Mostrando postagens com marcador Sexualidade feminina. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Sexualidade feminina. Mostrar todas as postagens

domingo, 31 de julho de 2011

Uma breve história da sexualidade feminina



A sexualidade como parâmetro de inserção
social feminina – Do período paleolítico à Antiguidade Clássica

Objetivo: Evidenciar e discutir a condição social da mulher desde o Período Paleolítico até a Antiguidade Clássica tendo como parâmetro de inserção a sexualidade.

A sexualidade desempenha um papel fundamental na vida e na sociedade humanas. Seu estudo tem grande importância na medida em que permite compreender a história mundial nas suas diversas dimensões: social, cultural, política, econômica, moral, abrangendo, inclusive, a vida cotidiana do homem comum. A sexualidade imiscui-se nos modos como os seres humanos determinaram/ conduziram sua vida e marcaram distinções relativamente aos gêneros (masculino e feminino). No tocante aos meus interesses aqui, a sexualidade, como veremos, será um parâmetro de poder masculino na determinação dos tipos de inserção da mulher nas sociedades, desde o Período Paleolítico (20.000 a 8000 a. C.), caracterizado pela vida nômade e pelas atividades de caça e coletas, até a Antiguidade Clássica, no ocidente (800 a.C), com o advento das cidades-Estados gregos.
Nesse recorte temporal, vou considerar também a forma como a sexualidade foi experienciada e regulada nas dinastias chinesas; portanto, examinarei a inserção da mulher nas sociedades ocidentais e orientais.
Vou partir das seguintes premissas:
a) A sexualidade sempre esteve associada às esferas de poder; através dela, os homens expressaram, ao longo da História, seu poder hegemônico sobre as mulheres;
b) Em todas as sociedades humanas, a sexualidade sofreu alguma forma de restrição e/ ou controle;
c) A sexualidade era experienciada na tensão entre o desejo de prazer e a necessidade de controlar a natalidade;
d) As formas de inserção social de homens e mulheres nas sociedades passam pelas complexas condições da determinação de seus papéis relativamente à sexualidade.

Em História da sexualidade (2010), Peter N. Stearns, observa, na seção introdutória A sexualidade e o advento da agricultura, o seguinte:

“(...) nas sociedades primitivas havia um embate com a tensão entre o reconhecimento do prazer sexual e o interesse e a necessidade, em nome da ordem social e até mesmo da sobrevivência econômica, da introdução de padrões regulatórios essenciais”.
(p. 21)

Inicialmente, portanto, deve-se ficar claro que a sexualidade humana era encarada não só na sua dimensão erótica (o prazer), mas também na sua função biológica (a reprodução).  Na modernidade, como sabemos, a mudança fundamental ocorrida na sexualidade foi a separação entre prazer sexual e função reprodutiva. Desde a década de 1960, a grande parte das pessoas do Ocidente já fazia sexo sem finalidade procriadora, mas meramente recreativa, muito graças à disponibilidade de dispositivos contraceptivos, tais como a pílula.
Evidentemente, servindo o sexo à produção de bebês e dadas as necessidades de sobrevivência, em condições econômicas ainda muito precárias, o controle da natalidade tornou-se uma exigência para as sociedades pré-agrícolas, mas também sempre foi uma constante nas sociedades posteriores que se formaram na Antiguidade Clássica.
As sociedades de caçadores-coletores (período paleolítico) estavam interessadas no controle da natalidade, muito embora não dispusessem dos meios eficazes para tanto.
Essas sociedades viveram segundo duas tensões, relativamente à sexualidade: a arte deu testemunho da primeira tensão, ao registrar a ênfase que recaía sobre a bravura e as façanhas masculinas. A segunda, relacionada à prática sexual, combinava o deleite proporcionado com as necessidades de controlar a natalidade.
A primeira imagem da mulher é fornecida pelas esculturas, sem rosto, com contornos que marcam, ao que parece, o apreço que se dava à obesidade. Parece que a obesidade era vista como um atributo erótico. O vestuário feminino incluía decotes que salientavam os seios (quando estes não eram totalmente exibidos) e fendas que deixavam-se ver os pêlos pubianos. Indícios arqueológicos, datados de 70 mil anos, encontrados na costa da África do Sul, sugerem que o uso de batom visava a tornar a boca da mulher parecida a uma vagina, o que indicava disponibilidade sexual.
A arte também expressava o universo masculino, salientando seu dote fálico. A representação do potencial sexual masculino indicava a dominância fálica; portanto, dos homens.

