O Deus cartesiano
No caminho da autonomia
secularizadora
Introdução
Atendo-se à Revelação, o teólogo do
século II, Orígenes, preconizava que o mundo foi criado por Deus, ou melhor,
pelo Lógos. Para a filosofia cristã, Deus é o ser verdadeiro que, segundo
Clemente de Alexandria, teria sido entrevisto por Platão. Santo Agostinho, o
maior pensador da Antiguidade posterior cristã, pensava Deus como a Verdade e a
Luz Imutável, a cuja busca consagrou grande parte de sua vida, após a conversão
ao cristianismo. Para Agostinho, todas as coisas foram criadas por Deus e
constituem elas reflexos da sabedoria divina.
Em linhas gerais, a
doutrina de Deus da filosofia cristã pode ser descrita como se segue:
1) O Novo Testamento adotou
completamente a fé no Deus do Antigo Testamento, de sorte que, para os
cristãos, Deus é o fundamento absoluto do Ser. Ao mesmo tempo, é também o Deus
vivo e pessoal, livre e onipotente da criação, da revelação e da salvação. Esse
Deus é infinitamente superior ao mundo e incognoscível, muito embora seja tão
próximo e familiar que torna possível ao homem estabelecer uma relação íntima e
pessoal com ele. É assim que o homem se aproxima de Deus, reconhecendo-o e
percebendo-o.
2) Há duas novidades que
merecem destaque na concepção cristã de Deus. A primeira diz respeito à crença
em que Deus atua não só na história do povo de Israel, mas também na história
de toda a humanidade. O cristianismo enfatizou a universalidade da ação
salvífica de Deus, que transforma a história humana numa história sagrada. A
segunda novidade consiste na afirmação de que Deus é amor. Acresce-se a isso a
convicção de que Deus é Pai, Pai de amor, que se comisera dos homens, que põe
sua onipotência a serviço do amor, dando testemunho desse amor na pessoa de
Jesus Cristo, o qual é concebido como o próprio Deus que se fez carne para
salvar a humanidade de seus pecados.
3) Finalmente, a
compreensão cristã de Deus abriga a natureza trina de Deus: Pai, Filho e
Espírito. Essa doutrina, ainda que contida nas epístolas paulinas e no
Evangelho de Mateus (28:19), só viria a consagrar-se como conteúdo de fé nos
concílios da Igreja dos séculos IV e VI, após árduos conflitos. A doutrina da
Trindade, como ficou conhecida, não se limitando ao pensamento teológico,
penetrou o pensamento filosófico até a Idade Moderna. Essa doutrina não
obnubila a natureza una de Deus. O Deus único vive na trindade de pessoas e sua
unidade encerra, originalmente, a multiplicidade. Um mundo plural de coisas finitas
só poderia provir de um Deus que encerra em si uma multiplicidade. É porque
Deus é a plenitude infinita do Ser, da vida, inclusive da vida
espiritual-pessoal, e do amor, que ele se basta a si mesmo. Para ser Deus, ele
não necessita do mundo nem dos homens.
Conquanto se admita que a
antropologia cartesiana tem raízes em Agostinho, o Deus de Descartes é distinto
do Deus de Santo Agostinho (e poderíamos dizer de grande parte dos autores
cristãos da tradição). Duas são as questões que me ocuparão, portanto: qual é a natureza do Deus cartesiano? e qual estatuto tem esse Deus em sua
antropologia?
Intentando responder aos
céticos, para os quais a verdade incondicionalmente válida parece inalcançável,
Santo Agostinho sustentará que encontramos a verdade em nós mesmos. Para
demonstrá-lo, ele nos faz ver que quem duvida sabe que duvida, sabe que esse
saber é verdadeiro e tem certeza disso. Há, pois, um saber na dúvida, um saber
que não é elidido pela dúvida. Mesmo duvidando, sei que duvido, que penso, que
vivo e procuro a verdade segura. Ora, vê-se que Agostinho, antes mesmo de
Descartes, chegou à certeza imediata do ato espiritual da reflexão existente
por si (Posto que me engane, sou).
Não devemos daí concluir
que o cogito cartesiano resulte de mera apropriação do cogito agostiniano. O
cogito cartesiano inscreve-se num horizonte hermenêutico outro e específico.
