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quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

"Só vejo o devir" (Heráclito)

 



Se é verdade que a subjugação não é uma invenção humana, já que ela se exerce nos modos parasitários, é igualmente verdade que a sujeição da natureza pelo homem transformou radicalmente a natureza da sujeição. Pela ação do homem, a sujeição afeta não apenas os processos ecológicos, mas também o princípio eco-organizador da vida. Mas a natureza subjugada não é, no entanto, passiva; ela responde à sujeição imposta pelo homem interferindo drasticamente em suas condições de vida. A natureza reage à sujeição humana através das variações ecológicas, tais como seca, gelo, inundações que provocam desastres e fome, epidemias... Assim, quanto mais o homem domina a natureza mais ela o domina também, mais ela o lembra de seu devido lugar na ordem universal.




O homem é um animal tão insignificante na ordem universal, que pode ser morto por um microrganismo bastante simples, que se situa na fronteira entre a matéria viva e não viva - um vírus. Sinto-me, deveras, espantado de ver como este animal ufano não se aperceba disso (e não seja tomado de assombro!) na sua vida diária, sempre muito atarefada, sempre entulhada de afazeres que só lhe servem para evitar que sucumba ao tédio ou ao desespero. Se insisto em lembrar ao meu semelhante à insignificância radical de sua condição existencial, não é para humilhá-lo ou aviltá-lo, mas para esclarecê-lo sobre a insensatez de sua conduta, sobre a loucura, a estupidez, a desmesura, a incúria de seu modo de ser e viver; é para esclarecê-lo, em suma, sobre o fato de que os valores e os afetos que governam seu agir levam-no, com frequência, a chafurdar no autoengano e em aborrecimentos que, contemplados à luz de seu destino tumular, são sem importância alguma. A morte, essa credora implacável, a tudo revoga, a tudo confere um caráter de futilidade , nadidade e insignificância. Meu exercício espiritual de todas as manhãs consiste não em orar a Deus (hábito comum e motivado pela empedernida vaidade humana), mas em me lembrar que não sou um ser necessário, que minha existência é contingente e insignificante para a economia da ordem cósmica. Agindo assim, me poupo de grandes aborrecimentos e evito dar excessivo valor às coisas e à minha autoimagem.





Sinto muito, cristãos!

 

Uma das descobertas sólidas e, por isso, mais persistentes ainda hoje, feitas pelos estudiosos do Novo Testamento e dos cristianismos primitivos, nos últimos 200 anos, é que os seguidores de Jesus, durante a vida deste, não o viam como Deus, mas como completamente humano. As pessoas do século I d.C, tempo em que viveu Jesus, viam-no como um rabino, um profeta; outras o consideraram o messias, porém muito humano. Ele nascera numa Galileia rural e não era muito diferente dos demais judeus. Jesus foi criado em Nazaré e não se destacou muito em sua juventude. Quando adulto, sobretudo, ele passou a acreditar - como, aliás, muitos outros judeus de seu tempo - que vivia perto do fim dos tempos. Como um profeta judeu apocalíptico, Jesus acreditava que Deus interviria no curso da história para derrubar as forças do mal e instituir o reino do bem aqui na terra. Jesus sentiu-se como o mensageiro do apocalipse vindouro e passou todo o seu ministério público pregando esta mensagem. Pelo menos, até que causou profundo descontentamento nas autoridades governantes durante sua viagem a Jerusalém, sendo preso e julgado pelo governador da Judeia, Pôncio Pilatos. De um rápido julgamento, seguiu-se sua condenação. Considerado um agitador político, Jesus foi condenado à morte ignominiosa por crucificação. Para os romanos, a história de Jesus acabava por aí.

O fato é que os primeiros cristãos chamavam Jesus de Deus num tempo em que imperadores romanos também eram considerados deuses. Os judeus, embora fossem monoteístas, distinguindo-se, notavelmente por isso, dos demais povos politeístas do mundo antigo, também acreditavam que humanos podiam se tornar divinos e deuses podiam assumir a forma humana. Mas foi apenas 300 anos depois da morte de Jesus, por volta de IV d.C, que grandes pensadores do mundo romano passaram a acreditar na transcendência do reino divino em relação ao reino humano. Antes dessa época, predominava a crença de que os reinos humano e divino se situavam no continuum vertical. Tais reinos se interpenetravam: humanos podiam assumir formas divinas, embora ocupassem as camadas inferiores da pirâmide das divindades. Por isso, para os primeiros cristãos, a maioria dos quais judeus convertidos, Jesus não era Deus no sentido em que os cristãos modernos o concebem como Deus. A maneira como o imaginário cristão moderno representa a divindade de Jesus é um produto do século IV d.C., período em que o Império Romano iniciara o processo de conversão do paganismo para o cristianismo.