“Uma famosa gravura encontrada na França retrata uma leoa lambendo um enorme pênis humano, e outras representações mostram com clareza a dominância do falo. Costumava-se esculpir gravetos fálicos, que provavelmente eram usados em rituais sexuais. Alguns grupos fabricavam jóias para adorar o pênis, e ornamentos desse tipo foram encontrados em cemitérios”
(p. 24)

É interessante notar que a arte servia, pelo menos em parte, a uma forma de construção e reprodução simbólica do domínio masculino.
Os parceiros sexuais eram escolhidos de acordo com sua grande habilidade para a caça: quanto melhor caçador era um homem mais atraente era a uma mulher. Algumas sociedades de caçadores-coletores não pareciam valorizar a virgindade feminina.
Nessas sociedades, a atividade sexual era mais ou menos precoce e admitia-se a pluralidade de parceiros. Alguns grupos mantinham relações monogâmicas ou a monogamia seriada (ou seja, fidelidade a um parceiro durante algum tempo e posterior busca por outro parceiro). Havia uma relativa liberdade na escolha de parceiros para fins sexuais e a escolha era, em geral, determinada por atributos físicos apreciáveis, ou pela habilidade de caça.
Com o advento da agricultura – um marco da historia da humanidade – por volta de 9000-8000 a. C. – instaurou-se um novo sistema econômico na História. Os seres humanos não careciam mais de se deslocar incessantemente de um lugar para outro, podendo estabelecer-se num determinado local, por muito tempo.
Com o estabelecimento de novos padrões econômicos, propiciados pela agricultura, modificou-se a estrutura da sexualidade. Ensina-nos Stearns, nesse tocante, o seguinte:

“Os padrões agrícolas de sexualidade refletiam um novo conjunto de necessidades e oportunidades econômicas, e os efeitos demonstram o quanto a sexualidade humana pode se tornar flexível em face de novas conjunturas.”
(p. 29)
Vale dizer que foi nas condições de vida baseada numa economia agrícola que se originaram as desigualdades: uma minoria de pessoas, entre as quais estavam proprietários de terra, sacerdotes, mercadores, passou a gozar de privilégios que não eram acessíveis a camponeses. Os que detinham maior poder econômico eram mais desejáveis sexualmente; além disso, podiam desfrutar de práticas sexuais diferentes, que eram impossíveis aos menos abastados.
Com a criação de vilarejos que se situavam contíguos, a maior parte das famílias morava muito próximas umas das outras, o que possibilitou mais oportunidade para a supervisão e controle do comportamento sexual, desempenhados, principalmente, por pais e parentes mais velhos.
É nesse período que se estabelecem, propriamente, os regimes patriarcais, já que as sociedades agrícolas passaram a adotar medidas que visavam a assegurar a paternidade, mediante a criação de regras para controlar a sexualidade feminina. Assim, instauravam-se diferentes padrões sexuais para homens e mulheres. Ensina-nos Stearns a esse respeito:

“Todas as sociedades agrícolas tornaram-se, de certo modo, patriarcais – isto é, dominadas por homens (de pai para filho); e uma expressão fundamental do patriarcado foi o impulso de controlar a sexualidade feminina e diferenciar padrões de gênero”.
(p. 31)

A preocupação exacerbada com o controle da sexualidade feminina deu origem ao sentimento de ciúme. Diferentemente do que sucedia nas sociedades caçadoras-coletoras, que não davam tanta importância à possessividade sexual, nas sociedades agrícolas, o ciúme tornou-se uma emoção complicadora nos relacionamentos, complicação que se estende até os dias de hoje.
De passagem, vale notar que a preocupação em conter os excessos sexuais advém da observação da própria atividade sexual entre os animais, propiciada, evidentemente, pela vida agrícola. Os homens procuraram, desde então, estabelecer padrões sexuais diferentes dos padrões sexuais dos animais: aqueles deveriam ser mais respeitosos e dominados. Evitavam-se, assim, comportamentos animalescos nas práticas sexuais humanas.
A arte, nesse período, continuou a privilegiar a sexualidade masculina, muito embora expressasse uma preocupação com a relação entre sexualidade e fertilidade. A fertilidade sexual era associada à fertilidade agrícola e a figura da mãe foi destacada.
São nas condições agrícolas de vida que surge, portanto, o papel da mulher-mãe e protetora do lar. As mulheres passavam mais tempo se ocupando dos preparativos do parto e cuidando dos recém-nascidos, ao contrário do que sucediam com as mulheres das sociedades calcadas na coleta e na caça.
De passagem, novamente, vale notar que a masturbação passou a ser desaprovada, em certas sociedades, em virtude da ênfase no sexo com fins procriativos. O judaísmo, por exemplo, a rotulava de prática pecaminosa; outras sociedades, entretanto, embora a desaprovassem, não lhe atribuíam natureza de pecado.
Tenho insistido em que havia sempre uma necessidade de controlar a sexualidade feminina, com vistas a um controle correlato: o da natalidade. Em partes do nordeste da África, originou-se o costume da circuncisão feminina. A remoção do clitóris se dava no início da puberdade e visava à limitação do prazer sexual feminino. Novamente, aqui, a prática visava ao controle da sexualidade feminina.
Essa incessante preocupação com o controle da sexualidade feminina culminou com a formulação de códigos legais e religiosos que procuravam garantir a fidelidade sexual das mulheres. Na Mesopotâmia, o Código Hamurabi, instituído por volta de 1700 a.C., rezava que aos homens era permitido manter concubinas e amantes, enquanto as esposas não tivessem filhos, mas a esposa gozava de posição superior à concubina. A monogamia coexistia com a poligamia.
Em relação ao estupro, a lei judaica o tratava como crime, mas não sem a observação de que uma mulher que fosse estuprada deveria provar que a relação sexual se deu sem seu consentimento.

