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segunda-feira, 18 de junho de 2012

"A morte não é nada para nós, pois, quando existimos, não existe a morte, e quando existe a morte, não existimos mais." (Epicuro)


                            
                                         Um ateu no divã

 - Doutor, o senhor precisa me ajudar! Estou a uma semana de completar setenta anos de vida. Chego a uma fase da vida em que a morte me parece muito atraente. Eu já posso vê-la; ela acena para mim com um sorriso de quem reencontra um velho amigo que não via há anos!



- Sou ateu. Para mim, não há nenhuma divindade na origem do Universo. Não há nada semelhante a um Pai providente e benévolo, interessado na felicidade de homens, mulheres e crianças deste mundo. O ateísmo ruge nas vísceras de minha alma! Diante da credulidade generalizada, minha razão ladra ferozmente! Olhemos para o mundo, doutor. Confrontemos o que se predica de Deus com os fatos. Eu li muito; entreguei-me aos livros durante longos anos e tive a humildade de reconhecer que as crenças que acalentei durante os anos de minha juventude estavam seriamente equivocadas.



- Entendo, senhor, Isaías. Mas o que não compreendo ainda é o que o trouxe aqui. Por favor, seja mais claro.



- Oh! Desculpe, doutor. Não vim aqui para falar de ateísmo. Mas sim do Mistério. A bem da verdade, da minha inquietação em face do Mistério. Coisa com que convivo desde de tenra idade, mas que, a esta altura da vida, alcançou o status de questão fundamental, dentre as inúmeras questões contra as quais meu espírito se acostumou a se debater.



- De que Mistério se trata?



- Do da Existência, doutor. O Mistério de Tudo que há. Não vê? Nosso cérebro evoluiu a ponto de nos condicionar a buscar padrões, quer em nossa vida interior, quer no mundo. E explicamos esses padrões por meio de relação de causalidade. Para todo efeito tendemos a buscar uma causa. Digo isso, doutor, porque li muito... sempre fui muito intelectualmente inquieto. E ainda o sou, a esta altura da vida. Me aventuro nos livros como a criança que se entretém com seus brinquedos. O cérebro criou o homem... aprendi lendo António Damásio... Um livro fascinante, chamado E o cérebro criou o homem. É porque somos dotados de um cérebro que foi capaz de produzir um self que estamos aqui pensando sobre o Mistério. A natureza de nossa consciência é que nos permitiu produzir literaturas, linguagem, cultura, artes, ciência, enfim... E, certamente, é graças a ela que podemos nos interrogar sobre o que chamo de Mistério.



- Então, doutor, é do Mistério que se trata. Tanto a ciência moderna quanto certas filosofias advogam que não há razão para estarmos aqui no mundo. A existência é contingente. Concluo, assim, que não há razão para que eu seja filho do homem e da mulher que chamo de pais. De um homem e uma mulher que me amaram desde de que nasci e que me tornaram possíveis as condições adequadas ao meu desenvolvimento humano. Se não há razão para a minha situação neste mundo, então devo dizer que tive muita sorte. Mas eu poderia, de acordo com a premissa ‘a existência é contingente’, ter nascido em um meio sócio-familiar muito carente. Poderia eu, desde o limiar da vida, ter experimentado as agruras da pobreza, da carência emocional-afetiva, da carência de oportunidades para uma escolarização plena. Poderia eu estar entre os milhões de miseráveis do capitalismo predatório. Poderia eu estar entre as crianças que padecem de fome nas áridas terras da África subsaariana. Mas também poderia eu ter sido beneficiado com um nascimento projetado para a prosperidade socioeconômica. Eu poderia ter sido filho de pais abastados em um país como a Noruega, onde os índices de desenvolvimento humano são os maiores do mundo. Ou PODERIA EU SEQUER TER NASCIDO!!!



- Perceba ainda, doutor, como cantava Tim Maia, um nasce pra sofrer enquanto o outro ri. Parece-me correto admitir que o sofrimento tece as malhas da existência; provavelmente, todos os seres humanos (também os outros seres vivos) sofrem; mas também é certo que uns experimentam sofrimento mais atroz que outros. Há verdade na lição budista, segundo a qual “nascer é sofrer, viver é sofrer e morrer é sofrer”.



- Até o momento, falei apenas de uma extremidade do Mistério. Falei do Início, cujas causas o nosso sentimento, a nossa subjetividade desconhece. Agora, pensemos na outra extremidade: na morte. Ao longo da vida, vamos desenvolvendo uma consciência bastante elaborada do mundo. Os bebês já demonstram sinais dela, desde muito cedo. Mas é quando despertamos para o acontecimento da morte (por exemplo, quando perdemos um ente querido), que aprendemos com nossos pais que todos com quem convivemos e a quem amamos irão morrer, deixarão de estar conosco, de conversar conosco, de rir conosco, de experimentar conosco todas as sensações da vida. Uma lição dura, dolorosa! De um lado, a contingência da existência; do outro, a necessidade da morte. E nós, no meio, sempre buscando um sentido... Estamos fadados a buscar sentidos...



