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quinta-feira, 1 de novembro de 2012

“O mundo não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui forma, sem nosso pensamento que lhe confere alguma ordem”. (Lia Luft)


                    
                                 
                                 Revisitando-me




Redescobrir-se... Revisitar-se... é privilégio de poucos. E se nos fosse possível reencontrar a nós mesmos no passado? Haveria alguma vantagem nisso? Malgrado a impossibilidade de voltarmos no tempo, podemos revistar o que fomos, em algum período pretérito da vida, por meio da leitura de nossos registros escritos. É a isso que me proponho neste texto. Reler-me.
Busquei em meu armário um conjunto de nove apostilas que reúnem textos diversos que escrevi ao longo dos últimos sete anos. Quase todas estampam na capa um título. Apenas uma, na verdade, não tem título. Uma delas ostenta o título Expressões do Espírito e seus textos foram produzidos no estágio mais acentuado da depressão. Abro parênteses para elucidar o que é depressão. Muitas pessoas confundem depressão com tristeza ou, por pura ignorância e preconceito, acreditam não ter ela qualquer gravidade. Na verdade, devemos falar em depressões (no plural).
Encontramos uma descrição de “depressão” bastante clara, em O que é neurose (2004), da psicóloga Maria Luiza Silveira Teles:

“Em qualquer tipo de depressão, costuma haver perda de vitalidade, perda de memória, dificuldade de concentração, perda de interesse pelas coisas ao redor, invasão de pensamentos negativos, ideias de culpa, baixa estima, autocensura, auto-reprovação, nenhuma perspectiva de futuro, sofrimento por antecipação. Ela pode vir acompanhada de fobia, pânico e hipocondria”.
(p. 43)

Salvo a perda de memória e a dificuldade de concentração, tive todos os demais sintomas. Havia, contudo, um interesse que eu conservei e graças ao qual, não sem a ajuda psicoterápica, pude emergir dos abismos psíquicos nos quais minha vida estava confinada: o interesse pelos livros.
Expressões do Espírito é uma coletânea de textos que versam sobre metafísica, Deus, cosmos, a realidade do eu (ou seja, o eu como instância psicológica), a condição de ser professor e temas filosóficos, como o da existência. Há textos de caráter mais intimista. Leiamos um fragmento do texto Existir é ser responsável. Nesse texto, me ocupei das filosofias de Sartre, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Embora o desenvolvimento do tema abrangesse a discussão sobre o pensamento desses três filósofos, eu não deixava de testemunhar minha própria visão sobre o ser eu:

“Há muito já reconheci minhas tolices, minhas incoerências e o absurdo de minha hipersensibilidade. No entanto, ainda não alcancei o poder de me valer das crises para promover meu crescimento humano. Este depende de nossa capacidade de compreender a vida numa dimensão muito maior e mais densa do que os retalhos de existência que revestem nosso cotidiano”.

Àquela altura, eu já estudava informalmente filosofia. E, à medida que fui aprofundando meus estudos, descobri na filosofia o poder de que eu precisava para me desafogar da depressão. Todos os textos revelam a busca incansável por um autoconhecimento.
Como eu pretendo dar a saber ao leitor um pouco do conteúdo de cada apostila, não vou me alongar sobre os pormenores de Expressões do Espírito. Limitar-me-ei a alusões gerais sobre os textos. O primeiro texto dessa coletânea intitula-se Reflexões dispersas. A influência da filosofia de Humberto Rodhem é notável. Rodhem propunha uma espiritualidade cósmica. Deus não poderia deixar de estar entre minhas preocupações. Também o pensamento de Allan Kardec, nome com que ficou conhecido Hippolyte Léon Denizard Rivail (seu verdadeiro nome), também exerceu sobre mim bastante influência. Era eu simpatizante da doutrina do espiritismo, postura esta a que não mais me inclino. Vejo-a com muita suspeita hoje.
A busca pela vida etérea é o segundo texto. Inicialmente, mostro-me saudoso e um pouco narcísico (compreensível, àquela altura, em alguém que estava enfrentando uma depressão). Fito os olhos no texto A centralidade do eu. Estampo aqui um trecho que testemunha meu estado de espírito naquela fase. Era eu um religioso crítico em profunda crise. Já um intelectual que precisava libertar-se dos grilhões da fé.

