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segunda-feira, 29 de abril de 2013

Toda palavra é grávida de silêncio.


                                             



                                                 Indo além do texto


Este texto é mais um testemunho de minha obstinação docente no trabalho com o ensino da leitura. A confecção deste texto assenta no pressuposto de que a eficiência do processo de produção da leitura depende muito da capacidade de o leitor atuar cognitivamente nas camadas de sentidos subjacentes à superfície textual. Ademais, nesta exposição, assumo que o texto é um evento sociocognitivo-interacional complexo para o qual convergem diversas competências e/ou estratégias que são ativadas ou mobilizadas tanto pelo produtor, por ocasião da atualização do seu projeto de dizer, quanto pelo interpretante, por ocasião da interpretação/compreensão dos enunciados então produzidos.
O leitor experiente é aquele suficientemente habilitado a ir além da superfície do texto, no processo de interpretação, que visa à compreensão dos atos de linguagem.
Como eu esteja preocupado com a questão da leitura, limito a noção de texto à modalidade escrita, muito embora ‘texto’ seja toda e qualquer entidade linguística produzida num contexto determinado e preenchendo funções sociocomunicativas determinadas. Todo texto é, assim, uma unidade de comunicação, de modo que os enunciados produzidos na fala nada mais são do que textos.
Tendo em vista o exposto, meu objetivo será mostrar como o leitor pode se tornar mais competente, ao conseguir, com base no processo de inferenciação (processo básico e indispensável a toda prática linguageira) reconhecer pressupostos e produzir subentendidos. Além disso, também será minha preocupação aqui oferecer uma proposta de leitura de alguns trechos do texto de Sponville, em Amor à solidão (2006), orientada por um método que pode ser enunciado com as seguintes formas performativas:

1) Preste atenção nas palavras;
2) Vá além das aparências.

Bem sei que, tal como os formulei, os enunciados não esclarecem muito sobre como deve proceder o leitor. Vou então desenvolver um pouco esses dois comandos metodológicos. Em 1), solicita-se que o leitor atente para certas palavras que ativam processos de inferenciação. Essas palavras podem também estabelecer relações significativas importantes para a compreensão do texto como um todo. Elas podem sugerir associações com outras palavras num mesmo campo semântico. Grosso modo, podem ser palavras que “lançam” o leitor para fora do texto, num movimento cognitivo que, tendo início no texto, envolve a ativação de saberes de ordem vária que ele tem armazenados em sua memória. Muitas palavras servem como marcadores de pressuposição, ou seja, são índices que sinalizam para conteúdos não explícitos nos enunciados, embora intrinsecamente ligados a eles. Acredito que o princípio 1) ficará claro quando da análise dos textos de Sponville.
Em 2), pede-se que o leitor não se prenda à significação produzida na superfície textual. Nesse caso, está implícita a ideia de que, ao falarmos, ao produzir um discurso, instauramos, consciente ou inconscientemente, silêncios. O silêncio é sempre fundante dos sentidos. Não há sentidos sem o silêncio. Pelas palavras vazam silêncios. O silêncio é constitutivo da linguagem, porque a linguagem é insuficiente (ela não diz tudo). Conforme ensina Orlandi, em As formas do silêncio (2007):

“Com efeito, a linguagem é passagem incessante das palavras ao silêncio e do silêncio às palavras (p. 70)”.


Há, portanto, um jogo constante entre palavras e silêncios nas atividades linguísticas. É mister dizer, no entanto, que por silêncio não devemos entender ausência de palavras. O silêncio é onde se pode significar. As palavras transpiram silêncios; o silêncio está nas palavras, e não na ausência delas. Porque a linguagem não diz tudo, ao  se dizer fica sempre algo por ser dito, domínio este do silêncio, do possível, do múltiplo. É aí que o sentido faz sentido.
Para efeito de análise, em minha proposta de leitura dos textos de Sponville, levarei em conta os conceitos de pressuposto e subentendido, que passo a definir doravante. Ambos os conteúdos são implícitos. No entanto, há diferenças entre eles, como veremos.
O pressuposto está envolvido no processo de pressuposição, que é o processo através do qual o interpretante, por meio de inferência, e levando em conta uma base de conhecimento comum (com seu interlocutor), recupera um ou mais conteúdos implícitos, mas inscritos no enunciado. O pressuposto é, portanto, uma informação implícita que, não estando presente no enunciado, é dele dependente. Todo enunciado deve ser visto, nesta perspectiva, como constituído de dois níveis de sentido: o posto, que é o conteúdo proposicional, por exemplo, em “Maria ainda não chegou”, “põe-se” ‘Maria não chegou’; e o pressuposto, que é o conteúdo não explícito, mas inscrito no enunciado – o que significa dizer que pode ser recuperado com base numa palavra que o sinaliza ou o marca (marcador de pressuposição). No enunciado em tela, é a palavra “ainda” que marca a pressuposição, ou seja, que indica o pressuposto, inferido pelo interpretante, com base no enunciado, ‘Maria vai chegar’. Em outros termos, é o “ainda” que me permite inferir ‘Maria vai chegar’ (pressuposto).
Duas observações são fundamentais sobre o pressuposto: em primeiro lugar, o pressuposto é imposto, ou seja, é um conteúdo veiculado pelo enunciado, de modo implícito, evidentemente, para ser aceito. O pressuposto é assumido como inquestionável e, nesse sentido, da sua aceitação depende a continuação do discurso. Disso não se segue que não se possa questioná-lo, mas isso acarretaria sérias consequências para a interação. Num caso extremo, quando os pressupostos não são aceitos, o discurso pode ser interrompido (não há acordo sobre a validade dos pressupostos). Por exemplo, se alguém ousasse dizer algo como “Só a Grécia antiga produziu grandes filósofos”, provavelmente atrairia a objeção do seu interlocutor ao conteúdo pressuposto segundo o qual ‘em nenhum outro lugar se produziram grandes filósofos’. Evidentemente, nesse caso, o locutor não foi bem sucedido, já que pretendeu “impor” um pressuposto frágil, facilmente refutável por quem quer que conheça um pouco sobre a história da filosofia. Claro é que esse é um exemplo extremo; há situações que gerará controvérsias. De qualquer modo, importa entender que todo conteúdo pressuposto é colocado à margem da argumentação, de tal modo não que se  encadeia sobre ele, ou seja, os enunciados subsequentes não se relacionam ao pressuposto. Vejamos um exemplo:
(1) Meu pai ainda não chegou, mas minha mãe está em casa.

