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terça-feira, 10 de março de 2015

"O fato de viver deve ser colocado como uma espécie de conhecimento" (Aristóteles)


                                 


                   A Substância para Aristóteles e Spinoza
                         Um roteiro para estudos


Intróito

A filosofia, por si mesma e considerada em sua estrutura, é o ser na sua verdade, o ser que se eleva à manifestação da verdade, o ser que é verdade e expressão. A verdade pertence ao ser por identidade; e por identidade também o discurso sobre a verdade do ser pertence ao ser. A filosofia é o ser que se expressa em sua verdade. Fica, assim, assentada a inseparabilidade e identidade entre a filosofia e o ser. A palavra metafísica expressa essa inseparabilidade ou identidade entre a filosofia e o ser. Em decorrência disso, a filosofia é original e fundamentalmente metafísica.

Em princípio, previno o leitor de que este estudo não contempla o cotejo da metafísica aristotélica com a metafísica spinozista no que elas têm de contribuição para pensar a questão da substância. Meu intento é mais modesto. Busco oferecer um itinerário que, elucidando o modo como esses dois pensadores se ocuparam da questão da substância, motive e oriente estudos que visem a oferecer análises comparativas, que tornem patentes os pontos de aproximação e distanciamento entre os dois pensamentos no enquadramento da questão da substância.
Apresso-me, então, em iniciar o trabalho.

1. A ciência metafísica

De Aristóteles ( 384- 322 a.C) herdamos a distinção das ciências em três grandes domínios: a) ciências teoréticas, que visam ao saber por si mesmo; b) ciências práticas, que buscam o saber por meio do qual se possa alcançar a perfeição moral; e c) ciências poiéticas, que têm em vista o saber cuja finalidade é produzir determinados objetos.
Aristóteles atribuiu mais dignidade e valor às primeiras, chamadas teoréticas. Essas ciências se constituem da metafísica, da física (em cujo âmbito se insere a psicologia) e da matemática. É consabido, todavia, que o termo metafísica não é criação aristotélica. Reza a tradição que o termo surge por ocasião da edição das obras de Aristóteles feita por Andônico de Rodes, no século I. a.C.
Aristóteles usava, normalmente, a expressão filosofia primeira ou mesmo teologia em contraste com a filosofia segunda ou física. A posteridade veio a consagrar o termo metafísica, por ser considerado mais significativo.
Consoante sugere a estrutura mórfica do vocábulo meta-física (‘para além da física’), a metafísica aristotélica se ocupa das realidades que estão acima das físicas, das realidades suprafísicas, ou transfísicas.


1.2. O domínio da metafísica

Pertencem ao âmbito da metafísica aristotélica quatro tipos de preocupações: a) a metafísica se ocupa das causas e dos princípios primeiros ou supremos; b) investiga o ser enquanto ser; c) indaga a substância; d) investiga a questão de Deus e a substância supra-sensível.
A investigação metafísica teve seus precursores. Antes de Aristóteles, toda a tradição que se estende de Tales de Mileto a Platão desenvolveu um pensamento filosófico com preocupações, em última instância, metafísicas. Todos os filósofos monistas da natureza – os pré-socráticos – estavam preocupados em determinar uma causa ou princípio primeiro (a arché); e para alguns deles, essa causa ou princípio era de ordem metafísica;  claramente, nada tinha de “físico” ou “material”.  Entre aqueles, Parmênides, por exemplo, identificou esse princípio com o ser, o puro ser, que é condição de possibilidade da existência dos entes e de suas determinações. Platão, por seu turno, desenvolveu uma ontologia das Ideias muito elaborada, chamando ao mundo das Ideias ou das Formas Perfeitas a verdadeira realidade.
Podemos, desde já, numa primeira aproximação relativamente à problemática sobre a qual estas reflexões pretendem lançar alguma luz, definir a ousía ou a  substância como o ser fundamental ou o ser verdadeiro. Todavia, essa definição de substância, que figura aqui para situar o leitor na problemática que constitui o escopo deste texto, pressupõe a superação do monismo eleático e o compromisso com a demonstração de que existem muitos seres, diversas formas e diversos gêneros de realidade. Uma breve digressão se faz aqui necessária. Por gênero entende-se o conceito que engloba outros conceitos, relativamente aos quais possui maior extensão; por espécie, ao contrário, entende-se o termo que relativamente ao gênero possui menor extensão e, consequentemente, maior compreensão.
Urge enfatizar que a investigação sobre as causas e princípios primeiros conduz, necessariamente, à determinação de Deus. Deus é, pois, a causa e o princípio primeiro, por excelência. Por isso, a pesquisa aitiológica, isto é, a das primeiras causas e princípios desemboca estruturalmente na teologia.
Para Aristóteles, a questão “o que é a substância?” implica a questão “que tipos de substâncias existem?”. Aristóteles estava preocupado em determinar se existem somente as substâncias sensíveis ou se também existem as supra-sensíveis ou divinas. É daí que se segue o problema teológico.
É necessário compreender por que Aristóteles usou o termo teologia como equivalente de metafísica. Ora, quando se consideram as três primeiras preocupações recobertas pelo âmbito da metafísica, não parece difícil inferir que elas encaminham, necessariamente, a investigação para a dimensão teológica. A pesquisa sobre Deus não constitui apenas um momento da pesquisa metafísica, mas é o momento essencial e definitivo. Se não houvesse uma substância supra-sensível, afirma Aristóteles, não existiria a metafísica.
Em suma, a metafísica é a ciência livre por excelência, porquanto encontra em si mesma o seu fim.


