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segunda-feira, 18 de julho de 2011

maturidade é vida refletida (BAR)


             



                Sobre tempo e maturidade
                             Lições de experiência

Há alguns dias, o programa Profissão Repórter, da Rede Globo, exibiu reportagens sobre o abuso dos jovens no consumo de álcool. A equipe de repórteres visou a investigar as razões que levam jovens homens e mulheres ao consumo excessivo de álcool.


Este texto propõe uma discussão sobre a maturidade. Aproveito a ocasião em que noto a constância de textos que versam sobre tempo (sempre fugaz, na modernidade) e envelhecimento, que se acham nos blogs de duas queridas amigas, para oferecer aos meus leitores a minha contribuição a esse assunto intrigante. É necessário, entretanto, que eu possa contar com a paciência e boa disposição de meus leitores para acompanhar o desenvolvimento destas novas reflexões que não se darão sem o devido aparato conceitual e teórico da filosofia. Assim, pretendo fugir aos lugares-comuns e evitar, a todo custo, um tratamento superficial do assunto. Aprendi com a filosofia, que, para Deleuze, é trabalho espiritual sobre conceitos, ou seja, filosofia é criação contínua de conceitos, uma lição basilar: toda e qualquer discussão não pode acontecer sem que antes os interlocutores estejam de acordo a respeito da definição dos termos sobre os quais se situará o discurso. Assim, o rigor para a demarcação dos limites conceituais é imprescindível. Por exemplo, devemos definir o que é maturidade, ou seja, devemos estar de acordo a respeito dos limites de sua significação no discurso que dele se ocupará.
Quando pensamos em maturidade, somos levados a pensar, por associação, em conceitos como tempo, movimento, experiência e ser. Evidentemente, poderíamos pensar em idade, desenvolvimento, jovialidade, velhice, etc. Mas eu escolhi, para os meus propósitos, aqueles quatro primeiros conceitos, na base dos quais desenvolverei minhas reflexões sobre a maturidade. Peço que o leitor acompanhe com atenção o percurso de meus pensamentos, sem desviá-la.
Comecemos, pois, por definir maturidade. O dicionário é nosso recurso imediato. Na Enciclopédia e Dicionário Koogan Houassis, em seu formato digital, lemos, no verbete maturidade, o que se segue:

1. Estado das coisas ou pessoas que atingiram completo desenvolvimento; 2. período de vida compreendido entre juventude e velhice.

Como se pode ver, o dicionário serve-nos bem como um expediente norteador, mas não como fonte de definição cabal. É preciso, então, podar um pouco o sentido. Em primeiro lugar, “desenvolvimento”, como atributo de maturidade, não será pensado como ‘crescimento orgânico’. Em segundo lugar, os conceitos de ‘juventude’ e ‘velhice’, embora estejam intrinsecamente relacionados ao de maturidade, segundo o senso-comum, não serão tratados como peremptórios. Em outras palavras, juventude e velhice não servem de parâmetros para determinar a maturidade. A experiência nos dá testemunho de que há entre os mais velhos aqueles que se comportam de modo ‘imaturo’ e entre os mais jovens, não raro, pode-se perceber comportamentos que não hesitaríamos em considerar ‘maduros’. Para evitar polarizações do tipo ‘juventude’ e ‘velhice’, penso ser mais adequado associar maturidade à experiência. A maturidade se define pela quantidade e qualidade das experiências nas quais um indivíduo se envolve ao longo de sua vida. A idade aqui é apenas um fato representativo de seu desenvolvimento orgânico. Convém distinguir idade biológica de idade psicológica. A idade biológica representa o número de anos vividos e se manifesta pelas marcas que lega ao nosso corpo. A idade psicológica representa, a seu turno, as diversas formas como experimentamos espiritualmente o mundo e como reagimos a ele, o interpretamos, e com ele nos relacionamos em termos de valores morais, crenças, atitudes e conhecimentos. Nesse sentido, quanto mais maduros mais propensos a pensar sobre o mundo ficamos. É claro que não o pensamos sem que entre na conta de nossas meditações uma grande dose de preconceitos, que acumulamos ao longo de nossa vida. Por conseguinte, maturidade não significa maior possibilidade de alcançar alguma verdade sobre o mundo, de dizer, sem o risco de nos equivocar, como, realmente, funciona esse mundo.
Antes de me deter na breve elucidação dos conceitos de tempo, movimento, experiência e ser, para cuja tarefa destinarei seções neste texto, a fim de facilitar o já dispendioso trabalho interpretativo do leitor, gostaria de trazer à cena o conceito de mundo, tal como pensado em Filosofia em Comum (2008), da filósofa Márcia Tiburi. À página 82, no capítulo Fora de mim, a autora inicia seu texto perguntando-se se “pensa no mundo” e “pensa na vida”, ao que acrescentará:

“É muito comum pensar – assim, quase como ao se pensar em nada – no mundo, na vida. O mundo é um nome muito pequeno para o muito grande, o estranho que me aninha, está fora de mim. Depende, entretanto, de mim, que o penso para ser pensado, mas não para ser. É dele que me assusto. Com o conceito de mundo se define que os limites do meu pensamento fechado em si foram superados”
(grifo meu)

Atente para o reconhecimento da autora de que a extensão significativa do conceito de mundo é inapreensível, embora esse mundo tenha de ser pensado. Embora ele esteja fora de nós, ao pensá-lo, o interiorizamos. O pensamento nos ancora no mundo, pelo pensamento nos relacionamos com o mundo. Nossa experiência com o mundo se dá, fundamentalmente, pelo pensamento. Assim, escreve a autora mais adiante:

“O mundo é o que apenas posso pensar, não posso tê-lo, posso vê-lo, mas apenas em parte. Chamo mundo muitas vezes o que não sei. Mundo é o nome de uma eterna novidade da qual falava Drummond.”

Ao pensar o mundo como algo estranho e exterior ao ‘eu’, a autora crer ser o mundo uma “ideia metafísica” que o nega. À página 83, escreve:

“O mundo é o conjunto do desconhecido e do conhecido. Melhor chamá-lo “meu mundo”. (...) Podemos traduzi-lo por ordem. Meu mundo pode ser a ordem que eu consigo atribuir às coisas”.

Há que considerar dois aspectos importantes nesta reflexão sobre o conceito de mundo: a) nossa relação com o mundo se dá fundamentalmente pela interpretação, ou pelo pensamento interpretante (este pensamento é responsável por conferir-lhe certa ordem, sem a qual ele seria um agregado amorfo de coisas); b) dada a impossibilidade de pensá-lo em sua totalidade, sempre escapável, cabe-nos construir nossos pequenos mundos. Disso se segue que a possibilidade mesma de nos situarmos no mundo depende de nossa capacidade de forjar nossos pequenos mundos. O “eu” é  que permite alcançar o mundo enquanto objeto pensado.
À mesma página, escreve a autora:

“Eu poderia fazer uma lista de tudo o que compõem o meu mundo, mas a lista só teria sentido pelo conceito de lista, pela possibilidade de forjá-la como um agregado de coisas que fazem sentido entre si”.

Por que o conceito de mundo nos interessa aqui? Porque o mundo não deve confundir-se com a totalidade dos espaços geográficos em que habitamos, ou com o planeta. O mundo deve constituir os espaços que configuram nossas experiências, nas dimensões social, cultural, política (que envolve, entre outras coisas,  as formas de poder e as relações entre os cidadãos e a sociedade), familiar, afetiva e pessoal. Nossa maturidade é alcançada nas inúmeras experiências desenvolvidas em nossos pequenos “mundos” (um todo ordenado dotado, portanto, de sentido) em confronto com o grandioso e ilimitável mundo que, embora nos seja estranho (porque fora de nós) nos abriga (ou nos rejeita). Lembro que as experiências dos homens no mundo se dão através tanto do corpo quanto da alma. O homem é um ser corporal e espiritualmente engajado no mundo.
Caminhemos um pouco mais.