Imaginemos que (1) fosse produzido numa situação em que alguém estivesse procurando o meu pai e eu supusesse que essa pessoa poderia querer falar do que se trata com uma pessoa responsável. O pressuposto “contido” em “Meu pai ainda não chegou” não é “afetado” pelo encadeamento por meio de “mas...”. Portanto, ele está à margem do desenvolvimento da argumentação. No caso, eu reconheço que frustrei, inicialmente, o desejo do interlocutor de falar com meu pai, ao comunicar-lhe que ele não está em casa, mas tento evitar sua total frustração procurando sugerir que ele dê o recado à minha mãe, de modo que ela possa transmiti-lo a meu pai.
O subentendido, por outro lado, é particularmente dependente do contexto de comunicação e também supõe uma base de conhecimentos que se supõem partilhados pelos interlocutores. Mas difere fundamentalmente dos pressupostos porquanto é de inteira responsabilidade do interpretante. Aliás, o enunciador pode, inclusive, insistir com o enunciatário que não disse o que ele achou que disse. O enunciador, assim, não assume a responsabilidade pelo que disse (de fato, ele não disse), transferindo-a ao enunciatário. É este que, por inferência, com base no contexto de comunicação e no conhecimento partilhado, produz uma interpretação não prevista ou não desejada pelo enunciador. Veja-se o caso abaixo:

(2) A -  Você conhece esta música?
      B - Não é da minha época.
      A - Está me chamando de velha?

Em (2), a parte “está me chamando de velha?” não é de responsabilidade do enunciador B. Seu enunciado não permite ou não autoriza a suposição do enunciador A. De fato, o enunciador B não disse “você é velha”; foi o enunciador A que assim o inferiu. Ele faz uma interpretação, portanto, não autorizada pelo enunciado como ato de linguagem; no entanto, a interpretação do enunciador A é justificável com base num conjunto de hipóteses que ele formula. Essas hipóteses se baseiam em conhecimentos partilhados e pressupostos na situação de comunicação. Assim, quando pergunta “você conhece esta música?”, há a suposição por parte do interlocutor de que a música é antiga; e realmente é o que ele diz: “não conheço (está implícito), porque não é da minha época”, ou seja, “porque a música é antiga”. O conhecimento partilhado de que o enunciador A é uma pessoa mais velha do que o enunciador B favorece a produção do subentendido por A.
Chamo atenção para o fato de que o fenômeno dos implícitos (como o do pressuposto e do subentendido) ilustra a concepção de linguagem ou discurso como arena de conflitos. De fato, em muitos contextos, a produção de subentendido pode acarretar desentendimentos, discórdias ou mesmo brigas entre pessoas.
Um caso interessante de subentendido é o que envolve uma asserção em que um elemento de informação reconhecido como indiscutivelmente verdadeiro não é pertinente ao contexto, de modo que o interlocutor é levado a inferir a pertinência com base na informação veiculada. Para tanto, ele leva em conta o contexto.

(3)  A – Você gosta do presidente Lula?
       B – Cara, eu gosto do Brasil.

O enunciador A, reconhecendo que a resposta não é pertinente à pergunta, é levado a subentender que o enunciador B não gosta do Lula. É possível que A rejeite a inferência de B, e busque se explicar, o que desencadearia toda uma discussão subsequente sobre se faz algum sentido gostar de um país sem se preocupar em avaliar o trabalho do presidente.
Essa breve exposição e explicação dos fenômenos da pressuposição e do subentendido sugere a sua importância no processo de leitura, porque o torna mais criador e o leitor mais eficiente. Do reconhecimento do leitor dos pressupostos depende o seu sucesso interpretativo durante a atividade de leitura, na medida em que ele consegue atuar cognitivamente nas camadas subjacentes de sentido. Não menos importante, é claro, para o aperfeiçoamento da competência de leitura ou, para ser mais preciso, da competência comunicativa dos enunciadores, é a produção de subentendidos. Mas, nesse último caso, é necessário sensibilidade do enunciador para reconhecer quando a produção do subentendido é desejável e pertinente, sob pena de lhe trazer alguns prejuízos sociocomunicativos.
Tomarei, de agora em diante, para análise os textos de Comte-Sponville, a fim de produzir uma leitura que patenteie não só a importância dos conteúdos pressupostos para o processo mesmo de leitura, como também a importância de superar práticas que prendem o leitor à superfície do texto.

Quantos fogem da solidão, ao contrário, e são capazes de um verdadeiro encontro? Quem não sabe viver consigo, como saberia viver com outrem? Quem não sabe morar com sua própria solidão, como saberia atravessar a dos outros?” (p. 30).

Destaquei as formas “quantos “ e “quem” porque elas sinalizam conteúdos pressupostos. Elas levam o leitor a inferir informações que o enunciador supõe como indiscutíveis. Assim, o uso de “quantos” sugere que há pessoas que fogem da solidão, sugere que são muitas pessoas. A pergunta, como um todo, já prevê a resposta, ou seja, a resposta está pressuposta na pergunta. O enunciador já a pressupõe quando formula a pergunta. E a pergunta visa a suscitar a adesão do leitor à argumentação desenvolvida. A resposta esperada pelo enunciador é alguma coisa como “muitas” e o enunciador, ao formular de tal modo a pergunta, coloca o leitor numa posição de consentimento. O leitor não tem saída. O modelo de mundo proposto e suposto como partilhado leva o leitor a aceitar que “há muitas pessoas que assim se comportam”.
Em seguida, o enunciador, ao formular a pergunta encetada por “quem”, sugere que qualquer pessoa que não consiga viver bem consigo mesma dificilmente conseguirá conviver com alguém. O pressuposto aí é: quem são consegue viver bem consigo não conseguirá conviver com alguém.
O raciocínio elaborado até aqui vale para a última pergunta. Chamo atenção, no entanto, para a ocorrência da palavra “atravessar”, que suscita associação com “travessia” (“fazer a travessia”). Evidentemente, não devemos interpretar “atravessar” no texto com base no Núcleo metadiscursivo (Nmd) (Charaudeau, 2010, p. 35), isto é, com o significado sedimentado, constante e dicionarizado da palavra. Lembro que o sentido ou a significação é construída no discurso. O significado literal não existe. Charaudeau nos ensina sobre como se constrói o Núcleo metadiscursivo, ou seja, o que se chama comumente de “significado literal”:

“Tudo se passa como se o signo nascesse em um primeiro contexto – mas, é possível determinar um primeiro contexto? – e recebesse um primeiro emprego que tornasse esse signo dependente das circunstâncias que presidiram seu nascimento (a expectativa discursiva). Em seguida, este primeiro emprego seria explorado através de uma atividade de abstração que manteria certos componentes do primeiro emprego para reutilizá-los em um segundo emprego que dependeria de novas circunstâncias. A partir da existência desses dois empregos e de sua possível comparação, se construiria uma primeira sedimentação semântica que constituiria um primeiro saber metacultural sobre o funcionamento dos signos: isso nos levaria à determinação de um núcleo metadiscursivo. (p. 38)”