2. As quatro causas

Nesta seção, cumpre examinar quais são as causas primeiras de que se ocupa a metafísica.
Aristóteles afirmou que essas causas devem ser, necessariamente, finitas em número. Quanto ao mundo do devir, elas se reduzem a quatro causas: a) causa formal; b) causa material; c) causa eficiente; d) causa final. Vale notar que “causa” ou “princípio”, para Aristóteles, significa o que funda, o que condiciona, o que estrutura.
A causa formal se identifica com a essência (forma, em Aristóteles, é sinônimo de essência); a causa material é a matéria. Essas duas causas constituem todas as coisas. Ou seja, todas as coisas são constituídas de forma e matéria. As causas formal e material explicam as coisas sob o ponto de vista de sua estaticidade, mas não as explicam quando as consideramos dinamicamente. Essas causas não dão conta das questões “como nasceu?”, “quem a gerou?”, “por que se desenvolve e cresce?”. Por isso, a resposta a essas questões suscita a necessidade de recorrer à causa eficiente ou motora e à causa final, o telos.
Abaixo, apresenta-se, para cada uma das quatro causas, a sua respectiva definição:

1) causa formal: constitui a forma ou essência das coisas. Por exemplo, é a alma nos animais, a estrutura para os diferentes objetos de arte. Em linguagem, quando se fala na forma de uma sentença está-se referindo à sua estrutura interna, que resulta da articulação de suas unidades constitutivas.

2) causa material: é aquilo de que uma coisa é feita. Por exemplo, a matéria dos animais é a carne e os ossos; a matéria da esfera de vidro é o vidro, e assim por diante.

3) causa eficiente ou motora: é aquilo de que provêm a mudança e o movimento das coisas. Os pais são a causa eficiente dos filhos. A vontade é a causa eficiente de várias ações humanas.

De passagem, noto que, por movimento, Aristóteles não entendia apenas a transladação, mas também as transformações sofridas pelas coisas. O movimento era compreendido, portanto, também em termos de alteração, aumento e diminuição, geração e corrupção das coisas. Reale (2007) entende que a geração e a corrupção são recobertas pela categoria da mudança relativamente à substância. Mudança seria o termo genérico, e o movimento seria o termo para designar a alteração, o aumento/ diminuição e a translação. Sem pretender nos deter em controvérsia, com base no que nos ensina Chauí (2006, p.9), pode-se dizer que, para os gregos, entre os quais se situa, naturalmente, Aristóteles, movimento significa toda e qualquer alteração de uma realidade. Movimento envolve mudança, que pode ser qualitativa (uma semente que se torna árvore);  quantitativa (um corpo que aumenta de volume ou diminui); de lugar (a trajetória de uma flecha); ou em termos de geração ou corrupção (nascimento e perecimento das coisas e dos homens).