1.     Breves considerações
a) Tempo

Não intento me delongar nessa matéria. Todavia, convém dar a saber o que alguns filósofos disseram sobre o tempo. Escolherei três dos mais famosos filósofos gregos, a saber, Platão,  Aristóteles e Plotino. Os pensamentos desses filósofos nos bastarão, para que as teses abaixo anunciadas sejam sustentáveis. Vejamo-las:

1ª tese: O tempo não é uma força exterior que tem o poder de atuar sobre nós;
2ª tese: O tempo é movimento que se apreende na alma;

3ª tese: O tempo se relaciona às experiências em que nós nos envolvemos ao longo da vida.

Comecemos, pois, observando que os gregos tinham dois termos para designar o tempo. Um significava “época da vida”, “tempo de vida”, “duração da vida” ou, simplesmente, “vida” ou “destino”. O significado originário, todavia, era o de “força de vida”. Em muitos autores gregos, tempo designava “duração de uma vida individual”. Posteriormente, essa palavra foi usada para designar “eternidade”. É o que fez Platão ao designar o tempo como a “imagem móvel da eternidade”. Platão, aliás, embora tendesse a reduzir a ideia de tempo a algo atemporal, tratou-lhe de fazer corresponder uma realidade imediata, a saber, o movimento circular das esferas celestes.
É, todavia, em Aristóteles, que encontraremos uma contribuição mais significativa a respeito do que é o tempo. Aqui avulta o conceito de movimento. Por movimento, os gregos entendiam: a) toda mudança qualitativa de uma coisa ou corpo (por exemplo, a transformação de uma semente em árvore); b) toda mudança de lugar de um objeto ou pessoa (por exemplo, o deslocamento de uma pessoa de uma calçada a outra); c) toda mudança quantitativa de uma coisa ou corpo (por exemplo, um corpo que se divide em pedaços) d) e finalmente, toda a mudança que se verifica na geração ou depravação das coisas e das pessoas (por exemplo, o nascimento e o perecimento dos homens).
Em suma, segundo Marilena Chauí, em O que é ideologia (2006),

“Movimento, portanto, significa para um grego toda e qualquer alteração de uma realidade, seja ela qual for”.
(p. 9)