Convém, no entanto, deter-nos um pouco mais em Agostinho, antes de contemplar o
cogito cartesiano.
Se encontramos a verdade
em nós mesmos, então não só encontramos o saber sobre nós mesmos, mas também o
saber sobre a verdade geral e necessariamente válida. Encontramos não só
verdades contingentes factuais, mas também verdades necessárias da razão, leis
do pensamento e do ser, que, estando em nosso pensamento, fornecem-lhe as
normas. Agostinho retoma isso especialmente de Platão. O que é propriamente
verdadeiro, para Agostinho, não é o fato singular na transitoriedade dos
acontecimentos, mas a verdade eterna.
Essa verdade eterna é imutável. Donde provêm, pergunta Agostinho, as “verdades
eternas”, como as das leis lógicas, matemáticas, éticas e metafísicas? Não
poderiam elas provir da experiência sensível, porquanto a experiência sensível
é mutável. Há normas, em que se funda nossa experiência, que não poderiam
provir dos sentidos. Assim, por exemplo, podemos apreender a ideia de unidade,
mas não podemos tirá-la da multiplicidade das impressões sensíveis; essa ideia
é anterior a estas impressões. A unidade é uma verdade eterna que governa nosso
pensamento. Seria o nosso pensamento a origem dessa ideia? Agostinho dirá que
não, pois também nosso pensamento está em constante mudança. Seguindo, em
parte, Platão, Agostinho assumirá que há ideias eternas que constituem condições
normativas anteriores ao pensamento. Mas, ao contrário de Platão, tais ideias
eternas não subsistem por si mesmas, mas demandam um fundamento incondicionado
e imutável de sua validade. Tal fundamento Agostinho identifica com Deus, “a
verdade eterna mesma”. As ideias eternas são ideias no pensamento de Deus.
Uma primeira distinção
entre o cogito agostiniano e o
cartesiano deve ser já salientada: em Agostinho, o saber sobre o próprio pensar
prende-se à experiência viva de si mesmo. Na medida em que penso e vivo, que penso
na vida concreta, é que sei e tenho certeza de mim mesmo. Sucede diferente com
Descartes, em cuja filosofia o ego
cogitans (eu pensante) é um sujeito puro que, sem mundo e incorpóreo
(aparentemente), se contrapõe à objetividade.
3. O cogito cartesiano
Não sem razão Descartes é
apontado como o pensador que marca a etapa antropocêntrica da filosofia
ocidental. Descartes é quem marca filosoficamente a passagem do Medievo para a
Modernidade. Ele foi, por um lado, o último medieval; e, por outro, o primeiro
“moderno”. Tendo-se dissipado a certeza produzida pela hermenêutica cristã,
coube a Descartes restituir os fundamentos da construção do cogito. Descartes
trouxe-nos de volta à consciência a finitude e a contingência humanas, exatamente
no momento em que se esvaiu a certeza oferecida pela fé cristã. Sua antropologia
é devedora da filosofia agostiniana: também Descartes enfatizou a relação entre
conhecimento e vontade, mas o fez sem o fundo cristão que sustentou a visão
harmônica da época de Agostinho. Com Descartes, põe-se em primeiro plano a
problemática do conhecer e as aporias da metafísica da subjetividade. Seu
interesse consiste em assegurar-se do eu (quem sou e como conheço) antes de
propor o modo pelo qual se pode chegar ao mundo e a Deus. Descartes supõe a
existência de um sujeito emancipado de uma ordem objetiva e da ordem cósmica.
Abre caminho para a liberdade e para o afastamento do determinismo. Em cena,
irrompe o eu autônomo e conquistador que pretende assegurar-se de si mesmo e
encontrar um lugar seguro onde possa restabelecer sua relação com Deus e com o
mundo.
O cogito ergo sum desembocará num solipsismo monista: afirma-se um eu
desmundanizado e contraposto ao mundo empírico. Descartes parte do eu como
evidência ôntica. Esse eu adquire consciência de si por auto-reflexão. O cogito cartesiano é puro, é o da
consciência humana, transcendente à experiência de um eu empírico; é um eu
solipsista que não se reconhece como parte de um nós nem como enraizado na
tradição.