4) causa final: constitui o fim ou o escopo das coisas e das ações; é aquilo em função do qual uma coisa é ou advém. É o bem de cada coisa.

O ser e o devir das coisas exigem, em geral, essas quatro causas. Essas causas são imediatas; mas, além delas, são necessárias as causas ulteriores que se encontram no movimento dos céus, e a causa suprema do Primeiro Motor Imóvel.


3. Os múltiplos sentidos do ser

“O ser se diz em múltiplos sentidos”, escreveu Aristóteles. Sabemos, com base no que foi exposto, que a metafísica se define, para Aristóteles, como a ciência do ser ou ainda do “ser enquanto ser”. Faz-se necessário compreender, doravante, o que é o ser e o que é “o ser enquanto ser” no contexto do pensamento aristotélico.

O que é, pois, o ser?

Essa questão nos conduz de volta a Parmênides, especificamente, e ao eleatismo, de modo geral. Parmênides via o ser como absolutamente idêntico a si mesmo. Do ser só se pode dizer que ele é. Por isso, o ser se definia de modo unívoco, ou seja, o ser se entendia num único sentido. A univocidade do ser implica também a sua unidade.
O eleatismo, pelo trabalho de Zenão, Melisso e a Escola de Mégara, consagrou-se como uma doutrina do Ser-Uno que compreendia a totalidade do real. A compreensão no Ser-Uno da totalidade da realidade acarretou a imobilização do Todo. Todo movimento estava, portanto, excluído do Ser.
Aristóteles, por sua vez, identificou o erro que se acha na raiz da doutrina eleática. A partir daí, ele formulou seu princípio que consiste na originária multiplicidade de sentidos do ser. Eis a base de toda a sua ontologia. O ser não tem um sentido unívoco, mas polívoco. Veja-se, então, como Aristóteles, caracteriza o ser:

a) o ser não pode ser entendido univocamente, à maneira dos eleatas. Também não pode ser entendido como gênero transcendente ou universal substancial, tal como o compreenderam os platônicos;

b) o ser expressa originariamente uma multiplicidade de significados;

c) o ser não é um gênero ou uma espécie. É um conceito transgenérico, além de trans-específico, vale dizer, é mais amplo e mais específico do que o gênero e a espécie;

d) o ser não deixa de ter uma unidade. Todavia, essa unidade não é nem de espécie nem de gênero. O ser exprime diversos significados – já o dissemos -, mas todos os significados estão em uma relação precisa com um princípio idêntico ou uma realidade idêntica. Assim, as diversas coisas das quais dizemos “são” exprimem sentidos diferentes de ser, mas ao mesmo tempo todas implicam uma referência a algo que é uno;

e) Finalmente, esse algo que é uno é a substância.

Daí se conclui que aquilo que unifica o ser é a substância. A unidade dos vários significados de ser decorre do fato de serem expressos em relação à substância.
A ontologia aristotélica, conquanto se ocupe do estabelecimento e distinção dos vários significados do ser, não se reduz à fenomenologia, visto que todos os diferentes significados do ser implicam a referência fundamental à substância.
Vamos, agora, esclarecer o significado da fórmula “ser enquanto ser”. Ela não significa, na interpretação de Reale (2007, p. 36), que se toma o ser puro abstrato, unívoco, o ser em geral. Ora, uma vez que Aristóteles não pensava o ser como uma espécie, tampouco como gênero, “ser enquanto ser” só pode expressar a própria multiplicidade de significados de ser e a relação que há entre eles e que faz com que cada um deles seja ser. “O ser enquanto ser” é a substância e tudo mais que, de modos múltiplos, se refere à substância.
Antes de atacarmos a questão da substância, que até o momento foi apenas esboçada, convém passar em revista a tábua aristotélica dos significados do ser e sua estrutura.


3.1. A tábua aristotélica dos significados do ser

O que me cumpre apresentar, doravante, é quantos e quais são os significados do ser, estruturados por Aristóteles em uma “tábua”. Atente-se, portanto, para o elenco dos significados do ser, que se elucidam abaixo:

1) o ser se diz no sentido acidental, isto é, como ser acidental ou casual. Por exemplo, quando dizemos “o homem é poeta”, o “ser poeta” exprime um puro acidente, um puro acontecer.

