sócrates foi inteiramente devotada ao exercício da filosofia como modo de ser, como atividade radicalmente transformadora do modo de ser do homem no mundo. Sócrates foi, decerto, o primeiro filósofo a mostrar que a filosofia devia antes levar os homens a perguntar, a colocar questões, mais do que encontrar respostas certas e definitivas.
A sabedoria socrática esteia-se justamente no reconhecimento de que ele nada sabia. Ao afirmar “sei que nada sei”, Sócrates se faz sábio, o mais sábio entre os sábios. Ele foi filósofo, por excelência, o “maior de todos”, diria mais tarde seu discípulo Platão, porquanto exercia a filosofia no sentido pleno da palavra (philo-shopia, amor à sabedoria): mais que um sábio que tudo sabe, ele foi antes o amigo que ama a sabedoria. Por isso, ele a buscou sempre, perguntando mais que respondendo, e levando os outros a perguntarem, mais que lhes oferecendo respostas prontas.
O sábio, então, pelo menos da perspectiva socrática, é aquele que assume sua ignorância e sai em busca do conhecimento, mas não de qualquer conhecimento. Segundo Platão, Sócrates foi profundamente afetado pela frase “conhece-te a ti mesmo”, inscrita no Templo do Apolo em Delfos. A admissão da própria ignorância (“sei que nada sei”) e a busca do autoconhecimento são, portanto, as duas características fundamentais da sabedoria socrática.
O que quer que seja a sabedoria, aquele que a possui é “favorecido pelos deuses”, ou seja, é feliz. Se Sócrates não chegou a dar uma definição de sabedoria, ele estabeleceu sua íntima ligação com a felicidade. Somos tanto mais felizes quanto mais sábios – e não quanto mais jovens, ricos e ilustres. Quando o conhecimento que uma pessoa tem lhe permite conduzir-se bem na vida, essa pessoa pode ser considerada um sábio; afinal, sua sabedoria permite-lhe agir bem e ser virtuosa. A virtude conduz à felicidade, porque leva à prática do bem a si mesmo e ao bem da cidade. O bem da cidade clássica era o respeito às leis, e a contribuição para a elaboração das boas leis era a atitude cidadã por excelência. O sábio é, portanto, feliz porque faz bem a si mesmo (virtude humana, sabedoria) e aos outros (virtude cívica, cidadania).
A condição do agir bem e da moderação é o conhecimento, conforme nos ensina Sócrates. Logo, o conhecimento leva à sabedoria; a sabedoria leva à virtude; e a virtude, por fim, realiza a verdadeira vida feliz.
Por fim, gostaria de acrescentar que o tempo despendido na meditação sobre o pensamento socrático permitiu-me sorver o frescor, o hálito de uma sabedoria que os tempos atuais, em que vigem como critérios do bem viver a utilidade, a produtividade e o consumismo, desconhecem. Se é certo, conforme creio, que nem todo indivíduo é predisposto para a filosofia, é de lamentar que a maioria dos homens e mulheres de nossas sociedades pós-modernas viva alheia a uma sabedoria como a de Sócrates. É oportuno aqui referir o que nos ensina Hadot acerca da (in)utilidade da filosofia. Segundo o autor, “é precisamente o papel da filosofia revelar aos homens a utilidade do inútil ou, caso se prefira, de lhes ensinar a distinguir entre dois sentidos da palavra inútil”.(Hadot, 2014, p. 328). A filosofia é útil ao homem enquanto ele é um ser pensante, mas será um luxo, ou seja, supérflua, “caso se considere como útil apenas o que serve a fins particulares e materiais”. (ibid.).  Hoje, particularmente no Brasil, encontramo-nos num estágio de nossa vida político-cultural em que a filosofia é cada vez mais estranha, mais inaudível nos espaços públicos onde pululam, com cada vez mais força e vigor, o obscurantismo, a intolerância e a violência em todas as suas formas. Nosso país é presidido e governado por autoridades que, na grande maioria, são obtusas e avessas à norma básica da constituição do discurso filosófico, nomeadamente do discurso socrático: o diálogo, cujo fim último é levar as consciências a reconhecer que não sabem o que pensavam saber. O falatório generalizado das mídias sociais, a predominância das opiniões falsas que circulam entre as manadas de homens desprovidos de qualquer senso crítico, a crescente onda das chamadas fake news que entorpecem e asfixiam o bom senso são sinais da decadência intelectual e do empobrecimento ético do modo de ser e de viver de nossos governantes e governados. Mas, com o mesmo vigor resistente do samba, a filosofia agoniza mas não morre e por muito tempo ousará proclamar aos homens de negócio a necessidade dignificante do ócio. Deixo aqui resplendecer, nas palavras de Hadot, a glória da filosofia:



“A glória da filosofia, responderão alguns filósofos, é precisamente ser um luxo e um discurso inútil. Primeiramente, se não houvesse senão o útil no mundo, o mundo seria irrespirável. A poesia, a música, a pintura, elas também são inúteis. Elas não melhoram a produtividade. Mas são, todavia, indispensáveis à vida. Elas nos libertam da urgência utilitária. É, igualmente, o caso da filosofia. Sócrates, nos diálogos de Platão, ressalta a seus interlocutores que eles têm todo o tempo deles para discutir, que nada os apressa. E é bem verdadeiro que, para isso, é preciso ócio, como é preciso ócio para pintar, para compor música e poesia. (ibid.).


É preciso, por fim, dizer aos modernos de hoje que o discurso filosófico, tal como se constituiu na filosofia antiga, não é um fim em si, mas está a serviço da vida filosófica. Como lembra Hadot (ibid., p. 330), “toda a Antiguidade reconheceu que Sócrates foi filósofo, mais por sua vida e por sua morte que por seus discursos. E a filosofia antiga permaneceu sempre socrática na medida em que ela sempre apresentou a si mesma como um modo de vida, mais que como um discurso teórico”.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Edson Bini. Bauru, SP: Edipro, 2013.
CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
HADOT, Pierre. O que é filosofia antiga. São Paulo: Edições Loyola, 2010.
_____________. Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga. São Paulo: Realizações, 2014.
REALE, Giovanni. Sofistas, Sócrates e Sócrates menores. São Paulo: Edições Loyola, 2009.

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

“(...) a atividade do intelecto (...) será a felicidade completa humana”. (Aristóteles)

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                    Felicidade e prazer
                  Na Ética a Nicômaco
                                       


Parte do trabalho EUDEMONISMO E HEDONÉ
Um estudo sobre a relação entre prazer e felicidade
nas éticas de Aristóteles e de Epicuro desenvolvido na disciplina Ética I do curso de filosofia da UERJ (2015)