“O amor à vida. A gratidão infinda. A fé. A consciência da ventura, decorrente da dedicação e empenho ao labor do espírito. A dita. A família – ventre de minha vida. Essência do meu ser. Os livros. As palavras. Mares da lucidez e conforto. O saber. A busca incessante. O desbravamento. A insaciabilidade. A fome. O desejo irreprimível pela doçura dos versos. A personificação das palavras. O verbo santo. As preces à cabeceira da cama. A comunhão com o Divino. A ânsia pelo amor etéreo, pela unidade santa. A transcendência. A necessidade de superar o corpo e suas misérias. A consciência de que somos espírito com corpo. O conhecimento. A suavidade das rosas. A ternura das borboletas. A natureza policroma. O sol deitando seus raios luminosos sobre a janela. A oração – sufrágio dos aflitos. Um livro de Lia Luft:
“O mundo não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui forma, sem nosso pensamento que lhe confere alguma ordem”. ”

Impressiona-me como meu espírito estava muito impregnado da ideologia cristã. Aspirava ao asceticismo. Buscava um sentido transcendente para a vida, porque, àquela altura, o sentido estava estilhaçado, a vida não fazia sentido.
Há outra apostila, intitulada de Especulações filosóficasO saber pela palavra, que reúne textos sobre temática variada, muito embora atinente à filosofia. Homem de filosofia, leitura e imagem: o fascínio da televisão, racionalidade e pós-modernidade, pensamento e escrita, o que é a verdade, a expansão humana pela linguagem, as ondas da vida, o ser e o real: Parmênides e Platão – são os títulos que constam dessa coletânea.
Outra apostila, intitulada de Expressões da alma – o retorno ao interior, é também uma coletânea de textos com temática intimista. Meus textos quase sempre eram expressão da busca por um autoconhecimento pelos caminhos da filosofia e das religiões (no plural, porque me interessavam também o budismo e o espiritismo).  Os textos que se acham nessa coletânea apresentam os seguintes títulos: Os livros em mim, Eu sou o caminho, a verdade e a vida, Conhecendo o Budismo: Iluminação e Ilusão, Descaminhos ausentes, Con-versando sobre linguagem, Reminiscência: o despertar do conhecimento esquecido.
Tamanha a importância dos livros para mim, que no texto Os livros em mim, iniciei o primeiro parágrafo com as seguintes palavras:

“Ultimamente, meu espírito tem estado em ebulição. As ideias fervem amiúde como água borbulhante numa leiteira. É este o efeito benéfico dos livros: eles fazem a mente fervilhar. Num átimo em que fui tomado de uma emoção abrangente, que se expande para todas as células de meu corpo, injetando-me inquietude lírica, pensei se seria possível absorver todos os conteúdos livrescos, armazenando-os com saliência na memória. Delírio inconsistente!”