A conclusão que não se pode recusar, após estudarmos a história do desenvolvimento da fé cristã desde seus primórdios até hoje, é que o Jesus histórico é muito diferente do Jesus construído pela dogmática da Igreja, que a natureza supostamente divina de Jesus é uma ficção histórica, ou seja, uma criação histórica. Essa mesma história produziu a significação do Deus metafísico cristão, como o entende Castoriadis.

 




 

 

 

O niilismo não é uma doutrina filosófica; pelo menos, não é assim que o concebo. Entendo-o como uma espécie de manifesto de desmitificação, ou, como tenho procurado pensá-lo em minha pesquisa, entendo-o como um campo hermenêutico, à luz do qual tudo aquilo que o ser humano toma como dotado de “ser”, de “objetividade”, de “substancialidade”, ou que toma como algo originado de uma instância metafísica, aparece como artifício, ficção, constructo, produto da instituição do imaginário-simbólico que é ele mesmo instituído pelo domínio social-histórico. O “nihil” do niilismo não pode, portanto, ser concebido como a contraparte ontológica do “ser”, porque, dessa forma, prolongamos o hábito de pensar em termos de dualismos metafísicos, ou melhor, continuamos a conferir o caráter de substância ao que é ficção (criação, fabricação) imaginária. Ora, a própria substantivação “o nada” opera, no âmbito semântico, a substancialização do “nada”, ou seja, “o nada” é tomado, concebido, paradoxalmente, como algo ( um ente) que existe como o antípoda do “ser” ( é o não-ser - a contraparte do ser). A nadificação operada pelo niilismo não se define no quadro das categorias metafísicas; “nadificação” deve ser entendido como “dessubstancialização”, esvaziamento do caráter de ser, de substância, de quididade, a fim de que aquilo que sofreu a nadificação apareça como ficção imaginária, artefato, figura, signo, símbolo; em suma, significação imaginária. Assim, “Deus”, “ser”, “nada”, “Estado”, “democracia”, “Essência” são significações imaginárias (não da mesma ordem, já que se inscrevem em campos de sentido diferentes; em todo caso, são significações criadas pelo imaginário-simbólico). Mas significações imaginárias não são irrealidades, "fantasias"; elas existem para a sociedade que as institui; existem como objetos-de-discurso, funcionam como "coisas", "referentes" em determinados domínios discursivos. O imaginário depende do real para existir, e o real não é possível sem o imaginário.

Tome-se o exemplo do modo como, em nossa cultura, “vida” e “morte” são representados. O niilismo, como processo histórico e antropológico de desmitificação, expõe, à luz do dia, o caráter ficcional do dualismo da vida-morte, instituído pelo imaginário-simbólico metafísico, fundante do modo de ser e das sensibilidades do homem ocidental. Herdamos desse imaginário-simbólico metafísico a crença comum de que vida e morte são polos antagônicos e excludentes entre si, ou seja, herdamos a crença de que há uma relação de oposição e exclusão entre a vida e a morte, de sorte que, nessa relação imaginária de oposição e exclusão, a morte não só é representada como a antagonista da vida (a despeito de ela cooperar para o equilíbrio biológico do ecossistema), mas também é negada pela sua transfiguração em imagens como a de ‘passagem’, ‘caminho’ para uma outra vida além-túmulo. Essas metáforas/imagens/simbolismos da morte são ficções, figuras, significações geradas, produzidas na instituição do social-histórico, que é o imaginário radical, o qual, por sua vez, é a matriz fundamental e originária de todas as significações sociais imaginárias, uma vez que o imaginário radical é criação, sob a forma de representação, de uma coisa ou de relações que não são dadas na experiência sensível e imediata de mundo. É assim que Deus é uma significação imaginária, produto do imaginário radical que constitui a base do imaginário efetivo e do simbólico. Também “democracia”, “economia”, “capitalismo”, etc. são ficções do imaginário social instituído. Essas “coisas” não existem sem a instituição imaginária da sociedade. O niilismo, portanto, ao declarar guerra aos valores superiores, a todo o imaginário produzido pela metafísica ocidental, que levou o homem a se conceber, a se representar, a se significar como um ser vivo superior e à parte da ordem natural, da totalidade ecossistêmica da vida, “quebra” o “feitiço” do imaginário-simbólico, na medida em que expõe seu mecanismo de funcionamento, na medida em que descerra o modo de produção das significações imaginárias instituídas, as quais não aparecem como tais nos processos sociais da vida comum, mas se transmitem sob a forma de saberes inquestionáveis, sistematizados numa tradição, em doutrinas religiosas, filosóficas, políticas, e cuja origem é metafisicamente justificada ou apagada no próprio processo de constituição sócio-histórica da consciência individual.