1. A Ética Aristotélica

1.2. O lugar e escopo da ética


Quando Aristóteles faz uma sistematização do saber, ele situa as ciências teoréticas[21] , que buscam o saber por si mesmo, numa posição superior à posição ocupada pelas demais. No seu quadro hierárquico das ciências, às teoréticas seguem-se imediatamente as ciências práticas, após as quais figuram as ciências poiéticas. No grupo das ciências teoréticas, se topam a metafísica[22], a física (da qual fazia parte a psicologia) e a matemática. As ciências teoréticas eram consideradas mais dignas e elevadas. Entre as ciências teoréticas, a mais elevada era a metafísica – ciência que se ocupa das causas ou princípios primeiros.
As ciências práticas também visavam à busca do saber, mas não por ele mesmo, mas do saber pelo qual se pudesse atingir outro fim, qual seja, o da perfeição moral. Nessas ciências, o saber está subordinado à atividade prática, visto que elas dizem respeito à conduta dos homens e ao fim que eles buscam alcançar, através dessa conduta. O termo geral “política” foi empregado por Aristóteles para designar “a ciência complexiva da atividade moral dos homens, quer como indivíduos, quer como cidadãos” (Reale, 2007, p. 97). Posteriormente, a política – “a filosofia das coisas humanas”, foi subdividida em “ética” e “política” propriamente dita, isto é, como teoria do Estado. Escapa aos nossos propósitos alongarmo-nos sobre os desdobramentos que resultam da subdivisão da política, naturalmente. Se aludimos à sistematização do saber feita por Aristóteles, é tão-só para situar a ética entre as ciências que se ocupam da sabedoria prática. A ética está preocupada em investigar os princípios de uma vida conforme à sabedoria filosófica; a ética destina-se à elaboração de uma reflexão sobre as razões de querermos a justiça e a harmonia e sobre os meios pelos quais podemos alcançá-las.
Outra forma de compreender o escopo da ética é começarmos pela consideração do desejo. O desejo – reconhecia Aristóteles – é uma inclinação natural, uma propensão interna de nosso ser. O desejo é movimento, uma tendência para alguma coisa, cuja origem é tanto o objeto externo que nos afeta quanto nosso caráter, nossa índole ou temperamento, isto é, nosso éthos. A ética, portanto, ocupa-se do estudo do caráter com vistas a determinar como pode ele tornar-se virtuoso.
É fato reconhecido que cada caráter possui desejos diferentes, uma vez que são diferentes os objetos de prazer e de dor para cada caráter. Destarte, também o caráter é causa de paixões diferentes e é suscetível de determinadas doenças, de determinados vícios; também o caráter é propenso a determinadas virtudes. Entanto, em todo caráter, o vício é sempre o excesso ou a falta entre dois pontos extremos opostos (por exemplo, a temeridade é excesso de coragem; e a covardia é falta de coragem).
Quando se diz que o vício é excesso ou falta, quer-se dizer que ele é hýbris, ou seja, desmedida ou falta de moderação. Estendendo as quatro causas, identificadas por Aristóteles no domínio da metafísica, ao domínio da ética, pode-se compreender como causa material da ação o éthos (caráter); como causa formal, a natureza racional do agente; como causa eficiente, a educação; e como causa final, o bem. O que se chama virtude é, pois, a unidade dessas quatro causas.
As seções subsequentes serão consagradas ao exame de noções que, reunidas, compõem o edifício da ética aristotélica. Nossa análise não pretende cobrir todo o complexo desse edifício, mas apenas fornecer um quadro descritivo tanto mais elucidativo quanto satisfatório para tornar compreensível a investigação sobre a relação entre prazer (hedoné) e felicidade (eudaimonia) no pensamento aristotélico. Constituirão temas das próximas seções, na ordem em que aparecerão: a virtude, a prudência (ou sabedoria prática), a (boa) deliberação, a escolha, a felicidade (eudaimonia) e o prazer (hedoné). Não descuraremos de demonstrar em que medida essas noções se articulam. Essas noções estão na base da constituição da ética aristotélica; e o tratamento delas precisa dar conta da forma como elas se ligam umas às outras.





1.3. Virtude[23]

A ética de Aristóteles é uma teoria da virtude. Definir a virtude e determinar as condições que possibilitam a um homem tornar-se virtuoso é, portanto, a preocupação central do estagirita, ao compor seu tratado Ética a Nicômaco. Todavia, essa preocupação está fundamentada num pressuposto que consubstancia todo o projeto da ética aristotélica. Trata-se do pressuposto que consiste em sustentar o primado do intelecto. É esse primado que qualifica a ética aristotélica de intelectualista. A teoria da virtude desenvolvida por Aristóteles é inteiramente estruturada pela proposição básica segundo a qual o agir virtuoso é aquele que está em conformidade com a atividade do intelecto ou da razão. O primado do intelecto tem seus desdobramentos e está ancorado sobre um pressuposto que revela a absoluta adesão de Aristóteles à doutrina socrático-platônica que identifica a essência do homem com a alma, ou com a parte racional da alma, o espírito, de sorte que “somos a nossa razão e o nosso espírito” (Reale, 2007, p. 102). No tangente aos seus desdobramentos, o primado do intelecto se expressa, por um lado, num apelo à necessidade de subordinar os desejos e as paixões à razão; por outro lado, na assunção de se considerar a atividade da razão ou do intelecto a própria essência da virtude humana. Em outros termos, com base no primado do intelecto, Aristóteles definirá a virtude humana como aquela que consiste na atividade do intelecto ou da razão. No excerto abaixo, é notável o fato de Aristóteles delegar à razão a função de comando da orientação do desejo.

O buscar e o evitar na esfera do desejo correspondem à afirmação e à negação na esfera do intelecto. Consequentemente, na medida em que a virtude moral é uma disposição que diz respeito á escolha, e escolha é desejo deliberado, conclui-se que, se a escolha deve ser boa, tanto a razão precisa ser verdadeira quanto o desejo, correto, e que o desejo tem que buscar as mesmas coisas afirmadas pela razão (grifo nosso)[24]



Antes de fazer incursão no tratamento dispensado por Aristóteles à questão da virtude, prossigamos na mesma linha de raciocínio que ilumina o lugar fixado por Aristóteles para o primado do intelecto. Doravante, queremos mostrar de que modo o tratamento que ele dispensará à virtude em sua ética se esteia nesse primado.
Já dissemos que, para Aristóteles, a essência do homem é a alma. Cumpre, agora, acrescentar que ele divide a alma em três partes: duas irracionais e uma racional. As partes irracionais da alma compõem-se da alma vegetativa e da sensitiva; a parte racional é recoberta pela alma intelectiva. Aristóteles deduzirá as virtudes dessa divisão tripartite da alma. Ele dirá que cada uma dessas três partes tem a sua atividade peculiar (a sua virtude ou excelência). Contudo, a virtude humana é tão-só aquela que consiste na atividade do intelecto ou da razão. É verdade que, diferentemente da alma vegetativa, a alma sensitiva, embora seja irracional, participa, de certo modo, da razão. Mas é por essa participação relativa que a alma sensitiva é suscetível ao domínio da razão. A alma sensitiva é, por natureza, apetitiva e concupiscível; suas tendências e impulsos, por serem desmedidos, devem ser dominados pela virtude ética – a virtude específica dessa parte da alma humana.
Uma vez esteja esclarecido o tipo de orientação da teoria aristotélica da virtude, vamo-nos concentrar na determinação do que é a virtude em geral, na sua classificação em virtudes éticas e virtudes intelectuais, bem como na diferença entre elas.
A primeira lição que devemos reter sobre a virtude é que ela é produto do hábito. Aristóteles é bem claro a esse respeito, ao escrever: “As virtudes (...) nós as adquirimos por tê-las inicialmente e realmente praticado, tal como praticamos as artes”.[25] Assim, segundo Aristóteles, um homem não se torna justo pelo simples fato de saber o que é a justiça; só o se torna praticando atos justos[26]. É necessário enfatizar a ideia de que a virtude é adquirida na prática; só nos tornamos virtuosos através da ação conjunta com outros homens. Aristóteles é bastante claro nesse tocante:

É através da participação em transações com nossos semelhantes que alguns de nós se tornam justos a outros, injustos; através da ação em situações arriscadas e ao formar o hábito [o sentimento] do medo ou da autoconfiança que nos tornamos corajosos ou covardes.[27]

São as ações que estão na base da constituição ou da destruição das virtudes. Destarte, o ser corajoso ou o ser covarde depende das ações que realizamos conjuntamente com outros no viver em sociedade. Da ideia de que a virtude é produto das ações não se segue que não estejamos pré-dispostos à aquisição dela. É oportuno lembrar aqui que Aristóteles pensa a prática da virtude com base na oposição entre potência e ato. Temos a capacidade para praticar a virtude; nesse caso, o ser virtuoso está em potência em nós; todavia, só somos virtuosos, de fato, quando atualizamos a capacidade para a virtude, quando praticamos atos virtuosos. Por isso, Aristóteles ensinará que não nascemos virtuosos; para ser virtuosos, precisamos da prática que produz o hábito; mas a natureza capacitou-nos para adquirir a virtude, consoante se pode ler no trecho abaixo:


As virtudes, portanto, não são geradas em nós nem através da natureza nem contra ela (a natureza). A natureza nos confere a capacidade de recebê-las, e essa capacidade é aprimorada e amadurecida pelo hábito. Ademais, as faculdades que nos são transmitidas pela natureza nos são concedidas primeiramente como potência, e nós exibimos sua atividade posteriormente.[28]


No livro VI de sua Ética, na página 198, Aristóteles opõe virtude natural a virtude que qualifica de “verdadeira”. A virtude verdadeira é a virtude em seu sentido estrito e não pode existir sem a prudência (ib.id.). Mas Aristóteles rejeita qualquer possibilidade de que possamos ser naturalmente virtuosos. Ele nos lembra, na mesma página, que há consenso em supor que “as várias qualidades morais são, de alguma forma, conferidas pela natureza”, de modo que “somos justos e moderados, corajosos e detentores das demais virtudes [morais] desde o momento do nosso nascimento”; mas observa que “não obstante isso, esperamos descobrir que a autêntica qualidade de bom seja algo diferente e que as virtudes em seu sentido estrito venham a nos pertencer de outra forma”. Aristóteles admite que crianças e animais selvagens podem deter disposições naturais, mas elas podem-se revelar danosas, porque lhes falta o entendimento. Para ser considerada virtude, essa disposição deve realizar-se segundo a capacidade do entendimento, cujo desenvolvimento depende da maturidade do indivíduo. Em suma, Aristóteles parece sustentar que podemos ter disposições naturais que não são elas mesmas virtudes ainda, pois estas só se adquirem pela prática, que produz o hábito. A virtude não é produto de herança natural, muito embora a capacidade para o exercício da virtude nos seja transmitida naturalmente.
Sejam suficientes as considerações que precedem para nos advertir de que não podemos perder de vista o fato de que a virtude, para Aristóteles, concerne às ações e, portanto, resulta da realização regular das ações justas e moderadas[29]. Doravante, vamo-nos deter no esclarecimento do que é a virtude. Impõe-se-nos a tarefa de dar a saber o que Aristóteles entende por virtude.
O que é virtude? Para Aristóteles, a virtude é medida entre dois extremos contrários; é moderação entre dois extremos, é o justo meio, nem excesso nem falta. No homem, a virtude se define pela razão em conformidade com a conduta de um indivíduo que age refletidamente. O exame da virtude se faz em correlação com a consideração da influência que sobre nós exercem as paixões, as capacidades, pelas quais nos tornamos suscetíveis de uma ou outra paixão, e as disposições, que são “estados de caráter devido aos quais nos encontramos bem ou mal dispostos em relação às paixões; por exemplo, estamos mal dispostos para a ira, se estivermos predispostos a nos enraivecer com demasiada violência ou sem violência suficiente (...)”[30]. A razão para que o exame da virtude englobe a consideração das paixões, das capacidades que possuímos e das disposições em que nos encontramos é que a virtude está em estreita relação com elas. Dito de outro modo, o âmbito da virtude as compreende. Por um lado, Aristóteles chega a definir a virtude como “uma espécie de disposição”.[31] Por outro lado, as capacidades são faculdades que nos tornam suscetíveis às paixões; nós possuímos certas capacidades por natureza, por exemplo, somos capazes de ser bons ou maus, mas não somos bons ou maus por natureza. Finalmente, as paixões, assim como as ações, são objeto de escolha, que, por sua vez, é determinada pela virtude.  Paixões e ações são objetos com que se relaciona a virtude, por isso, escreve Aristóteles, “a virtude é, então, uma disposição estabelecida que leva à escolha de ações e paixões e que consiste essencialmente na observância da mediana relativa a nós, sendo isso determinado pela razão, isto é, como o homem prudente o determinaria.”[32]
A virtude visa à mediana. Consoante ensina Aristóteles, “a virtude, portanto, é um estado mediano, no sentido de que é ela apta a visar à mediana”.[33] A virtude “é  o estado mediano entre dois vícios”[34]. Um dos vícios se caracteriza pelo excesso; o outro, pela deficiência.  A observância da mediana é a marca da virtude, ao passo que o excesso e a deficiência caracterizam o vício. Segue-se, abaixo, a definição de mediana dada por Aristóteles:

Por mediana da coisa quero dizer um ponto eqüidistante dos dois extremos, o que é exatamente o mesmo para todos os seres humanos; pela mediana relativa a nós entendo aquela quantidade que não é nem excessivamente grande, nem excessivamente pequena, o que não é exatamente o mesmo para todos os seres humanos.[35] (grifos nossos)


Reconhecendo que constitui tarefa árdua ser bom, porque igualmente difícil é encontrar o ponto mediano em qualquer coisa, Aristóteles propõe três regras para nos auxiliar na tentativa de atingir a mediana. A primeira regra consiste em evitar o extremo que mais se opõe à mediana; a segunda regra exige-nos que observemos os erros a que estamos mais propensos, atentando para o prazer e a dor que experimentamos, para, em seguida, movermo-nos na direção contrária a eles; finalmente, a terceira regra consiste em estarmos conscienciosos de nos prevenir contra o que é prazeroso e contra o prazer, “porque, quando este está em julgamento, não somos juízes imparciais”[36]
Desde os pré-socráticos, “medida” não encerra apenas um sentido quantitativo, mas, mormente, qualitativo, e significa moderação. Moderar é pesar, ponderar, equilibrar, deliberar; é  ação que institui a medida, o métron. Na ética aristotélica, a medida moderadora é o médio, o justo meio. É por isso que a ética é a ciência prática da moderação ou da phrónesis (prudência); e a virtude é virtude de caráter ou força de caráter educado pela moderação para visar o justo meio ou a justa medida.
A virtude não é uma inclinação (o desejo sim é uma inclinação natural), mas uma disposição (héxis). Tampouco é a virtude uma aptidão, como pretendia Platão, quando considerou a areté (excelência ou virtude) uma dýnamis que se atualiza pela tékhne baseada na epistéme. Aristóteles, ao contrário de Platão, considerou a virtude um hábito adquirido ou uma disposição constante e permanente para agir racionalmente em conformidade com uma medida humana determinada pelo homem prudente. À ética se atribui, assim, a tarefa de orientar-nos para a aquisição desse hábito (a virtude), tornando-nos virtuosos e, se possível, prudentes.
O hábito a que a ética deve conduzir o homem é o exercício da vontade sob a orientação da razão, que nos permite deliberar sobre os meios e escolher os fins nas ações que se destinam a satisfazer o desejo sem incorrer nos extremos. Só podemos nos tornar bons, praticando atos bons.

