“O mundo não é dado a principio.
Ele se faz através da estratégia
humana de significação”.
(Patrick Charaudeau)
Os saberes das
Letras
Eis o essencial:
“A linguagem é própria do homem. Desde a Antiguidade
que os filósofos o repetem, o que vem sendo confirmado pelas ciências sociais
através de suas análises e experimentos.
É a linguagem que permite ao homem pensar e
agir. Pois não há ação sem pensamento, nem pensamento sem linguagem. É também a
linguagem que permite ao homem viver em sociedade. Sem a linguagem ele não
saberia como entrar em contato com os outros, como estabelecer vínculos
psicológicos e sociais com esse outro que é, ao mesmo tempo, semelhante e
diferente. Da mesma forma, ele não saberia como constituir comunidades de
indivíduos em torno de um “desejo de viver junto”. A linguagem é um poder,
talvez o primeiro poder do homem.
Mas esse poder da linguagem não cai do céu.
São os homens que o constroem, que o amoldam através de suas trocas, seus
contatos ao longo da história dos povos. Assim, é forçoso considerar que a
linguagem é um fenômeno complexo que não se reduz ao simples manejo das regras
de gramática e das palavras do dicionário, como tendem a fazer crer a escola e
o senso comum. A linguagem é uma atividade humana que se desdobra no teatro da
vida social e cuja encenação resulta de vários componentes, cada um exigindo um
“savoir-faire”, o que é chamado de competência”.
(Patrick Charaudeau – p. 7)
Estamos na linguagem e a linguagem está em nós. É disto que se
trata: de paixão. Do que sofremos e
do que diante do qual nossa vontade se cala. É de passividade que se trata,
portanto da paixão, do que se sofre e do que faz sofrer. Na filosofia
aristotélica, a paixão inclui-se entre as categorias primeiras do ser, a saber,
a quantidade, a qualidade, a relação, o tempo, o lugar, a situação, a ação e a
posse. Nela, paixão pressupõe a ideia de passividade (“ ser queimado”, “ser
ferido”). É também da paixão romântica que se trata, que não é senão desejo,
exaltação, sentimento impetuoso, devastador. Da paixão que nos arrebata e nos
impele a agir segundo o desejado. Para o bem ou para o mal, a paixão nos move.
Seu valor depende do objeto do desejo. Se o álcool ou entorpecentes, paixões
destrutivas; se o amor à verdade, paixão nobre. É da paixão nobre que se trata,
portanto. Porque do amor à linguagem, do amor ao ensino pela/sobre a linguagem.
Não é da paixão, contudo, que trata este texto, visto que ela é antes o que
anima meu espírito a escrevê-lo.
Pensamentos são
lampejos do espírito; aparições intangíveis que nos despertam. Por vezes, é
preciso estampá-los numa folha de papel para que o essencial deles não se nos
perca. Receio não tive o devido cuidado ultimamente, pois que deixei escapar
pensamentos grávidos de reflexões. É vão tentar recordá-los agora. Outros
pensamentos se fazem necessários ao desenvolvimento deste texto; possível é que
guardem certa afinidade com aqueles que me esqueceram.
Absorto em leitura
variada, tendo a alma abarrotada de questões, luto cotidianamente contra o
excesso de consciência e persevero na busca por podar a excrescência. De tantos
temas que me sabem ao espírito, quais me são mais interessantes ou urgentes,
para fins de verbalização? Eis outra questão com a qual me debato. Decerto, a
linguagem está entre essas questões mais interessantes; no entanto, tão-logo me
aproxime dela, avulta-me à consciência sua fascinante complexidade e, ao invés
de me deter a explicitá-la, deixo-me admirá-la com meus pensamentos (silenciados,
é claro). Receio que eu não tenha podido despertar meus alunos para o
maravilhoso universo da linguagem. Queria ter podido dar-lhes a conhecer outras
tantas coisas que sei (porque aprendi, lendo) sobre a linguagem e que eles
ignoram. Talvez, seja chegada a hora de tratar um pouco dessa complexidade. Elenquei
alguns temas que poderiam engendrar reflexões futuramente. Sete temas que me
parecem sobremaneira interessantes. A diversidade que eles parecem evocar ao
espírito é apenas aparente, porque, de resto, todos tocam ao âmbito da
linguagem, uns mais diretamente; outros menos. Mas – insisto – todos dizem
respeito à linguagem, esse maravilhoso fenômeno psíquico-biológico e
sócio-histórico que a tudo perpassa e que nos constitui enquanto seres humanos, homo loquens.
