Um ateu no divã
- Sou ateu. Para
mim, não há nenhuma divindade na origem do Universo. Não há nada semelhante a
um Pai providente e benévolo, interessado na felicidade de homens, mulheres e
crianças deste mundo. O ateísmo ruge nas vísceras de minha alma! Diante da
credulidade generalizada, minha razão ladra ferozmente! Olhemos para o mundo,
doutor. Confrontemos o que se predica de Deus com os fatos. Eu li muito;
entreguei-me aos livros durante longos anos e tive a humildade de reconhecer
que as crenças que acalentei durante os anos de minha juventude estavam
seriamente equivocadas.
- Entendo, senhor,
Isaías. Mas o que não compreendo ainda é o que o trouxe aqui. Por favor, seja
mais claro.
- Oh! Desculpe, doutor.
Não vim aqui para falar de ateísmo. Mas sim do Mistério. A bem da verdade, da
minha inquietação em face do Mistério. Coisa com que convivo desde de tenra
idade, mas que, a esta altura da vida, alcançou o status de questão
fundamental, dentre as inúmeras questões contra as quais meu espírito se
acostumou a se debater.
- De que Mistério
se trata?
- Do da Existência,
doutor. O Mistério de Tudo que há. Não vê? Nosso cérebro evoluiu a ponto de nos
condicionar a buscar padrões, quer em nossa vida interior, quer no mundo. E
explicamos esses padrões por meio de relação de causalidade. Para todo efeito tendemos
a buscar uma causa. Digo isso, doutor, porque li muito... sempre fui muito
intelectualmente inquieto. E ainda o sou, a esta altura da vida. Me aventuro
nos livros como a criança que se entretém com seus brinquedos. O cérebro criou
o homem... aprendi lendo António Damásio... Um livro fascinante, chamado E o
cérebro criou o homem. É porque somos dotados de um cérebro que foi capaz de
produzir um self que estamos aqui
pensando sobre o Mistério. A natureza de nossa consciência é que nos permitiu
produzir literaturas, linguagem, cultura, artes, ciência, enfim... E,
certamente, é graças a ela que podemos nos interrogar sobre o que chamo de
Mistério.
- Então, doutor, é
do Mistério que se trata. Tanto a ciência moderna quanto certas filosofias
advogam que não há razão para estarmos aqui no mundo. A existência é
contingente. Concluo, assim, que não há razão para que eu seja filho do homem e
da mulher que chamo de pais. De um homem e uma mulher que me amaram desde de
que nasci e que me tornaram possíveis as condições adequadas ao meu
desenvolvimento humano. Se não há razão para a minha situação neste mundo,
então devo dizer que tive muita sorte. Mas eu poderia, de acordo com a premissa
‘a existência é contingente’, ter nascido em um meio sócio-familiar muito
carente. Poderia eu, desde o limiar da vida, ter experimentado as agruras da
pobreza, da carência emocional-afetiva, da carência de oportunidades para uma escolarização
plena. Poderia eu estar entre os milhões de miseráveis do capitalismo
predatório. Poderia eu estar entre as crianças que padecem de fome nas áridas
terras da África subsaariana. Mas também poderia eu ter sido beneficiado com um
nascimento projetado para a prosperidade socioeconômica. Eu poderia ter sido
filho de pais abastados em um país como a Noruega, onde os índices de
desenvolvimento humano são os maiores do mundo. Ou PODERIA EU SEQUER TER
NASCIDO!!!
- Perceba ainda,
doutor, como cantava Tim Maia, um nasce pra sofrer enquanto o outro ri.
Parece-me correto admitir que o sofrimento tece as malhas da existência;
provavelmente, todos os seres humanos (também os outros seres vivos) sofrem;
mas também é certo que uns experimentam sofrimento mais atroz que outros. Há
verdade na lição budista, segundo a qual “nascer é sofrer, viver é sofrer e
morrer é sofrer”.
- Até o momento,
falei apenas de uma extremidade do Mistério. Falei do Início, cujas causas o
nosso sentimento, a nossa subjetividade desconhece. Agora, pensemos na outra
extremidade: na morte. Ao longo da vida, vamos desenvolvendo uma consciência
bastante elaborada do mundo. Os bebês já demonstram sinais dela, desde muito
cedo. Mas é quando despertamos para o acontecimento da morte (por exemplo,
quando perdemos um ente querido), que aprendemos com nossos pais que todos com
quem convivemos e a quem amamos irão morrer, deixarão de estar conosco, de
conversar conosco, de rir conosco, de experimentar conosco todas as sensações
da vida. Uma lição dura, dolorosa! De um lado, a contingência da existência; do
outro, a necessidade da morte. E nós, no meio, sempre buscando um sentido...
Estamos fadados a buscar sentidos...
