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quinta-feira, 25 de novembro de 2021

"Brasil, condenado à esperança". (Millôr Fernandes)

 

                                                        



                                                   Flutuações do humor

 

A depender de meu estado de espírito, posso ser mais conservador em matéria de linguagem, não obstante meus sólidos conhecimentos em sociolinguística. Às vezes, posso demonstrar aborrecimento com o hábito comum de cancelamento do pronome “se” nas construções pronominais como “referir-se”, “machucar-se”, classificar-se”. Por exemplo, “fulano machucou” em vez de “fulano se machucou”; “ O Brasil classificou para a Copa do Mundo”, em vez de “o Brasil se classificou para a Copa do Mundo”. Mas, basta alguém dizer que aquelas construções sem o “se” são erradas, para eu acordar o sociolinguista em mim e desatar a fazer reprimendas contra esse hábito incivilizado, antipático e teoricamente inconsistente de reduzir a complexidade do fenômeno social da linguagem a tais valorações normativas. Mutatis mutandis, a depender de meu estado de humor, posso ficar bastante indisposto para com as alegações das religiões instituídas e  com seus fiéis que as reduzem comumente à busca de um Deus pessoal, mas basta que alguém diga que religiões não passam de suspertições, para eu tomar partido em defesa da religião como um acontecimento histórico mais complexo, que, não se reduzindo ao problema da existência de Deus ou de deuses, diz respeito ao retorno do homem para si mesmo na busca do infinito, do incognoscível, do insondável. A religião é a procura de rastros de sentido no infinito. Kierkegaard chamava Deus esse nosso distanciamento máximo do mundo do aqui e agora, da imediatidade das coisas existentes. Na busca religiosa de um Deus, espera-se encontrar um sentido último (metafísico) que possa ser compreendido. Esta é uma experiência que me é estranha, até certo ponto incompreensível, muito embora legitimamente humana. Porque essa experiência de encontro com o que nos transcende é, num sentido primário, o encontro com o espírito humano. Espírito significa autorrelação, a relação que o eu mantém consigo. Na busca de Deus, o homem busca interrogar-se sobre suas origens, sobre quem ele é, sobre por que existe, sobre o sentido último da vida e do Universo. Assim, posso compreender que as religiões aspiram a realizar este anseio humano de “religare”, de religação com a origem de um sentido cuja busca o animal humano está condenado a fazer. Mas essa origem continua, para mim, sendo um mistério que o Deus dos monoteísmos não consegue solucionar. Posso, pois, dizer de mim o que disse Max Weber acerca de si mesmo: “não tenho nenhuma afinidade musical com a religião” mas “não sou antirreligioso”. Mas não me venham com notícias de um “Além” incognoscível, não me venham querer fazer-me crer que vocês sabem o que há por trás das cortinas (se é que existam tais cortinas), não me venham dizer que acharam aquilo que, há milênios, a humanidade busca. O animal humano se encontra nessa busca e se define por essa busca de si mesmo. E cada tentativa de interromper essa busca por meio de respostas simples e absurdas é uma forma de superstição e de autoengano.






                                        FIM DA CORRUPÇÃO 


Tem uma moçada aí que pede o fim da corrupção como se pôr fim à corrupção no Brasil fosse como encerrar as atividades de uma empresa por falência. Até apareceu por estas bandas cabralistas um tal de Messias populista prometendo pôr fim à bandalheira dos congressistas, inaugurando uma nova era em que no Brasil já não mais se ouviria falar de corruptos de colarinho branco. Daí resolvi estudar para entender de onde vem este nosso costume abjeto de favoritismo dos poderosos, de corrupção dos administradores do Estado. E descobri que esse costume se enraizou neste solo castigado pela escravidão de negros e indígenas desde o período colonial. Desde muito cedo, no Brasil, o serviço judiciário existiu não para fazer justiça, mas para extorquir dinheiro. Os Sermões de Padre Antônio Vieira davam testemunho disso. A prevaricação de magistrados no período colonial era corrente. Para comprová-lo, basta ler alguns ofícios de presidentes dos Tribunais da Relação da Bahia e do Rio de Janeiro no século XVIII. Em 22 de janeiro de 1725, Vasco Fernandes Cézar de Menezes escreveu da Bahia ao Rei de Portugal contando à Sua Majestade sobre “as desordens e excessos que se veem todos estes povos tão consternados e oprimidos...a que continuamente os provoca a crueldade e tirania destes bacharéis”. No Brasil, desde o período colonial, consagrou-se, assim, um velho costume que persiste inquebrantável e vigoroso até hoje: a dualidade dos ordenamentos jurídicos. Há um ordenamento jurídico oficial, que vige, no entanto, apenas formalmente, e há outro ordenamento jurídico efetivo, nunca oficialmente promulgado, que em tudo corresponde aos interesses próprios do grupo oligárquico. E por falar neste, a oligarquia brasileira não é a oligarquia tradicional, em que o poder supremo se concentra exclusivamente nas mãos de uma minoria de abastados, mas sim uma coligação oligárquica, típica do capitalismo, que une entre si a classe rica e os principais agentes do Estado, deixando o povo à margem de todas as decisões políticas. A privatização do poder político se estabeleceu entre nós no período colonial. Essa privatização é o objetivo perseguido pelo capitalismo. Ela deu origem à longeva tradição do patrimonialismo de Estado, tão comum na América Latina. Essa tradição arraigada em nossa cultura favorece as práticas de corrupção sistêmica no trato com a coisa pública. Outra vez Padre Antônio Vieira se queixava à Sua Majestade da corrupção generalizada dos funcionários enviados às colônias portuguesas. Nas colônias, incluindo o Brasil, os administradores, sempre aparentando obedecer às autoridades d’além-mar, continuavam a servir aos seus interesses próprios sem que fossem importunados. Também nesses tempos remotos mas atuais, era comum que os Governadores, na qualidade de presidentes dos Tribunais da Relação, procurassem se conciliar às boas graças dos desembargadores, acrescentando-lhes aos ordenados gratificações extraordinárias conhecidas como “propinas”. E, como era de esperar, a fiscalização, que deveria ser exercida pelo Conselho Ultramarino sobre o conjunto dos altos funcionários em exercício por aqui, deixava muito a desejar, porque até o século XVIII havia uma só viagem marítima oficial por ano entre Lisboa e o Brasil. A corrupção sempre grassou no serviço judiciário português , quer na metrópole, quer nas colônias. Desde Platão, aprendemos que os costumes não se mudam por leis, ao que Rousseau acrescentou outra lição amarga para nós: a verdadeira constituição do Estado são os costumes. A conclusão eu deixo a cargo do leitor. Por fim, antes de pedir o fim da corrupção aos próprios agentes corruptores, busquemos estudar a nossa história, a história da formação de nossa sociedade e de nosso Estado. Talvez assim, se não conseguirmos debelar tal costume tão familiar entre nós, ao menos não nos deixaremos seduzir por populistas que se apresentam como ovelhas do pastoreio da Redenção com pele de lobo que frequenta os salões onde se refastela junto de sua alcateia, há anos, no banquete dos cofres públicos. No Brasil, moçada pedinte, desde muito cedo, o poder de mando, de dominação política e econômica, se concentrou na aliança formada entre os agentes estatais - governadores, magistrados, membros do Ministério Público, altos funcionários - e os potentados privadas - o grande empresariado, donos do capital. Aqueles, no exercício de suas funções oficiais atuam a serviço dos interesses destes, enquanto estes, fingindo submissão aos poderes oficiais, pressionam aqueles, quando não os corrompem simplesmente, em todos os níveis - legislação, administração, prestação de justiça. E quanto ao povo? O povo que se lasque! A notícia amarga e desoladora é que a coligação oligárquica soberana não dá sinais de que um dia chegará ao fim no Brasil. Para isso acontecer, o povo teria de deter realmente o poder soberano, o que significa dizer que teríamos de instituir uma verdadeira democracia no Brasil. Mas entendam isto, pelo amor de Deus! NÓS NÃO VIVEMOS NUMA PLENA DEMOCRACIA. O que temos aqui é uma pseudodemocracia, um simulacro de democracia, um arremedo de democracia. Como ensinou Aristóteles (sempre a filosofia - essa inutilidade tão necessária ou mais necessária do que todas as inutilidades), a democracia é o regime em que o povo soberano goza de relativa igualdade de condições de vida; mas o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Além disso, o que torna ainda mais favorável a perpetuação da coligação oligárquica, cujo poder inviabiliza a realização de uma autêntica democracia no Brasil, é o fato de que a mentalidade da população menos favorecida é mais facilmente inclinada a obedecer do que a mandar ou a tomar iniciativas. A educação política do povo é necessária, mas ela não pode ser de responsabilidade, pelo menos não inicialmente, do Estado, pois o poder oligárquico a ela se oporá.