Por não ser uma doutrina, o niilismo se constitui historicamente em processos dialógicos com outras áreas do conhecimento humano, apropriando-se de suas críticas, de seus conhecimentos, de seus postulados a fim de compor o seu arsenal, seus arranjos, seu instrumental crítico-corrosivo. É claro que, como todo empreendimento humano, o niilismo envolve um risco, um perigo, já que não é imune à apropriação por tipos humanos ou formações vitais movidos pelo ressentimento, pelo ódio à vida, pelo instinto de negação divorciado da afirmação; todavia, é no horizonte do niilismo que se devem travar as batalhas, que se deve afirmar a resistência, que se deve fazer triunfar a vontade de viver sobre a vontade de morte, de nada; o niilismo é a condição de possibilidade para novas instituições de sentidos, de valores, de significações, em suma, de um imaginário-simbólico que promova a vida, que a favoreça em face de seu irrecusável caráter trágico, que passa a ser então afirmado, desejado, quero dizer, como jogo contínuo de complementaridade entre criação e aniquilação, nascimento e morte, sofrimento e alegria, amor e ódio, luz e escuridão. Pois que afirmar o trágico é afirmar o conflito, o jogo dos opostos, dos antagonismos, mas também a complementaridade dos opostos, dos antagonismos. Afirmar o caráter trágico da vida é reconhecer que no mundo natural “não apenas uma reorganização permanente responde à desorganização permanente, mas, sobretudo, que o processo de reorganização se encontra no próprio processo de desorganização”. (Morin). Não há criação sem aniquilação, como soube bem ver Nietzsche; e vida e morte estão numa relação inextricável de cooperação e complementaridade - uma evidência que nos habituamos a ignorar - e ignoramos porque, como sujeitos sociais, somos fabricados pelas instituições de nossa sociedade, somos moldados pelo imaginário social instituído.



                            


“Só vejo o devir” (Heráclito)

 

O trabalhador bem ajustado socialmente quer unicamente encontrar em seu ralo e esquálido tempo livre alguns momentos de distração. Ao chegar a casa, senta-se no sofá, e a televisão se lhe oferece um cardápio de nossas tragédias humanas, que ele pronta e servilmente degusta. A mais recente delas é a da chuva que arruinou a cidade de Petrópolis (novamente). ( contam-se 130 mortos no silêncio indiferente do Universo e de uma natureza que não dá sinais de remorso ou luto). O trabalhador-telespectador bem ajustado aos padrões de comportamento, de pensamento e de sensibilidades estabelecidos em sua cultura, forjada e entretecida no simbólico-imaginário cristão, reage ao nefasto acontecimento como todo mundo reage: “ meu Deus, tenha misericórdia!”. Como Deus não responda aos insistentes apelos destes sapiens devotos e ávidos de encontrar uma ordem moral do mundo, há que buscar os culpados entre os humanos a fim de justificar o silêncio e a indiferença divinos. É certo que as chuvas volumosas, nesta época do ano, costumam causar estragos; é certo que nossas autoridades governamentais nada fazem para prevenir ou minimizar os impactos danosos de fenômenos naturais como estes sobre a vida já flagelada e precária de populações inteiras de sapiens, que são forçadas a residir em casas apinhadas em encostas. Já conhecemos bem o roteiro: “depois que a porta é arrombada é que se preocupa em colocar a tranca”. Num mundo que fosse obra de um Deus criador, como o Deus judaico-cristão, teríamos, ao menos, o direito de dividir com ele a culpa pelo sofrimento infligido a inocentes; mas num mundo como o nosso, obra do jogo do acaso e da necessidade, onde grita uma natureza sábia e louca, ao mesmo tempo cega, míope e onisciente, onde Dike (justiça) nasce da Hybris (desmedida), temos o dever de assumir o nosso trágico destino como espécie de primatas entre milhões de outras espécies existentes e nossa responsabilidade em ações e omissões cujos efeitos acrescentam mais dor e sofrimento a um mundo que é por toda parte jogo inocente do devir. Quantos, entretanto, entre os homo demens, são capazes de suportar esta experiência estética do mundo, que é devir eterno? Refiro-me àquele olhar artístico que Nietzsche pincelou em tão belas e potentes palavras de refinada sabedoria trágica, fazendo-nos ouvir nas transpirações delas o grito do sábio Heráclito:

 

 

“ NESTE MUNDO, SÓ O JOGO DO ARTISTA E DA CRIANÇA TEM UM VIR À EXISTÊNCIA E UM PERECER, UM CONSTRUIR E UM DESTRUIR SEM QUALQUER IMPUTÇÃO MORAL EM INOCÊNCIA ETERNAMENTE IGUAL. E, ASSIM COMO BRINCAM O ARTISTA E A CRIANÇA, ASSIM BRINCA TAMBÉM O FOGO ETERNAMENTE ATIVO, CONSTRÓI E DESTRÓI COM INOCÊNCIA - E ESSE JOGO JOGA-O O EÃO CONSIGO MESMO. TRANSFORMANDO-SE EM ÁGUA E EM TERRA, JUNTA, COMO UMA CRIANÇA, MONTINHOS DE AREIA À BEIRA-MAR, CONSTRÓI E DERRUBA: DE VEZ EM QUANDO, RECOMEÇA O JOGO. UM INSTANTE DE SACIEDADE: DEPOIS, A NECESSIDADE APODERA-SE OUTRA VEZ DELE, TAL COMO A NECESSIDADE FORÇA O ARTISTA A CRIAR”.

 

Nietzsche





Como convencer os leitores mal dispostos para com a filosofia de Schopenhauer de que a imagem que tradicionalmente lhe é construída, em conformidade com a qual ele é representado como um filósofo efusiva e profundamente pessimista, cujo olhar está inteiramente devotado a nos expor o pior da existência, não só não faz jus ao refinamento de seu gênio, à sua aptidão lírica e cirúrgica para nos esclarecer sobre nossos habituais autoenganos, sobre nossas ilusões acerca de quem somos e de nosso lugar no mundo, bem como também ensombrece as mais profundas lições sobre a precariedade e vaidade da condição existencial humana? Se, de fato, Schopenhauer assumiu ser o viver um processo de desfazimento, de decadência que culmina com a eutanásia da vontade (da vontade de viver), não o fez por um mero gosto estético pelos aspectos sombrios, mórbidos e fúnebres da vida; o fez, sobretudo, com o intento ético, nutrido por um solo metafísico exuberante que se destaca de uma paisagem mística oriental, de nos libertar das ilusões, das quimeras que nos fazem escravos, em nossa caverna cotidiana, de um ciclo de desejos sempre renováveis e insaciáveis, que jamais nos dá a satisfação e a felicidade plenas e permanentes que tanto anelamos durante nossa juventude, mormente. O curso natural das coisas, a decrepitude de nosso corpo com o avanço da idade nos abrem o caminho para o conhecimento da vaidade de todos os bens terrenos em cuja busca consumimos, com ardor inquebrantável, a nossa vida. O amor próprio é suplantado pelo amor aos filhos, graças ao qual os pais passam a viver mais em função da imagem idealizada do eu alheio do que em função do ideal de seu próprio eu. O niilismo, em Schopenhauer, longe de se reduzir à negação da vontade, que, de modo algum, significa uma hecatombe da Vontade como coisa-em-si, já que esta é indestrutível e eterna, se apresenta, entre as suas vias de expressão, como meio pelo qual se expressa a purificação da vontade de viver mediante o sofrimento. Sim, o sofrimento conduz à purificação, à viragem da vontade e à redenção. O caminho da redenção é mais geral; o da viragem da vontade, diz Schopenhauer, é mais restrito e difícil, porque supõe a empatia, a solidariedade do indivíduo, naturalmente egoísta, com o sofrimento de todo o mundo, só atingidas por uma forma de conhecimento intuitivo. A redenção só é possível a todos porque a vida que leva à purificação pelo sofrimento é um caminho aberto a todos. É certo, porém, que, muitas vezes, observa Schopenhauer,


“Resistimos para nele entrar, mas antes nos esforçamos com todas as forças para preparar para nós mesmos uma existência segura e agradável, com o que nos acorrentamos ainda mais firmemente à vontade de vida”.