Coube a Aristóteles observar que tempo e movimento eram dados juntamente à percepção. Eram indissociáveis. Portanto, tempo é algo relacionado a movimento. Claro é que tempo implica os conceitos de agora, antes e depois. Assim, em Aristóteles, o tempo será “a medida do movimento segundo o antes e o depois”. O tempo não se confunde com o número pelo qual o medimos, mas é uma espécie de número. O tempo é a medida do movimento, já que este serve para medir o tempo, mas também pelo tempo medimos o movimento.
Aristóteles tende a considerar o tempo de um ponto de vista relativista, de sorte que assumirá ser a alma a “realidade numerante” do tempo. Ou seja, para ele, a alma é a consciência interna do tempo. É Plotino que desenvolverá a ideia segundo a qual o tempo é uma realidade da alma e esta é responsável por medir o tempo.
É interessante notar que, não raro, quando aplicamos o espírito numa atividade que nos exige maior poder de concentração, dizemos, ao cabo dela, que perdemos a noção do tempo. É que o tempo da alma surge da inteligência, ou seja, de seu fundo. Para Plotino, o tempo repousa no ser, pois que ele é “o prolongamento sucessivo da vida da alma”.
Não estou interessado em pensar o tempo como uma realidade da física, como estudado na teoria da relatividade, por exemplo, não só porque não disponho de conhecimento suficiente para tanto, mas também porque o tempo, nesse recorte teórico, é representado como algo mais distante da realidade humana. O meu intento é pensar o tempo como realidade intrinsecamente relacionada à vida humana. Disso se segue a ideia de que a experiência de tempo é já prevista na estrutura da alma humana. E, como devemos estar a par dos limites conceituais, estou falando de alma no sentido aristotélico. Assim, alma é o princípio do pensamento. É a forma de um corpo  natural organizado, cuja vida está em potência. A alma anima o corpo.
O que é a experiência de tempo? Primeiramente, precisamos entender o que é experiência. Em sentido lato, experiência é uma forma de conhecimento espontâneo e vivido, adquirido ao longo da vida. Relacionada à vida corrente, a experiência compreende as diversas formas de se relacionar com os outros e com o mundo pela cognição. Nossas experiências são experiências sóciocognitivas que são marcadas temporalmente.
Nas experiências, o mundo é interiorizado por nós. Nelas atuamos com a alma e com o corpo, interagimos. A linguagem é o fundamento de nossas experiências, já que ela fornece-nos as categorias que nos permitem organizá-las. A alma, assim, é responsável por dois movimentos: um interior, em que se volta sobre si mesma e em que age sobre si mesma; e um exterior, em que se expande e atua sobre o outro e o mundo.
A experiência imediata de tempo que temos é a passagem do dia para a noite. Experienciamos o tempo quando conscientes de que a claridade de um dia dá lugar a escuridão de uma noite, após a qual se seguirá uma nova claridade. Claridade e escuridão se alternam. É claro que esse movimento, da claridade à escuridão pode nos escapar à consciência, quando, por exemplo, estamos numa sala de cinema. Assistindo a um filme, não nos damos conta de que o tempo nos foge, e, não raro, experimentamos um assombro em face da consciência da rapidez com que o tempo passou, quando deixamos a sala de cinema. Por isso, não se pode pensar o tempo, sem relacioná-lo à alma.
Outra experiência de tempo é a que nos é dada pelo movimento de nosso corpo, na acepção de desenvolvimento. É quando nos olhamos através do espelho e notamos que crescemos, envelhecemos. Ou quando, pela memória, reconhecemos que o ‘eu’ de hoje não é o ‘mesmo eu’ de há cinco ou dez anos. Aqui também, muita vez, o tempo nos escapa, caso em que, por exemplo, depois de muitos anos sem ver um amigo, o reencontramos e nos surpreendemos como ele está mudado. E exclamamos: Como o tempo passa!
Assim como há um tempo interno à alma, assim também há um tempo interno ao corpo, ou ao organismo. Nosso corpo se desenvolve num espaço de tempo através do qual se modificará.  Passado esse tempo, nosso corpo começará a apresentar deficiências, deformidades, enfim, sinais de seu perecimento.
Se, por um lado, não podemos, conforme tenho argumentado, pensar o tempo como algo exterior que exerce um poder/ uma influência sobre nós; por outro lado, é ele sim uma realidade à qual estamos intimamente enredados. Não é o tempo que atua em lugar de nós, somos nós que atuamos, nas experiências que se dão ao longo do tempo.
É nas experiências que se desenvolve o processo de maturação de um indivíduo. Quanto mais ricas humanamente forem essas experiências tanto mais fecunda será sua maturidade. Durante esse processo, um indivíduo põe em prática sua capacidade de discriminar o que lhe parece certo e o que lhe parece errado; assim, os valores são escolhidos e fixados. É nas experiências que ele desenvolverá também maior autonomia e liberdade de escolhas. Autonomia e maior liberdade de escolhas são consequências da maturidade.
A maturidade decorre do confronto, na experiência, entre os nossos valores morais e os dos outros. Experiências são formas de relação. Experiências são formas de nos relacionar com o mundo, de percebê-lo, compreendê-lo, questioná-lo, negá-lo, modificá-lo. Experiências são espaços temporalmente demarcados em que delimitamos nossa subjetividade, marcamos nossa distinção em face dos outros. Aliás, o eu e o outro se constroem reciprocamente pela palavra, nas diversas experiências de que participam.
Tenho experiência ao tocar um estojo, ao abri-lo e fechá-lo. A experiência de escrita é a própria relação de que sou agente, ao lançar mão de uma caneta, de um papel para nele grafar frases sintática e semanticamente organizadas para atender minhas necessidades de comunicação. Nessa experiencia, estão envolvidos o ‘eu’, a lapiseira e o papel, bem como todas as manifestações verbais que nele estampo. Essa experiência, no seu aspecto mais imediato, inclui um agente (escritor), um instrumento (caneta) e um ‘lugar’ (papel) onde a atividade acontece.