 

sábado, 20 de novembro de 2021

"A teologia dá respostas incompreensíveis para perguntas sem sentido" (Voltaire).

 



A verborreia teológica

 

 

Segundo Orígenes, Deus é uno, simples, inefável e perfeito. Apesar de uno e simples, Deus é Pai, Verbo e Espírito Santo. Orígenes diz que essas três hipóstases, no entanto, não impedem que Deus seja uno. (A lógica aqui é estuprada). Escusa dizer que Orígenes, sem conseguir asfixiar completamente a razão, permanece embaraçado no problema das relações entre aquelas três pessoas divinas. E, se Deus é inefável, como pretender dizer algo sobre ele? (os místicos, ao menos, respeitavam os princípios doutrinários previamente estabelecidos; toda teologia é uma verborragia sem sentido, que pretende ocupar-se de algo que é, por definição, indizível e incognoscível). Segundo Orígenes, Deus é perfeito (a tradição metafísica consagrou o preconceito segundo o qual perfeição diz daquilo que é imutável: só o que é imutável é perfeito; Deus é imutável, logo Deus é perfeito). Mas o que significa perfeição como atributo do divino? Pensar o conceito é uma prática a que a filosofia e somente ela nos habitua; é uma prática que o senso comum não exercita, por isso coabitam nele as contradições mais grosseiras, coexistem as ideias mais estranhas entre si. Perfeição é a qualidade daquilo que se perfez, que se completou; diz-se daquilo que não apresenta lacuna, falha; mas também perfeição pode significar excelência no mais alto grau. Assim, Deus é o Ser em sua máxima excelência, autossuficiente, de nada carecido. Ora, mas se Deus não carece de nada, se é autossuficiente, por que criou o mundo e o homem, dois termos que designam a imperfeição? Contrariando os próprios pressupostos da definição de Deus, a teologia cristã reza que Deus criou o homem para a Sua glória; em outros termos, por pura vaidade e necessidade de autopromoção , de reconhecimento de seus magníficos poder e natureza. Claro, conclui o bom senso, se não existissem os animais humanos, quem mais daria notícias da existência de Deus? Os primatas, nossos parentes mais próximos, o ignoram; sequer dão sinais de possuir religião. No Princípio, o Verbo era mudo, Deus estava imerso em sua impenetrável solidão cósmica. Era necessário (ele carecia, portanto) criar o homem dotado das faculdades cognitivas adequadas para que Deus viesse à luz, para que ele “existisse” deveras. Resta evidente que, se não existissem os seres humanos, Deus não “existiria”, não se faria ouvir, não se faria objeto de pensamento, de discurso. A conclusão irrecusável, porque razoável, é que primeiro existe o homem como criador e depois surge Deus como sua criação, seu constructo, como uma ideia sua. A teologia é uma expressão da inversão ideológica, que Feuerbach, antes de Marx, soube bem examinar: põe no começo justamente aquilo que se situa no termo, no fim; põe a conclusão na frente da premissa; deduz da ideia a realidade; toma o objeto (Deus) pelo Sujeito (homem). Deus passa a ser o sujeito (o substrato) a partir do qual o mundo e o homem se tornam conhecidos, a partir do qual homem se conhece e conhece o mundo. E até hoje pagamos um alto preço histórico por essa enfermidade, esse adoecimento do animal humano. Mas devemos aqui lembrar que a teologia e a metafísica, que lhe é subjacente, são sintomas de uma mente que se desenvolveu por um processo natural que, a rigor, é indiferente à verdade e à lógica. A seleção natural favorece as características que auxiliam os genes do portador a serem transmitidos à próxima geração, e isso é tudo. Se falsidades favoreceram a realização desse objetivo, durante a evolução de nossa espécie, a mente humana encorajará naturalmente essas falsidades. A confusão sistemática e a desrazão não são sintomas da mente primitiva; são hábitos que se desenvolveram no processo evolutivo do cérebro humano; são hábitos em que esse cérebro incorre continuamente ainda hoje. O mesmo cérebro que causa admiração e maravilhamento aos seus portadores é também capaz de cometer as falhas mais absurdas, os erros mais estúpidos. Perfeição é, definitivamente, uma ideia, um conceito da imaginação produzida por um cérebro naturalmente inclinado ao erro, à estupidez, e não uma realidade do processo evolutivo que lhe deu origem. Portanto, antes de que acusemos o animal humano por sua insistente falta de bom senso, recordemo-nos de que o homem é uma espécie de mamífero, um organismo que traz no corpo as marcas de um passado evolutivo que o faz ser, biologicamente falando, apenas a forma de uma célula germinativa produzir outra célula germinativa, tal como acontece na barata e no repolho. Contra a vaidade teológica que fez o homem acreditar que ocupa um lugar metafisicamente privilegiado no universo, devemos afirmar que a mente humana não é o poder que impele o universo. Se isso não nos fizer mais tolerantes com este ser megalomaníaco e risível, talvez nos faça mais cúmplices de sua condição existencialmente precária e delirante. Os seres humanos, eu e você, criamos, através da cultura, passatempos mentais que tornam essa breve passagem pela vida, antes do retorno inexorável ao caos e ao silêncio do inorgânico, mais agradável ou tolerável. A arte, a ciência, a religião, os jogos, toda uma indústria de entretenimento são criações, passatempos culturais que nos ajudam a suportar o caráter cruel da realidade, que tornam para nós mais respirável a crueza da vida, que afastam de nossa consciência a representação e o sentimento de nossa insignificância cósmica radical, que nos faz viver na autoilusão acerca do que somos em face da irrecusável indiferença do Universo para com nossos projetos, nossos anseios, nossas rixas e intrigas tão pequenas e sem sentido último. Quem quer que ouse se aprofundar nessas reflexões, provavelmente terá de suportar o sentimento ou fugir a ele, de que a existência humana e toda a sua atarefada exteriorização histórica é um edifício de símbolos e significados que se mantém sobre uma teia tecida pelo acaso e estendida sobre um insondável abismo; e toda a constituição fisiológica, biológica do homem é um grito exasperante para que ele se aperceba de sua condição animal, para que ele se aperceba de que vive por um tempo, cuja extensão é finita e incerta, para, então, retornar ao seio da natureza, onde se reunirá aos elementos mínimos do cosmo. E isso é tudo!

 

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

"Eu adoro ver uma garota sair e conquistar o mundo pelas lapelas. A vida é escrota. Você tem que encarar e quebrar tudo." (Maya Angelou)

 

                          



                               A BIODIVERSIDADE

 