Em resumo, o uso é que vai cristalizando o significado, tornando-o um saber partilhado culturalmente.
Voltando à palavra “atravessar”, claro é que não ativamos o significado sedimentado ‘passar através de’ do domínio cognitivo ‘espacial’. Isso nos leva a operar associações com outras palavras ou expressões pertencentes ao campo semântico de “travessia” ou que guardem com ela alguma afinidade semântica. “Atravessar” ou “travessia” sugere a ideia de ‘movimento’, ‘esforço para ir além’, ‘ultrapassar’. Na travessia, há também o imprevisto, o contato com o desconhecido. A solidão do outro é o desconhecido para mim. E atravessá-la supõe que eu esteja disposto a aceitá-la, a conhecê-la, a aprender a lidar com ela. Portanto, a conviver com ela.
A conclusão que o texto de Sponville encaminha e quer que o leitor aceite é a de que viver bem com a nossa solidão é condição necessária para que nos relacionemos bem com o outro. Considerando-se a hipótese lacaniana segundo a qual o “eu é o lugar do desconhecimento”, o esforço dispensado na busca pelo autoconhecimento é indispensável para a construção de relacionamentos bem sucedidos. A experiência do desconhecido de si é precondição para a experiência do desconhecido do outro. Assim, propõe Sponville que é necessário aceitar a minha solidão, conviver bem com ela, para que eu consiga conviver bem com a solidão do outro.
Devo dizer que, em momentos anteriores, Sponville assume que a solidão é inerente à condição humana. Dirá ele que a solidão “ é o quinhão de todos nós” (p. 30). Na vida humana, segundo ele, “a solidão é a regra”.
Consideremos, finalmente, os dois excertos abaixo:

“(...) o amor, em sua verdade, é solidão”. (p. 30)

“O amor não é o contrário da solidão; é a solidão compartilhada, habitada, iluminada – e às vezes, ensombrecida – pela solidão do outro. O amor  é solidão sempre, não que toda solidão seja amante, longe disso, mas porque todo amor é solidão. (p. 31)”

As duas palavras importantes aqui são “amor” e “solidão”. Não há oposição entre eles. O amor supõe a solidão. Ou ainda, é solidão. E não poderia ser diferente, já que cada um de nós é ser de solidão. É claro que o amor supõe a relação com o outro; o amor pede-nos que aceitemos o outro em sua solidão, ou como solidão em si mesmo. No amor, há o encontro de solidões que desejam proteção mútua.
A palavra “solidão” sugere uma associação com “deserto”, não pela sua aridez, mas por não ser geralmente habitável. Lugar de solidão, portanto. E o amor é o encontro de dois desertos. O drama do amor consiste em desejar unir dois desertos formando um só deserto de solidões.
Chamo atenção para a ocorrência das palavras “habitada”, “compartilhada”, de um lado; e “iluminada” e “ensombrecida”, de outro. Todas são adjetivos que modificam “solidão”, mas a solidão do amor, a solidão que é amor. O amor supõe o milagre do encontro, especialmente se dermos razão a Sponville ao sugerir que a sociedade se estabelece sobre “ o dinheiro, o interesse, as relações de força e poder, o egoísmo e o narcisismo” (p. 32). O amor não é suficiente para construir uma sociedade. Para Sponville, e me parece que com ele está a razão, nas grandes cidades, predominam a indiferença e os egoísmos.
O amor é quando um mora no outro, ou ainda, quando um mora na solidão do outro. É o que nos sugere a palavra “habitada”. Interessante é o contraste sugerido pelas palavras “iluminada” e “ensombrecida”. No amor, a solidão de um pode iluminar a solidão do outro, mas também pode escurecê-la ou embaçá-la, o que supõe a insuficiência do amor para permitir a travessia da solidão do outro. Não raro, o que fica para o amante em sua solidão é o sentimento de não ser devidamente compreendido como ser de solidão pelo amado. Daí a sombra que o amor pode lançar sobre a solidão dos amantes. É a natureza antitética do amor: ele ilumina e ensombra. Ele não resolve completamente a solidão dos amantes, visto que não cabe ao outro resolvê-la. Cada qual deverá confrontar-se consigo mesmo em sua solidão, o que não exclui a partilha, a travessia dos dois pela solidão um do outro. Assim como o amor, a solidão é um latifúndio inalienável. 

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

"Textos são formas de cognição social" (Ingedore Koch)


                          Revisitando Sobre moluscos e homens
                                               
                                                            Parte 1
                                    
                                                     O estudo da paragrafação


  

Você acorda de manhã e diz:
- Mãe, estou com fome!

Você enuncia uma sequência de vocábulos que estão organizados segundo regras das quais você não está consciente, mas que você domina como parte de seu conhecimento linguístico intuitivo, resultado das experiências de aquisição de sua língua materna entre os 3 e 7 anos de vida.
Você também sabe que, ao proferir aquele enunciado, provocará, tendo em conta um contexto adequado, uma reação no seu interlocutor. Se sua mãe está na cozinha, é provável que ela, após ouvir o seu pedido (porque se trata de um pedido, produzido de modo indireto), convide você a sentar-se à mesa. Ela poderia dizer algo como:

- Está na mesa. Tem pão quentinho e suco de laranja.