b) Ser

Heidegger considerava a questão sobre o ser uma questão fundamental, portanto, extremamente importante. Filósofos houve que a consideravam um pseudoproblema. Por vezes, identificou-se o ser com o nada, de modo que o nada era senão o fundamento do ser.
Gosto da passagem em que o filósofo Caio Prado Jr., em O que é filosofia (2008), escreve a respeito dessa questão, que encontra em Parmênides um terreno fecundo:
“[ o tema central da filosofia] (...) [era o] SER de Parmênides, que é afinal, e sem embargo da tempestade verborrágica que a Metafísica desencadearia em torno do assunto, não é senão a expressão geral  e formal da operação mental com que se qualificam e identificam as feições da Natureza, e com isso se caracterizam, determinam e fixam”
(p. 36)

Como se vê, o problema do ser situasse no plano conceitual, mais precisamente, na teoria do conhecimento. Não se trata de ser como substância individual, percebida pelos sentidos. Mas remontemos, antes de prosseguirmos, à sua origem linguística.
O que é o ser senão o verbo de cópula? Ou seja, é o verbo que liga um sujeito a um atributo (predicativo), como na frase “Pedro é feliz”. Acontece, contudo, que, originariamente, o verbo “ser” podia ser usado no sentido de “existir”, de modo que poderíamos dizer simplesmente “Pedro é” (Pedro existe). É este sentido existencial que permitirá falar do SER como o que existe ou o “ente”. Por questões de vocabulário, que não vou pormenorizar aqui, introduziu-se a distinção entre “ser” e “ente”. O ser passou a ser entendido como algo mais perfeito e geral que faz com que o ente seja. Ser combinou, assim, dois sentidos: um relacionado à essência e outro relacionado à existência. A confusão fez com que alguns pensassem o ser como algo mais geral e abstrato, que nada tinha que ver com uma substância determinada.
Logo o conceito de ser passou a designar um transcendental, que está absorvido em todas as manifestações do ser e também acima deste.
Na Grécia, os pré-socráticos se perguntaram sobre “o ser das coisas”, ou seja, sobre a realidade última, que constituem as coisas, bem como as qualidades destas que nos são acessíveis aos sentidos. Dá-se, pela operação do pensamento, o ocultamento do ser. Como se disse comumente, o “ser” acha-se escondido na aparência. A aparência se comparava ao devir, ao movimento. O ser, a seu turno, ao uno, ao real. O ser, assim, só se determina pela razão, não pela experiência. A experiência nos dá a mudança.
Vou-me limitar, embora eu tivesse fonte suficiente para levar adiante essa discussão, a dizer que o ser foi estudado em contraste com outros conceitos, tais como o nada, a aparência, o pensar, o devir, o valor, o dever ser, o ter, e o sentido.
Quero insistir em que a pergunta pelo ser, tal como colocada pelos pré-socráticos, dizia respeito ao “o que verdadeiramente existe?” ou “o que verdadeiramente há”. Para se chegar ao ser, é preciso superar a aparência.
Vou me cingir a comentar a relação contrastante entre ser e nada; ser e aparência, ser e pensar; e ser e sentido.
Ser e nada foram confrontados de modo a fazer ver a diferença entre o ser e o não-ser. Dialeticamente, a diferença se exprime na fórmula “um é a negação do outro”. O ser é o não-nada; o nada é o não-ser. Todavia, por vezes, o nada foi considerado o fundamento do ser. Cai por terra assim a diferenciação primeira, baseada na operação de negação.
Ora, seu eu sou no instante em que me sinto presente, já que o ser é consciência e esta é sempre presente, o futuro é o não-ser, ou o nada. Quero dizer que não há algo como o futuro, uma espécie de compartimento de experiências que ainda não são.