Quem atrever-se a pedir razoabilidade ao comportamento humano deveria consultar os anais da história para verificar que a loucura, a insanidade, a desrazão, a perversidade acompanham a evolução da espécie humana desde tempos remotos. Conta-se que, em Sodoma e Gomorra, a prática de infanticídio era comum no modo de vida dos cananeus, habitantes daquelas regiões. Escavações em Megido, Jericó e Gezer revelaram uma área inteira que teria sido um cemitério de crianças. Era comum o sacrifício dos alicerces naquele tempo: quando se construía uma casa, sacrificava-se uma criança e seu corpo era depositado em um alicerce, porque os habitantes da casa acreditavam que isso traria felicidade ao resto da família. Antropólogos, historiadores, arqueólogos dirão: felizmente os costumes mudam , o processo civilizatório tende a coibir tais práticas , a Lei as tipifica como crimes... mas o que me inquieta é que, algum dia, tenha sido possível praticar o infanticídio como parte de um ritual religioso, que, algum dia, grupos humanos tenham podido acreditar que, ao fazê-lo, tornaria feliz ou bem-aventurada a vida de seus familiares. Como não há uma autoridade metafísica e divina, que possa julgar os criminosos e a quem até possamos imputar a responsabilidade pela criação de seres tão insanos, desvairados e perversos, resta que dentre um grupo destes seres extravagantes, excêntricos subsistam alguns ajuizados, esclarecidos, que concluam que, se a prática de infanticídio se tornar uma prática generalizada e normal na comunidade como um todo, ao fim de 60 ou 70 anos, não sobrará mais ninguém para dar continuidade à espécie. Então, instituiu-se o interdito pela Lei proibindo que crianças sejam sistematicamente assassinadas, com punição aos perpetradores do assassínio. Talvez, a seleção natural tenha alguma participação nesse processo de esclarecimento gradual da humanidade. Talvez, a Natureza, mais sábia que estes macacos pelados ufanos, tenha contribuído, sem planejamento e intenção, para selecionar aqueles que poderiam pôr fim a uma barbárie, que, se não cessasse, levaria à extinção a espécie. A Natureza parece “saber” mais que o animal humano que a vida é que deve ser o valor maior a ser cultuado, cultivado, perpetuado em toda a sua diversidade. Que a morte só pode se dar na medida em que contribui para a eco-organização do todo. O excesso de morte responde ao excesso de vida. A oposição entre a fecundidade desenfreada ( que gera um crescimento exponencial da população) e a mortalidade sem peias desempenha o papel de regular mutuamente os níveis demográficos. Assim, a natureza opera por meio do processo de reorganização que é parte inerente ao processo de desorganização. A eco-organização é nutrida e regenerada não apenas pela vida, mas também pela morte, e é regulada pelo antagonismo entre os excessos de vida e de morte. Todos os ecossistemas tendem ao equilíbrio e parecem lutar contra as tendências do grande predador humano para causar sistematicamente o desequilíbrio, para arruinar a ordem, para deflagrar a morte em excesso. As sociedades humanas se instituem a partir deste princípio natural: a necessidade de se reorganizar, de produzir continuamente novas ordens em meio à irrupção necessária das desordens, das perturbações. Todo excesso seja para o lado da ordem (totalitarismos) , seja para o da desordem (entropia), deve ser combatido. Uma lição que os macacos pelados ainda não conseguiram aprender com a natureza é que a eco-organização é inseparável da constituição, da manutenção e do desenvolvimento da DIVERSIDADE BIOLÓGICA - diversidade, aliás, é um fato biofísico que esses animais doentes, loucos e desnaturados insistem em recusar no modo de organização de suas sociedades e culturas. É em virtude dessa insistência com que esses animais erram na aprendizagem da diversidade como um elemento vital constitucional da biocenose (o conjunto de todas as interações entre os seres vivos no meio geofísico) que ainda é preciso combater os preconceitos ( no sentido amplo do termo, tanto como pré-concepção enganosa ou falsa quanto como repúdio, aversão) contra o que é diferente, diverso de um padrão normativo, que eles mesmos criaram na vida comum, um padrão que não é algo dado (decretado, posto) nem por um deus, nem legitimado pela ordem natural. Felizmente, vivemos numa época histórica em que as vozes da diversidade em todas as suas legítimas manifestações clamam e lutam pelo direito de reconhecimento, de viver, de contribuir para a construção de sociedades mais democráticas e plurais. Esse movimento vital, essa agonística devem ser estimulados, devem ser intensificados contra as forças reacionárias, conservadoras, contra as mentalidades esclerosadas que persistem em reagir contra o modo de ser da vida, que se manifesta como pluralidade, diversidade e exuberância.

 

(...)

 

Aquele caso de Sodoma e Gomorra se me deparou num livro que versa sobre o que diz a Bíblia sobre a homossexualidade. Não há, como já sabia, pois já havia lido outro livro dedicado ao tema, nenhuma condenação bíblica da homossexualidade, ao contrário do que acreditam o homem comum e os fundamentalistas... enfim... mas o que me deixa deveras estarrecido é como se pode ainda hoje tomar a Bíblia como referência para fundamentar a moral e os costumes. É claro que muita gente ignora que as morais modernas é produto de um longo processo de secularização. Nem tudo na Bíblia serve de parâmetro para normatizar o comportamento moral do homem moderno, pelo menos nas sociedades industrializadas ocidentais. Em Juízes 19, por exemplo, conta-se a história de homens que desejavam estuprar um homem estrangeiro hospedado na casa de um levita. Esse relato é semelhante ao caso de Sodoma e Gomorra. O hóspede deveria ser entregue aos homens para que fosse violentado sexualmente. Mas o senhor da casa se nega a fazê-lo e oferece sua filha virgem e sua concubina para que fossem estupradas no lugar do forasteiro. E assim elas foram abusadas “toda a noite até pela manhã”. Tal costume (o de oferecer mulheres para que fossem estupradas no lugar de um forasteiro) é simplesmente repulsivo às sensibilidades modernas. Todos nós sentimos repulsa a isso. E as mulheres hoje deveriam todas se sentirem escandalizadas e deveriam se recusar a admitir qualquer tentativa de usar a Bíblia para admoestá-las e moldar seu modo de viver, de ser, de pensar... enfim, sua conduta... Sabemos que a sociedade judaica dos tempos bíblicos era patriarcal; que o patriarcado é uma herança nefasta que herdamos das culturas que constituem o berço da civilização ocidental. No mundo antigo, as mulheres eram servas dos seus maridos. Essa condição de submissão, de servidão das mulheres é patente nos textos bíblicos.  Simplesmente os códigos morais vigentes à época – estamos falando de um período que cobre os séculos VIII e  VI a.C. – não são os nossos, não podem balizar nossas condutas nas sociedades modernas de hoje. Mas ainda encontramos milhares de mulheres ostentando a Bíblia, pregando a Palavra de Deus em favor da “Família Tradicional” (lê-se “família patriarcal”) a outras mulheres!... Eis aí um caso emblemático do oprimido que aceita a sua opressão por não se reconhecer como sujeito que vive em condições históricas de opressão... Não quero aqui suscitar discussões intermináveis sobre religião e Bíblia, embora muito me agradem... (sou ateu), mas não sou nenhum perseguidor de religiosos... Embora eu acredite que eles vivam num mundo construído por um imaginário-simbólico entretecido por suas fantasias (mas também sei que todos nós vivemos nossa relação com o real pela mediação da fantasia no sentido de Lacan... nós evitamos o confronto com o real como condição necessária para podermos suportar a existência (mas isso é outro tema)...

Está claro, para quem quer que se debruce sobre as Escrituras Sagradas, (particularmente, sobre o Antigo Testamento) que o que lá encontramos é uma literatura heterogênea que reflete os modos de viver, de pensar, de se organizar politicamente e de compreender o mundo, próprios de  comunidades humanas que viveram  do século VIII ao século VI a .C, e que tais condições históricas são muito diferentes das nossas. A Bíblia – não me canso de repetir – é uma obra humana, demasiado humana. É produto de acontecimentos socioculturais, políticos, econômicos que cobrem a extensão territorial que inclui hoje o Líbano, Israel, partes da Jordânia, Egito, Palestina e Síria. Em suma, toda uma região banhada pelos rios Tigre e Eufrates. Lá se encontra o berço da civilização ocidental (sem esquecer os gregos e romanos, evidentemente)... mas o bebê cresceu e deveria ser capaz, agora adulto, de emancipar-se definitivamente de seus pais e seus preconceitos milenares...

sábado, 30 de outubro de 2021

“Se deus queria que as pessoas acreditassem nele, por que então ele inventou a lógica?” ( David Feherty)

 



CONFISSÃO

 

 

Devo confessar que são duas as razões por que me tornei ateu: 1) a acuidade crescente de minha consciência do caráter cruel e doloroso da vida (consciência esta inconciliável com o modo de vida cristão, em cujo cerne repousa a crença num Deus criador infinitamente bom); e 2) minhas incursões cada vez mais frequentes, densas e extensas nos estudos sobre a constituição da Bíblia e sobre a história dos cristianismos primitivos. Tais estudos me tornaram cristalino e vigoroso o sentimento de que a minha fé perdera completamente os esteios que outrora a tornaram possível. Não me posso esquecer de mencionar, nesse processo de emancipação de minha consciência, a importância de meus encontros prematuros (há mais de quinze anos) com o pensamento de Schopenhauer e de Nietzsche (com quem tive os primeiros contatos lendo o seu Anticristo), que contribuíram sobremaneira para o abandono de meus hábitos de vida cristãos. Acho, honestamente, que as duas razões que me levaram a me libertar do peso asfixiante de décadas de doutrinação numa tradição religiosa são suficientemente fortes e consistentes para levar outras pessoas a abandonar também seus hábitos de vida religiosos. No entanto, uma grande maioria de pessoas no Ocidente ainda não ousou sequer considerá-las, não se dispõe sequer a cogitar delas, preferindo viver uma vida nutrida num embuste originário, ao qual o cristianismo deve sua existência: a ressurreição de Jesus. (talvez, porque, embora consistentes essas razões, raramente as pessoas abandonam suas convicções religiosas quando se lhes apresentam argumentos razoáveis). A lógica falha sistematicamente no cérebro de pessoas que foram expostas, desde tenra idade, a um sistema de doutrinação religiosa.