Ao produzir esse enunciado, sua mãe realiza um ato de convidar – ela convida você a se alimentar e saciar sua fome. Produzindo-o, ela causa uma reação em você. Você se sentará à mesa sem hesitar.
Esse exemplo patenteia o fato de que “todo dizer é um fazer”, de que a língua é uma forma de ação social, é uma atividade intersubjetiva, um lugar de interação onde os participantes, produzindo enunciados, atuam uns sobre os outros e se constituem reciprocamente, não sem o reconhecimento de regras sociointeracionais, não sem a mobilização de estratégias variadas, não sem a manutenção de um contrato comunicativo, etc.. Todo dizer produz um efeito verbal ou não-verbal no outro. E você, que é um ser de linguagem, que é um sujeito social participante de uma comunidade cultural e que vive imerso em sua língua materna o tempo todo, “sabe”, por exemplo, que, se, por ventura, ofender alguém, poderá atrair para si a agressividade dessa pessoa ofendida. Ela pode desferir-lhe um tapa. A ofensa realiza-se, na maioria das vezes, como um ato linguístico. Ofendemos usando a língua. Você sabe disso, mas, provavelmente, nunca refletiu seriamente sobre isso. Porque está imerso na linguagem. Toda reflexão sobre um objeto demanda um distanciamento do sujeito em relação a este objeto. A reflexão só é possível quando nos permitimos olhar a distância o objeto de nosso interesse intelectual.
Nessa concepção de língua/ linguagem como forma de ação social, cada enunciado produzido constitui um ato de fala. Assim, atos de fala são formas de ação social que se realizam na língua e pelo uso da língua. Não vou descer a pormenores, porque o tema deste texto é outro, muito embora seja a concepção de língua aqui apresentada que orientará as reflexões que, doravante, levarei a efeito.
Acreditando ter sido insuficiente a leitura que propus sobre o texto de Rubem Alves – Sobre moluscos e homens – volto a considerá-lo, com vistas a oferecer uma análise mais acurada de aspectos linguístico-discursivos, cuja compreensão é fundamental para o processamento textual ou construção de sentido para o texto. A análise considerará fenômenos discursivos que desbordam os limites do texto, tais como a polifonia e a intertextualidade. O método de que me valerei consiste em ir dos aspectos gerais aos particulares. Cada qual desses aspectos será considerado em seções distintas, a fim de que a atenção do leitor não se dissipe no decorrer da leitura. Espero assim favorecer a concentração da atenção do leitor em cada aspecto considerado. Com isso, não suponho esgotar os fenômenos textuais-discursivos que podem ser analisados no texto. Muito haverá ainda por considerar, evidentemente, mas não tenho a pretensão de dar conta da totalidade discursiva do objeto linguístico em análise.
São, basicamente, dois os meus propósitos:

propósito  patentear ao leitor que toda interpretação está calcada sobre a superfície textual, de modo que a construção do sentido é dependente, em parte, do reconhecimento das pistas textuais fornecidas pelo autor;

propósito tornar claros ao leitor os mecanismos linguístico-discursivos envolvidos no processo de produção/ interpretação textual.

Abaixo, segue o texto de Rubem Alves com as unidades linguísticas envolvidas nos fenômenos, de cuja análise me ocuparei, em negrito. Cabe salientar, contudo, que, aqui, só me ocuparei de um fenômeno linguístico apenas: a estruturação do parágrafo.

Sobre moluscos e homens
Rubem Alves

Piaget, antes de se dedicar aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia pesquisas sobre os moluscos dos lagos da Suiça. Os moluscos são animais fascinantes. Dotados de corpos moles, seriam petiscos deliciosos para os seres vorazes que habitam as profundezas das águas e há muito teriam desaparecido se não fossem dotados de uma inteligência extraordinária. Sua inteligência se revela no artifício que inventaram para não se tornarem comida dos gulosos: constroem conchas duras – e lindas! - que os protegem da fome dos predadores. Ignoro detalhes da biografia de Piaget e não sei o que o levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos humanos. Não sabendo, tive de imaginar. E foi imaginando que pensei que Piaget não mudou o seu foco de interesse. Continuou interessado nos moluscos. Só que passou a concentrar sua atenção num tipo específico de molusco chamado “homem”. Se é que você não sabe, digo-lhe que muito nos parecemos com eles: nós, homens, somos animais de corpo mole, indefesos, soltos numa natureza cheia de predadores. Comparados com os outros animais nossos corpos são totalmente inadequados à luta pela vida. Vejam os animais. Eles dispõem apenas do seu corpo para viver. E o seu corpo lhes basta. Seus corpos são ferramentas maravilhosas: cavam, voam, correm, orientam-se, saltam, cortam, mordem, rasgam, tecem, constroem, nadam, disfarçam-se, comem, reproduzem-se. Nós, se abandonados na natureza apenas com o nosso corpo, teríamos vida muito curta. A natureza nos pregou uma peça: deixou-nos, como herança, um corpo molengão e inadequado que, sozinho, não é capaz de resolver os problemas vitais que temos de enfrentar. Mas, como diz o ditado, “é a necessidade que faz o sapo pular”. E digo: é a necessidade que faz o homem pensar. Da nossa fraqueza surgiu a nossa força, o pensamento. Parece-me, então, que Piaget, provocado pelos moluscos, concluiu que o conhecimento é a concha que construímos a fim de sobreviver. O desenvolvimento do pensamento, mais que um simples processo lógico, desenvolve-se em resposta a desafios vitais. Sem o desafio da vida o pensamento fica a dormir... O pensamento se desenvolve como ferramenta para construirmos as conchas que a natureza não nos deu.
O corpo aprende para viver. É isso que dá sentido ao conhecimento. O que se aprende são ferramentas, possibilidades de poder. O corpo não aprende por aprender. Aprender por aprender é estupidez. Somente os idiotas aprendem coisas para as quais eles não têm uso. Somente os idiotas armazenam na sua memória ferramentas para as quais não têm uso. É o desafio vital que excita o pensamento. E nisso o pensamento se parece com o pênis. Não é por acidente que os escritos bíblicos dão ao ato sexual o nome de “conhecimento”... Sem excitação a inteligência permanece pendente, flácida, inútil, boba, impotente. Alguns há que, diante dessa inteligência flácida, rotulam o aluno de “burrinho”... Não, ele não é burrinho. Ele é inteligente. E sua inteligência se revela precisamente no ato de recusar-se a ficar excitada por algo que não é vital. Ao contrário, quando o objeto a excita, a inteligência se ergue, desejosa de penetrar no objeto que ela deseja possuir.
Os ditos “programas” escolares se baseiam no pressuposto de que os conhecimentos podem ser aprendidos numa ordem lógica predeterminada. Ou seja: ignoram que a aprendizagem só acontece em resposta aos desafios vitais que estão acontecendo no momento ( insisto nessa expressão “no momento” – a vida só acontece “no momento” ) da vida do estudante. Isso explicaria o fracasso das nossas escolas. Explicaria também o sofrimento dos alunos. Explicaria a sua justa recusa em aprender. Explicaria sua alegria ao saber que a professora ficou doente e vai faltar... Recordo a denúncia de Bruno Bettelheim contra a escola: “Fui forçado (!) a estudar o que os professores haviam decidido o que eu deveria aprender – e aprender à sua maneira...” Não há pedagogia ou didática que seja capaz de dar vida a um conhecimento morto. Somente os necrófilos se excitam diante de cadáveres.
Acontece, então, o esquecimento: o supostamente aprendido é esquecido. Não por memória fraca. Esquecido porque a memória é inteligente. A memória não carrega conhecimentos que não fazem sentido e não podem ser usados. Ela funciona como um escorredor de macarrão. Um escorredor de macarrão tem a função de deixar passar o inútil e guardar o util e prazeroso. Se foi esquecido é porque não fazia sentido. Por isso acho inúteis os exames oficiais ( inclusive os vestibulares ) que se fazem para avaliar a qualidade do ensino. Eles produzem resultados mentirosos por serem realizados no momento em que a água ainda não escorreu. Eles só diriam a verdade se fossem feitos muito tempo depois, depois do esquecimento haver feito o seu trabalho. O aprendido é aquilo que fica depois que tudo foi esquecido... Vestibulares: tanto esforço, tanto sofrimento, tanto dinheiro, tanta violência à inteligência... O que sobra no escorredor de macarrão, depois de transcorridos dois meses? O que restou no seu escorredor de macarrão de tudo o que você teve de aprender? Duvido que os professores de cursinhos passem nos vestibulares. Duvido que um professor de português se saia bem em matemática, física, química e biologia... Eles também esqueceram. Duvido que os professores universitários passem nos vestibulares. Eu não passaria. Então, por que essa violência que se faz sobre os estudantes?
Ah! Piaget! Que fizeram com o seu saber? Que fizeram com a sua sabedoria? É preciso que os educadores voltem a aprender com os moluscos...