1.2.1. A relação da virtude com os desejos (paixões)

As paixões tocam às virtudes e aos vícios,  e dizemos que, quando somos afetados por uma paixão, somos movidos por ela. Paixões são, para Aristóteles, estados de alma que são acompanhados de prazer ou de dor. Há algumas paixões que são más em si mesmas, de modo que nem todas as paixões (e ações) se prestam à observância da mediana. Destarte, segundo Aristóteles, o adultério, o roubo, o homicídio são ações condenáveis em si mesmas; também a inveja, a malevolência e a imprudência são paixões condenáveis em si mesmas. Nessas ações e paixões não há observância da mediana[37].
Já nos referimos ao desejo como uma inclinação natural, em cuja origem se discriminam duas causas: o objeto externo e o caráter. Cumpre acrescentar que o desejo é paixão, isto é, páthos, passividade, submissão aos objetos exteriores que nos afetam e aos impulsos e inclinações interiores, que são determinados por nosso temperamento ou caráter.
Por outro lado, a virtude é ação, atividade da vontade que delibera e escolhe sob a orientação da razão. Notemos que Aristóteles parece estabelecer uma hierarquia dos domínios que são responsáveis por determinar a orientação da ação: a virtude é ação, que depende da deliberação, que por sua vez implica escolha (há uma dependência recíproca entre deliberar e escolher), estando a orientação da ação, a deliberação e a escolha sob o comando da razão. É a razão ou o intelecto que determina os fins racionais de uma escolha. Essa determinação se faz com vistas ao bem do agente, a saber, à sua felicidade.
A razão é, portanto, a medida não só para os fins e a escolha, mas também da qualidade boa ou má dos desejos e das coisas desejadas.[38] Ao postular a razão como medida da qualidade boa ou má dos desejos, Aristóteles conserva a coerência de sua doutrina da não congenitude da bondade e da maldade. Não nascemos bons nem maus, mas nos tornamos bons mediante a prática de boas ações, porque essas ações atualizam o que, estando em nós em potência, é possibilidade para o exercício do viver racional que conduz à felicidade.
Contrariamente a Sócrates e a Platão, para quem os apetites e desejos são involuntários, porquanto irracionais, passionais e decorrentes da ignorância do sujeito, Aristóteles os considera voluntários, porque entende a vontade como espontaneidade natural. A vontade é aquilo que a natureza de um ser o leva a querer e a realizar naturalmente. No caso particular do homem, além de espontânea, a vontade é consciente (por exemplo, sabemos que sentimos cólera; sabemos que sentimos prazer ou dor, etc.). O que distingue, pois, um ato voluntário de um involuntário? Para que um ato seja voluntário, é necessário que sejam preenchidas as seguintes condições: 1) ele deve ser realizado por escolha e não por uma necessidade natural; 2) deve ser realizado sem constrangimento algum, portanto, deve ser um ato livre; 3) não pode envolver ignorância sobre as circunstâncias e consequências da ação. Na condição 1), a ação poderia ser diferente do que é, porque o agente poderia ter agido de modo diferente. Na condição 2), por depender da liberdade do agente, o ato voluntário pressupõe que o princípio da ação é o próprio sujeito e não algo exterior a ele.
Por outro lado, atos involuntários são aqueles realizados sob duas condições: 1) há constrangimento ou coação envolvidos na circunstância da ação; 2) ou há ignorância do agente a respeito das circunstâncias nas quais ele age. Da distinção entre ato voluntário e ato involuntário Aristóteles é levado a concluir que os acontecimentos naturais são involuntários e necessários; as ações humanas, ao contrário, quando não realizadas sob constrangimento nem sob ignorância, são escolhas voluntárias. Resta, contudo, a questão que consiste em saber quais são as condições para que um ato voluntário seja considerado ético.
Aristóteles, na tentativa de dar conta dessa questão, começa pelo reconhecimento de que a ética se funda numa pergunta que lhe diz respeito por excelência: o que está e o que não está em nosso poder quando agimos? Aristóteles está interessado em dar conta da seguinte questão: o que depende de nós e o que não depende de nós no momento de uma ação?[39] Ora, o ato voluntário é aquele que depende de nós inteiramente no momento em que agimos. As circunstâncias, por outro lado, independem de nós, já que são contingentes. O problema é que a condição para agirmos eticamente é que tenhamos pleno poder sobre nossa ação, mesmo que não possamos estender esse poder sobre as circunstâncias que a acompanham. Aristóteles busca resolver esse problema sustentando que devemos adquirir uma disposição interior (héxis) constante que nos possibilita a agir racionalmente e com prudência nas situações que não foram escolhidas tampouco determinadas por nós. Assim, agir eticamente é realizar um ato voluntário com ou por virtude. Esse ato envolve escolha deliberada, moderação e reflexão sobre os meios e os fins, tendo em vista a excelência ou o melhor.
É justamente porque nossos desejos e apetites são voluntários, porque, de algum modo, tomam parte da alma racional, que eles são suscetíveis de moderação, que eles podem ser controlados mediante um agir determinado pela razão. Para Aristóteles, nós estamos de posse do conhecimento dos desejos e apetites que nos afetam e podemos, por isso, exercer sobre eles influência e controle mediante atos que envolvam deliberação, moderação e, sobretudo, reflexão. Retornaremos a esse tema, quando nos ocuparmos da descrição do papel desempenhado pela deliberação no agir ético. Na próxima seção, debruçar-nos-emos sobre a distinção entre virtudes éticas e virtudes intelectuais.

1.2.2. Virtudes éticas e virtudes intelectuais (ou dianoéticas)

Anteriormente, aludimos ao fato de Aristóteles considerar a virtude em geral uma espécie de disposição. Agora, é imprescindível acrescentar que, para ele, a virtude é uma disposição específica. No homem, essa disposição específica, que é a virtude, não só o torna um bom homem, como também o faz desempenhar bem a sua função.
O exame da alma, por sua vez, levou Aristóteles a distinguir nela três partes: duas irracionais e uma racional. É em consonância com a divisão da alma que Aristóteles distinguiu entre dois tipos de virtudes: as virtudes éticas e as virtudes intelectuais (ou dianoéticas). As virtudes intelectuais recobrem a sabedoria, o entendimento e a prudência[40]; entre as virtudes éticas, estão a temperança, a generosidade, a coragem, entre outras. Doravante, vamo-nos deter a elucidar as características que concorrem para distinguir essas duas espécies de virtude.
As virtudes éticas dizem respeito às funções sensitiva e apetitiva da alma na sua relação com o corpo. Por outro lado, as virtudes intelectuais ou dianoéticas se prendem à função racional ou intelectiva.
A virtude ética é uma disposição interior constante que se inclui no gênero das ações voluntárias, as quais se realizam mediante escolha deliberada dos meios possíveis que servem ao atingimento de um fim sobre o qual se estende o poder do agente e que é um bem para ele. A causa material dessa espécie de virtude é o éthos do agente; a causa formal é a natureza racional do agente; a causa final, o bem do agente; e a causa eficiente, a educação do desejo do agente. É pela virtude ética que se pode escolher o justo meio. Ela diz respeito à estrutura composta do homem, isto é, à alma e ao corpo e, por isso, só pode conduzir a uma felicidade humana.
As virtudes intelectuais, por sua vez, são a areté ou a excelência e perfeição da alma racional. Tais virtudes se chamam dianoéticas porque concernem mais ao pensamento em geral do que simplesmente ao caráter. Vale notar que, conquanto Aristóteles admita uma cisão entre teoria e prática, ou entre sabedoria (sophia) e prudência (sabedoria prática) no interior da razão, não pretende esposar a opinião de que a sabedoria não é uma maneira de agir e de que a prudência não é uma maneira de saber.
É suficiente esclarecer, para os propósitos fixados neste trabalho, que as virtudes dianoéticas são disposições intelectuais que se encontram entre dois extremos: a prudência e a sabedoria teorética (sophia). Porque são virtudes, as dianoéticas são adquiridas na prática.
Uma vez que tenha definido a filosofia primeira como aquela que se ocupa das coisas divinas, das causas primeiras, Aristóteles cuida ser o filósofo o mais virtuoso e mais feliz dos homens. Aristóteles também sustentou a superioridade das virtudes intelectuais sobre as virtudes éticas, por duas razões que se articulam entre si: por um lado, as virtudes intelectuais são as virtudes da parte mais elevada da alma, que é a alma racional e  são elas que tornam possível ao homem realizar a sua obra, conduzindo-o à perfeita felicidade (felicidade da vida contemplativa que, de certo modo, tangencia a vida dos deuses); por outro lado, as virtudes intelectuais mantêm uma relação especial com o prazer. No entanto, todas as virtudes, quer éticas, quer intelectuais, estão situadas sob o princípio do prazer. Ainda que, para o tratamento do prazer na ética aristotélica, tenhamos reservado uma seção particular, mais adiante, cumpre aqui dizer que o prazer é a coroação da vida virtuosa; é a consequência da qual a virtude é o antecedente. Aristóteles nos garante que, se agirmos em conformidade com a virtude, alcançaremos a felicidade maximizada pelo prazer.

