Mostrando postagens com marcador Revelação. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Revelação. Mostrar todas as postagens

sábado, 16 de maio de 2015

"(...) é preciso necessariamente concluir, de tudo o que disse antes, que Deus existe: pois ainda que a ideia de substância esteja em mim por ser eu mesmo uma substância, eu não teria, porém, a ideia de uma substância infinita, eu que sou um ser finito, se ela não houvesse sido posta em mim por alguma substância que fosse verdadeiramente infinita" (Descartes)

                           
                    


                              O Deus cartesiano
                         No caminho da autonomia secularizadora



Introdução

Atendo-se à Revelação, o teólogo do século II, Orígenes, preconizava que o mundo foi criado por Deus, ou melhor, pelo Lógos. Para a filosofia cristã, Deus é o ser verdadeiro que, segundo Clemente de Alexandria, teria sido entrevisto por Platão. Santo Agostinho, o maior pensador da Antiguidade posterior cristã, pensava Deus como a Verdade e a Luz Imutável, a cuja busca consagrou grande parte de sua vida, após a conversão ao cristianismo. Para Agostinho, todas as coisas foram criadas por Deus e constituem elas reflexos da sabedoria divina.
Em linhas gerais, a doutrina de Deus da filosofia cristã pode ser descrita como se segue:

1) O Novo Testamento adotou completamente a fé no Deus do Antigo Testamento, de sorte que, para os cristãos, Deus é o fundamento absoluto do Ser. Ao mesmo tempo, é também o Deus vivo e pessoal, livre e onipotente da criação, da revelação e da salvação. Esse Deus é infinitamente superior ao mundo e incognoscível, muito embora seja tão próximo e familiar que torna possível ao homem estabelecer uma relação íntima e pessoal com ele. É assim que o homem se aproxima de Deus, reconhecendo-o e percebendo-o.

2) Há duas novidades que merecem destaque na concepção cristã de Deus. A primeira diz respeito à crença em que Deus atua não só na história do povo de Israel, mas também na história de toda a humanidade. O cristianismo enfatizou a universalidade da ação salvífica de Deus, que transforma a história humana numa história sagrada. A segunda novidade consiste na afirmação de que Deus é amor. Acresce-se a isso a convicção de que Deus é Pai, Pai de amor, que se comisera dos homens, que põe sua onipotência a serviço do amor, dando testemunho desse amor na pessoa de Jesus Cristo, o qual é concebido como o próprio Deus que se fez carne para salvar a humanidade de seus pecados.

3) Finalmente, a compreensão cristã de Deus abriga a natureza trina de Deus: Pai, Filho e Espírito. Essa doutrina, ainda que contida nas epístolas paulinas e no Evangelho de Mateus (28:19), só viria a consagrar-se como conteúdo de fé nos concílios da Igreja dos séculos IV e VI, após árduos conflitos. A doutrina da Trindade, como ficou conhecida, não se limitando ao pensamento teológico, penetrou o pensamento filosófico até a Idade Moderna. Essa doutrina não obnubila a natureza una de Deus. O Deus único vive na trindade de pessoas e sua unidade encerra, originalmente, a multiplicidade. Um mundo plural de coisas finitas só poderia provir de um Deus que encerra em si uma multiplicidade. É porque Deus é a plenitude infinita do Ser, da vida, inclusive da vida espiritual-pessoal, e do amor, que ele se basta a si mesmo. Para ser Deus, ele não necessita do mundo nem dos homens.

Conquanto se admita que a antropologia cartesiana tem raízes em Agostinho, o Deus de Descartes é distinto do Deus de Santo Agostinho (e poderíamos dizer de grande parte dos autores cristãos da tradição). Duas são as questões que me ocuparão, portanto: qual é a natureza do Deus cartesiano? e qual estatuto tem esse Deus em sua antropologia?