1. Paragrafação e tópico discursivo        

Como eu disse anteriormente, começarei por considerar aspectos mais gerais. Em face de um texto escrito, o plano mais imediatamente acessível ao leitor é a organização do texto em blocos de sentido, ou seja, em parágrafos. Para os meus propósitos aqui, estou considerando o texto como a unidade de comunicação hierarquicamente superior á frase. Essa delimitação conceitual é necessária porque um único enunciado é um texto, desde que, num contexto determinado, cumpra uma função comunicativa. Esse enunciado pode, inclusive, ser constituído de uma única palavra (ex. fogo! – produzido por alguém que vê um prédio em chamas, alertando pessoas sobre o perigo ou sobre a necessidade de acionar as autoridades competentes). Escusa dizer que o texto está sendo considerado apenas na modalidade escrita, muito embora nós falemos por meio de textos.
Textos escritos longos são, via de regra, organizados em parágrafos (com exceção do gênero textual códice, que não apresenta espaçamento entre um bloco de sentido e outro). Em geral, os parágrafos compõem-se de sucessivos encadeamentos de frases, muito embora possa aparecer, eventualmente, uma única frase como parágrafo.
Importa-nos, contudo, a definição do parágrafo-padrão (Garcia, 2006: 219). O parágrafo-padrão é um todo ou um bloco dotado de sentido, constituído por encadeamentos lógicos de frases, através dos quais se desenvolvem várias ideias, uma das quais constitui a ideia central, à qual se subordinam outras. Essas outras ideias se dizem secundárias e estão associadas à ideia central de modo lógico e coerente.
A importância do parágrafo deve ser considerada a partir de duas perspectivas: a do produtor do texto e do leitor. Do ponto de vista do produtor, a divisão em parágrafos permite ao produtor distribuir suas ideias, estruturando-as de acordo com seus propósitos, segundo relações lógico-semânticas e discursivas estabelecidas à medida que faz avançar o texto. O parágrafo, assim, constitui um todo coeso, no qual a uma ideia principal agrega-se outras ideias secundárias. O parágrafo reflete a estruturação sintático-semântica e discursiva do texto. Do ponto de vista do leitor, o parágrafo facilita a leitura, já que permite ao leitor acompanhar o desenvolvimento do texto em diferentes etapas, conforme previsto pelo planejamento comunicativo (entenda-se interacional-argumentativo) do produtor.
Até aqui disse que todo parágrafo organiza-se em torno de uma ideia central e que a essa ideia se ligam outras ideias de status secundário. Avancemos, então.


1.2. Tópico Discursivo

O tópico discursivo é o assunto principal do texto. É o tema ao qual se prendem as informações do texto. É desejável que ele apareça no limiar do primeiro parágrafo, sendo, com frequência, sinalizado pelo título. Falamos em tópico sentencial (ou frasal) para designar o elemento da frase sobre o qual se informa alguma coisa. Trata-se do elemento que funciona como ponto de partida da informação. O tópico é uma função comunicativa e não sintática; por isso nem sempre coincidirá com o sujeito da frase. O sujeito é uma função sintática. Assim, se por um lado, em (a) sujeito e tópico coincidem, em (b) não há coincidência entre os dois:

(a) Ana enterrou o passarinho no quintal.
(b) o passarinho Ana enterrou no quintal.

Em (a), o constituinte “Ana” é, do ponto de vista sintático, o sujeito da frase (o termo com o qual o verbo concorda); do ponto de vista comunicativo, é o tópico frasal, ou seja, o elemento sobre o qual se informa alguma coisa. Em (b), sucede diferente. O constituinte “o passarinho” é o objeto direto do verbo “enterrar”, que foi deslocado para a posição de tópico frasal.
Disso se depreende que a correlação entre “ser tópico” e “ocupar a primeira posição”. Segundo Liberato et.alii. (2007: 57),

“Essa correlação parece natural: sendo o tópico o ponto de partida cognitivo, isto é, a entidade que o falante tem em mente e sobre a qual dirá alguma coisa, ele deve coincidir com o ponto de partida comunicativo”.


Topicalizar é, portanto, deslocar um constituinte oracional de sua posição canônica para a posição inicial, colocando-o em foco, ou seja, dando-lhe o status de elemento sobre o qual recai a informação da frase.
Voltemos à questão do tópico discursivo.

Devemos entender, portanto, o tópico discursivo como o tema geral ou principal do texto como um todo. Disso não se segue que esse tema não nos aparece subdividido. Ou seja, além do tópico discursivo, há subtópicos. Compreendamos a complexidade da estruturação do parágrafo em tópicos.
Postula-se que todo texto apresenta um tópico discursivo, que corresponde ao assunto do texto. Esse assunto ou tópico discursivo se divide em subtópicos que constituem tópicos de unidades menores – os parágrafos. Cada um dos subtópicos do parágrafo pode ser dividido em tópicos ainda menores. Assim, a arquitetura em tópicos pode ser ilustrada como se segue:
                                                  
                                                    TEXTO

                                              Tópico discursivo

1º parágrafo                                    subtópico 1
                                                      { tópico a
                                                      { tópico b
                                                       { tópico c

Ao contrário do que sugere a ilustração, cada parágrafo pode apresentar mais de um subtópico relacionado ao tópico discursivo. Esses subtópicos se dividem em tópicos menores (passarei a chamá-los de segmentos tópicos, quando da análise dos dados). A importância da compreensão da organização do parágrafo em tópicos pode ser compreendida nas seguintes palavras de Liberato et.alii:

“(...) a compreensão da estrutura de tópicos (...) é um componente essencial da compreensão de um texto. Pode-se dizer que um leitor que não apreendeu o tópico de um texto simplesmente não entendeu o texto. Ele não consegue, por exemplo, responder a pergunta “Sobre o que é esse texto?”.