Polígrafo é o título de outra coletânea de textos. Polígrafo designa aquele que escreve sobre vários assuntos e esta coletânea encerra textos sobre temas diversos. Eis os títulos: Uma experiência inspiradora – o amor pela docência, O mundo ignoto: a incansável busca (texto que data de 26 de março de 2010), A ascensão espiritual: reconhecendo-se para além da materialidade, A importância de Ferdinand de Saussure e Noam Chomsky na formação acadêmica do graduando em Letras, O mundo através da palavra: a linguagem em meu Espírito.
Pensamentos e outros desvendamentos é outra apostila que reúne textos que versam sobre a formação do leitor crítico, a condição social humana, a sociedade de consumo, a contribuição de Noam Chomsky para a formação do professor de português, a consciência cósmica, a estruturação cósmico-humana, imagens e miragens no capitalismo avançado, a democracia no capitalismo avançado e as ideias de Marx e Engels. Outras duas apostilas estampam os títulos Releituras celestiais - espiritualidade e consciência cósmica e Meditações filosóficas.
Por fim, outra apostila encerra textos densamente líricos, entre muitos poemas. Na folha inicial, que não estampa um título, se topam fragmentos de outros textos que escrevi. O primeiro dos quais é bastante ilustrativo daquele período profundamente marcado pela interiorização e por uma expressão verbal muito intimista. Eu precisava haver-me comigo mesmo. O trecho a seguir fora mal compreendido pela minha psicóloga, que questionou a ideia de que “existir é condição necessária para a solidão”. Leiamo-lo:

Existir é condição necessária para a solidão. E muitos se espantam com a ideia de que uma pessoa pode sentir-se sozinha no meio de muitas pessoas: é que a mente tem esconderijos, espaços impenetráveis, caminhos obscuros, salões imensos, onde ressoam os gritos de um “eu” encarcerado, que, em algum momento de sua vida, deu-se conta do absurdo da existência”.

A doutora da alma queria me mostrar que a existência não leva necessariamente à solidão. Mas o que ela não percebeu foi o sentido que eu pretendia produzir quando usei a palavra existência neste texto. Num primeiro nível de sentido, parece que estou declarando o óbvio: só podem ser solitários os que existem. É necessário existir para ser solitário. No entanto, ela passou ao largo da significação da palavra quando consideramos a condição humana. Uma pedra existe tanto quanto eu, como presença no mundo. Mas, diferentemente desta pedra que se coloca à minha consciência como ser que existe enquanto totalidade em si mesmo, eu não sou aquilo que penso ser; o que sou me escapa. Além disso, eu sei que tenho consciência de que existo. A existência da pedra é bruta. Ela existe para uma consciência. Nós, seres humanos, existimos como seres conscientes da existência e seres autoconscientes vinculados a um mundo que buscamos compreender. O ser da consciência, ensina Sartre, “é um ser para o qual, em seu ser, está em questão o seu ser” (p. 122 – O Ser e o Nada.). Esse ser não coincide consigo mesmo, como no caso da pedra.
A existência a que eu me referia era, então, uma existência humana, portanto, impregnada de consciência. Uma existência que se coloca como um problema para o ser humano. Àquela altura, a minha existência enfrentava o fato mesmo de existir, tornava-se auto-reflexiva. Eu não escrevi “A solidão é condição necessária para existir”. Existimos sem que tenhamos de sentir-nos solitários. Aliás, existir é estar em relação com, é exteriorizar-se, é relação do ser que se projeta para o Outro. É movimento de abertura do ser. Mas há muitas pessoas que existem sem nunca colocar para o pensamento o problema de estar consciente da existência. O que significa existir quando a consciência apreende a existência, quando a consciência se defronta com a existência, quando se ocupa dela? Muitas pessoas não se preocupam com estas questões. Tão-só existem, vivem, ao sabor das vicissitudes. Para mim, a existência constituía (e ainda constitui) um problema que eu tinha de enfrentar. Quando tomei consciência do que é existir, vi-me imerso em solidão. Percebi que a ninguém mais isso parecia ser um problema. O existir aí não é a simples presença no mundo, mas a consciência do absurdo dessa presença. Minha busca era a busca pela potência de existir na solidão (experiência que encontramos no amor). Eu queria existir mais em minha solidão. Lendo Rubem Alves (“A solidão amiga”) aprendi a “ser mais” por causa da solidão, e não mais a despeito dela.
Hoje, reconciliado com a vida, liberto dos grilhões da fé e do dogmatismo religioso, pela descoberta do prazer filosófico, posso revistar-me lendo os textos daquela época para reencontrar-me aqui, amante das palavras e desejoso de viver.