Ser e aparência se definem pela relação recíproca. Um é em relação ao outro. É possível, entretanto, entender que o ser não está oculto por trás da aparência e que ela abrange a totalidade do ser. Nesse sentido, o ser está presente e é imediatamente acessível pelos sentidos. O ser é aparente, evidente, um dado imediato.
Rechaço essa concepção que reduz o ser à aparência e considero o ser como uma realidade escapável, oculta, abstrata, que se insinua na linguagem (não em todas as suas formas) e, especialmente, na poesia e suas formas líricas. Também o ser pode ser investigado, perscrutado pela psicanálise. Por que não identificá-lo com o inconsciente freudiano?
Ser e pensar, embora distintos, podem ser isomórficos (ou seja, podem apresentar a mesma forma). Por poderem apresentar a mesma forma, podem ser considerados correspondentes. Parmênides entendia que o ser é o mesmo que pensar. O pensar é apreensão direta do que é.
Ser e sentido suscita as seguintes questões: a) o ser tem sentido ou não?; b) o sentido é parte da dimensão do ser?; c) o ser pode ser reduzido ao sentido? Só há, a rigor, contraste entre ambos se o ser for uma potencialidade do sentido.
Para um espírito lírico, a questão do ser é bastante fecunda, especialmente se a consideramos sob a perspectiva existencialista, tal como desenvolvida por Sartre, que considerará as diferentes formas de ser, tais como o ser-em-si e o ser para-si. Há também o ser fora de si, ou seja, ser que se dirige para a alteridade. A alteridade é, por um lado, o ser-outro, ou seja, a transformação de uma realidade em outra. Assim, trata-se do ser que é infiel a si mesmo. Mas pode ser também entendida como a ampliação do ser por meio de novas experiências. Aqui, o âmbito de atuação do ser se expande, através das inúmeras experiências. A constituição do ser depende da expansão do âmbito de suas experiências.
O ser para-si, oposto ao ser em-si (pura imanência), é ser de transcendência. O para-si não deve ser entendido como ser que se volta reflexivamente sobre si mesmo, desligando-se completamente do mundo. Isso o identificaria ao ser em-si. O para-si exprime a intimidade e a possibilidade mesma de fazer-se presente a si mesmo e de transcender a si mesmo. O ser para-si, para alguns filósofos, ganha concretude existencial. O homem combina o ser fora de si (que existe pela relação com a alteridade) e o ser para si, que transcende a si mesmo. O homem é um ser de autotranscendência.


Conclusão

Por vezes, ingenuamente, somos levados a acreditar que o tempo, em si, é agente que atua sobre nossa vida, que tem o poder de produzir nossa maturidade. No entanto, podemos envelhecer e não alcançar a maturidade que nos permite debruçarmo-nos reflexivamente sobre a vida, a fim de ponderar nossos erros e acertos, nossas escolhas, nossas omissões. Porque maturidade depende não só da quantidade, mas, mormente, da qualidade das experiências em que nós nos envolvemos. Quanto maior for nossa abertura anímica para a existência, quanto maior for nossa profundidade nas experiências de mundo, maior será a dimensão de nossa maturidade.
Isso explica o fato de que podemos não amadurecer, mesmo já contando muitos anos de vida no rosto. Por quê? Porque persistimos em experienciar a vida superficialmente, em nos envolver com pessoas esvaziadas, superficiais. Porque nos prendemos a experiências empobrecidas. Nossa maturidade depende de experiências nas quais as interações com o outro contribuam para o nossa elevação intelectual, emocional, espiritual, etc.
Lembro-me de quando decidi pela ruptura com relacionamentos que, na adolescência eram favoráveis, mas que, com o desenvolvimento da maturidade, deixaram de sê-lo. Foi nessa ruptura que abri terrenos para o florescimento e enobrecimento de minha maturidade. Mas, é bom que se entenda: o homem é um ser inacabado, a maturidade é um processo, um vir a ser, e como tal, não terá fim, enquanto houver tempo e vida.





