(p. 56)


O exercício de análise tópica dos parágrafos, para o reconhecimento da estruturação do tema, é profícuo não só aos estudantes-leitores menos experientes, mas também àqueles para os quais ler é uma atividade corriqueira. Nos dois casos, busca-se desenvolver habilidades de reconhecimento do tema do texto, bem como sensibilizá-los para o modo como o escritor esquadrinhou a complexidade do tema ao longo do texto. Ora, um tema complexo demanda um tratamento por estágios, cada qual destinado à consideração de um aspecto do fenômeno abordado. Daí a importância de, primeiramente, delimitar o tema, de fazer um recorte sobre seu domínio de referência, para, posteriormente, abordá-lo discriminando e analisando os diversos aspectos nele implicados.
O leitor, quiçá, tenha percebido que o texto de Rubem Alves encerra um primeiro parágrafo bastante extenso. Talvez, o leitor tenha ficado com a sensação de que seria necessário fazer vários cortes nesse parágrafo. Talvez, devêssemos dividi-lo em dois ou mais. Decerto, podemos dividi-lo, como se verá. De que critérios nos valemos para determinar em que ponto ou momento é necessário abrir um novo parágrafo? Antes de apresentar os três fatores que correspondem às expectativas do leitor no tocante a segmentação do texto em parágrafos, vou trazer à baila o seguinte trecho de Rehfeld (1984. apud. Liberato et.alii. 2007: 68):

“[...] a paragrafação constitui um dos aspectos importantes da estruturação dos textos e, nesse sentido, relaciona-se com o problema da compreensão em leitura: o parágrafo pode servir de pista para a montagem da “paisagem mental” que o leitor constrói do texto. Um leitor pode desenvolver estratégias que o levem a esperar nos limites de parágrafo a ocorrência de certas transições de traços [...] relevantes para a compreensão do texto”.
(p. 1)


Experimentos demonstram que leitores experientes, em face de um texto sem paragrafação, fazem indicação dos pontos em que esperavam haver divisão em parágrafos. Rehfeld conclui que “o parágrafo é uma unidade psicologicamente real” (Liberato et.alii. p. 69).
Há, portanto, três fatores que condicionam a divisão de um texto em parágrafos:

1º fator: mudança de parâmetros;
2º grau de detalhamento das informações
3º tamanho do parágrafo.

O primeiro fator – mudança de parâmetros – consiste na marcação de um parágrafo em virtude de mudanças em traços semânticos, tais como personagem, tempo e lugar na narrativa. Uma quebra de continuidade da narrativa, tendo como eixo um desses parâmetros, implicaria a marcação de novo parágrafo. Assim, um novo personagem que entra em cena teria o potencial de sinalizar a abertura de um novo parágrafo. O mesmo se aplica à mudança de tempo e lugar na narrativa.
O segundo fator – grau de detalhamento das informações – é, particularmente, relevante nos textos argumentativos. Por razões didáticas, o escritor pode distribuir em parágrafos distintos informações detalhadas sobre um dado tópico. Aliás, é o que eu faço aqui. Apresentei os tipos de fatores que condicionam a paragrafação e estou definindo cada qual em parágrafos distintos. Por outro lado, ele pode reunir pormenores diretamente relacionados ao tópico discursivo num mesmo parágrafo. Liberato (2007) observa que ainda não há estudos para determinar a validade das hipóteses levantadas nesse domínio. Pelo menos, àquela altura. Desconheço estudos que desse fenômeno se ocupem. Isso não nos impede de exercitar nossa capacidade de segmentação do texto em parágrafos, um exercício que levaremos a efeito logo.
Finalmente, o terceiro fator – tamanho do parágrafo – relaciona-se à tentativa de o produtor evitar parágrafos excessivamente longos (embora não tenha sido o caso de Rubem Alves). Do mesmo modo, ele tende a evitar parágrafos muito curtos (constituídos de uma ou duas frases apenas). O parágrafo não sendo nem muito extenso nem muito curto deve exibir uma unidade de parâmetros, deve articular adequadamente subtópicos e tópicos hierarquicamente inferiores, de sorte que fiquem coesos e facilitem a construção da coerência, ao menos, local do texto.

1.3. A estruturação em tópicos do primeiro parágrafo do texto de Rubem Alves.

Empreendamos a análise do primeiro parágrafo apenas do texto de Rubem Alves, a fim de compreender sua organização tópica. Estou particularmente interessado na possibilidade de depreensão do tópico discursivo, cujo aparecimento é esperado no primeiro parágrafo.
Precisei reler, com atenção, esse parágrafo, buscando aplicar, em minha análise, os conceitos teóricos que vim apresentando até aqui. De imediato, precisei lançar mão de outros dois conceitos ligados à organização temática do texto, a fim de apreender adequadamente como os subtópicos e seus tópicos estão relacionados. Precisei, então, lançar mão dos conceitos de tema e rema, cuja apreensão se dá no nível da frase. Desde já, informo o leitor de que tema é o equivalente nocional de tópico frasal. Rema, a seu turno, é o que sobra na frase após a identificação do tema. Portanto, o rema é a parte da frase que encerra a informação propriamente dita. Na frase (a), anteriormente citada, “Ana” é o tema; e “enterrou o passarinho no quintal”, o rema. O meu objetivo foi mapear a progressão temática do parágrafo, ou seja, a recorrência dos temas ao longo do texto. Evidentemente, há progressão com tema constante, caso em que o tema, uma vez introduzido, é mantido em enunciados sucessivos do texto. Há progressão linear, caso em que o rema de um enunciado anterior torna-se tema do enunciado seguinte. Há progressão com divisão de tema, caso em que o tema é subdividido em vários temas subsequentes. E, finalmente, há progressão com rema subdividido, caso em que o rema se fragmenta, de modo que cada uma de suas partes torna-se tema de enunciados posteriores. Vejam-se os exemplos abaixo, cada qual representativo de um tipo de progressão  tema-rema:


(c) O cachorro é muito estimado por muitas pessoas. Ele é considerado amigo e companheiro para todas as horas. Sempre disposto a agradar ao seu dono, não economiza na manifestação de alegria. (progressão com tema constante – cachorro).