Tema 1 – A fabricação do real
De fato, um tema
essencial. O que é isso que chamamos realidade?
Ela existe independentemente de nós? Que relação tem ela com a linguagem? Como
estar certos de que vivemos num mundo real e não virtual? Que relação há entre
a realidade e o nosso cérebro? Que papel desempenha a cultura em relação à
realidade? E as questões podem ser multiplicadas...
Tema 2 – A questão da verdade e da teoria
O que é a verdade?
Como a ciência estabelece o que é verdade? Que relação há entre verdade e
realidade? Ou entre verdade e teoria? Ou entre teoria e realidade? Eis no que é
preciso pensar e repensar: a relação entre verdade, realidade (impensável sem a
linguagem) e teoria? A verdade é relativa ou absoluta? O que significa dizer
que uma proposição como “Está chovendo agora” é verdadeira? A verdade é um
valor? O que nos impede de atribuir valor de verdade a enunciados como “Talvez,
chova mais tarde” ou “Eu espero viajar no mês que vem”? Que relação há entre
verdade e linguagem? Questões para a filosofia, é claro!
Tema 3 – A questão da identidade
Outra questão que me
move a alma. O que é identidade? Depende do campo teórico em que nos situamos
(da filosofia, da psicologia, das ciências sociais ou das ciências
linguísticas). As identidades são construídas na e pela linguagem. Não há
identidades fora de seus quadros. É no interior do discurso que elas são
construídas e reconstruídas continuamente. Daí podermos falar, com Charaudeau,
em identidade discursiva, indissociável da identidade social. Aprecio,
especialmente, a forma como o autor francês expõe o paradoxo subjacente à
construção da identidade, que em si mesmo, nos estimula a aventurar-nos nesse
terreno: “cada um precisa do outro em sua
diferença para tomar consciência de sua existência, mas ao mesmo tempo
desconfia deste outro e sente necessidade ou de rejeitá-lo, ou de torná-lo
semelhante para eliminar a diferença. O risco está no fato de que, ao torná-lo
semelhante, perca um pouco de sua consciência identitária, visto que esta só se
concebe na diferenciação”.
(http://www.patrick-charaudeau.com/spip.php?page=imprimir_articulo&id_article=243)
(http://www.patrick-charaudeau.com/spip.php?page=imprimir_articulo&id_article=243)
Tema 4 – A questão
do ethos
Outra questão cujo
desenvolvimento só é possível, se levamos em conta os atos de linguagem, porque
do ethos, que é a imagem de si
construída pela tomada da palavra pelo sujeito, nada se poderá dizer. Em todo
ato de linguagem, quando o locutor toma a palavra constrói uma imagem de si
mesmo, com vistas a garantir seu sucesso argumentativo; mas também constrói uma
imagem de seu interlocutor; e este constrói uma imagem de si mesmo e do locutor
(imagens recíprocas). Ambos, ao
usarem a linguagem, fazem uma representação de sua pessoa e um da pessoa do
outro. Daí para o conceito de faces,
do sociólogo Erving Goffman, é um passo. A noção de ethos remonta à retórica, desenvolvida por Aristóteles e reinterpretadas
por Cícero e Quintiliano, posteriormente. A noção de ethos, como imagem de si como produto do modo como se fala e,
portanto, discursivamente construída, está relacionada à noção de identidade.
Tema 5 – A polifonia
e a intertextualidade
Aqui, conviria
apresentar uma proposta de interpretação e compreensão textual que fizesse ver
como a polifonia e a intertextualidade estão na base de toda e qualquer
manifestação de linguagem. É possível diferenciá-las? Se sim, o que as
diferencia? As duas noções, que estão inter-relacionadas, nos chama atenção
para o fato de que o nosso dizer se coloca numa cadeia de dizeres ou discursos
e de que ela se estabelece sobre esses já-ditos. A fala primeira ou o sujeito
adâmico são ilusões. Todo texto evoca outros textos; todo discurso é calcado
sobre discursos prévios com os quais se relaciona de algum modo; mas também
todo discurso projeta outros possíveis discursos-resposta. Falei em cadeias
discursivas, mas, na verdade, melhor será dizer memória discursiva, que consiste no espaço da memória social que é
condição para o funcionamento discursivo, já que é nela que o sujeito se
inscreve. Ela encerra acontecimentos exteriores e anteriores ao texto,
instaurando assim a interdiscursividade, que é constitutiva de toda prática de
discurso.