2. A verdade eterna: o cogito agostiniano

Intentando responder aos céticos, para os quais a verdade incondicionalmente válida parece inalcançável, Santo Agostinho sustentará que encontramos a verdade em nós mesmos. Para demonstrá-lo, ele nos faz ver que quem duvida sabe que duvida, sabe que esse saber é verdadeiro e tem certeza disso. Há, pois, um saber na dúvida, um saber que não é elidido pela dúvida. Mesmo duvidando, sei que duvido, que penso, que vivo e procuro a verdade segura. Ora, vê-se que Agostinho, antes mesmo de Descartes, chegou à certeza imediata do ato espiritual da reflexão existente por si (Posto que me engane, sou).
Não devemos daí concluir que o cogito cartesiano resulte de mera apropriação do cogito agostiniano. O cogito cartesiano inscreve-se num horizonte hermenêutico outro e específico. Convém, no entanto, deter-nos um pouco mais em Agostinho, antes de contemplar o cogito cartesiano.
Se encontramos a verdade em nós mesmos, então não só encontramos o saber sobre nós mesmos, mas também o saber sobre a verdade geral e necessariamente válida. Encontramos não só verdades contingentes factuais, mas também verdades necessárias da razão, leis do pensamento e do ser, que, estando em nosso pensamento, fornecem-lhe as normas. Agostinho retoma isso especialmente de Platão. O que é propriamente verdadeiro, para Agostinho, não é o fato singular na transitoriedade dos acontecimentos, mas a verdade eterna. Essa verdade eterna é imutável. Donde provêm, pergunta Agostinho, as “verdades eternas”, como as das leis lógicas, matemáticas, éticas e metafísicas? Não poderiam elas provir da experiência sensível, porquanto a experiência sensível é mutável. Há normas, em que se funda nossa experiência, que não poderiam provir dos sentidos. Assim, por exemplo, podemos apreender a ideia de unidade, mas não podemos tirá-la da multiplicidade das impressões sensíveis; essa ideia é anterior a estas impressões. A unidade é uma verdade eterna que governa nosso pensamento. Seria o nosso pensamento a origem dessa ideia? Agostinho dirá que não, pois também nosso pensamento está em constante mudança. Seguindo, em parte, Platão, Agostinho assumirá que há ideias eternas que constituem condições normativas anteriores ao pensamento. Mas, ao contrário de Platão, tais ideias eternas não subsistem por si mesmas, mas demandam um fundamento incondicionado e imutável de sua validade. Tal fundamento Agostinho identifica com Deus, “a verdade eterna mesma”. As ideias eternas são ideias no pensamento de Deus.
Uma primeira distinção entre o cogito agostiniano e o cartesiano deve ser já salientada: em Agostinho, o saber sobre o próprio pensar prende-se à experiência viva de si mesmo. Na medida em que penso e vivo, que penso na vida concreta, é que sei e tenho certeza de mim mesmo. Sucede diferente com Descartes, em cuja filosofia o ego cogitans (eu pensante) é um sujeito puro que, sem mundo e incorpóreo (aparentemente), se contrapõe à objetividade.