2) Opondo-se ao ser acidental, há o ser por si. Nesse caso, indica-se o que é por si, isto é, essencialmente.
A substância é um exemplo de ens per se, segundo Aristóteles. Mas, além desta, todas as categorias - a substância, a qualidade, a quantidade, a relação, o agir, a paixão ou o padecer, o onde e o quando – são consideradas ser por si.

3) o ser é o verdadeiro e se contrapõe ao não-ser, que é falso. Trata-se de um ser que podemos chamar de “lógico”. O ser verdadeiro indica o ser do juízo verdadeiro, ao passo que o não-ser como falso sinaliza o ser do juízo falso. Esse ser é puramente mental; portanto, só subsiste na razão.

4) Por fim, há também o significado de ser enquanto potência e ato.

Segundo Japiassú & Danilo (2008, p. 222), potência se define em oposição recíproca a ato. A potência é o estado virtual de ser. O ato, por seu turno, é o fato de ser plenamente realizado. Assim, um ser em ato é plenamente realizado; por outro lado, um ser em potência encontra-se em estado de devir, de possibilidade de realizar-se, em estado de potencialidade. Por exemplo, a planta é o ato da semente (a semente que se realizou); por seu turno, a semente indica que a planta está em potência, porque, enquanto semente, ela, a planta, ainda não se realizou.
Vejamos mais um exemplo. Quem vê é tanto quem pode ver, quem tem a potência para ver, ou seja, a capacidade de ver, embora possa estar momentaneamente com os olhos fechados, quanto quem vê em ato,  quem realiza a capacidade da visão. É preciso assinalar que, segundo Aristóteles, o ser segundo a potência e o ser segundo o ato é extensivo a todos os significados de ser, já contemplados. Pode-se, assim, haver um ser acidental em potência ou em ato; um ser de um juízo verdadeiro ou falso em potência ou em ato, e assim por diante.
Resumidamente, são os seguintes os significados de ser, ordenados do mais forte ao mais fraco:

1) ser segundo as diferentes figuras de categoria;

2) ser segundo o ato e a potência;

3) ser como verdadeiro e falso;

4) ser como acidente ou ser fortuito.

Há que distinguir também os significados do não-ser, que são três:

1) não-ser segundo as diferentes figuras de categorias;

2) não-ser como potência;

3) não-ser como falso.

O ser acidental não apresenta um correlato não-ser, dado que, segundo Aristóteles, é por si “algo próximo ao não-ser” (Metafísica, E2, 1026 b21).
Totalizam dez as figuras de categorias propostas por Aristóteles. Elas não apresentam significados idênticos de ser, mas veiculam significados diferentes de ser.


3.2. As figuras de categorias

Segundo Aristóteles, as figuras de categorias (ou simplesmente categorias) se dizem ser não em sentido unívoco. No entanto, seus múltiplos significados supõem a referência a uma única e mesma coisa. Essa única e mesma coisa, a última realidade, é a substância.
Todavia, a questão sobre o que são as figuras de categorias continua em aberto. É necessário, portanto, esclarecê-la. Para tanto, retome-se a ideia de que o ser se diz em múltiplos sentidos. São múltiplos os significados de ser. A diversidade do significados de ser, no entanto, funda-se numa unidade.
As categorias também precisam apoiar-se sobre uma unidade, a despeito de serem diversos os seus significados, pois, senão, como poderiam reunir-se num único grupo? O que torna possível inseri-las num único grupo é o fato de elas apresentarem os significados primeiros e fundamentais do ser. Elas representam os significados nos quais se divide originalmente o ser; são elas as supremas divisões do ser. Aristóteles dirá que são os supremos gêneros do ser.
A verdade, no entanto, é que permanece insolúvel o problema que consiste em saber como Aristóteles chegou até as categorias e a sua tábua. É provável que o processo de dedução através do qual ele pôde propô-las tenha se servido das pesquisas lógicas, linguísticas e, sobretudo, da análise fenomenológica e ontológica. Mas esta é uma questão que não nos ocupará aqui.
Segue-se, pois, a tábua das categorias:

1.     Substância ou essência
2.     Qualidade
3.     Quantidade
4.     Relação
5.     Ação ou agir
6.     Paixão ou padecer
7.     Lugar ou onde
8.     Quando ou tempo
9.     Ter
10.     jazer

Excederia os limites desta exposição o pretender esclarecê-las uma a uma. Será bastante pontuar que todos os significados do ser pressupõem o ser das categorias. Assim, por exemplo, o ato e a potência assumem tantos significados diferentes quantos forem as categorias. Disso resulta que há uma forma de ser em ato e uma forma de ser em potência segundo a substância; uma forma de ser em ato e uma forma de ser em potência, segundo a qualidade, e assim sucessivamente.
Não menos importante é observar que as várias categorias não se equiparam em nível. Há uma diferença radical entre a substância e as demais categorias. Todos os significados de ser pressupõem o ser das categorias; e o ser das categorias depende completamente da primeira categoria, a saber, a da substância.
Está pavimentado, pois, o terreno em que podemos situar e explorar o problema, complexo, da substância. Passarei a tratar dele na próxima seção.


4. O problema da substância

Com vistas a lograr um entendimento o mais satisfatório possível da questão dos significados da substância na metafísica aristotélica, convém começar recuperando o que os seus predecessores disseram a respeito dela. Alguns viram a matéria sensível como a única substância. Platão, a seu turno, viu nos entes supra-sensíveis a verdadeira substância. O senso comum, em contrapartida, identificou a substância com as coisas concretas.
Aristóteles se debruçou sobre a questão com um propósito bem claro. Para ele, tratava-se de determinar que substâncias existem. Existiriam somente as sensíveis, como pretendia a solução dos naturalistas? Ou também existiriam as supra-sensíveis, como pretendiam os platônicos? É esta a questão última da metafísica aristotélica. É esta a questão por excelência que ocupou o Estagirita. Ele precisou empreender um retorno a Platão com vistas a decidir da validade ou não da doutrina dos Princípios e da teoria das Ideias.
Entanto, de imediato, o problema que ocupou Aristóteles era o da substância em geral. Que é a substância em geral? – esta é a questão que está na raiz de sua usiologia. Seria a matéria? Seria a forma? Seria o sínolo? (o sínolo é o composto de matéria e de forma).
Fique claro que só é possível determinar se só existe o sensível, ou se, além deste, existe o supra-sensível, depois que se resolver a questão sobre o que é a ousía em geral. E a razão disso é a seguinte. Se o exame encaminhasse a conclusão de que a ousía só é a matéria ou o sínolo de matéria e forma, seguir-se-ia daí que a questão da substância supra-sensível se esvaeceria. Mas, se a conclusão a que se chegasse fosse a de que a ousía é uma coisa diversa da matéria, então a questão do supra-sensível se imporia necessariamente.
Para tratar da substância em geral, Aristóteles partiu do que é incontestável: a existência das substâncias sensíveis. Estas são as únicas substâncias que conhecemos. Portanto, antes de decidir se existe uma substância supra-sensível e de tratar da substância em geral, era preciso tomar como ponto de partida a existência inegável das substâncias sensíveis.


4.1. A substância em geral

Tendo em vista tudo que se expôs acerca do sistema aristotélico, pode-se inferir que o Estagirita entendia a ousía segundo três significados diversos: 1) a forma; 2) a matéria e 3) o sínolo.
Cumpre-me dilucidar esses três significados à luz dos quais se compreende a substância em geral.

1) A substância é, num sentido, a forma.

A forma, para Aristóteles, não é extrínseca às coisas, não é a figura exterior das coisas. É a natureza íntima das coisas, é a essência íntima delas. Quando definimos as coisas, referimo-nos à sua forma ou essência, de modo que as coisas são cognoscíveis na sua essência.

2) A substância é, dentro de certos limites, a matéria de que se constituem as coisas.

É evidente que a matéria sem a forma seria indeterminada, mas, se a alma racional (a forma) não enformasse (dar forma a) um corpo (matéria), não haveria um homem. É nesse sentido que a matéria é também fundamental para a constituição das coisas e, portanto, é, num sentido restrito, a substância. Aristóteles dirá que a matéria só é substância num sentido impróprio.