- Como já disse, doutor, li muito e aprendi bastante. A aprendizagem é uma graça concedida pela seleção natural. E dela depende nossa sobrevivência. A ciência foi o melhor que pudemos produzir; e devemos muito à empresa científica. Contudo, o homem comum, ainda que experimentado nos mais variados discursos científicos, ainda que convencido de suas verdades, ainda que disposto a admitir nada mais do que fenômenos, do que o tangível, o mensurável, o experimentável, não é somente dotado de razão, mas de sentimento, de subjetividade. É esse sentimento de ser, é essa subjetividade, que o torna único em face dos outros, que o leva a acreditar na transcendência. Ele é único, insubstituível, mas, como todo ser humano, sabe que vai morrer. E sabe que os mortos não retornam à vida. Esse mesmo homem, que se orienta pelos imperativos da razão, sabe que espíritos não existem, que fantasmas não surgem para nos assombrar, que demônios não se apossam de nossos corpos. Esse homem rejeita toda e qualquer suposta manifestação do sobrenatural. Para ele, não há nada mais do que a matéria, do que a Natureza. Mas esse homem, embora saiba que, morrendo, não poderá mais dar testemunho de si, embora saiba que não terá mais um corpo e uma consciência, desconhece a experiência da morte, única! Não se morre duas vezes. Morremos definitivamente! Quer tenhamos sido estúpidos, intelectuais, pobres, ricos, capitalista ganancioso, socialista inveterado, da direita ou da esquerda... Morremos na ignorância sobre o Mistério. Por isso, doutor, devemos ter em conta que estamos imersos no Mistério. Estamos atolados na ignorância sobre ele. Sim, podemos aceitar a teoria do Big Bang, podemos aprender sobre teorias alternativas, como a que ensina que o universo é eterno. Mas, para nós, que não somos astrofísicos, que não nos ocupamos com cálculos e equações físicas, que muito ignoramos sobre os métodos empregados na busca das respostas que chegam até nós (pelos livros, pela imprensa), as explicações científicas não nos livram de estar visceralmente ligados ao Mistério.



- Sr. Isaías, e o Mistério te desespera?



- Não, doutor, de modo algum. Estar demasiadamente consciente dele me fez rever minhas prioridades. Casei-me com a mulher que ainda tanto amo, tive dois filhos, netos. Experienciei o amor em sua plenitude, seus prazeres e dissabores. Fui bem-sucedido em minha profissão, sem nunca ter acumulado riqueza. Mas gozei da maior delas, certamente. A do amor! Mas também fui intelectualmente rico. A filosofia me curou! Erigiu-me a alma, depois de algumas quedas!



- Então, o senhor se sente uma pessoa realizada, não é mesmo?



- É isso. É de realização pessoal que se trata.



- E quanto aos que não tiveram o mesmo privilégio? E quanto aos que morrem em tenra idade? E quanto aos que nasceram em condições sócio-familiares desfavoráveis?



- ... (silêncio) Aos que sobrevivem, há a ação política, há a luta por uma sociedade mais justa, há ainda a luta por maior liberdade (pelo menos nas sociedades democráticas como a nossa). Estamos destinados a viver em comunidades.... e a nos importar com elas...



- E quanto aos que não se importam?



- Entre estes, há os que se importam! A realidade é fundamentalmente contraditória.



- Sim, e a convivência social se funda em contradições. E nós é que as produzimos...



- Sim. De fato. Somos nós quem as produzimos. Mas, doutor, a que isso nos levará?



- A que você perceba que fomos da transcendência à imanência. As questões que o senhor levantou, no limiar de seu discurso, são, certamente, questões fundamentais, mas que nos transcendem. É possível que a vida não tenha nenhum sentido transcendente, que não haja um propósito sobrenatural para estarmos aqui. Mas há sentido imanente e devemos construí-lo. O senhor me falava de sua realização pessoal, me falava do amor à sua esposa, a seus filhos e netos. Me falava de sua dedicação aos livros, da riqueza intelectual que tanto aprecia. O senhor encontrou um sentido para a sua vida. O sentido não estava em Deus, na esperança da vida eterna. O sentido reside nos objetos que ama: no amor aos que te amam e no amor a uma vida dedicada aos livros. O amor e o conhecimento - me parecem - são seus maiores valores. As pessoas precisam de valores para viver, e o senhor encontrou naqueles o sentido para a vida.



- Compreendeu bem, doutor. Não podemos levar o mundo nas costas...



- Nem esmorecer em face do Mistério, nem fugir a ele! Precisamos conviver... Estamos destinados a isso...



- É, doutor, esse é outro problema que me ocupa a alma há anos...