domingo, 24 de abril de 2011

"A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa" (BAR)

Herança natural



O Tempo

A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa. Quando se vê, já são seis horas! Quando se vê, já é sexta-feira! Quando se vê, já é natal... Quando se vê, já terminou o ano... Quando se vê perdemos o amor da nossa vida. Quando se vê passaram 50 anos! Agora é tarde demais para ser reprovado... Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio. Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas... Seguraria o amor que está a minha frente e diria que eu o amo... E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo. Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz. A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará. 

Mário Quintana


É uma páscoa para ser esquecida: meu avozinho está hospitalizado, entregue à negligência médica num hospital público.  E, a princípio, estará destinado a uma emergência durante uma semana. É bem conhecida de meus leitores, especialmente dos mais obstinados, a minha hipersensibilidade às flutuações e à fragilidade da vida. É na crise que ela aflora ainda mais; a vida não me passa despercebida, nem eu passarei por ela sem apreendê-la.
Em O capelão do Diabo (livro que constitui uma coletânea de ensaios cujos temas variam da clonagem à educação), Richard Dawkins, um dos mais brilhantes cientistas da atualidade, defensor inveterado do darwinismo, escreveu, à página 29, num ensaio intitulado O capelão do Diabo:

“Por razões absolutamente darwinianas, a evolução nos legou um cérebro que se avolumou até o ponto de se tornar capaz de compreender a sua própria origem, de deplorar suas implicações morais e de lutar contra elas. Toda vez que usamos a contracepção, demonstramos que o cérebro pode contrariar os desígnios darwinianos. Se, como minha esposa me sugeriu, os genes egoístas são “doutores Frankenstein”, e a totalidade da vida, a sua criatura, somente nós podemos completar a fábula voltando-nos contra nossos criadores”.
(p. 29)