3) O sínolo, que é o composto de forma e de matéria, é também substância

Ora, todas as coisas sensíveis podem ser consideradas na sua forma, na sua matéria, no seu todo. Mas é tão somente a título diverso que Aristóteles considera a forma, a matéria e o sínolo substância.

A substância em geral, para ele, deve apresentar as cinco características definidoras reunidas a seguir:

1ª) A substância não é inerente a outra coisa e não se predica de outra coisa, mas é substrato de inerência e de predicação de todos os outros modos de ser;

2ª) A substância só pode ser um ente que subsiste por si ou separadamente do resto e que é dotado de uma forma de subsistência autônoma;

3ª) Só é substância o que é algo determinado. Não é substância um atributo geral, nem algo universal ou abstrato;

4ª) A substância deve ser algo intrinsecamente unitário. Não deve ser constituída de partes, nem deve ser uma multiplicidade não-ordenada.

5ª) Finalmente, só é substância o que é em ato.

Um exame que pretendesse determinar qual dos três significados, anteriormente definidos, receberia a qualificação de substância, levar-nos-ia à conclusão de que a forma, e somente ela, é a substância por excelência.
Ora, a forma não deve tomar seu ser de outro e não se predica de outro (1). A forma pode separar-se, a princípio, da matéria, ou porque é ela que fornece seu ser à matéria, ou porque existem substâncias que apresentam apenas forma e não têm matéria (2). A forma é algo determinado e determinante (3). A forma é unidade por excelência; é princípio que confere unidade à matéria da qual é forma (4). Por fim, a forma é ato por excelência; é princípio que confere ato (5).
Para concluir, é importante ter em conta o fato de que a forma aristotélica não é o universal; não se confunde com as Formas platônicas que existiriam num mundo à parte do mundo das coisas sensíveis. A forma ou eidos é um princípio metafísico que estrutura a matéria. A substância é a forma pela qual a matéria recebe uma determinação, vale dizer, se torna uma determinada coisa.
É forçoso adiar para outra oportunidade a questão da substância supra-sensível. Aqui, limito-me a dizer que ela é a forma pura, privada absolutamente da matéria. A demonstração da existência da substância supra-sensível nos conduziria à postulação do Primeiro Motor Imóvel, ou seja, Deus – questão última para a qual encaminha a empresa metafísica, conforme dissemos no limiar deste texto. O Primeiro Motor Imóvel, ou Deus, é a substância imóvel, eterna e indivisível. É puro ato.

                 


O monismo substancialista de Spinoza

5. Só existe uma substância: Deus


Seu prenome, em português, é Bento, traduzido para o latim como Benedictus e para o hebraico como Baruch. Baruch Despinoza nasceu em Amsterdã, em 1632. Descendente de uma família judia, deixou Portugal, para fugir da Inquisição, chegando à Holanda, onde estudou filosofia judaica e teologia da Idade Média. Também se debruçou sobre os escritos da cabala e aprendeu grego e latim.
Spinoza se dedicou também a estudar a filosofia escolástica e se vinculou ao iluminismo então nascente na Holanda, razão por que se distanciou da ortodoxia judaica, tendo sido expulso da sinagoga em 1656.
Seu pensamento foi influenciado, de modo especial, pela filosofia de Descartes, passando por Malebranche.