1.2.3. Prudência, (boa) deliberação e escolha

Como tais noções estão intimamente articuladas entre si, escusa ocuparmo-nos delas em seções distintas. A prudência é uma das virtudes intelectuais, conforme já apontamos. Ela se diferencia, marcadamente, do que Aristóteles chama de entendimento e de sabedoria (sophia).[41] A sabedoria é o conhecimento dos primeiros princípios, dos quais se deduzem as verdades científicas; a prudência (sabedoria prática), por sua vez, recobre as coisas mutáveis; ela está relacionada à ação e ocupa-se com as coisas particulares. A prudência, observa Aristóteles, é útil porquanto nos auxilia a nos tornarmos virtuosos; por isso, ela será inútil àqueles que já são virtuosos. A prudência é inferior à sabedoria, mas tanto uma quanto a outra produzem um efeito. A sabedoria produz a felicidade; a sabedoria “é uma parte da virtude como um todo e, portanto, através de sua posse, ou melhor, através de seu exercício, torna o ser humano feliz”[42]. A prudência, por sua vez, “determina o desempenho completo da função própria do homem”[43]. Se, por um lado, a virtude ética “assegura a retidão do fim a que visamos”, a prudência “garante a retidão dos meios a serem utilizados para atingir esse fim”[44].
Veja-se, no excerto abaixo, o que nos ensina Aristóteles acerca da interdependência entre a prudência e a boa deliberação:

Quanto à prudência (sabedoria prática), é possível chegarmos à sua definição pela consideração das pessoas com as quais a creditamos. Ora, tem-se como característica do homem prudente ser ele capaz de bem deliberar sobre o que é bom e proveitoso para si mesmo, não num ramo em particular (...) – mas o que é vantajoso ou útil como recurso para o bem-estar em geral.[45]


Atentando para o passo supracitado, compreendemos que a prudência é uma forma de sabedoria que capacita o homem para o bem deliberar em geral. O homem prudente é aquele capaz de deliberar sobre aquilo que, sendo útil e vantajoso, serve de recurso para o bem-estar em geral. A deliberação, diz Aristóteles, envolve cálculo e investigação, mas não é o mesmo que investigação, pois a deliberação “envolve apenas a investigação de uma matéria em particular”[46]. Mas a deliberação está sujeita a erros, donde a necessidade de determinar no que consiste a boa deliberação. É Aristóteles quem nos esclarece: “A boa deliberação é uma certa forma de acerto ou exatidão, ainda que não seja exatidão de conhecimento e nem de opinião”.[47] A boa deliberação, segundo Aristóteles, é acerto e exatidão no pensar. O bem deliberar é uma característica essencial do homem prudente. Consoante escreve Aristóteles, “a boa deliberação [ou excelência no deliberar] deve ser acerto deliberativo no tocante ao que é expediente como meio para o fim, uma autêntica compreensão do que constitui a prudência”.[48] Convém insistir que só deliberamos sobre aquilo que podemos escolher e escolhemos aquilo que a deliberação nos mostrou ser preferível. Só podemos deliberar sobre os possíveis, sobre as coisas contingentes, e nunca sobre as que são necessárias. Somente os contingentes dependem inteiramente de nossa ação.
Toda ação ética está sob nosso poder. Ela envolve escolha preferencial resultante de uma deliberação racional. Não podemos, no entanto – lembra Aristóteles -, deliberar sobre todas as coisas. Deliberamos apenas sobre as coisas que dependem de nós e que podemos realizar. Escapa à nossa capacidade deliberar sobre a natureza, a eternidade do mundo, etc; somente podemos deliberar sobre o que depende da nossa razão e de nossa ação. Ajunte-se que jamais deliberamos sobre os fins, mas tão-só sobre os meios. O fim é o objeto do desejo que o toma como bem; e nós deliberamos em vista desse fim.
Volvendo nossa atenção para a prudência (phrónesis), não se deve perder de vista o fato de que ela é uma virtude intelectual cuja finalidade é determinar o que devemos e o que não devemos fazer. Ela é uma sabedoria prática que toca ao contingente e ao tempo, àquilo que pode ser de outra maneira. A prudência orienta a deliberação racional (proaíresis), dado que torna possível o discernimento do bem e do mal nas coisas e das relações convenientes entre meios e fins.
A grande relevância da prudência se deve ao fato de nela as três condições – já referidas –, que tornam uma ação virtuosa, serem satisfeitas. Por conseguinte, mediante a prudência, avulta a finalidade da ética, qual seja, tornar o homem agente; e o agente, autossuficiente.
Sublinhe-se também que é a prudência que garante a um agente a autárkeia (independência, liberdade ou autossuficiência). A autárkeia opõe-se à passividade ou à paixão. Ora, na paixão, não somos capazes de dirigir as coisas; ao contrário, somos por elas dirigidos. A autárkeia, por seu turno, provém da autonomia, que é justamente o que torna alguém senhor de si mesmo, porquanto não obedece senão à regra de vida que fixou a si mesmo. Na autonomia, a obediência existe não por alguma forma de coação, mas por uma vontade livre que se autodetermina, que fixa uma regra de conduta e decide a ela obedecer.
Passemos à consideração da escolha, que é um desejo deliberado que incide sobre aquilo que está em nosso poder. A escolha não é, pois, um desejo passional que busca o impossível ou se move por uma necessidade natural. A escolha é sempre o desejo de realizar uma ação determinada que torne possível alcançar o fim desejado.
O desejo deliberado, isto é, a escolha, está intrinsecamente articulado ao intelecto ou à razão; é uma forma de desejo sempre acompanhada da reflexão. Disso resulta que a virtude é o acordo entre o desejo e a razão.
Tendo em conta as considerações precedentes sobre a natureza da virtude e do vício, pode-se concluir que virtude e vício são atos voluntários, cuja realização é dependente da natureza da deliberação e da escolha preferencial. A virtude se define, assim, como uma preferência racional voluntária que visa a um bem verdadeiro, em conformidade com o caráter do agente e em conformidade com a medida racional determinada pelo homem prudente.
O ato virtuoso deve, portanto, pautar-se por três regras, que o caracterizam como tal:
1a)  o agente sabe o que faz;
2a) o agente escolhe a ação; ele é o princípio da ação que ele mesmo executa;
3a) o agente realiza a ação em virtude de uma disposição interior e permanente, ou seja, por possuir virtude; por isso, a excelência do agente é o fim da ação.


1.2.4. Felicidade (eudaimonia) e prazer (hedoné)

1.2.4.1 Felicidade

Encetemos nossas reflexões sobre o tema da felicidade na ética aristotélica, enfatizando, desde já, que a atividade contemplativa, ainda que seja, segundo Aristóteles, a melhor e mais perfeita, não demanda exclusividade. Na verdade, ela integra as demais atividades sob o seu domínio. Por conseguinte, desejar a eudaimonia como fim último não significa preferir certo fim a outros, “mas sim desejar uma harmonia entre nossos fins” (Zingano, 2007, p. 74).
A ética, na medida em que é uma ciência prática, deve objetivar a determinação da essência do fim a ser alcançado, da essência do agente e das ações e meios que servem para realizá-las. Essas três etapas previstas em seu objetivo se expressam também na forma de definição da felicidade (fim), da natureza humana como éthos e da natureza das virtudes. No entanto, uma filosofia prática não se satisfaz com o conhecimento do que é o bem, mas precisa saber como nos tornamos bons.
Um bem, segundo Aristóteles, é mais perfeito do que outros quando o buscamos por si mesmo e não em vista de outra coisa. A felicidade é, pois, um bem desse gênero; ao contrário, bens como “honra”, “riqueza”, “prazer” e “poder” são buscados tendo em vista outros bens. Essa é uma das razões[49] por que Aristóteles não identifica a felicidade com a busca de qualquer um desses bens, sobretudo com a busca do prazer – tema sobre o qual estendemos nosso interesse neste trabalho.
Destarte, um bem é mais perfeito do que outros pelo seu grau de autossuficiência (autárkeia). A felicidade é um bem desse gênero: o homem feliz é aquele que se realiza plenamente, de nada mais necessita. Para Aristóteles, um bem é sempre uma virtude, ou seja, uma excelência. Se o bem ético se inclui no gênero da vida excelente, a felicidade “é a vida plenamente realizada em sua excelência máxima” (Chauí, 2002, p. 442). A felicidade é a totalidade dos bens que a compõem (Zingano, 2007, p. 88).
Vamo-nos deter, doravante, na descrição da concepção aristotélica de eudaimonia. Importa-nos reter, desde já, que a felicidade, para Aristóteles, não é um estado psicológico, não tem um caráter temporário ou episódico; ela é “alguma forma de atividade”[50]. Essa forma de atividade é a atividade do intelecto. O intelecto, já vimos, é a parte mais nobre da alma humana; e a felicidade é a atividade que se realiza em conformidade com essa parte mais nobre. Para Aristóteles, a felicidade consiste na especulação,

(...) pois a especulação é ao mesmo tempo a forma mais elevada de atividade (uma vez que o intelecto é o que há de mais superior em nós e os objetos com os quais o intelecto se ocupa são as coisas mais elevadas e cognoscíveis), e também a mais contínua, pois somos capazes de pensar com mais continuidade do que somos capazes de executar qualquer ação.[51]


É preciso insistir em que Aristóteles identifica a felicidade com a atividade do intelecto: “(...) a atividade do intelecto (...) será a felicidade completa do homem”[52]. A felicidade se acha nos bens espirituais; ela se identifica com o bem supremo do homem, justamente aquilo em virtude do qual tudo o mais é feito. Esse bem supremo é algo completo.