(d) João beijou Ana. Ana correu para contar para Luíza. Luíza, sabendo do caso, telefonou para Júlia. Júlia espalhou a notícia para toda a vizinhança. O namoro não era mais segredo. (progressão linear – Ana (rema) - Ana (tema) - Luíza (rema) -  Luíza (tema) – Júlia (rema) – Júlia (tema))

(e) A cultura pode ser subdividida em dois tipos: cultura subjetiva e cultura objetiva. A cultura subjetiva encerra o conjunto de conhecimentos, valores, crenças adquiridos pelos membros de uma sociedade em virtude de compartilharem um mesmo código cultural. A cultura objetiva é aquela que se manifesta em forma de artes, música, cinema, teatro, livros, etc.  (progressão com divisão de tema – cultura: cultura subjetiva e cultura objetiva)

(f) Hoje, fui ao shopping e comprei muita coisa pra vestir. Os sapatos ficaram ótimos. Já as calças não serviram. (progressão com rema subdividido – muita coisa: sapatos e calças).

Além dos conceitos de tema-rema, precisei recorrer a uma forma mais clara de abordar a organização dos tópicos. Koch (2006) nos fornece uma abordagem da estruturação dos tópicos mais adequada e clara. Ela mantém a hierarquização dos tópicos. Assume como unidade de nível mais alto o supertópico, que chamarei tópico discursivo. Mantenho a noção de subtópico, nível imediatamente mais baixo em relação ao tópico discursivo, mas incluo o nível dos segmentos tópicos, que são constituintes do subtópico e, portanto, unidades de nível hierárquico inferior ao subtópico. Diversos subtópicos constituirão um quadro tópico.
Esquematicamente, temos o seguinte:

                                       Tópico discursivo

                                              Quadro tópico
     
              Subtópico                    subtópico                    subtópico

           Segmento tópico         segmento tópico           segmento tópico

Vou propor um modo de segmentar o extenso parágrafo primeiro do texto, sem pretender que essa segmentação seja a forma de segmentação (mais) correta. O leitor poderá divergir de mim, nesse tocante, operando outra segmentação. Hesitei, algumas vezes, nesse processo de marcação de parágrafos. Atribuo ao autor um pouco de responsabilidade sobre minha dificuldade inicial, já que ele vai reunindo temas sucessivamente, sem se preocupar com a estruturação em parágrafos dos subtópicos e tópicos. 
Apresento, abaixo, o primeiro parágrafo do texto, com os temas e remas destacados. Os temas aparecem em negrito e os remas sublinhados. É na base do reconhecimento dos temas e remas que proponho determinarmos o tópico discursivo, os quadros tópicos, subtópicos e segmentos tópicos.


Piaget, antes de se dedicar aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia pesquisas sobre os moluscos dos lagos da Suiça. Os moluscos são animais fascinantes. Dotados de corpos moles, [eles] seriam petiscos deliciosos para os seres vorazes que habitam as profundezas das águas e há muito teriam desaparecido se não fossem dotados de uma inteligência extraordinária. Sua inteligência se revela no artifício que inventaram para não se tornarem comida dos gulosos: constroem conchas duras – e lindas! - que os protegem da fome dos predadores. [Eu] Ignoro detalhes da biografia de Piaget e não sei o que o levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos humanos. Não sabendo, [Eu] . E foi imaginando que [Eu] pensei que Piaget não mudou o seu foco de interesse.  [Piaget] Continuou interessado nos moluscos. Só que [Piaget] passou a concentrar sua atenção num tipo específico de molusco chamado “homem”. Se é que você não sabe, [Eu] digo-lhe que muito nos parecemos com eles: nós, homens, somos animais de corpo mole, indefesos, soltos numa natureza cheia de predadores. Comparados com os outros animais nossos corpos são totalmente inadequados à luta pela vida. Vejam os animais. Eles dispõem apenas do seu corpo para viver. E o seu corpo lhes basta. Seus corpos são ferramentas maravilhosas: cavam, voam, correm, orientam-se, saltam, cortam, mordem, rasgam, tecem, constroem, nadam, disfarçam-se, comem, reproduzem-se. Nós, se abandonados na natureza apenas com o nosso corpo, teríamos vida muito curta. A natureza nos pregou uma peça: deixou-nos, como herança, um corpo molengão e inadequado que, sozinho, não é capaz de resolver os problemas vitais que temos de enfrentar. Mas, como diz o ditado, “é a necessidade que faz o sapo pular”. E [Eu] digo: é a necessidade que faz o homem pensar. Da nossa fraqueza surgiu a nossa força, o pensamento. Parece-me, então, que Piaget, provocado pelos moluscos, concluiu que o conhecimento é a concha que construímos a fim de sobreviver. O desenvolvimento do pensamento, mais que um simples processo lógico, desenvolve-se em resposta a desafios vitais. Sem o desafio da vida o pensamento fica a dormir... O pensamento se desenvolve como ferramenta para construirmos as conchas que a natureza não nos deu.

Apesar de eu ter sugerido que o tópico discursivo pode ser depreendido no limiar do primeiro parágrafo, não sucede assim no texto de Rubem Alves. O tópico discursivo, ou seja, o tema do texto não é imediatamente apreendido. O fato de o autor começar seu texto falando do interesse de Piaget pelo comportamento dos moluscos nos mostra que não há interesse de facilitar o caminho do leitor na busca por determinar o Tema (com maiúscula para diferenciá-lo do tema, elemento da frase) do texto. O autor incorpora um pouco de erudição em seu texto, ao lembrar o interesse de Piaget por moluscos. Pode tratar-se de uma informação nova para o leitor, que, talvez, ignorasse o fato de Piaget ter-se ocupado com o estudo dos moluscos. Definitivamente, não é Piaget o tópico discursivo. Mas é tema em vários momentos no texto.
O leitor deve ter observado que há mudanças constantes de tema. Inicia-se com “Piaget”, depois insere-se “moluscos”, que é retomado (eles). Posteriormente, introduz-se “inteligência”, relacionando-a a moluscos e, depois, uma quebra, com a introdução de “Eu ignoro”. Neste trecho, o autor retoma Piaget. Essas rupturas servem-nos de caminhos para que operemos a divisão desse parágrafo em cinco. Proponho que esse parágrafo seja dividido em cinco partes, que darão origem a cinco parágrafos. Vejamos:

1º parágrafo
Piaget, antes de se dedicar aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia pesquisas sobre os moluscos dos lagos da Suiça. Os moluscos são animais fascinantes. Dotados de corpos moles, [eles] seriam petiscos deliciosos para os seres vorazes que habitam as profundezas das águas e há muito teriam desaparecido se não fossem dotados de uma inteligência extraordinária. Sua inteligência se revela no artifício que inventaram para não se tornarem comida dos gulosos: constroem conchas duras – e lindas! - que os protegem da fome dos predadores.