“O estupro comprovado de uma mulher casada era passível de punição com pena de morte (assim como o adultério, embora aqui para ambas as partes); mas o estupro de uma mulher solteira era considerado um crime não contra ela, e sim contra o pai, que era “dono” da filha e, portanto, tinha sua propriedade aviltada – o estuprador deve se casar com a mulher (mesmo contra a vontade dela). A Bíblia apresenta diversas histórias de estupro, incluindo algumas em que o estuprador é perdoado por causa de suas ligações com autoridades. No caso da lei judaica, assim como em outras sociedades, a preocupação com o estupro demonstrava que episódios de sexo forçado de fato ocorriam e que violavam normas aceitas; mas também fica claro que quase sempre as mulheres estavam bastante vulneráveis, e que o estupro era tido como uma violação da honra da família do que um ataque propriamente à mulher”
(p. 43)

Também foi neste período que surgiu a prostituição. Em decorrência da crescente especialização da economia, e a introdução do dinheiro, criaram-se condições para que mulheres (às vezes, também homens, em prática homossexuais) pudessem vender favores sexuais. As prostitutas, talvez, fossem as únicas mulheres livres da dominação masculina, muito embora ocupassem um nível baixo na escala social. Em sua origem, a prostituição tinha valor elevado, dada a crença na suas associações com deuses e deusas. No antigo Israel, há evidências de “prostitutas sagradas”.
A prostituição surge num contexto em que a sexualidade estava cerceada à função reprodutiva e submetida, portanto, ao controle permanente. As prostitutas representavam, assim, oportunidades para que homens dessem vazão as suas necessidades sexuais. Claro é que também a prostituição contribuiu para instaurar práticas de escravidão, já que muitas mulheres capturadas na guerra e pertencentes a grupos conquistados eram destinadas a essa forma de vida.
Como nos ensina Stearns, sobre a herança legada pelas sociedades agrícolas, no tocante à sexualidade,

“As primeiras sociedades agrícolas deixaram um legado para a sexualidade humana que, em certa medida, perdura ainda hoje. Novas distinções entre homens e mulheres em termos de sexualidade foram fundamentais. A prioridade dada ao sexo com fins reprodutivos, mas com restrições comunitárias, não eliminou a noção do sexo como prazer, e certamente não evitou uma ampla gama de efeitos e reações, de acordo com regiões particulares e classes sociais particulares, mas, em contrapartida, criou algumas novas tensões e incertezas”

(pp. 44-45)