A felicidade, acima de tudo o mais, parece ser absolutamente completa, nesse sentido, uma vez que sempre optamos por ela por ela mesma e jamais como um meio para algo mais, enquanto a honra, o prazer, a inteligência e a virtude sob suas várias formas (...) também optamos por elas pela felicidade na crença de que constituirão um meio de assegurarmos a felicidade.[53]

De passagem, notemos, contudo, que, segundo Zingano (Idem.), o bem supremo e a felicidade não se definem do mesmo modo. A eudaimonia é definida como uma certa atividade em oposição a um estado psicológico ou a uma simples disposição do sujeito. Por seu turno, o bem supremo é definido como o fim último dessa atividade. O fim último é aquele em vista do qual todos os outros são perseguidos, ele mesmo, contudo, não estando em vista de nenhum outro. Não obstante, a identificação da felicidade com o bem supremo é mantida, pois, afinal, a felicidade é esse bem último em vista do qual os demais bens são perseguidos. É oportuno lembrar que Aristóteles discriminou entre três espécies de bens: 1) os bens da alma (as virtudes); 2) os bens do corpo; 3) os bens exteriores. No que toca a estes últimos, eles auxiliam no alcance da felicidade, de modo que, sem eles, a felicidade não é possível; mas eles não são as causas próprias da felicidade; estas Aristóteles considera serem as virtudes.
A felicidade é também algo autossuficiente, porque, por um lado, ela, por si mesma, torna a vida desejável; por outro lado, ela não carece de nada. Convém atender nas palavras de Aristóteles:

(...) consideramos ser a felicidade a mais desejável de todas as boas coisas sem que seja ela mesma estimada como uma entre as demais, pois se assim fosse ela estimada, está claro que deveríamos considerá-la mais desejável quando mesmo a mais ínfima das outras boas coisas a ela estivesse combinada, uma vez que essa adição resultaria num total mais amplo de bem, e de dois bens o maior é sempre o mais desejável.[54]


A felicidade é, portanto, algo completo (final) e autossuficiente; por isso, dirá Aristóteles “é a finalidade visada por todas as ações”[55]. Até aqui, esperamos esteja claro que Aristóteles está interessado em determinar o que é a felicidade. Cabe acrescentar que essa tarefa só pode ser levada a bom termo com a condição de que se possa determinar a função específica do ser humano. Aristóteles se lança a essa empresa, e não poderia ser mais claro ao sustentar que a função do ser humano é “o exercício ativo das faculdades da alma em conformidade com o princípio racional(...)”[56]. Um pouco adiante, acrescenta Aristóteles: “(...) a função do ser humano é uma certa forma de vida e definimos essa forma de vida como exercício das faculdades e atividades da alma em associação com o princípio racional (...)”[57]. Devemos atentar aqui para a ressonância do postulado com base no qual se estrutura esse trabalho e que consiste na posição segundo a qual a filosofia antiga é exercício espiritual. Está claro que, para Aristóteles, a filosofia consiste em um modo de vida teorético. Sua escolha de vida é por uma vida devotada à atividade especulativa, que é vivida, que é praticada e que conduz à felicidade. Em suma, viver uma vida segundo o espírito, viver uma vida dedicando-se à sabedoria é o modo de vida de que a filosofia aristotélica pretende ser a realização.
A função de um ser humano bom consiste em executar bem e corretamente as atividades da alma; e a função é bem executada quando está de acordo com a sua própria excelência (virtude). Disso resulta que o bem humano é o exercício ativo das faculdades da alma em conformidade com a melhor e mais perfeita delas, a saber, o intelecto.
A concepção aristotélica de felicidade, ou melhor, a própria experiência de felicidade cuja fruição Aristóteles crer ser possível ao homem é a antípoda da visão e da experiência de felicidade que caracteriza especialmente nossa modernidade. A supervalorização da beleza, da exterioridade físico-corpórea consubstancia a valorização do efêmero, do descartável. Nessas condições, tudo que dura é cansativo; a permanência não passa de delírio de uma idade primaveril e romântica da existência humana; delírio que deve ser substituído por possibilidades, aparentemente, mais substanciais de integração. Há uma necessidade insaciável e incessante de busca por experimentar prazeres cada vez mais intensos, tão intensos quanto fugazes. Fugacidade parece definir bem o nosso tempo: tempo prometedor de felicidade imediata, de caminhos sempre abertos a novas experiências sem substância, mas sempre passíveis de renovação. A escolha de vida aristotélica, ao contrário, encaminha o homem para a busca de uma felicidade duradoura. É preciso, então, frisar que a eudaimonia é uma atividade que deve perdurar por toda a vida de um homem. Novamente, é Aristóteles que nos ensina sobre o caráter duradouro da felicidade:

(...) essa atividade deve ocupar uma existência completa, pois uma andorinha não faz verão, nem produz um belo dia; e, analogamente, um dia ou um efêmero período de felicidade não torna alguém excelsamente abençoado e feliz.[58]


Endossando a premissa segundo a qual o exercício ativo de nossas faculdades em conformidade com a virtude é que produz a felicidade, Aristóteles insistirá em que são as atividades em conformidade com a virtude – e nenhumas outras – que encerram a qualidade de permanência plenamente. A durabilidade da felicidade se deve à realização das coisas em conformidade com a virtude. Ajunte-se que, sendo a vida de um ser humano determinada por suas atividades, segue-se daí que sua bem-aventurança é garantida por suas ações em conformidade com a virtude. Um homem bem-aventurado, por conseguinte, nunca poderá tornar-se infeliz, pois nunca praticará ações vis. O homem verdadeiramente bom e sábio suportará tudo que a sorte lhe reservar “e agirá sempre da maneira mais nobre que as circunstâncias permitirem”.[59]
Gostaríamos de pontuar as seguintes características da felicidade, que manifestas ou entrevistas foram contempladas no que precede :
1) A felicidade é excelência da alma, e não do corpo;
2) A felicidade é o primeiro princípio em vista do qual todas as demais coisas são feitas;
3) A felicidade é um bem em ato, não em potência;
4) A temporalidade da felicidade se estende ao longo de toda a vida;