 Se a crença na ressurreição de Jesus nunca tivesse conseguido atrair seguidores, o cristianismo jamais teria existido. O cristianismo tradicional reza que a morte de Cristo trouxe a salvação à humanidade. Mas Cristo não poderia morrer verdadeiramente, se quisessem que alguém acreditasse que Deus trouxe a Salvação. Era preciso acreditar que Cristo ressuscitou dos mortos e que a sua crucificação não era um mal, mas um acontecimento planejado por Deus-Pai, cuja boa intenção (salvar os humanos) justificava o meio (permitir o martírio e a crucificação de seu filho). A ressurreição (este embuste de pouco mais de 2.000 anos) é o fundamento da religião cristã. Sem ela, Jesus não passaria de um profeta judeu apocalíptico (o que ele foi historicamente) que sofrera um fim trágico e imerecido. Mas, se Jesus nunca tivesse existido, ainda assim se teria desenvolvido alguma fé semelhante ao cristianismo? É provável que sim. No século I, época em que viveu Jesus de Nazaré, havia muitos outros candidatos a Messias, um dos quais era Apolônio de Tiana, que viajava com seus discípulos curando aleijados, expulsando demônios, recobrando a visão de cegos, etc. Muitos também acreditavam ser ele o filho de Deus. Apolônio pregava que as pessoas deveriam se preocupar com o destino de suas almas em vez de se preocupar com o conforto material. Ele também sofreu perseguição dos romanos, morreu e - para seus seguidores- ascendeu aos céus. A simetria com a vida de Jesus não é mera coincidência. Tanto quanto Jesus, Apolônio não sustentava uma doutrina de amor interétnico (ao contrário do que supõem os cristãos modernos, Jesus não pregava um amor universal). Na época em que viveu Apolônio, já tinham sido escritos os evangelhos cristãos. É possível que seus seguidores tenham construído suas narrativas da vida e do ministério de Apolônio a partir dos relatos sobre Jesus. Convergências desse tipo eram normais e frequentes. Os antigos catequizadores trabalhavam num ambiente competitivo, em que uma religião competia com outras a atenção das pessoas. Para que uma religião fosse bem-sucedida, era necessário que oferecesse, pelo menos, tantas vantagens quantas as que a concorrência oferecia. As religiões se desenvolviam acirrando a concorrência: os seguidores de Jesus odiavam os seguidores de Apolônio, e estes lhes retribuíam com a mesma moeda de ódio.

Este é apenas um dos muitos exemplos hauridos da investigação da história da formação do cristianismo que, uma vez conhecidos, tornam difícil legitimar a crença no Deus cristão como o único Deus verdadeiramente existente e em Cristo como o Messias que se identificou com a própria Verdade, levando Pilatos, tomado de perplexidade, a questionar: “Que é a verdade?” (João 18: 38).  

“Conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará”. (João 8: 32)

Mas, nesse caso, já não perguntamos nós hoje o que é a verdade, mas como seus efeitos (discursivos) se produzem na história.

domingo, 12 de abril de 2020

“O que foi dito sobre deus é ou ininteligível ou perfeitamente contraditório; e por esta razão deve ser uma hipótese absurda para todo homem de bom senso.” (Paul Henri Holbach)


Arte Barroca - Características, vertentes do Barroco e principais ...


Deus – um problema de lógica
O argumento da impossibilidade


Ponho-me a escrever este texto num período histórico em que o mundo enfrenta a pandemia de covid-19, enquanto o homem comum, tão habituado que está a acolher, de modo acrítico, os significados culturalmente compartilhados, dá novo vigor aos seus costumeiros apelos a Deus, a quem pede misericórdia e proteção. Por mais indiferente que eu procure ser ao comportamento religioso padrão desse tipo humano, custa-me silenciar meu espanto em face da incapacidade que tem esse tipo humano em aceitar raciocínios simples que colocam suas alegações de fé no conjunto das crenças falsas acerca do mundo. Um exemplo de raciocínio simples e completo, para cuja aceitação a maioria dos indivíduos que professa sua fé no Deus teísta parece inapta, é o silogismo. O silogismo é um raciocínio completo, explícito e composto de três juízos, dos quais dois são premissas; e o terceiro, a conclusão. Um exemplo de silogismo é o que se segue:

1. Todos os pernambucanos são brasileiros.  (premissa maior)

2. João é pernambucano.  (premissa menor)

3. João é brasileiro.  (conclusão)

 

Escusando-me de me deter em explicações especializadas, chamo a atenção para o fato de que, se assumirmos que 1 e 2 são verdadeiros, somos obrigados a aceitar como verdadeira a conclusão 3. Ora, se todos os pernambucanos estão inseridos no grupo dos indivíduos que são brasileiros, e se João é pernambucano, então (logo, portanto), João é brasileiro. Creio não haver dificuldade para a compreensão desse raciocínio, que é bastante simples. Agora, busquemos ver se uma das alegações sobre Deus passa no teste silogístico. Note-se este outro silogismo:

1. Todas as coisas que existem na natureza foram criadas por Deus.

2. Vírus são coisas que existem na natureza.

3. Vírus foram criados por Deus.

 

Se eu aceito a verdade de 1 e 2, então tenho de aceitar a verdade de 3. Trata-se de um raciocínio válido do ponto de vista lógico. Não obstante, ele acarreta um problema desconcertante para a fé no Deus teísta – problema este de base empírica: o problema do Mal. Sabemos que vírus são microrganismos patogênicos, ou seja, são capazes de causar doença e sofrimento. Como, então, explicar que um Deus sumamente bom e onipotente possa ter criado tais microrganismos que causam dor e sofrimento? É o paradoxo de Epicuro (341-270 a.C), posteriormente ampliado por Hume, sobre o problema do mal que se deixa ouvir aqui:

1. Deus quer eliminar o mal, mas não pode; 2) Deus pode eliminar o mal, mas não quer; 3) Deus não pode e nem quer; 4) Deus pode e quer. Se aceitamos 1), então Deus não pode ser onipotente; se aceitamos 2), então Deus não é bom; se aceitamos 3), então Deus é mau; se, finalmente, aceitamos 4), somos forçados logicamente a explicar por que há tanto sofrimento gratuito no mundo. Epicuro quer-nos mostrar que qualquer uma das alternativas é indesejável.

Não será, contudo, o Problema do Mal que tomarei para escopo de minhas reflexões. Sobre este problema já dissertei alhures, e vários textos dedicados ao tratamento dessa questão se topam neste blog. O que me interessa neste texto é mostrar a ilogicidade, a contraditoriedade inerente ao conceito do Deus teísta, ou seja, do Deus das três “Religiões do Livro”: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Essas três tradições de fé monoteísta compartilham um único texto sagrado (a Bíblia hebraica); e o cristianismo e o islamismo proclamam ainda livros adicionais, a saber, o Novo Testamento e o Alcorão. Estes livros são considerados como revelações da palavra de Deus. Tais textos, associados a séculos de crença popular e reflexão teológica, formaram o conceito que vêm à mente para mais da metade dos crentes quando ouvem a palavra “Deus”. O termo teísmo, usado desde o século XVII, designa a crença num Deus como Ser que é o princípio originário de todas as coisas. O Deus teísta é o Ser como causa do mundo, segundo Kant. Ao me ocupar em explicitar a ilogicidade intrínseca das tramas semânticas do conceito do Deus teísta, sinto-me obrigado a delimitar o domínio teórico à luz do qual a ideia de ‘conceito’ será pensada. A questão premente e inicial será então: o que estou entendendo por ‘conceito’ ao me referir ao ‘conceito de Deus’?

 

1. A visão clássica de conceito

 

Conceito, segundo Aristóteles, é uma ideia substancial, expressa por um substantivo, à qual se associa uma série de categorias ou acidentes. De acordo com a concepção clássica, o conceito visa à essência das coisas, ou seja, àquilo pelo qual as coisas não podem ser diferentes do que são. Tanto Platão quanto Aristóteles entendiam o conceito como lógos que circunscreve a substância ou essência necessária de um ser. Essência  é aquilo que permanece o mesmo, independentemente das mudanças ou acidentes. A essência é o ser mesmo das coisas, aquilo que a coisa é ou o que faz dela aquilo que é.