Com Dawkins, aprendemos que a seleção natural é um longo processo destruidor e cruel, que se caracteriza por tentativas e erros. Mas, é claro, a natureza não conhece a moral; não há ‘certo’ e ‘errado’ no domínio natural. Portanto, longe de dizer que a natureza é má ou cruel; ela é, apenas, indiferente, porque cega para o sofrimento das espécies. Felizmente, essa mesma seleção legou ao seres humanos a capacidade de discernimento, de compreensão; e sua consciência é capaz de voltar-se para si mesma; afinal, nós somos os únicos seres capazes de ter autoconsciência.
A despeito dessas vantagens de que somos herdeiros, não rompemos, de modo algum, o cordão umbilical que nos une à condição de animal. Somos, com Dawkins, “animais humanos”. Donde se conclui que nossa vida é intrinsecamente natural, ou seja, somos complexos físico-orgânicos integrantes da natureza. Não escapamos e nem escaparemos, malgrado os avanços da ciência em pesquisas genéticas, ao envelhecimento, à doença e à morte.
Você, leitor, que está, agora, lendo este texto, não pode evitar esta verdade: somos todos filhos da natureza, de seu grandioso e espetacular processo de seleção e, portanto, somos seres produzidos, ou nascidos – se assim o preferir – para a morte.
Não podendo escapar a essa herança e uma vez arremessados à existência sem poder escolher as condições em que querem nascer e em que irão viver, os homens devem fazer a si mesmos, tendo em conta as pressões ou condições socioculturais, evidentemente. Eles se lançam como projeto, consoante ensina Sartre. A finitude da existência, a brevidade e fragilidade da vida é o que a torna irresistivelmente atraente e valorosa.
A insensibilidade da natureza, a sua impassibilidade são compensadas pela capacidade dada aos homens de se emocionarem. Os homens são seres de emoção. Emoção é movimento. Existir é movimento. É exteriorização. É expansão para fora. É “ex-istire”, ou seja, sair de si, abrir-se ao ser. Em suma, existir é estar em relação com. O que mais desejam os homens, independentemente de sua origem social e cultural, senão a felicidade? Acontece que a felicidade assume muitas formas e não existe senão no domínio social (que é cultural e econômico).
O gozo da felicidade está, para os artistas, em seu próprio trabalho artístico; para os médicos, no empenho em salvar vidas; para os pais, na felicidade dos próprios filhos. E eu poderia seguir enumerando o que a felicidade é para diversas classes de pessoas. E certamente eu haveria de enumerar muitas formas de felicidade. No entanto, parece-me existir uma felicidade comum a todos os homens e ela se chama AMOR.
Não vou, contudo, me ocupar desse tema novamente. Às vezes, convém deixar que o AMOR vá, como naquela canção de Ana Carolina (“será que é tão difícil aceitar o amor...”). Quando nos detemos no AMOR, ele tende a nos escapar; basta olhar para ele, que se torna indefinível ou imperscrutável. Melhor é experienciá-lo nas suas entranhas; lá onde o seu ser reside e onde morre o sofrimento, e a dor se cala. Diante do AMOR, é melhor, às vezes, silenciar, calar-se, apenas para ouvir o seu silêncio, que nos abrange; para admirar o seu espetáculo que nos contém, nos absorve.
A fragilidade da vida é compensada pela força do AMOR. Que seria desta vida sem ele? Que seria de nós se, em face das tragédias desta existência árdua, não pudéssemos gozar do conforto nos longos e acolhedores braços do AMOR? O AMOR é a-natural, num sentido específico: ele nega a morte para sonhar com a eternidade. E me dirão, é claro: não há eternidade na natureza; com efeito, a vida natural é incompatível com a eternidade, que é delírio, que é herança de nossa imaginação – outra capacidade especificamente humana. A eternidade é filha da linguagem, do desejo. Mas também o AMOR, que se estende para além do tempo, que não se cerceia, que não se comprime; que contém e não pode ser totalmente contido. A existência mesma não contém completamente o AMOR, pois que ele lhe escapa, transbordando-lhe.
Há sinais de AMOR na natureza? Sim, algumas espécies nos dão testemunho dele, quando do cuidado com suas crias. O AMOR resiste à indiferença da natureza, anima-nos em face da inevitabilidade da morte, encoraja-nos diante da astúcia do fado – este arqueiro cego, que nos lançou à vida nus e indefesos, mas dotados da faculdade de conhecimento: aqui está outra fonte de felicidade que dignifica o humano e faz dele um “erro” aspirante, uma contra-força no domínio tirânico de sua herança natural.
A capacidade para a linguagem, em sua forma escrita, foi algo que me aconteceu; minha sensibilidade à linguagem, às diversas formas de expressão lírica de que minha alma é fonte abundante foi algo que me aconteceu. Se tive alguma participação no aperfeiçoamento dessa capacidade, ela só foi possível graças às pessoas que me propiciaram as condições necessárias para tanto. A minha vida, há muito, tem estado imersa na linguagem; vida e linguagem, em mim, são indissociáveis. É no seio da linguagem que me desnudo: aí eu me encontro mergulhado no mistério do AMOR. Ainda que haja discrepância entre as representações de mundo de que sou responsável, ao usar a linguagem para emocionar, fertilizar, e as experiências nas quais todo o meu ser está imerso, essa discrepância não chegará a macular a decência que há em minhas palavras. Se aí também podemos ver as mãos habilidosas da natureza, devemos reconhecer-lhe seu poder grandioso: é dela que nasce o espírito.