2º parágrafo
[Eu] Ignoro detalhes da biografia de Piaget e não sei o que o levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos humanos. Não sabendo, [Eu]. E foi imaginando que [Eu] pensei que Piaget não mudou o seu foco de interesse[Piaget] Continuou interessado nos moluscos. Só que [Piaget] passou a concentrar sua atenção num tipo específico de molusco chamado “homem”.

3º parágrafo
Se é que você não sabe, [Eu] digo-lhe que muito nos parecemos com eles: nós, homens, somos animais de corpo mole, indefesos, soltos numa natureza cheia de predadores. Comparados com os outros animais nossos corpos são totalmente inadequados à luta pela vida. Vejam os animais. Eles dispõem apenas do seu corpo para viver. E o seu corpo lhes basta. Seus corpos são ferramentas maravilhosas: cavam, voam, correm, orientam-se, saltam, cortam, mordem, rasgam, tecem, constroem, nadam, disfarçam-se, comem, reproduzem-se. Nós, se abandonados na natureza apenas com o nosso corpo, teríamos vida muito curta.

4º parágrafo
A natureza nos pregou uma peça: deixou-nos, como herança, um corpo molengão e inadequado que, sozinho, não é capaz de resolver os problemas vitais que temos de enfrentar. Mas, como diz o ditado, “é a necessidade que faz o sapo pular”. E [Eu] digo: é a necessidade que faz o homem pensar. Da nossa fraqueza surgiu a nossa força, o pensamento.

5º parágrafo
Parece-me, então, que Piaget, provocado pelos moluscos, concluiu que o conhecimento é a concha que construímos a fim de sobreviver. O desenvolvimento do pensamento, mais que um simples processo lógico, desenvolve-se em resposta a desafios vitais. Sem o desafio da vida o pensamento fica a dormir... O pensamento se desenvolve como ferramenta para construirmos as conchas que a natureza não nos deu.

Essa divisão tem a vantagem de marcar as rupturas temáticas. A determinação da estrutura tópica de cada um dos parágrafos será ilustrada como se segue:
                                             

                                                1º parágrafo
                                               
                                                  Subtópico 1
                                         O interesse de Piaget por molusco

                                                     Subtópico 2
                                                        Moluscos
      Segmentos tópicos – a condição de molusco; a inteligência dos moluscos

                                                     
                                                   2º parágrafo

                                                            Subtópico
                                        O interesse de Piaget pelo estudo
                                             do comportamento humano

Segmentos tópicos – a ignorância do autor sobre detalhes da biografia de Piaget;
a sugestão do autor sobre a razão por que Piaget abandonou seu interesse pelos moluscos

                                                     
                                                      3º parágrafo
                                                       
                                                        Subtópico 1
                                                    Condição humana
Segmento tópico - inadequação de nossos corpos à luta pela sobrevivência
                                                       
                                                       Subtópico 2
                                                 Condição dos animais
  Segmento tópico  - a suficiência do corpo dos animais; a adequação do corpo dos animais à luta pela sobrevivência

                                                       4º parágrafo
                                                       
                                                       Subtópico
                                        O legado da natureza ao homem
       Segmentos tópicos – a necessidade de pensar; surgimento do pensamento


                                                     5º parágrafo
                                                    
                                                      Subtópico 1
                                             A conclusão de Piaget
                       Segmento tópico – a finalidade do conhecimento
                                                    
                                                    Subtópico 2
                                      O desenvolvimento do pensamento
                    Segmento tópico – a finalidade do pensamento
                                               

Falta ainda inserir nessa análise da configuração dos subtópicos e segmentos tópicos dos parágrafos a noção de quadro tópico. Como articulá-la à análise? A inserção dessa noção não é obrigatória. Ela só se demonstra necessária, particularmente na interação face-a-face, quando se verifica uma grande quantidade de subtópicos numa prática discursiva. Na interação face-a-face, isso é muito comum.  Numa mesma conversa, podemos falar sobre vários assuntos, cada qual deles constituiria um subtópico. Um quadro tópico, por definição, deve abranger um conjunto de subtópicos. Sua aplicação na análise que empreendi não é necessária, ainda que possível; mas apenas nos casos em que se verificam dois subtópicos.
Ainda não conseguimos determinar o tópico discursivo, ou seja, o assunto do texto. Após o percurso analítico empreendido aqui sobre a configuração tópica dos parágrafos, como determinar o tópico discursivo? Vimos que ele não figura explicitamente em nenhum dos parágrafos. O título não dá indicação alguma sobre o Tema do texto. Claro é que moluscos e seres humanos, enquanto seres naturais, vão constituir subtópicos do Tema, mas não são propriamente o Tema.  Quando prosseguimos na leitura, percebemos que o autor se preocupa com uma questão recorrente, a saber, a do conhecimento. Mais precisamente, com o modo como nós, seres humanos, adquirimos ou construímos conhecimento. Seu olhar sobre a questão é pedagógico, pois que ele está interessado também em discutir o modo como, tradicionalmente, as autoridades e profissionais envolvidos na Educação avaliam o conhecimento dos estudantes.
Creio ser o tema deste texto – seu tópico discursivo – a construção do conhecimento como resposta aos desafios da vida. Note-se que o tema não se confunde com a tese do autor. O autor busca defender seu ponto de vista (tese) sobre um tema. Ele produziu seu texto para enfocar o problema da construção do conhecimento que seja útil à vida dos seres humanos e esforçou-se por nos mostrar que essa construção, essa elaboração depende da excitação do pensamento. Assim, os homens, pelo pensamento, produzem conhecimentos para responder às suas necessidades de sobrevivência. O autor, então, se preocupa em defender a tese de que a prática pedagógica, na escola, deve favorecer a construção pelo estudante do conhecimento que seja útil à vida, que responda aos desafios que ela lhe coloca.
A dificuldade de determinar o tópico discursivo poderia explicar a provável diversidade de respostas dos alunos quando lhes perguntássemos qual é o tema do texto. Não deveríamos, nós professores, ficar surpresos se os alunos divergissem quando tentassem explicitar o assunto do texto. Alguns poderiam dizer que o texto trata do interesse de Piaget pelo estudo dos moluscos; outros que o texto enfoca o interesse de Piaget pelos homens; outros mais poderiam dizer que trata das dificuldades de sobrevivência humana; outros ainda que trata da natureza ou dos animais, etc. Eles, certamente, não estariam errados, porque, afinal, o texto realmente aborda todos esses temas. É como se os estudantes tivessem oferecidos apenas os pedaços de vidro que compõem o vitral, que é o tópico discursivo ou assunto do texto.