Com a hipótese do gênio
maligno, ou seja, de um Deus que possa nos enganar, Descartes deixou entrever o
abandono da confiança medieval em um Deus responsável pela verdade e o
fundamento do ser, como também afirmou uma postura radical de autonomia
secularizadora. A partir de então, deve-se assegurar da veracidade do próprio
Deus. A hipótese do gênio maligno, inspirada em Ockham, põe em xeque a
veracidade de Deus como o que torna possível ao entendimento humano atingir a
verdade. Em contrapartida, mantém-se a consciência certa do eu, a partir da
auto-reflexão do cogito. Duvida-se de
tudo, mas nunca de si (porque Deus, sendo infinitamente bom, não pode fazer com
que eu duvide de minha existência pensante). É importante reter que não é mais
Deus a garantia última da verdade, mas o eu auto-suficiente que se fia das
ideias claras e distintas.
Descartes não fez senão
lançar as bases da crítica religiosa posterior, reivindicando a autonomia do cogito face à heteronomia do homem
religioso que confia em Deus. Assim, se preparou o terreno para Voltaire, o
qual estendeu a dúvida à justiça de Deus (o problema da teodiceia). A isso
acresça-se que, submetendo ao crivo racional a afirmação de Deus e à busca por
certezas sólidas, Descartes pavimenta o caminho que trilharia Feuerbach para
contestar a existência e a essência de Deus.
É preciso enfatizar, no
entanto, que Descartes não era ateu, tampouco duvidava da existência de Deus. O
seu Deus, no entanto, não é um Deus a quem se devem dirigir orações. Deus é
necessário ao pensamento; é uma ideia inata no homem, o qual tem em Deus seu
fundamento último. Nesse sentido, Descartes continua a tradição do argumento
ontológico. Se é verdade que a reflexividade interiorizante encontra no cogito seu fundamento último, não deixa
de descobrir a necessidade de Deus que é o substrato ontológico que provoca no
homem a ideia de Deus. Descartes não chega a levar a efeito a dúvida radical.
Por outro lado, Deus é quem garante a veracidade do homem e, em última
instância, é responsável por estabelecer a relação entre o homem e o mundo.
É chegado o momento em
que o estatuto de Deus se esclarece: o postulado de Deus, na antropologia
cartesiana, torna possível estabelecer a correlação do cogito com a realidade. Afinal, Deus é o ser perfeito que não pode
nos enganar. Trata-se de um Deus a que Descartes recorre pela necessidade de
explicar o homem. Sem Deus, não se pode afirmar absolutamente a verdade. É
verdade, por outro lado, que Descartes reconhece a finitude do cogito que não pode ser a origem das
ideias do infinito e da contingência, a qual não permite que se alcancem as
certezas absolutas. Ao mesmo tempo, conserva o ideal de chegar a essas certezas
e afirma o eu como fundamento absoluto e indubitável.
Quando ponderamos sobre a
autonomia do cogito cartesiano, tendo em conta a postulação de Deus, notamos
que ela sofre um abalo: pois o cogito
precisa assumir a ideia de Deus como colocada em si mesmo pelo próprio Deus, a
fim de assegurar-se de si mesmo enquanto cogito.
O sujeito está, portanto, constituído por uma ideia que ele mesmo não produziu
- circunstância esta que faz eco ao pensamento de Agostinho e de Anselmo.
Se, por um lado,
Descartes assume Deus como fundamento da confiança na razão humana; por outro
lado, fornece uma imagem humana de Deus, para, em seguida, postulá-lo como
fundamento das elaborações do cogito.
Em certa medida, Deus só é, enquanto eu tenho a ideia de Deus; mas a ideia de
sua perfeição e onipotência é que garante a existência de Deus fora de meu
pensamento.
Em Descartes, pode-se
dizer que parece subsistir muito pouco do Deus bíblico criador, Pai do amor e
de infinita benevolência; se há algo dele, não é mais que uma imagem pálida de
sua transcendência. O Deus cartesiano é um Deus do pensamento, um Deus que é
postulado pela racionalidade, a fim de assegurar a certeza do eu pensante e da
existência do mundo.