Além de abrigar uma ideia substancial, ao conceito se predem acidentes ou categorias. Aristóteles distinguiu 10 categorias, entre as quais estão a de ação, hábito, lugar, quantidade, paixão. Assim, ao conceito [CAVALO] pode-se associar a categoria [trotar], numa relação predicativa como “cavalos trotam”. Na visão clássica, os conceitos têm uma natureza binária: ou bem o conceito aplica-se a um ente, ou bem não se aplica. Se dois entes quaisquer são exemplares de um conceito, eles o são de modo igualmente apropriado, isto é, um conceito não se aplica mais ou melhor a um ente que a qualquer outro. Destarte, por conceito entende-se uma lista de propriedades necessárias e suficientes. Os conceitos são, portanto, absolutamente precisos. Assim, se todos os homens são mortais, não há nenhum homem mais mortal ou tipicamente mortal que qualquer outro. Na concepção clássica, os conceitos consistem em conjuntos de atributos ou propriedades individualmente necessários e conjuntamente suficientes. Destarte, para ser representado num conceito, um ente deve possuir cada uma das propriedades que o constituem e a posse de todas essas propriedades deve ser suficiente para que o ente seja um exemplar desse conceito. Por exemplo, uma vez que [animal] e [racional] são atributos ou traços semânticos do conceito [homem], para que um ente seja considerado “homem”, é necessário que seja animal e racional. Na concepção clássica, os conceitos são estáveis. Eles são constitutivos de nosso conhecimento – do conhecimento conceitual. Conceitos são ferramentas com as quais pensamos. Também é sobre conceitos que recai o ato da reflexão. No ato da reflexão, tornamos os conceitos mais eficazes, mais adaptados para seus fins, uma vez que é na reflexão que eles são transformados, passando a fazer parte de nós mesmos como sujeitos do conhecimento.

A concepção clássica de conceito é, contudo, insuficiente para dar conta do processo sócio-cognitivo-interacional de construção de conceitos. Ademais, a concepção clássica não reconhece que a cognição é o resultado das nossas ações e de nossas capacidades sensório-motoras. Por conseguinte, o que entenderemos por “conceito” se alinha com o Realismo Experiencilista associado com a abordagem sociocognitivo-interacional da linguagem.

 

2. Realismo experiencialista: conceitos como modelos cognitivos

 

O realismo experiencialista enfatiza a experiência humana e assume a centralidade do corpo humano nessa experiência a fim de explicar o funcionamento da cognição humana. De acordo com esta teoria, a investigação da mente humana não pode ser separada do corpo. A experiência, a cognição e a realidade são concebidas a partir da ancoragem corporal. De acordo com esta perspectiva filosófica, os conceitos são produtos de uma construção sócio-interacional-cognitiva de significados. Os conceitos são dinâmicos; formam-se e mudam em consonância com as diversas formas de interação humana com objetos de ação, de conhecimento, com signos e significados culturais; e, sobretudo, formam-se e mudam nas relações intersubjetivas, em situações sócio-históricas de construção coletiva de significados e de negociação interpessoal desses significados. Os conceitos, portanto, existem sempre numa contextualidade, a qual recobre as práticas discursivas, os domínios de conhecimento e de cultura. Todo conceito é dotado de uma materialidade (é parte de textos, suportes, instituições, atividades, práticas linguísticas historicamente condicionadas).

A cognição, por seu turno, é um fenômeno situado. Não há limite claro entre o que acontece dentro e fora da mente. Os processos cognitivos resultam de relações complexas entre ações sociais e atividades mentais internas. As tarefas que realizamos conjuntamente com os outros constituem rotinas culturalmente determinadas que organizam os processos cognitivos dos indivíduos em conformidade com exigências socialmente fixadas. A emergência e desenvolvimento dos conceitos se dão nas atividades nas quais os homens se engajam com vistas a construir sentidos para a suas experiências de mundo.

O corpo não só delimita a experiência, mas também estrutura a cognição. Conceitos rudimentares como o de ‘contato’, ‘contêiner’, ‘equilíbrio’ resultam da experiência pré-conceitual. Tais conceitos não são meras abstrações, mas constituem esquemas imagéticos derivados de experiência sensório-motora.

Longe de negar que exista um mundo físico objetivo independente de nós, o realismo experiencialista mantém que o acesso à realidade é limitado por nosso ambiente biofísico e pela natureza de nossa estrutura corporal. Destarte, a radiação infravermelha, por exemplo, emitida por alguns corpos é invisível ao  olho humano, porquanto o comprimento de onda dessa radiação é maior do que o da luz que somos capazes de enxergar. Quando consideramos a percepção da cor, sabemos que o sistema visual humano tem três tipos de fotorreceptores, os quais diferem daqueles de animais como esquilos e coelhos (que apresentam dois tipos) e de pombos (que têm quatro tipos). Essa diferença influencia nossa experiência no tocante às cores a que temos acesso no espectro cromático. Ademais, enquanto temos dificuldade para enxergar à noite, as cascavéis realizam atividades noturnas, como a caça. Esses animais conseguem detectar visualmente o calor emitido por outros organismos, porque são capazes de enxergar a faixa infravermelha. Tais exemplos patenteiam que as características do aparelho visual dos seres humanos – um dos aspectos de sua estrutura corporal – determinam a natureza e a extensão de sua experiência nesse domínio.

Em consonância com o realismo experiencialista, a linguagem não reflete a realidade, mas interage com os sistemas perceptuais e cognitivos moldados pelas práticas culturais na construção humana da realidade. O realismo experiencialista mantém que a forma e a configuração de nossos corpos e cérebro determinam necessariamente uma perspectiva particular - entre várias possíveis – sobre o mundo. 

Na abordagem sociocognitiva, conceitos são um feixe de modelos cognitivos dotados de uma estrutura interna. Cada expressão linguística põe em evidência um aspecto do conceito em consonância com o contexto sociocognitivo. Na produção e desenvolvimento dos conceitos, destaca-se a importância do background cultural, que consiste na forma de vida da sociedade – forma de vida que inclui mudanças de costumes e mudanças tecnológicas.

O que torna possível a compreensão do que é o conceito ou dos aspectos do conceito instanciados pela expressão linguística é a experiência que o indivíduo tem, enquanto sujeito sócio-histórico, em sua vida cotidiana, com os diferentes aspectos do ente designado pelo conceito (p. ex.,  o conceito de ‘água’ será resultado da experiência que o indivíduo terá com  a fluidez, a clareza, a impureza desse elemento, ou com o fenômeno da chuva, etc.). Muitos de nossos processos cognitivos têm por base a percepção e a nossa capacidade de atuação sensório-motora no mundo. Portanto, há processos cognitivos que acontecem em sociedade e não exclusivamente ‘na mente’ dos indivíduos.

Em síntese, são três os postulados do Realismo experiencialista:

 

1) O pensamento enraíza-se no corpo, de modo que as bases de nosso sistema conceitual são a percepção, o movimento corporal e as experiências físicas e sociais;

 

2) O pensamento é imaginativo, de sorte que os conceitos que não são diretamente ancorados em nossa experiência física empregam metáforas, metonímias e imagética mental, que não mantém uma relação especular com a realidade;

3) O pensamento tem propriedades gestálticas, o que significa dizer que os conceitos apresentam uma estrutura global não atomística, ou seja, não se limitam à mera reunião de traços de significados organizados segundo regras específicas.

 

As palavras ou os signos de modo geral são o meio para a formação dos conceitos; mas, como não há uma relação especular entre a linguagem e o mundo, essa relação é sempre mediada pela arquitetura cognitiva dos actantes sociais, tendo em conta as restrições e características dessa arquitetura. Assim, segundo o realismo experiencialista, a razão humana não é um componente transcendental, mas algo que se constitui a partir da natureza de nosso organismo biológico e dos fatores que contribuem para a nossa experiência individual e coletiva, tais como herança genética, características do ambiente, a natureza de nosso comportamento e modo de ser sociais, etc.

O realismo experiencialista, assentado na hipótese da base corpórea da cognição, mantém que as experiências vividas pelos indivíduos através de seus corpos em ação servem de fundamento para a cognição, influenciando as atividades cognitivas tais como a percepção, a formação de conceitos, a imagética mental, a memória, o raciocínio, a linguagem, as emoções e a consciência.