5.1. O método geométrico

Não há dúvida de que não houve, na história da filosofia, nenhum outro pensador que elaborasse e desenvolvesse um método geométrico tão rigoroso quanto Spinoza. Nesse sentido, avulta a influência de Descartes. Spinoza adotou o princípio que Descartes postulou em um capítulo das Meditações. Descartes pretendia desenvolver seus pensamentos ordenando-os rigorosamente segundo o método geométrico. Em Descartes, no entanto, isso foi apenas esboçado; sucedeu diferente no caso de Spinoza. O método geométrico dirigiu a integralidade de seu sistema. Spinoza foi herdeiro do ideal científico da geometria euclidiana.
Esposando o método euclidiano, Spinoza procedeu  à sua investigação, estabelecendo primeiro as definições dos conceitos fundamentais, dos quais fez derivar axiomas; com base nestes, os demais conhecimentos foram deduzidos rigorosamente, tomando a forma de proposições. Esse rigor spinozista na condução de seu pensamento é patente em seu principal trabalho –Ética.
O rigor de seu método não deve, contudo, nos escusar de observar criticamente que Spinoza pressupôs decisões fundamentais objetivas. Ele não se apoiou na experiência, mas partiu unicamente do pensamento racional puro, cujo desenvolvimento se deu de intelecções básicas evidentes para outros conhecimentos. Seu sistema é sustentado pelo pressuposto de um paralelismo entre pensamento e ser. O ontologicamente primeiro é necessariamente o primeiro conhecido. O que tem origem no ser deve ser dedutível de princípios que se encontram em nosso pensamento. Segue-se disso que toda a realidade se submete à necessidade lógico-matemática. Assim também, tudo que é aparentemente contingente se determina pela necessidade a priori; por isso, é logicamente dedutível. O conhecimento lógico-necessário constitui o quadro no interior do qual o acontecimento real, determinado por uma pluralidade de relações causais, se interpreta como um domínio de relação necessariamente lógica entre fundamnto e consequência. A relação real de causa e efeito se converte, no domínio do pensamento, em relação lógica entre fundamento e consequência.
Em tal quadro de referências, não há lugar para o acontecimento contingente e muito menos para a ação livre. A tudo subjaz uma determinação necessária. Isso levará Spinoza a deduzir, necessariamente, da essência de Deus o mundo e tudo que nele acontece. Essa operação dedutiva é análoga à que se verifica quando da essência do triângulo segue-se a soma dos seus ângulos.


5.2. O monismo substancial

É conhecida a quem quer que esteja familiarizado com o pensamento de Spinoza a asserção dele segundo a qual só existe uma única substância. Essa única substância, ele chama de Deus ou a Natureza. Seu argumento destinado a sustentar esse monismo substancial, embora não tenha convencido alguns de seus comentadores, foi formalizado do seguinte modo:

(a)   Há uma substância que tem todos os atributos.
(b)  Não pode haver duas substâncias que tenham um atributo em comum.
(c)   Não pode haver uma substância desprovida de atributos.

Logo
(d) Não pode haver duas substâncias.