Situando nossas considerações na Antiguidade Clássica, particularmente na China da dinastia de Zhou, em meados de 1050, e com a introdução do confucionismo cuja doutrina servia de um guia moral na base do qual os homens deveriam viver, buscando a realização de suas virtudes, observaram-se poucas mudanças. A virilidade e as façanhas sexuais masculinas ainda eram valorizadas, embora o desejo sexual da mulher fosse levado em conta. Naquele período, produziram-se muitos manuais de sexo, destinados a homens e mulheres, o que indicava certa equiparação sexual entre eles.
Havia também uma tolerância à masturbação, inclusive feminina. Por outro lado, as mulheres eram proibidas de fazer sexo antes do casamento, para que, assim, se mantivessem interessantes aos seus futuros maridos. Uma mulher que já não fosse virgem tenderia a ser abandonada pelo marido. E o temor ao abandono serviu de uma regra moral para que elas se mantivessem virgens.
Evidentemente, a repressão de sua sexualidade incutia-lhes uma curiosidade e ansiedade pela primeira relação sexual, sempre nos limites do casamento. A virgindade feminina era zelada pelos pais, já que sua perda significaria a possibilidade de desinteresse matrimonial pelo pretendente. As mulheres se casavam muito cedo, pouco depois da puberdade; os homens, ao contrário, porque precisavam alcançar certa estabilidade econômica, casavam 10 ou 15 anos mais tarde. Isso significa também que eles já se casavam com grande experiência sexual (já que continuavam a ter acesso às prostitutas). Tal experiência lhes permitia, evidentemente, maior controle sobre a vida sexual de suas esposas. Deve-se ter em conta que a valorização da virgindade da mulher visava sempre ao controle de sua sexualidade, já que virgindade era condição necessária para arranjos matrimoniais. Uma mulher sexualmente inexperiente era mais facilmente submetida ao poder do marido.
A necessidade de dispensar atenção especial ao comportamento sexual feminino decorria do interesse em que os homens estivessem certos de que teriam gerado os próprios filhos. E era desejável que estes fossem varões.
As regras confuncionistas relativamente à vida conjugal estabeleciam que maridos e esposas não mantivessem relações sexuais fora do leito conjugal. Mas os homens gozavam de liberdade, podendo recorrer a práticas sexuais extraconjugais; as mulheres, oficialmente, não.
Ao final do período clássico, na China, o regime sexual, razoavelmente padronizado, estabeleceu uma distinção entre mulheres respeitáveis e mulheres não-respeitáveis. Estas identificavam-se com as prostitutas, muito embora algumas delas pudessem, eventualmente, ser elevadas à condição de concubinas. As mulheres respeitáveis, por sua vez, sofriam maiores sanções à sua sexualidade.
Entre os antigos gregos, continuou-se a valorizar o controle e a reclusão femininas, bem como a virgindade antes do casamento. Os casamentos, como em todas as sociedades agrícolas, eram assentados em arranjos econômicos, e não pela atração sexual. A cultura mediterrânea valorizava, oficialmente, a monogamia.
Na Grécia Antiga, era evidente que as mulheres ocupavam posição de considerável desrespeito. Eram vistas como criaturas libertinas e imorais naturalmente, o que lhes acarretava o peso de um controle sexual constante. Já as respeitáveis eram cobertas com vestes que não deixassem à mostra partes do corpo que estimulassem o apetite sexual masculino. Os homens, a seu turno, podiam, nas competições atléticas, exibir sua nudez parcial ou total. A atuação das mulheres, na esfera pública, cingia-se à participação em festivais agrícolas e ao auxílio em atividades religiosas, o que servia de meio para conservar sua abstinência sexual.
Houve mulheres que ascenderam socialmente, como a jovem Aspásia, embora ocupasse apenas o papel de concubina. As que ocuparam o papel de cortesãs, como Elpinice, também gozaram de maior prestígio. Elas eram promíscuas e sua conduta contrariava os padrões normais da época.

“Em geral, os gregos parecem ter considerado a atividade sexual como algo normal, mas com estrito controle das mulheres, regulação cujo intuito era concentrar a participação feminina na reprodução e fidelidade. Os homens dispunham de maior liberdade de ação e tinham à disposição os serviços de grupos especiais de mulheres, mas também faziam uso de outros meios aprovados. Contudo, mesmo a sexualidade masculina podia ser influenciada por uma preocupação bastante difundida com o excesso de prazer: os gregos acreditavam na importância da moderação em todas as áreas e, havia a ideia de que os orgasmos podiam entorpecer a capacidade intelectual pelo menos temporariamente”
(pp. 57-58)

É claro que a emancipação da mulher não se reduz à sua emancipação sexual, ou seja, a conquista de direitos sobre o domínio do próprio corpo e a liberdade de expressão de sua sexualidade; sua emancipação contou com reivindicações e lutas nos campos políticos, culturais, ideológicos e econômicos. Decerto, o acesso crescente à educação e ao mercado de trabalho (ocupando funções que, outrora, lhes eram vedadas), não sem a luta incessante por condições igualitárias de direitos (como salário igual ao dos homens, por exemplo), a luta por maior participação política (que culminou com a ascensão ao poder presidencial, no Brasil, por exemplo, de uma mulher) foram determinantes para sua liberação. Educação e trabalho (não-alieanado, dirão os marxistas) sempre estiveram e estarão na dianteira no longo processo de emancipação não só das mulheres, mas do gênero humano. Nesse sentido, a emancipação feminina deve não só representar, mas também criar condições para a emancipação do próprio gênero humano – tese com a qual as feministas, atualmente, parecem estar de acordo.
Todavia, como vimos, a sexualidade sempre foi um campo de tensões entre os gêneros e sempre serviu de meio para conservar certas condições de submissão, exploração e opressão em que vivia a mulher e que contribuiriam mais tarde para estabelecer o sexismo, mais uma dentre as muitas formas de preconceito, as quais as sociedades modernas têm-se encarregado de enfrentar.