Assim, por exemplo, considerando um esquema imagético como versões esquemáticas de imagens, concebidas como representações de experiências corporais, tanto sensoriais quanto perceptuais em nossa interação com o mundo, formamos os conceitos de dentro-fora, que, em conjunto, constitui um esquema imagético. Na base desse esquema está o domínio “contêiner”. Domínios são experiências perceptuais, conceitos, complexos conceituais e sistemas elaborados de conhecimento. Domínios como ‘contêiner’, ‘trajetória’, ‘força’ e ‘equilíbrio’ são responsáveis pela estruturação da experiência ancorada no corpo. É com base nesses domínios que é possível formular frases como “Ele jogou o lixo fora” e “Guardei o carro na garagem”.

  

2.1. O conceito de Deus como uma forma de modelo cognitivo

 

O conceito do Deus teísta se formou e se ainda desenvolve, com certa dinâmica reflexiva, em práticas intersubjetivas e institucionais, discursiva e historicamente condicionadas, com base em experiências individuais e coletivas delimitadas por relações com o entorno biofísico e pelo background cultural dos indivíduos que são socialmente posicionados como autoridades na promoção da fé em Deus. Como a constituição do conceito de Deus só indiretamente está ancorada em experiências físicas com o mundo, visto que não se tem experiência sensível de Deus, assumo que o conceito canônico de Deus foi gestado pela imaginação, a qual é condicionada por experiências sócio-históricas dos hebreus com guerras, exílio, impérios, deuses estrangeiros, artefatos culturais (como a escrita, por exemplo) e experiências físico-corpóreas com o ambiente natural, como, por exemplo, com o deserto. Como bem lembra Debray (1004, p. 38), “Deus é impensável sem a escrita essencialmente e sem a roda secundariamente”. A roda diminui, em certo grau, a dependência do homem em relação ao espaço; e a escrita, em relação ao tempo. Ainda segundo Debray, “o homem descende do símio, mas Deus descende do signo” (ibid., p. 39).

 Embora o que os crentes saibam a respeito de Deus tenha sido sedimentado por uma tradição bíblica e teológico-filosófica ao longo de séculos, o conceito de Deus, como todo conceito, é marcado por uma contextualidade e dinamicidade, de modo que pode sofrer algum tipo de customização. Por exemplo, em nossas sociedades de mercado, os fiéis, muitas vezes, vivenciam sua fé como alguém que participa de uma relação mercantil. Com base  no modelo cognitivo das relações de mercado, Deus é imaginado como um mercador com quem o fiel negocia favores e milagres. A relação imaginária entre o crente e seu Deus fica regulada por motivos e interesses pragmáticos.

Uma vez que eu tenha assumido que a imaginação desempenha um papel importante na formação do conceito de Deus, parece-me imperioso justificar por que lhe confiro esse estatuto. É o que farei doravante.

Vimos que um dos postulados do realismo experiencialista é que o pensamento é imaginativo, de sorte que muitos conceitos que não se formam pela ancoragem corporal diretamente dependem, para se constituir, de metáforas, metonímias e imagens mentais. O pensamento imaginativo parece, então, está essencialmente implicado na constituição do conceito da divindade de um modo geral. Escusa lembrar que o Deus bíblico é referido na Bíblia com o emprego de metáforas. Diz o salmista “o Senhor é a minha rocha, a minha fortaleza e o meu libertador, o meu Deus é o meu rochedo...” (Salmos 18:2). As metáforas da “rocha”, da “fortaleza” e do “libertador” se baseiam nas experiências hebraicas tanto com o ambiente biofísico quanto com o jugo e o exílio.  Em Isaías (40:11), Deus é representado como “pastor” que cuida do seu rebanho. É a experiência com o modo de vida pastoril, tão comum nas sociedades antigas do Oriente Próximo, que é ativada para a constituição desse modelo cognitivo de Deus. Deus é o pastor de seu povo. Ele tem a missão de reunir o gado e impedir sua dispersão. Deus prometeu uma pastagem às suas ovelhas – a Terra Santa. Jeová é para o homem o que o homem é para seus animais. Aqui o esquema imagístico para Deus funda-se no modelo pastoril. Modelos constituem simplificações ou idealizações da experiência e se formam levando ao extremo caracteres ou atributos dos objetos empíricos. Assim, “cada povo cria deuses à sua própria imagem”, como ensina Debray:

 

“(...) um povo de oradores inventa um Olimpo eloquente e rixoso. Um povo de pastores escolhe como instrumento de coesão e independência, um grande pastor celeste, substituído, nos planos inferiores, por pastores de carne e osso, profetas e monarcas, Moisés e Davi. A metáfora pastoril dos poderes supremos era corrente nas sociedades antigas, o Egito e a Assíria. O povo hebreu parece ter adotado o sistema de metáfora, adequado a pastores de pequenos rebanhos”. (ibid., p. 73).

 

 

Armstrong (2008, p. p. 94) também salienta o poder do pensamento imaginativo na formação do conceito de Deus, quando nos ensina que “(...) a concepção de Deus foi muitas vezes um exercício de imaginação. Os profetas refletiam sobre sua experiência e achavam que podiam atribuí-la ao se que chamavam de Deus”. É oportuno aqui lembrar que os profetas de Israel não eram adivinhos. Eles não falavam de acontecimentos de um futuro distante, como sugerem algumas interpretações correntes e historicamente inadequadas em nossos dias. Vale reiterar que os profetas bíblicos lidavam com o futuro imediato e não prediziam o que iria acontecer muitos séculos depois. Eles estavam tão só levando a palavra de Deus a pessoas que viviam em sua própria época. Os profetas também falavam dos sofrimentos de seus contemporâneos e forneciam uma justificação para eles sem pretender que ela se convertesse num princípio explicativo universal. A profecia hebraica tinha como propósito fazer uma crítica social e religiosa. Para os profetas, Deus é que punia o seu povo com sofrimentos sempre que esse povo se afastava Dele.

No primeiro livro de Samuel, Deus é referido como “Senhor dos Exércitos”, uma metáfora cunhada com base na experiência bélica dos hebreus com os filisteus. Os dois livros de Samuel recobrem o período que vai de aproximadamente 1030 a.C até o final do reino de Davi (972.a.C). Todo o segundo Livro é dedicado ao reinado de Davi, a cuja descendência o profeta Nathan promete uma Aliança eterna. Os Livros do profeta Samuel reúnem documentos diversos, possivelmente compilados a partir do início do século VII, conquanto somente um século depois tenham sido incorporados na forma definitiva em que se encontra na Bíblia. Conta-se que os israelitas, sob o comando do rei Saul, escolhido por Samuel, organizou um pequeno exército com apenas 3.000 homens para expulsar os filisteus. Como Deus é intervencionista, conta-se que ele causou o pânico entre os filisteus, quando um grupo de filisteus abandonou seu acampamento depois que Jônatas e seu escudeiro mataram vinte homens filisteus. A crença dos autores bíblicos na participação de Deus no curso da história é flagrante também quando se relata que Saul fica aborrecido com o silêncio de Deus, depois que lhe pediu orientação para continuar na luta contra os filisteus em fuga.

Também a experiência com o Deserto constitui um esquema imagético para a composição do conceito de Deus no Antigo Testamento. O Deus que aprecia as naturezas hostis, as temperaturas extremas e as pedras é símbolo da confiança na superação dos limites. Como pondera Debray,

 

“(...) se olharmos um mapa histórico, veremos que o Grande Outro só se apresentou, em pessoa, nos reinos da Ausência, que não configuram um meio uniforme e sim abstrato. Ele rejeita as baixas planícies, as margens pantanosas dos rios (...)” (ibid., p. 69)

 

 

 

Deus anuncia-se “lá onde nada separa o céu da terra. Onde o homem, exilado dos seus mundos familiares, descobre-se nu e quase supérfluo, insignificante”. (ibid.). É na desolação do deserto que “os céus nos contam a glória de Deus” e “as insignificâncias das glórias humanas, a comédia dos pontetados, o destino dos impérios”. (ibid.). A experiência dos hebreus com o caráter inóspito do deserto é o domínio com base no qual o esquema imagético de Deus como o Único, o Grande Unificador Federativo será constituído. Deus é, então, “o único ser capaz de costurar um tecido social mais exposto do que em outras partes às rupturas e até à divisão tribal”. (ibid., p. 70).