A característica 3) não só reforça a ideia de que a felicidade é alguma forma de atividade – uma atividade que é a própria vida dedicada à contemplação, ao exercício da parte mais nobre da alma, que é o intelecto -, como também explica por que a felicidade não pode reduzir-se à virtude, “uma vez que parece possível possuí-la durante o sono, ou durante a vida inteira, sem pô-la em prática”[60]. Para Aristóteles, a felicidade não se encontra no estado de repouso ou inatividade. Se fosse um bem em potência, a felicidade se encontraria em estado de devir, de potencialidade, de possibilidade de ser, de realizar-se e, nesse caso, deixaria de depender da escolha de um modo de vida específico ou próprio. O homem feliz – repetimos – é aquele que realiza a atividade contemplativa através do exercício da razão teorética. Ao exercitá-la, esse homem se realiza plenamente, pois que vive segundo aquilo (o intelecto, a alma racional) que, em ato, é possibilidade para a (realização da) felicidade.
Concluamos respondendo à questão: por que o sábio é o homem mais feliz? Vimos insistindo que a felicidade perfeita consiste no exercício da razão teorética. O homem que age com prudência (phrónesis), embora detenha a sabedoria moral e goze certa felicidade, dado que é capaz de escolher convenientemente entre os meios possíveis que lhe advém na vida prática, não é ainda perfeitamente feliz. Não o é, por um lado, porque necessita de bens externos para agir em conformidade com a virtude. Se ele é bondoso e pretende ajudar alguém, necessitará de recursos materiais para tanto (p. ex., possuir dinheiro). Por outro lado, ainda não é perfeitamente feliz, porque os que se dedicam à vida contemplativa não carecem de recursos externos. Por isso, a atividade contemplativa nos aproxima do divino. A felicidade – dirá Aristóteles – inere à contemplação. Na atividade contemplativa, o sábio depende mais de si mesmo; por isso se aproxima da vida dos deuses (tem ele autossuficiência). Por isso também ele goza a felicidade perfeita. A felicidade depende, assim, da “excelência intelectual”. Coube a Aristóteles estabelecer, pela primeira vez, uma ligação entre autonomia e felicidade.

1.2.4.2 Prazer

As meditações precedentes foram indispensáveis para pavimentar o caminho que nos conduzisse, com segurança, ao tratamento da questão do prazer no tratado ético de Aristóteles. Tendo-o percorrido com o rigor exigido pela lucubração, que nos impediu de tomar atalhos que facilitassem a tarefa, e crendo que atingimos seu termo com algum êxito, não renunciaremos ao mesmo rigor no exame da relação entre prazer e eudaimonia no pensamento de Aristóteles.
Iniciemos nossa perquirição, destacando três que nos parecem ser as teses basilares sustentadas por Aristóteles no tratamento dispensado por ele à questão do prazer:

1a tese:  O prazer é indissociável da vida;
2a tese: O prazer das atividades que os homens desempenham aperfeiçoa essas atividades;
3a tese: “(...) os prazeres do intelecto superam em pureza os prazeres dos sentidos”.[61] 

A vida, para Aristóteles, é uma forma de atividade. Como o prazer aperfeiçoa as atividades desempenhadas pelos homens, ele também aperfeiçoa a vida. Segundo Aristóteles, “não há prazer sem atividade, e também, nenhuma atividade perfeita sem o seu prazer”.[62] Portanto, a vida se acompanha de um prazer. A terceira tese é consonante com a tese fundamental em torno da qual se estrutura todo o tratado ético aristotélico, qual seja, a que consiste em afirmar o primado do intelecto. A vida teorética é o horizonte de realização da felicidade; é aí que se deve compreender o prazer especificamente humano, qual seja,

“(...) aquele prazer ou aqueles prazeres pelo(s) qual(is) a atividade (ou as atividades) do homem perfeito e bem-aventurado é (são) aperfeiçoada(s) que deverá(ão) ser declarado(s) humano(s) no sentido estrito e mais pleno”.[63]


Quando agimos ou conhecemos, quer de forma sensível, quer de forma inteligível, atualizamos certas potencialidades; e as atividades que daí se seguem têm como escopo o objeto que lhes é próprio. Essas atividades, porquanto realizam objetivamente aquelas potencialidades, se acompanham do prazer que as aperfeiçoam.
Aristóteles admite ser natural, no homem, a aspiração ao prazer; no entanto, também reconhece que, assim como há atividades convenientes e boas, e atividades inconvenientes e más, assim também há prazeres convenientes e bons tanto quanto prazeres inconvenientes e maus. Para ele, uma atividade moralmente boa carreia um prazer bom, ao passo que uma atividade moralmente má carreia um prazer moralmente mau. Segue-se daí a necessidade de estabelecer um padrão para a determinação dos prazeres que, deveras, contribuem para aperfeiçoar a atividade que acompanham (estes é que são verdadeiros prazeres). Esse padrão Aristóteles buscará no homem virtuoso:


(...) sustentamos que (...) a coisa realmente é o que parece ao homem bom. E se essa regra for correta, como geralmente se afirma que é, e se o padrão de tudo é a qualidade do bom, ou o indivíduo bom na qualidade de bom, então as coisas que se afiguram a ele como sendo prazerosas são prazeres e as coisas de que desfruta são prazerosas.[64]



Tomando-se o excerto referido, é notável a relação estabelecida por Aristóteles entre prazer e virtude. Tal relação é tanto mais necessária quanto indispensável é saber que nem todos os prazeres devem ser desejados, dado acarretar mais malefício do que benefício. Como os prazeres são variáveis em gênero tanto quanto as atividades que acompanham, faz-se mister encontrar uma medida segura para determinar quais os prazeres são bons. Esse padrão se encontra no homem bom, ou seja, naquele homem que vive segundo a excelência (areté).
Não perdemos de vista o fato de que há também um critério ontológico para determinar quais prazeres são superiores e quais são inferiores. Os que pertencem ao primeiro caso se prendem às atividades teoréticas ou contemplativas do homem; os que pertencem ao segundo caso ligam-se à sua vida vegetativo-sensitiva. Essa discriminação entre os prazeres segundo um critério ontológico não deixa de ter sua importância; mas, para efeito de nossa discussão, importa considerar a relação que Aristóteles estabelece entre o prazer e atividade contemplativa. A superioridade dos prazeres se deve à ligação íntima deles com essa atividade. Em outras palavras, são superiores os prazeres que se experimentam na atividade da alma em conformidade com o intelecto. Por conseguinte, a vida consagrada à atividade do intelecto é a melhor e a mais prazerosa, conforme enfatiza Aristóteles:

“(...) aquilo que é o  melhor e o mais prazeroso a cada criatura é o que é próprio à natureza de cada um; em conformidade com isso, a vida do intelecto representa a vida melhor e mais prazerosa para o ser humano porquanto o intelecto, mais do qualquer coisa, é o ser humano. Consequentemente, essa vida será feliz” [grifo nosso]. [65]


Não constitui nosso intento recobrir toda a problemática suposta pelo tema do prazer e à qual Aristóteles devotou acurada atenção; se o fizéssemos, deveríamos levar em conta o exame feito por Aristóteles das teorias sobre o prazer, comuns em seu tempo, particularmente sua consideração da opinião de Eudoxo (um discípulo de Platão), ou mesmo o estatuto da dor na tentativa de definir, por contraste, o prazer. Essas lacunas, no entanto, não nos devem escusar de dizer que o prazer não é nem movimento (já que lhe faltam as propriedades de rapidez e lentidão), nem uma restauração de um estado natural (porque nem todos os prazeres são precedidos de uma dor). Para Aristóteles, os prazeres do conhecimento não supõem uma carência prévia, “(...) não apresentam uma dor que os antecede (...)”.[66]
Esperamos esteja suficientemente claro, até o presente momento, que Aristóteles rejeita ser a busca do prazer o princípio da vida feliz, de sorte que, para ele, o prazer não é o soberano bem, no que ele está em inegável divergência com os epicuristas. Mas sobre os pontos convergentes e divergentes entre as duas doutrinas contempladas neste estudo não vamos nos alongar neste momento, visto que será o tema de nosso próximo capítulo.
Recapitulando a tese da coextensividade da felicidade com a especulação,

“A extensão da felicidade é, portanto, a mesma da especulação: quanto mais uma classe de seres detém a faculdade especulativa, mais frui ela da felicidade, não como um concomitante acidental da especulação, mas como algo inerente a ela, uma vez que a especulação é valiosa em si mesma” [grifo nosso].[67]


pode-se concluir que o homem que realiza a vida feliz, porque consagra sua vida ao cultivo do intelecto, é também o homem que, ao consagrá-la a essa atividade valiosa em si mesma, experiencia um prazer insigne. Assim, mantém-se como bem supremo da vida humana a felicidade, que é a atividade da alma em conformidade com a razão teorética ou o intelecto. Uma vida em harmonia com a sabedoria garante ao homem o prazer mais elevado, porque “(...) supomos que a felicidade deva encerrar um elemento de prazer; ora, a atividade que se harmoniza com a sabedoria é, reconhecidamente, a mais prazerosa das atividades que se harmonizam com a virtude”.[68] Essa passagem se acompanha de outra que a reforça:

“Em quaisquer circunstâncias sustenta-se que a filosofia ou a sabedoria encerra prazeres maravilhosos devido à sua pureza e permanência, e é plausível supor que o gozo do conhecimento é uma ocupação ainda mais prazerosa do que sua busca” (grifo nosso) [69].