 

 

Para Schopenhauer, a vida é também um processo de purificação, e a solução purificante é a dor. A sabedoria “pessimista” de Schopenhauer é equiparável à profundidade e sobriedade das sabedorias de vida dos grandes sábios da Antiguidade, que combinavam melancolia com lucidez. Ela é um bálsamo espiritual para a loucura do utilitarismo hedonista de nossas sociedades hipermodernas que, em nome do acúmulo desenfreado de riqueza e da busca do prazer efêmero no consumo, transformam o mundo inteiro numa imensa reserva de bens a serviço da manutenção e reprodução de uma vida humana que se consome na incessante destruição da reserva de bens que se destina a sustentá-la:

 

 

“O destino e o curso das coisas cuidam de nós melhor do que nós mesmos, na medida em frustram continuamente nossos projetos de uma vida nababesca, cuja insensatez já se reconhece em sua brevidade, inconstância, vazio e futilidade, e no fato de terminar numa amarga morte; ademais, aparecem no nosso caminho espinhos sobre espinhos que apontam em tudo o sofrimento salvífico, panaceia de nossa miséria”.

 






Eis o que defendo:

 

 

O imaginário radical, matriz de todas as significações sociais e fundante da cultura ocidental, é produto da metafísica que, já em Parmênides, tem como base a identidade entre pensamento, ser e verdade. Platão e Aristóteles permaneceram fiéis ao pai parmenidiano. Tanto Platão quanto Aristóteles tiveram de enfrentar o desafio sofístico. A metafísica que moldará profundamente o modo de ser do homem nascerá desse enfrentamento. A oposição de valores estabelecida por Parmênides entre o ser e o não-ser e subvertida por Górgias será pela pena de Platão substituída por uma nova oposição: o ser e o falso ser. A lógica de Aristóteles, que determinou os fundamentos do pensamento do homem ocidental, depende de certos pressupostos metafísicos. Assim, crê Aristóteles que a linguagem, cuja forma é a lógica, revela a ordem essencial das coisas. Aristóteles estabelece a correspondência entre a dimensão lógica e a ontológica: assim, articula-se o ser (como essência e verdade primeira) à linguagem. Aristóteles afirma a identidade ao mesmo tempo que rejeita a contradição. A matriz imaginário-simbólica que funda e trama a cultura ocidental está centrada na produção da significação, na ficção do ser, cujas origens remontam a Parmênides e cuja transmissão à posteridade se fez no pensamento socrático-platônico-aristotélico pela via da metafísica cristã. Nossa habitual crença no ser como identidade e verdade é produto da confluência de dois imaginário-simbólicos: o socrático-platônico-aristotélico, herdado de Parmênides, e o cristão, moldado no platonismo (então transformado em platonismo para o povo). A afirmação do ser como verdade, como identidade significa o esquecimento do devir; simboliza a vitória de Parmênides sobre Heráclito e sobre os sofistas. Essa vitória de Parmênides sobre Heráclito e sobre os sofistas é também a vitória de todo um imaginário social moldado na metafísica platônico-aristotélica-cristã. Já conhecemos bem, por meio de Nietzsche, como a metafísica e a moral platônico-cristã moldaram nosso modo de ser como tipos humanos culturais. Talvez, contudo, não seja tão claro de que modo Aristóteles faz ecoar a vitória de Parmênides sobre Heráclito e os sofistas. Se Parmênides tomou o ser como lugar do pensamento verdadeiro, buscando estabelecer a identidade entre pensar, dizer e ser, Aristóteles estava interessado em garantir a possibilidade do conhecimento verdadeiro, para o que ele propôs a identidade entre dizer e significar. Somente dizemos se significamos algo, ou seja, dizer deve estar vinculado a um sentido. Dizer é significar, e, se significar é não contradizer-se, então quem diz deve obedecer ao princípio de não contradição. Aristóteles pensa ter estabelecido a verdade da linguagem, a saber, o sentido. Quem fala sem sentido, a rigor, nada fala, pois nada significa. Pela lógica cunhada por Aristóteles, habituamo-nos a crer que há um vínculo inextricável entre ser e sentido, de sorte que, para ele e para o imaginário fundante de nossa cultura, há um sentido verdadeiro nas coisas, e esse sentido é desvelado na linguagem. Se há um sentido verdadeiro que a linguagem revela, então há um sentido falso. Ora, o que Nietzsche soube ver é que a lógica é fruto de um AGON, ou seja, de um campo agonístico de produção de ficções. A lógica nasceu de um campo de combate, com suas regras específicas. Nasceu de um campo de combate sustentado em ficções. O mundo da lógica elide o mundo do fluxo, da impermanência de todas as coisas, das sensações, das paixões, do corpo. Esse mundo da lógica é sustentado por uma ficção primeira - a linguagem. A linguagem é o modelo a priori de inserção e exclusão e, por isso, serve de paradigma para todos os outros modos de exclusão vigentes. Uma vez que nem Platão nem Aristóteles conseguiram refutar os sofistas, se encarregaram de inventar a categoria do “falso” ou o argumento do sentido: “ ele não deve ser ouvido, porque é falso”; “ o que ele diz é contraditório, e o que é contraditório não tem sentido”.