3. O cogito cartesiano

Não sem razão Descartes é apontado como o pensador que marca a etapa antropocêntrica da filosofia ocidental. Descartes é quem marca filosoficamente a passagem do Medievo para a Modernidade. Ele foi, por um lado, o último medieval; e, por outro, o primeiro “moderno”. Tendo-se dissipado a certeza produzida pela hermenêutica cristã, coube a Descartes restituir os fundamentos da construção do cogito. Descartes trouxe-nos de volta à consciência a finitude e a contingência humanas, exatamente no momento em que se esvaiu a certeza oferecida pela fé cristã. Sua antropologia é devedora da filosofia agostiniana: também Descartes enfatizou a relação entre conhecimento e vontade, mas o fez sem o fundo cristão que sustentou a visão harmônica da época de Agostinho. Com Descartes, põe-se em primeiro plano a problemática do conhecer e as aporias da metafísica da subjetividade. Seu interesse consiste em assegurar-se do eu (quem sou e como conheço) antes de propor o modo pelo qual se pode chegar ao mundo e a Deus. Descartes supõe a existência de um sujeito emancipado de uma ordem objetiva e da ordem cósmica. Abre caminho para a liberdade e para o afastamento do determinismo. Em cena, irrompe o eu autônomo e conquistador que pretende assegurar-se de si mesmo e encontrar um lugar seguro onde possa restabelecer sua relação com Deus e com o mundo.
O cogito ergo sum desembocará num solipsismo monista: afirma-se um eu desmundanizado e contraposto ao mundo empírico. Descartes parte do eu como evidência ôntica. Esse eu adquire consciência de si por auto-reflexão. O cogito cartesiano é puro, é o da consciência humana, transcendente à experiência de um eu empírico; é um eu solipsista que não se reconhece como parte de um nós nem como enraizado na tradição.
Com a hipótese do gênio maligno, ou seja, de um Deus que possa nos enganar, Descartes deixou entrever o abandono da confiança medieval em um Deus responsável pela verdade e o fundamento do ser, como também afirmou uma postura radical de autonomia secularizadora. A partir de então, deve-se assegurar da veracidade do próprio Deus. A hipótese do gênio maligno, inspirada em Ockham, põe em xeque a veracidade de Deus como o que torna possível ao entendimento humano atingir a verdade. Em contrapartida, mantém-se a consciência certa do eu, a partir da auto-reflexão do cogito. Duvida-se de tudo, mas nunca de si (porque Deus, sendo infinitamente bom, não pode fazer com que eu duvide de minha existência pensante). É importante reter que não é mais Deus a garantia última da verdade, mas o eu auto-suficiente que se fia das ideias claras e distintas.
Descartes não fez senão lançar as bases da crítica religiosa posterior, reivindicando a autonomia do cogito face à heteronomia do homem religioso que confia em Deus. Assim, se preparou o terreno para Voltaire, o qual estendeu a dúvida à justiça de Deus (o problema da teodiceia). A isso acresça-se que, submetendo ao crivo racional a afirmação de Deus e à busca por certezas sólidas, Descartes pavimenta o caminho que trilharia Feuerbach para contestar a existência e a essência de Deus.
É preciso enfatizar, no entanto, que Descartes não era ateu, tampouco duvidava da existência de Deus. O seu Deus, no entanto, não é um Deus a quem se devem dirigir orações. Deus é necessário ao pensamento; é uma ideia inata no homem, o qual tem em Deus seu fundamento último. Nesse sentido, Descartes continua a tradição do argumento ontológico. Se é verdade que a reflexividade interiorizante encontra no cogito seu fundamento último, não deixa de descobrir a necessidade de Deus que é o substrato ontológico que provoca no homem a ideia de Deus. Descartes não chega a levar a efeito a dúvida radical. Por outro lado, Deus é quem garante a veracidade do homem e, em última instância, é responsável por estabelecer a relação entre o homem e o mundo.
É chegado o momento em que o estatuto de Deus se esclarece: o postulado de Deus, na antropologia cartesiana, torna possível estabelecer a correlação do cogito com a realidade. Afinal, Deus é o ser perfeito que não pode nos enganar. Trata-se de um Deus a que Descartes recorre pela necessidade de explicar o homem. Sem Deus, não se pode afirmar absolutamente a verdade. É verdade, por outro lado, que Descartes reconhece a finitude do cogito que não pode ser a origem das ideias do infinito e da contingência, a qual não permite que se alcancem as certezas absolutas. Ao mesmo tempo, conserva o ideal de chegar a essas certezas e afirma o eu como fundamento absoluto e indubitável.
Quando ponderamos sobre a autonomia do cogito cartesiano, tendo em conta a postulação de Deus, notamos que ela sofre um abalo: pois o cogito precisa assumir a ideia de Deus como colocada em si mesmo pelo próprio Deus, a fim de assegurar-se de si mesmo enquanto cogito. O sujeito está, portanto, constituído por uma ideia que ele mesmo não produziu - circunstância esta que faz eco ao pensamento de Agostinho e de Anselmo.
Se, por um lado, Descartes assume Deus como fundamento da confiança na razão humana; por outro lado, fornece uma imagem humana de Deus, para, em seguida, postulá-lo como fundamento das elaborações do cogito. Em certa medida, Deus só é, enquanto eu tenho a ideia de Deus; mas a ideia de sua perfeição e onipotência é que garante a existência de Deus fora de meu pensamento.
Em Descartes, pode-se dizer que parece subsistir muito pouco do Deus bíblico criador, Pai do amor e de infinita benevolência; se há algo dele, não é mais que uma imagem pálida de sua transcendência. O Deus cartesiano é um Deus do pensamento, um Deus que é postulado pela racionalidade, a fim de assegurar a certeza do eu pensante e da existência do mundo.