Tema 6 – A questão da ideologia
Questão intrigante,
por excelência. Complexa, por se prestar a diferentes enfoques, segundo as
teorias no interior das quais ela é tratada. Tantos especialistas já trataram
dela. Livros como O que é ideologia,
de Marilena Chauí; Ideologia, de
Terry Eagleton; A questão da ideologia,
de Leandro Konder, bem como, Um mapa da
ideologia, organizado por Slavos Zizek, nos ajudam a sobre ela pensar. E
como não citar os clássicos Ideologia
alemã e Manuscritos econômico-filosóficos,
de Karl Marx. Mas será em Bakhtin que encontraremos a consideração da relação
entre signo e ideologia. Como pensar em ideologia sem considerar as palavras,
signos ideológicos por excelência? Interessante é a crítica que Terry faz a
Marx nesse tocante.
Tema 7 – a questão da leitura
Todas as questões
ventiladas aqui são inesgotáveis, porque demandam sempre novos olhares. E a
questão da leitura não é diferente, especialmente quando, considerando-a com
mais acuro, nos torna forçoso reconhecer que: a) a leitura é necessária ao
aumento da quantidade de leitores-consumidores de livros, garantindo a
lucratividade de um mercado do livro e da cultura; b) por outro lado, está ela
na base da aprendizagem, tornando possível a elevação intelectual e o desenvolvimento
da consciência crítica dos cidadãos. Do prisma do mercado, seu estímulo é
interessante porque produz leitores para o consumo de livros; do ponto de vista
da educação, é ela fomentadora da liberação do indivíduo, que se apropria do
conhecimento e desenvolve sua consciência de cidadania.
Essa dualidade que
se acha na base da questão da leitura nos leva a pensar sobre o papel da escola
que, originalmente, (e ainda hoje, em nossa sociedade) esteve a serviço de uma
pequena elite.
“(...)
se as práticas econômicas encontram-se na origem da escrita, as práticas
religiosas, a que se vinculam as literárias e as jurídicas, determinam a
organização da escola, que se encarregará da difusão daquela ferramenta da
linguagem verbal. A escola será dominada pelos religiosos, e seus
freqüentadores comungarão os ideias sagrados de que a escrita igualmente se
reveste entre seus usuários. A utilização da escrita supõe, em todos os casos,
o domínio de seu código, porque não se trata apenas de produzir textos, mas de
entendê-los”.
(Regina Ziberman, p.
18 – in: Escola e Leitura, velha crise,
novas alternativas)
Eis tudo que eu
queria dizer aqui, nas palavras de Antoine, em Como me tornei estúpido. Embora eu saiba que nunca dizemos tudo, só
experimentamos a ilusão de tê-lo conseguido dizer:
“(...)Eu
não consigo deter o meu cérebro, diminuir o seu ritmo. Sinto-me como uma
locomotiva, uma velha locomotiva que se precipita nos trilhos e que não poderá
jamais parar, porque o combustível que lhe dá a sua potência vertiginosa, o seu
carvão, é o mundo. Tudo o que vejo, sinto, escuto se engolfa no forno do meu
espírito e o impele e o faz funcionar em pleno vapor. Tentar compreender é um
suicídio social, e isso significa já não desfrutar a vida sem sentir-se, a
contragosto, e ao mesmo tempo, uma ave de rapina e um abutre que despedaça seus
objetos de estudo”.
(p. 60)
Como deter a
efervescência dos pensamentos que se vão acumulando na caldeira do espírito? A
importância que os livros têm para mim pode ser expressa na seguinte frase: eles substituíram os brinquedos da infância.
Hoje, na fase adulta, entretenho-me com os livros; é disso que se trata quando
falo do espaço que os livros ocupam em minha vida. Na infância, era dos
brinquedos e das brincadeiras que eu me ocupava; na adolescência, das meninas.
Agora, os livros deram lugar aos brinquedos e às paixões primaveris. Pense na
criança que ganha um brinquedo e se alegra em dispor dele segundo sua fértil
imaginação e saberá como me sinto, ao debruçar-me sobre as páginas de um livro.