Se a raiz do niilismo da fraqueza, conformado pelas forças reativas, pelas vontades de potência negativas, repousa na crença no SER, que culmina com a produção de uma forma homem caracterizada pela vontade de nada, o niilismo em sua forma ascendente, conformado pelas vontades de potência afirmadoras, representa o caminho pelo qual todo o edifício imaginário-simbólico moldado pela metafísica tradicional, que se forma pela confluência de do pensamento de Parmênides, Platão, Aristóteles e o cristianismo, entra em colapso libertando a existência do animal humano desse mundo edificado em ilusões, que o fazem chafurdar no autoengano sobre sua condição existencial no mundo, que o impede de reconhecer-se na origem da criação do mundo de signos, significados, imagens, figuras que ele assume como produto de forças que lhe são estranhas. Nadificar esse mundo que se constitui pela projeção de significados humanos não é reduzi-lo a uma miragem, a um simulacro, a um “nada”; mas dessubstancializá-lo, restituir-lhe o estatuto de constructo, de artifício. O mundo do ser, o mundo em cuja origem, por força do imaginário-simbólico socialmente instituído, o homem vê um Criador, um Deus metafísico, é um mundo edificado, construído pela atividade humana que se realiza pela inter-relação entre cultura, linguagem, percepção-cognição. Em Nietzsche, não há criação sem aniquilação; aniquilar, destruir e criar são formas de expressão da afirmação dionisíaca da vida. O niilismo não é apenas máquina de destruição, de demolição dos alicerces de valor e sentido metafísicos que deram e (ainda dão) sustentação à existência humana; é também um campo de interpretação que libera as forças ativas, as vontades de potência afirmativas e criadoras que se encarregam de fixar perspectivas e interpretações que encorajam, potencializam o animal humano para o querer jubiloso do devir, para a afirmação do caráter trágico ineliminável da vida, sem concessão e recuo.




Dizer é significar

 