Embora válido, porque a premissa (c) parece verdadeira, esse argumento apresenta problemas. O principal deles é que a premissa (a) depende de uma versão especial do “argumento ontológico” em favor da existência de Deus. Essa versão especial do argumento é tão frágil quanto qualquer uma das outras versões do paralogismo.
Spinoza inferiu a existência de Deus – que não é o Deus pessoal, onipotente e infinitamente bom da tradição judaico-cristã – do fato de que Deus é uma substância. Spinoza acolheu, sem reservas, a ideia, consagrada pela tradição, de que a substância é algo cuja existência não depende de outra coisa. Ela existe por si mesma. Isso se assemelha à ideia de causa sui,  causa de si, que Spinoza interpretou a seu modo, a fim de lhe garantir um sentido. Ele não encarou a causa sui como autocausação da substância, mas a interpretou num sentido mais lógico do que propriamente causal. Segundo ele, a existência da substância deve ser explicada pela natureza da própria substância. Por conseguinte, Spinoza endossou a conclusão de que a essência da substância implica a sua existência. Logo, Deus, que é a única substância, “(...) consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita, existe necessariamente” (Ética, 2011, pp. 11, p. 19).
A conveniência exigida pela natureza do suporte de publicação deste texto impõe-me que eu limite a discussão sobre o tratamento dispensado por Spinoza à questão da substância aos conceitos fundamentais que se topam na obra Ética. Uma investigação mais detida da filosofia spinozista deverá aguardar estudos ulteriores que a tornem possível.
No limiar de sua Ética, Spinoza define a causa sui como “aquilo cuja essência inclui em si a existência, ou aquilo cuja natureza somente pode ser pensada enquanto existente” (I, Def. 1, p. 13). Causa sui significa, para Spinoza, o princípio divino supremo. Esse conceito tem uma longa e diversificada história. No entanto, ele foi usado, na maioria das vezes, em relação não a Deus, mas à liberdade humana. A causa de si não é autocausação, para Spinoza, mas designa a existência necessária e autofundante do existente absoluto (Deus).
Partindo de Descartes, Spinoza apresentou outras definições de substância, dos seus atributos e dos modos; porém o fez de uma forma nova. Por substância, ele entendeu “o que é em si e concebido por si, aquilo cujo conceito não necessita do conceito de outra coisa do qual deva ser formado”. Lembremos, neste momento, que Descartes definiu a substância como “algo que não necessita de outra coisa para existir”. Spinoza, a seu turno, dá a essa definição cartesiana de substância uma forma lógica, em cuja base está pressuposto o paralelismo entre ser e pensamento. Se é “em si” deve necessariamente ser concebido a priori a partir de si. No curso de seu pensamento, Spinoza esclarecerá que compreende o “ser em si” apenas no sentido de uma substância absoluta e divina.
Por atributo, Spinoza entende aquilo que o entendimento apreende de uma substância enquanto é constituinte da essência dessa substância. O atributo é, pois, uma característica da essência da substância. Destarte, Deus, a única substância necessariamente existente, possui atributos infinitos, dos quais, porém, só conhecemos o pensamento (cogitatio) e a extensão (extensio).
Ao dizer de Deus que tem atributos infinitos, Spinoza não deixa de ser pouco claro. Se estava querendo dizer que Deus ter infinitos atributos implica que tem todos os atributos, tal implicação não se sustenta, quando se considera o significado que nós atribuímos, normalmente, ao vocábulo “infinito”. Essa é uma questão que não nos interessará na presente discussão. Fica apenas aqui sugerida como um ponto de controvérsia entre os pesquisadores.
Quando Spinoza diz que dos atributos infinitos da substância divina só conhecemos o pensamento e a extensão, ele torna patente a influência que sobre seu pensamento exerceu Descartes, particularmente no momento em que este propôs a dicotomia da res cogitans (coisa pensante) e res extensa (coisa extensa). Mas essas duas substâncias foram interpretadas, na metafísica de Spinoza, como atributos da única substância existente, que é Deus. Spinoza pensou como atributos de uma única substância o que, na doutrina cartesiana, eram duas substâncias distintas.
modo, por sua vez, é a afecção da substância; é aquilo que existe em um outro. É um acidente enquanto inerente à substância. O modo deve ser concebido a partir da substância, que é o ontologicamente primeiro. Só há uma substância, e todas as coisas finitas são meros modos, afecções acidentais da substância. Destarte, o ens in se (ser em si) é concebido como ens a se (ser por si), assim como o ens in alio (ser em outro) é concebido como ens ab alio (ser de outro).
Todo contingente não existe substancialmente, mas apenas como modo da substância divina. Todas as coisas, incluindo nós, seres humanos, são modos de expressão e de desdobramento (ou emanação) de Deus (da Natureza ou Substância) no domínio da extensão (coisas corpóreas) ou do pensamento (seres espirituais), mas todos encerrados na única substância, que é Deus.
A unidade e a singularidade da substância de Deus que tudo sustenta e de onde tudo emana é o pensamento básico de Spinoza. Monismo substancialista, portanto: só há uma substância infinita. Esta substância é Deus enquanto causa de si.
Levo a cabo este texto, sugerindo que a Ética de Spinoza é, em última instância, um trabalho de inspiração religiosa. Parece bastante para prová-lo seu apelo a que os esforços humanos devam ser orientados para a união com Deus – união que se expressa na fórmula amor Dei intellectualis (o amor intelectual a Deus). Esse amor intelectual a Deus é um contentamento com a ideia de Deus como causa (não se confunde com o amor cristão a Deus). O amor intelectual a Deus é eterno, assim como o é o próprio Deus.

Summum mentis bonum est cognitio Dei – “o bem supremo da alma é o conhecimento de Deus”. É também a virtude suprema. É preciso, no entanto, enfatizar a ideia de que Spinoza só conserva a transcendência de Deus na medida em que afirma a infinidade de seus atributos, a qual nos é incognoscível. Mas esse Deus, quando considerado nos termos dos dois atributos que nos são cognoscíveis – o pensamento e a extensão -, é um Deus imanente ao mundo; é, decerto, o fundamento substancial do mundo, e não um Criador livre, nem um Deus vivo e pessoal, como o da tradição judaico-cristã. O Deus spinozista, a substância infinita e única é tão-só o princípio de consequências matemáticas necessárias.