A solidão das palavras
O sol me parece tímido
daqui de dentro. Sinto frio. Tento evitar que estes pensamentos matutinos
fiquem grudados no porvir. É desesperante a sensação de ter a alma projetada
para o não-sou. Quando eu expurguei do ventre da alma as representações de amor
inatingível, as tendências inóspitas de idealizar a ventura amorosa, eu me
permiti viver um pouco mais. Não o suficiente ainda, pois o desejo de viver é exorbitante e a possibilidade de viver é demasiado limitada. Não sei como
resolver este hiato – entre o desejo de viver e a possibilidade de viver. Eu
vivo de permeio entre estes dois estados de existência.
Eu prometo me esforçar
por não cair no calabouço de minha solidão. Solidão exige-nos destreza de
espírito. Refiro-me à solidão de espírito, o estado em que o eu se experimenta
intimamente. Trata-se de um estado de interiorização, de experiência íntima de
nossa realidade psíquica. Essa solidão eu compartilho com os livros e, por
alguns instantes, creio serem eles bons substitutos às pessoas. Ás vezes, zelo
minha solidão como quem zela pela casa onde dorme. A solidão, quando
experimentada na companhia dos livros, é imperturbável. E nesse instante, em
que me envolvo com a solidão das palavras, adentro o intangível – um lugar
nenhum onde costuma repousar a sensibilidade. Sobra, contudo, um desejo... o
desejo de transpor os portões pesados desse estado de abandono espiritual.
As palavras
estremecem-me na alma. Quero dispô-las num caminho que me conduza a uma
autocompreensão satisfatória. Mas me sinto incapaz de fazê-lo agora. Malditos
os livros porque me tornaram os vínculos sociais vulgares intoleráveis. Malditos sejam porque me capturaram a alma. A
menos que se consiga reunir num mesmo lugar pessoas que, sendo dadas aos
favores dos livros, têm algo a dizer significativamente, estreitas são as vias
depois que nos permitimos seduzir pelos livros.
Não nos enganemos. Os
livros não nos salvam de existir (‘sair de si’, ‘ser para o exterior’, ‘externar-se’,
‘relacionar-se com’). Não escapamos a essa condição. Iludamo-nos, não por muito
tempo. Pois os anos hão de cobrar ao nosso corpo a vitalidade desperdiçada; e
ao espírito responderão com a graça do desespero. Chegada esta fase, pouco
haveremos de fazer. E talvez ainda nos sobrem muitas páginas por ler e pouco
tempo de vida para delas nos ocupar. Ainda assim, terá valido a pena?