- Como já disse,
doutor, li muito e aprendi bastante. A aprendizagem é uma graça concedida pela
seleção natural. E dela depende nossa sobrevivência. A ciência foi o melhor que
pudemos produzir; e devemos muito à empresa científica. Contudo, o homem comum,
ainda que experimentado nos mais variados discursos científicos, ainda que
convencido de suas verdades, ainda que disposto a admitir nada mais do que
fenômenos, do que o tangível, o mensurável, o experimentável, não é somente
dotado de razão, mas de sentimento, de subjetividade. É esse sentimento de ser,
é essa subjetividade, que o torna único em face dos outros, que o leva a
acreditar na transcendência. Ele é único, insubstituível, mas, como todo ser
humano, sabe que vai morrer. E sabe que os mortos não retornam à vida. Esse
mesmo homem, que se orienta pelos imperativos da razão, sabe que espíritos não
existem, que fantasmas não surgem para nos assombrar, que demônios não se
apossam de nossos corpos. Esse homem rejeita toda e qualquer suposta
manifestação do sobrenatural. Para ele, não há nada mais do que a matéria, do
que a Natureza. Mas esse homem, embora saiba que, morrendo, não poderá mais dar
testemunho de si, embora saiba que não terá mais um corpo e uma consciência,
desconhece a experiência da morte, única! Não se morre duas vezes. Morremos
definitivamente! Quer tenhamos sido estúpidos, intelectuais, pobres, ricos, capitalista
ganancioso, socialista inveterado, da direita ou da esquerda... Morremos na
ignorância sobre o Mistério. Por isso, doutor, devemos ter em conta que estamos
imersos no Mistério. Estamos atolados na ignorância sobre ele. Sim, podemos
aceitar a teoria do Big Bang, podemos aprender sobre teorias alternativas, como
a que ensina que o universo é eterno. Mas, para nós, que não somos
astrofísicos, que não nos ocupamos com cálculos e equações físicas, que muito
ignoramos sobre os métodos empregados na busca das respostas que chegam até nós
(pelos livros, pela imprensa), as explicações científicas não nos livram de
estar visceralmente ligados ao Mistério.
- Sr. Isaías, e o
Mistério te desespera?
- Não, doutor, de
modo algum. Estar demasiadamente consciente dele me fez rever minhas
prioridades. Casei-me com a mulher que ainda tanto amo, tive dois filhos,
netos. Experienciei o amor em sua plenitude, seus prazeres e dissabores. Fui
bem-sucedido em minha profissão, sem nunca ter acumulado riqueza. Mas gozei da
maior delas, certamente. A do amor! Mas também fui intelectualmente rico. A
filosofia me curou! Erigiu-me a alma, depois de algumas quedas!
- Então, o senhor
se sente uma pessoa realizada, não é mesmo?
- É isso. É de
realização pessoal que se trata.
- E quanto aos que
não tiveram o mesmo privilégio? E quanto aos que morrem em tenra idade? E
quanto aos que nasceram em condições sócio-familiares desfavoráveis?
- ... (silêncio)
Aos que sobrevivem, há a ação política, há a luta por uma sociedade mais justa,
há ainda a luta por maior liberdade (pelo menos nas sociedades democráticas
como a nossa). Estamos destinados a viver em comunidades.... e a nos importar
com elas...
- E quanto aos que
não se importam?
- Entre estes, há
os que se importam! A realidade é fundamentalmente contraditória.
- Sim, e a
convivência social se funda em contradições. E nós é que as produzimos...
- Sim. De fato.
Somos nós quem as produzimos. Mas, doutor, a que isso nos levará?
- A que você perceba
que fomos da transcendência à imanência. As questões que o senhor levantou, no
limiar de seu discurso, são, certamente, questões fundamentais, mas que nos
transcendem. É possível que a vida não tenha nenhum sentido transcendente, que
não haja um propósito sobrenatural para estarmos aqui. Mas há sentido imanente
e devemos construí-lo. O senhor me falava de sua realização pessoal, me falava
do amor à sua esposa, a seus filhos e netos. Me falava de sua dedicação aos
livros, da riqueza intelectual que tanto aprecia. O senhor encontrou um sentido
para a sua vida. O sentido não estava em Deus, na esperança da vida eterna. O
sentido reside nos objetos que ama: no amor aos que te amam e no amor a uma
vida dedicada aos livros. O amor e o conhecimento - me parecem - são seus maiores
valores. As pessoas precisam de valores para viver, e o senhor encontrou
naqueles o sentido para a vida.
- Compreendeu bem,
doutor. Não podemos levar o mundo nas costas...
- Nem esmorecer em
face do Mistério, nem fugir a ele! Precisamos conviver... Estamos destinados a
isso...
- É, doutor, esse é
outro problema que me ocupa a alma há anos...