Não devemos perder de vista, com base no passo acima, duas ideias que se articulam e cuja consistência parece cara a Aristóteles: a primeira diz respeito à subordinação do prazer ao exercício da filosofia, que deve ser uma ocupação do homem ao longo de toda a sua vida; a segunda toca à sua convicção de que quem está ocupado do conhecimento goza de um prazer excelso.
Ainda segundo Aristóteles, “(...) uma atividade é, portanto, aumentada pelo prazer que lhe é próprio e aquilo que aumenta uma coisa lhe é, necessariamente, afim”.[70] – passagem esta que nos leva a entender o prazer como um elemento quantificador de intensidade, na medida em que aumenta a qualidade da atividade que acompanha.
Aristóteles não deixa de reconhecer o caráter fugaz do prazer, muito embora seja ele pleno e completo. O prazer é enérgeia, isto é, ato em si mesmo e por si mesmo. Não tem começo nem tem fim. Para cada um dos nossos sentidos, há um prazer que lhe é próprio; e mais importante: há um prazer próprio a cada atividade desempenhada por nós (falar, fabricar, pensar, etc.).
A plenitude e a perfeição do prazer são alcançadas quando o órgão que o experimenta se acha em perfeita saúde e dispõe das perfeitas condições para realizar a sua função. Ademais, a perfeição do prazer depende de que o objeto experimentado se ache em estado de maior perfeição.
O prazer tem caráter quantitativo, visto que aumenta a qualidade da atividade. Sem atividade não há prazer; sem prazer, a atividade decresce, podendo, inclusive, ser suspensa. É justamente porque Aristóteles estabelece uma relação entre o prazer e a vida, entre o prazer e a atividade, entre o prazer e a perfeição tanto do órgão quanto do objeto de satisfação que ele afirma ser o prazer inseparável da virtude. É também por essas relações que ele pode afirmar que a virtude é uma forma de prazer superior, uma vez que a virtude é capaz de prolongá-lo, convertendo-o num ato menos fugaz. Mas é nas virtudes intelectuais que o prazer é mais intenso, mais vivo, mais longo e duradouro.



[21] “Teorético” não se confunde com “teórico”. O termo “teorético” foi empregado pelo próprio Aristóteles com o propósito de qualificar, por um lado, o modo de conhecimento que visa ao saber pelo saber, ou seja, que não visa a um fim exterior a si mesmo; por outro, o modo de vida que se consagra a essa forma de conhecimento. O termo “teórico”, por sua vez, se define em oposição ao “prático”, de sorte que o primeiro termo qualifica o saber abstrato, especulativo; e o segundo, o saber fazer, o saber concreto que depende da prática, da ação (Hadot, 2010).
[22] Na verdade, o termo não foi cunhado por Aristóteles, mas nasceu por ocasião da edição das obras aristotélicas feita por Andrônico de Rodes, no século I a.C. (Reale, 2007).
[23] Todas as citações de Aristóteles serão colhidas de ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Edson Bini. Bauru, SP: Edipro, 2013. A referência aparecerá em notas de rodapé, com as iniciais da obra, seguidas do número do livro e a página (p. ex. EN, L I, p. 60).

[24] EN, L VI, p. 179.
[25] EN, L II, p. 68.
[26] Essa visão de Aristóteles está em claro contraste com a posição socrático-platônica, que vê no conhecimento (e só há conhecimento do que existe em si, do que é eterno e imutável, para Platão) da Ideia da justiça, por exemplo, a condição primeira para o agir justo. Por isso, para Platão, a cidade justa será aquela governada pelo rei-filósofo, porque, tendo ele contemplado a Verdade, o Belo e o Bem, está excepcionalmente apto para fazer valer a justiça nas decisões importantes da cidade.
[27] Idem.
[28] Ibidem, p. 67.
[29] Não só às ações, as virtudes concernem também às paixões. Mas essa relação com as paixões não precisa nos ocupar aqui, pois ela ficará mais clara ao considerarmos o tratamento dado por Aristóteles às chamadas virtudes éticas.
[30] Ibidem, p. 74
[31] Ibidem, p. 75
[32] Ibidem, p. 77
[33] Idem.
[34] Idem.
[35] Ibidem, p.76
[36] Ibidem, p. 84
[37] Cf. EN, L II, p. 78.
[38] Segundo Chauí (2002, p. 447), “em si mesmos, os desejos não são nem bons nem maus; em si mesmas, as coisas desejadas não são nem boas nem más. O desejo torna-se mau e o objeto torna-se mau quando não se submetem à medida racional; tornam-se bons quando se submetem a essa medida”. 
[39] Preocupados em ensinar o caminho para a vida feliz, a questão sobre quais as coisas que dependem de nós e quais as que não dependem de nós ocupava um lugar de destaque na agenda dos estóicos. Epiteto, por exemplo, nos lembra que não podemos mudar nada na ordem das coisas, mas apenas nossas opiniões sobre elas. Para mudá-las, não nos servimos da compreensão racional, mas de exercícios espirituais. Tais exercícios atuam sobre as paixões e nos levam a perguntar a nós mesmos, em cada situação, se podemos exercer ou não alguma influência sobre as coisas nela envolvidas.
[40] Também a arte e a ciência.
[41] Aristóteles não faz uma distinção essencial entre entendimento e sabedoria (sophia), muito embora a sophia seja um saber profundo e geral, mais elevado do que as demais virtudes intelectuais.
[42] EN, L X,  p. 196
[43] Idem.
[44] Idem.
[45] Ibidem, p. 182.
[46] Ibidem, p.190.
[47] Ibidem, p. 191
[48] Ibidem, p. 192
[49] No Livro I de sua Ética, Aristóteles se detém na apresentação das razões por que a felicidade não pode ser identificada com a “riqueza”, a “honra”, o “prazer” e a “virtude”. No tocante à riqueza, sequer deve ser incluída entre os bens que comumente se buscam. Para ser um bem, é necessário que algo tenha utilidade, e Aristóteles parece sugerir que a riqueza carece dessa qualidade. No tocante à honra, ela não é o bem supremo, porque não é próprio de quem a possui e, por ser atribuída a alguém por outro(s), ela pode ser, em algum momento, suprimida daquele que a recebeu. Ademais, os homens que buscam a honra o fazem por vaidade ou para “o assegurar a si mesmos de seu próprio mérito” (p. 43). De uma maneira geral, parece-nos lícito supor que Aristóteles nos autoriza a dizer que todos os demais bens que as pessoas consideram capazes de realizar a vida feliz carecem da permanência que caracteriza o bem supremo, que é a eudaimonia. O bem supremo não é sujeito à mudança, como o são as demais coisas que se consideram como bens.
[50] Ibidem, p. 304
[51] Ibidem, p. 306
[52] Ibidem, p. 308
[53] EN, L I, p. 48
[54] Ibidem, p. 49.
[55] Idem.
[56] Ibidem, p. 50.
[57] Idem.
[58] Idem.
[59] Ibidem, p. 58.
[60] Ibidem, p. 43.
[61] EN, L X, p. 302.
[62] Ibidem, p. 300.
[63] Ibidem, p. 304.
[64] Ibidem, p. 3003.
[65] Ibidem, p.309.
[66] Idem.
[67] Ibidem, p. 311.
[68] Ibidem, p. 307.
[69] Idem.
[70] Ibidem, p. 301.