Tendo em vista o exposto,  a imaginação entra a fazer parte na constituição do conceito do Deus judaico não sob a forma grosseira de conjunto de sintomas delirantes, mas incrustada em experiências concretas, corpóreos e históricas, com a pedra, com o deserto, com as guerras, etc. É preciso ter em conta o fato de que por imaginação, desde Aristóteles, entende-se a faculdade de evocar ou produzir imagens, independentemente da presença do objeto a que se refere. Sartre a pensará como “consciência desrealizante”, porquanto a imaginação se dirige a um objeto não real. A imaginação, para ele, transcende o existente em direção ao ausente e elabora um mundo alternativo. Kant, por sua vez, pensará a imaginação como uma faculdade reprodutiva, que traz de volta ao espírito uma intuição empírica anterior. Não estou, portanto, negando à imaginação a função transgressora e criadora, “poetizante”, da qual nos lembram Baudrillard, Deleuze e Guattari. Decerto, a imaginação é o estímulo para que o pensamento conceitual pense mais além, é o estímulo sem o qual o conhecimento filosófico ficaria engessado no momento presente. Sem embargo, é igualmente certo que a tradição definiu, de modo geral, a imaginação como a faculdade criativa do pensamento mediante a qual se produzem imagens (representações mentais) de objetos inexistentes, entre os quais incluo Deus. A tradição distinguiu entre imaginação reprodutiva, que produz imagens daquilo que percebemos e a imaginação criadora, que produz imagens do que jamais vimos. Deus é um complexo conceitual produzido pela imaginação criadora. A imagem não é cópia do objeto real, mas seu processo de formação é um processo mimético da percepção. Quando, por exemplo, formamos o conceito canônico de Deus, ou seja, do Deus judaico-cristão, a imagem que produzimos se compõe de elementos de objetos reais. Os cristãos falam em um Deus pessoal, num Deus que é pai, num Deus capaz de amor, num Deus que se fez carne na pessoa de Jesus Cristo, etc. O divino no imaginário judaico-cristão é antropomorfizado. O conceito de Deus é, pois, produzido pela imaginação criadora, sempre condicionada por experiências históricas concretas, cujo modelo último é o homem e seus modos de ser no mundo. As experiências que os homens fazem de si mesmos com base nas relações de seus corpos com o entorno biofísico e histórico são o cadinho donde eles recolhem as qualidades imaginariamente projetadas e combinadas para compor o conceito de Deus. Como a imaginação se caracteriza por transcender os limites da experiência possível, em Deus, as qualidades humanas são representadas de modo superlativizado, superdimensionado.

 

3. O argumento da impossibilidade

 

Passo, agora, a desenvolver, um dos argumentos ateus mais notáveis dentre os que visam a demonstrar a impossibilidade da existência do Deus teísta. O chamado argumento da impossibilidade busca mostrar que o conceito tradicional de Deus é marcado estruturalmente por contradições, de sorte que sua existência é logicamente impossível. Tradicionalmente, Deus é definido como um Ser necessário, onisciente, onipotente e moralmente perfeito. Também é concebido como o Criador livre do mundo e se diz dele que é imutável e transcendente. Alguns argumentos da impossibilidade incidem sobre um só atributo do complexo conceito de Deus, por exemplo, tentando mostrar que a noção de onisciência é, em si mesma, logicamente incoerente; outros argumentos atacam a combinação de atributos, mostrando, por exemplo, que não é logicamente possível que um ser seja onisciente e criador livre. Se qualquer das formas de argumentação for bem-sucedida, poderei mostrar que não pode haver um Deus tal como imaginado na tradição teísta.

Uma observação se faz aqui necessária. É sempre possível ao teísta rejeitar o argumento da impossibilidade alegando que o Deus que se mostrou impossível não é o Deus em que ele acredita. Se o teísta acabar por defender um Deus que é capaz de conhecimento, sem ser onisciente, pode furtar-se a alguns argumentos, mas sob o preço de ficar com um Deus perculiarmente ignorante. Se o teísta, por exemplo, afirmar que seu Deus é poderoso, mas não é onipotente, esse Deus pode parecer cada vez menos digno de receber tal título honorífico. O teísta também pode optar pela vagueza; algumas vezes também pode apelar para concepções bastante abstratas de Deus, que chegam a beirar os modos como o divino é pensado na mística oriental. Uma reação bastante frequente, talvez, não é a redefinição do conceito de Deus, mas o refúgio na vagueza, no uso contínuo do termo “Deus” em flutuações semânticas que carecem de qualquer especificação. Mas recorrer à vagueza só consegue afastar as críticas ateístas à custa da diluição do conteúdo tratado. Se a noção que um crente tem de Deus for vaga o bastante para se furtar a todos os argumentos da impossibilidade, então nem para ele é claro o objeto de sua crença – nem se o que toma como uma crença pia tem realmente conteúdo.

 

3.1. A impossibilidade da Onipotência

 

O mais famoso argumento contra a crença na existência de um Deus onipotente é o argumento da pedra. O argumento se estrutura com base na seguinte questão: poderia Deus criar um pedra tão pesada que nem ele mesmo conseguisse levantá-la? Devemos aqui recordar que a onipotência, como qualidade do conceito do Deus teísta, é definida como a capacidade que tem Deus de realizar tudo, de fazer tudo. Como ensina o Catecismo da Igreja Católica (2000, p. 80-81), “(...) nada lhe é impossível e Ele dispõe à vontade de sua obra, Ele é o Senhor do universo, cuja ordem estabeleceu, ordem esta que lhe permanece inteiramente submissa e disponível”. Ou ainda: “Deus criou tudo, governa tudo e pode tudo”. (ibid., p. 81).

1) Se a resposta à referida questão for “sim”, ou seja, Deus pode criar tal pedra, então há algo que Deus não poderia fazer – não poderia levantar a pedra;

 

2) se a resposta for “não”, há algo que Deus não poderia fazer – não poderia criar tal pedra.

 

Em qualquer caso, a razão se vê diante de uma antinomia ao tentar elucidar a onipotência de Deus. Em qualquer caso, há algo que Deus não poderia fazer. Segue-se que há coisas que nenhum Deus pode fazer; nem ele nem qualquer outro ser (já que podemos substituir o signo “Deus” por qualquer outro) poderia ser onipotente. Se a onipotência designa a capacidade para fazer qualquer coisa, tudo, então há um argumento mais simples a favor da ideia de que não pode haver um ser onipotente. Bastaria dizer que nenhum ser, nem mesmo Deus, poderia criar um círculo quadrado, ou um número inteiro par maior que dois e menor que quatro. Como, logicamente, não pode haver tais coisas, então não poderia haver um ser que as pudesse fazer. Tomás de Aquino tentou invalidar esse aspecto do argumento alegando que a onipotência exige a capacidade para desempenhar tarefas logicamente possíveis. Criar um círculo quadrado sequer é uma tarefa, dada a contradição evidente que carreia. No entanto, o esforço de São Tomás para salvar a onipotência divina reforça o argumento de que o poder de Deus está submetido ao poder regulador da lógica humana. O argumento da pedra, todavia, pode facilmente especificar uma tarefa. Basta reformular a questão assim: poderia Deus criar uma pedra de betume tão pesada que nem ele mesmo conseguisse levantá-la?

Se é impossível mudar o passado, a onipotência deve excluir de seu domínio semântico a possibilidade de mudar o que aconteceu. Se Deus não pode mudar o passado, ele tem limites; portanto, não pode ser onipotente.

  

3.2. A impossibilidade da onisciência

 

Diz-se que Deus é onisciente na medida em que é um ser capaz de conhecer tudo o que é conhecível ou tudo o que pode ser conhecido. A onisciência de Deus inclui a presciência: ele é capaz de saber o que vai acontecer no futuro.

Há, contudo, várias dificuldades na onisciência que resultam de diferentes tipos de conhecimento. Outra ordem de dificuldades provém das mais sofisticadas descobertas da lógica contemporânea e da teoria dos conjuntos. Vou-me deter apenas nas dificuldades que resultam das diferentes maneiras de definir o conhecimento.

Quando falamos de conhecimento, podemos tomá-lo no sentido de:

 

1) conhecimento proposicional (saber que x é verdade)

 

2) saber como se faz algo (knowhow) (saber andar de bicicleta)

 

3) conhecimento de coisas e sentimentos por contato (eu sei o que é estar magoado).

