CONFISSÃO
Devo confessar que são duas as razões por que me tornei ateu: 1) a
acuidade crescente de minha consciência do caráter cruel e doloroso da vida
(consciência esta inconciliável com o modo de vida cristão, em cujo cerne
repousa a crença num Deus criador infinitamente bom); e 2) minhas incursões
cada vez mais frequentes, densas e extensas nos estudos sobre a constituição da
Bíblia e sobre a história dos cristianismos primitivos. Tais estudos me
tornaram cristalino e vigoroso o sentimento de que a minha fé perdera completamente
os esteios que outrora a tornaram possível. Não me posso esquecer de mencionar,
nesse processo de emancipação de minha consciência, a importância de meus
encontros prematuros (há mais de quinze anos) com o pensamento de Schopenhauer
e de Nietzsche (com quem tive os primeiros contatos lendo o seu Anticristo),
que contribuíram sobremaneira para o abandono de meus hábitos de vida cristãos.
Acho, honestamente, que as duas razões que me levaram a me libertar do peso
asfixiante de décadas de doutrinação numa tradição religiosa são
suficientemente fortes e consistentes para levar outras pessoas a abandonar também
seus hábitos de vida religiosos. No entanto, uma grande maioria de pessoas no
Ocidente ainda não ousou sequer considerá-las, não se dispõe sequer a cogitar
delas, preferindo viver uma vida nutrida num embuste originário, ao qual o
cristianismo deve sua existência: a ressurreição de Jesus. (talvez, porque,
embora consistentes essas razões, raramente as pessoas abandonam suas
convicções religiosas quando se lhes apresentam argumentos razoáveis). A lógica
falha sistematicamente no cérebro de pessoas que foram expostas, desde tenra
idade, a um sistema de doutrinação religiosa.
Se a crença na ressurreição de
Jesus nunca tivesse conseguido atrair seguidores, o cristianismo jamais teria
existido. O cristianismo tradicional reza que a morte de Cristo trouxe a
salvação à humanidade. Mas Cristo não poderia morrer verdadeiramente, se
quisessem que alguém acreditasse que Deus trouxe a Salvação. Era preciso
acreditar que Cristo ressuscitou dos mortos e que a sua crucificação não era um
mal, mas um acontecimento planejado por Deus-Pai, cuja boa intenção (salvar os
humanos) justificava o meio (permitir o martírio e a crucificação de seu
filho). A ressurreição (este embuste de pouco mais de 2.000 anos) é o
fundamento da religião cristã. Sem ela, Jesus não passaria de um profeta judeu
apocalíptico (o que ele foi historicamente) que sofrera um fim trágico e
imerecido. Mas, se Jesus nunca tivesse existido, ainda assim se teria
desenvolvido alguma fé semelhante ao cristianismo? É provável que sim. No
século I, época em que viveu Jesus de Nazaré, havia muitos outros candidatos a
Messias, um dos quais era Apolônio de Tiana, que viajava com seus discípulos
curando aleijados, expulsando demônios, recobrando a visão de cegos, etc.
Muitos também acreditavam ser ele o filho de Deus. Apolônio pregava que as
pessoas deveriam se preocupar com o destino de suas almas em vez de se preocupar
com o conforto material. Ele também sofreu perseguição dos romanos, morreu e -
para seus seguidores- ascendeu aos céus. A simetria com a vida de Jesus não é
mera coincidência. Tanto quanto Jesus, Apolônio não sustentava uma doutrina de
amor interétnico (ao contrário do que supõem os cristãos modernos, Jesus não
pregava um amor universal). Na época em que viveu Apolônio, já tinham sido
escritos os evangelhos cristãos. É possível que seus seguidores tenham
construído suas narrativas da vida e do ministério de Apolônio a partir dos
relatos sobre Jesus. Convergências desse tipo eram normais e frequentes. Os
antigos catequizadores trabalhavam num ambiente competitivo, em que uma
religião competia com outras a atenção das pessoas. Para que uma religião fosse
bem-sucedida, era necessário que oferecesse, pelo menos, tantas vantagens
quantas as que a concorrência oferecia. As religiões se desenvolviam acirrando
a concorrência: os seguidores de Jesus odiavam os seguidores de Apolônio, e
estes lhes retribuíam com a mesma moeda de ódio.
Este é apenas um dos muitos exemplos hauridos da investigação da
história da formação do cristianismo que, uma vez conhecidos, tornam difícil
legitimar a crença no Deus cristão como o único Deus verdadeiramente existente
e em Cristo como o Messias que se identificou com a própria Verdade, levando
Pilatos, tomado de perplexidade, a questionar: “Que é a verdade?” (João 18:
38).
“Conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará”. (João 8: 32)
Mas, nesse caso, já não perguntamos nós hoje o que é a verdade, mas como
seus efeitos (discursivos) se produzem na história.