Dizer que os significados se produzem na interação social por meio da língua, dizer que, ao usarmos a língua, negociamos significados, significa dizer que o significado não está localizado nas palavras ou nos textos em si, significa dizer que a relação significativa não se esgota na articulação do significante (imagem acústica) com o objeto referido pelo signo, nem na articulação entre os signos na cadeia sintagmática. A semiose, ou seja, o processo pelo qual o objeto de um signo é sempre outro signo, é infinita. Assim, quando se advoga que os significados sejam pensados como efeitos das práticas discursivas, como construções sociocognitivas, como produzidos e negociados na interação verbal, desloca-se o problema básico da semiótica, que consiste em determinar como um signo significa, como um signo representa a realidade, como o signo tem sentido, ou como é possível a experiência do sentido através da linguagem, do âmbito de um realismo referencial, para o âmbito sociocognitivo-interacional do discurso. Assim, o significado não é a relação do signo com seu referente no mundo exterior. Se digo “Mônica está dormindo”, num contexto em que alguém insiste em querer falar com “Mônica”, produzo aí muito mais do que o significado proposicional ‘há alguém que está dormindo e que se chama Mônica”. Comunico também “não convém perturbá-la”, “não seja inconveniente”, “volte outra hora”, etc. Note-se que o signo complexo (o enunciado) “Mônica está dormindo” é signo de outros signos complexos, tais como “não convém pertubá-la”, “não seja inconveniente”, “volte outra hora”. Em outras palavras, “Mônica está dormindo” significa muito mais do que o estado-de-coisas representado na proposição realizada. O modo como meu interlocutor reagirá ao ato de fala “Mônica está dormindo” indicará se ele compreendeu, se aceitou ou não os significados produzidos e negociados nesse contexto de interação. Evidentemente, todo e qualquer enunciado ocorre sempre num contexto (ou supõe a mobilização de contextos sociocognitivos) e com um co-texto, ou seja, vem acompanhado de outros enunciados ou sinais não verbais que nos orientam na adequada reconstrução do sentido pretendido por nosso interlocutor. É claro também que a construção ou a produção de sentido nas práticas linguísticas é um processo muito mais complexo do que sugere este meu exemplo, que é bastante esquemático. Quando entramos numa interação verbal, entramos a fazer parte de um jogo de produção de imagens recíprocas que é , ele mesmo, constitutivo dos significados negociados. Se, por exemplo, depois de pedir para falar com Mônica, alguém me diz em tom ríspido “Ela está dormindo, passe outra hora!”, não só compreendo que é inútil insistir em falar com Mônica, que devo ir embora, como também julgo que o interlocutor é uma “pessoa grosseira”. E é possível que meu interlocutor também construa uma imagem de mim como “pessoa chata e impertinente”. Em suma, a significação é um processo que extrapola o âmbito manifestamente linguístico, os significados se produzem para além da superfície textual; os textos fornecem pistas, indicações para a reconstrução dos sentidos, mas não os encerram, não os “aprisionam”, não os esgotam. Dizer é significar para além do dito; os silêncios do dizer, os silêncios que atravessam as palavras ditas, significam. A língua não é apenas um sistema de signos; ela é muito mais do que isso: é lugar de interação social, é atividade sociocognitiva de produção internacional de sentidos ou significados.

 


quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Momento filosófico - A opacidade do significado

                                     


                               Filosofia e Linguagem
                                         Ponto de encontro


Silva (2011), em O Ato de ler – fundamentos psicológicos para uma nova Pedagogia da Leitura, sustenta que ler é compreender (em primeiro lugar, compreender o mundo), ou seja, a compreensão inclui a interpretação. Em outras palavras, para Silva, na compreensão, está implícita a interpretação. A interpretação é constitutiva da compreensão. A compreensão desvela o que estava oculto; a interpretação supõe a presença diante de nós de algo cuja natureza ou estrutura deve ser compreendida. Refiro as palavras oportunas de Silva sobre como devemos entender o significado:

“(...) aquilo que é compreendido não é o significado, tomado no seu sentido bem estrito (significado de livro, ou de qualquer outro objeto). Significado é aquilo que se mantém oculto e que se desvela apenas pela inteligibilidade. (...) o significado não está nas coisas e nos objetos, nem nas palavras e nas proposições, mas constitui uma possibilidade de desvelamento, de atribuição, que é característico do Ser-do-HomemO significado é a possibilidade que algo possui de tornar-se visível como algo que é.
(p. 34)


De um ponto de vista filosófico, o significado não é nem um ente do mundo, nem um atributo das coisas. As coisas - e o próprio mundo que as totaliza - não têm significado em si (certamente, nossas experiências se organizam numa estrutura dotada de significado, mas isso não é o mesmo que dizer que as coisas comportem significado em si mesmas). Por seu caráter oculto, o significado supõe um esforço de desvelamento. Por seu caráter não-objetivo, o significado é "possibilidade de desvelamento", por isso emerge de um espaço interacional, de um espaço em que o homem interage (por meio de sua cognição essencialmente corporificada e em conjunto com os outros) com o mundo. Esse espaço interacional, no qual a própria cognição é produto de nossas ações e capacidades sensório-motoras, é um espaço de possibilidades de significação. Daí não ser exagero dizer que o mundo é, para o homem - e apenas para ele - uma gigantesca teia de significação. Isso explica por que uma questão metafísica como "Qual é o sentido da existência?" dá margem a uma inesgotável, inquietante e calorosa discussão.