 

Se Deus é onisciente, ele o é nas três acepções. Relativamente a 1), Deus, mesmo que detenha todo o conhecimento proposicional possível, não tem o saber como descobrir o conhecimento proposicional que não tem. Relativamente a 2), se Deus não tem corpo, já que é um ser incorpóreo, não pode saber fazer malabarismos, não pode saber o que é ter sensações. Relativamente a 3), Deus, não tendo imperfeições morais, não pode conhecer a luxúria, a inveja. Porque é perfeito, não pode conhecer o medo, a frustração nem o desespero.

Deus, não tendo ignorância, porque supostamente onisciente, não poderia conhecer o que é ignorância. Logo, não pode haver qualquer ser onisciente.

 

 

 

 

3.3. A impossibilidade de atributos combinados

 

Quando consideramos a relação entre os atributos de Deus, as ilogicidades são igualmente evidentes. Tomemos, em primeiro lugar, a combinação do atributo “criador livre” com o atributo da “onisciência”. O Catecismo diz que Deus é o Criador que mantém e sustenta a criação – “Deus cria livremente do nada” (p. 88). Deus dá o ser e a existência a sua criatura (o mundo todo existente) e “a sustenta a todo instante no ser” (p. 90). Seria a liberdade de Deus compatível com sua onisciência? A resposta é não. Não se pode fazer uma escolha livre entre A e B, se se souber com completa certeza antecipadamente que se toma o curso de ação A. Nesse caso, uma vez que um Deus onisciente saberia antecipadamente (e desde toda a eternidade) todas as ações que levaria a cabo, não pode haver qualquer momento no qual Deus possa fazer uma escolha genuína.

Vejamos agora se a onipotência é compatível com a perfeição moral. Um ser pode ser onipotente e, ao mesmo tempo, incapaz de fazer o mal, de pecar? Ora, se Deus não pode agir imoralmente (há algo que ele não pode fazer), é-lhe impossível enfrentar quaisquer escolhas morais genuínas. Deus não pode ser louvado por fazer escolhas corretas, e se Deus não é moralmente louvável, dificilmente se pode considerá-lo moralmente perfeito. A perfeição moral parece excluir precisamente a possibilidade da escolha entre o bem e o mal, que a perfeição moral exige.

Quando tomamos a intemporalidade e a imutabilidade de Deus conjuntamente com a onisciência, encontramos novas inconsistências. A intemporalidade e a imutabilidade são atributos inconsistentes com a onisciência relativamente a fatos conhecíveis apenas num momento particular do tempo; e a imutabilidade, em particular, é incompatível com a noção de um Deus criador, já que, ao criar, Deus muda seu estado de não-criador (que existia juntamente com o nada) num tempo t para criador num tempo t’, com todos os encargos e compromissos que este estado implica.

 

3.4. Contradições da Criação

 

 

Como um Deus, definido como imaterial, puro espírito, infinito e perfeito, poderia ter criado um mundo material imperfeito?

Lucrécio ensinou que, se os Deuses são perfeitos e se, ipso facto, encerram em si mesmos todas as realidades possíveis, como conceber uma realidade que ainda não existia antes da criação? Vamos esclarecer aqui os conceitos teológicos que estão implicados nesta etapa da argumentação. No sentido teológico, o infinito é aquilo que, para ser, não precisa de outro, sendo então ilimitado potência de ser. Assim, a infinidade de Deus consiste na ideia de que Deus não é limitado por nada em sua potência de ser, Deus não depende de nada além de si para ser. Deus é infinito porque sua natureza transcende todo e qualquer grau de perfeição. Perfeição significa aqui que Deus é a totalidade do Ser. A perfeição de Deus repousa na crença de que Deus possui totalmente o ser. Deus e o ser é o mesmo. Se Deus é sumamente perfeito, de nada carece, já que ele encerra todas as realidades possíveis, como lembra Lucrécio. Se Deus é o infinito em ato, nenhuma produção suplementar de existência será possível. Logo, a Criação é impossível.

No entanto, se Deus tem necessidade da Criação, ele é imperfeito porque tem necessidade. E toda necessidade é uma carência. Se Deus criou por suberabundância de amor, por que Deus ofereceu um mundo tão repleto de males e sofrimentos? Toda criação é, por natureza, finita; portanto, é imperfeita relativamente ao infinito (Deus). Como o infinito (Deus) conseguiu produzir o finito (inferior)? Se a perfeição conseguiu tão facilmente se degradar, é porque ela era imperfeita.

Se Deus é puro espírito, como produziu a matéria? Ora, de modo geral, os filósofos definiram a matéria (hýle) como substância comum aos corpos. Por abstração, a matéria significa também a realidade sensível de que são feitas todas as coisas. Segundo Aristóteles, a matéria é phýsis (natureza), o universal do movimento e da mudança. É o ser em potência, que deve passar ao ato ao receber a forma (eidos). Tanto para Descartes quanto para Espinosa, matéria é extensão. É uma substância extensa em comprimento, largura e profundidade. Suas características principais são a divisibilidade e impenetrabilidade.  Matéria é o corpóreo, o sensível. Recobre a totalidade de tudo que existe no universo. Na física moderna, a matéria é granular, quando considerada em sua profundidade; é um aglomerado de átomos e está em constante movimento. É a própria energia. A matéria que tocamos e sentimos é, na verdade, uma imensa quantidade de energia “comprimida”. A energia é, portanto, a substância da qual todas as coisas são feitas, incluindo todas as partículas elementares, os átomos e as quatro partículas estáveis no mundo atômico: o próton, o elétron, o fóton e o nêutron. Os físicos atualmente assumem a existência de um imenso oceano de partículas nucleares chamadas hádrons, as quais se decompõem em partículas menores: os quarks (que, no entanto, nunca foram observados). Em suma, o mundo é matéria em movimento, porque não existe matéria sem movimento e nem movimento sem matéria (Schöpke, 2009).

Tendo criado a matéria, que relações ela tem com Deus, o seu Criador? Se ela é independente dele, Deus deixa de ser onipotente e infinito: torna-se finito, limitado pela criação. Se a matéria é uma emanação da substância de Deus, então Deus tem de assumir a sua materialidade, a finitude e os seus defeitos. Se Deus criou a matéria, o fez porque sentiu-se carecido dela. Mas, nesse caso, Deus não é perfeito ou a materialidade sempre fez parte da perfeição. Vale lembrar que Plotino tentou resolver esse problema, de modo bastante insatisfatório, distinguindo a matéria inteligível, que é divina e eterna, da matéria sensível, que não tem essas qualidades. Na qualidade de substratum (hypokeímenon) físico, a matéria é o não-ser e, assim, ela é o mal.

 

3.5.  A impossibilidade divina

 

O filósofo Carnéades de Cirene notou que o conceito de Deus teísta é intrinsecamente contraditório. Como é impossível existir uma contradição de si mesmo, concluiu pela impossibilidade da existência de Deus. Para Carnéades, Deus não pode ser onipotente e também virtuoso, porque onipotência supõe um estado de eterna perfeição, mas virtude moral supõe imperfeição superada. Assim, por exemplo, a coragem é a virtude que consiste em dominar o medo em face de uma situação perigosa. Que sentido há em dizer que um Deus Todo-Poderoso, que presumivelmente, nada teme, já esteve em uma circunstância tal em que pudesse praticar a virtude da coragem? Se tomamos a alegação teísta segundo a qual Deus é onipotente e onisciente, podemos mostrar que tais atributos são inconsistentes entre si, alegando que, se Deus é onisciente, é capaz de antever tudo, inclusive seus atos futuros. Mas, sendo onipotente também, Deus pode anular tudo, tornando incertas todas as suas previsões, inclusive as previsões sobre seu próprio comportamento.

 

A título de conclusão, parece-me certo dizer que o conceito de Deus teísta, na medida em que se inscreve na história do pensamento ocidental como signo do divino submetido à razão discursiva, herda as tendências irracionais da própria razão. A suposta onipotência de Deus é frágil em face das contradições em que se vê enredada a razão humana, prova de que Deus não é senão um complexo de imagens hipostasiadas do pensamento imaginativo humano, cujo caráter selvagem a razão em si mesma não consegue domar. Como bem escreve Verret (1975, p. 58):

 

“O metafísico idealista não encontra em Deus senão as suas próprias contradições inconscientes. Nega a contradição à face da realidade: ela não se manifesta aí com mais acuidade, dentro de seu pensamento. Define Deus segundo critérios da lógica formal por uma série de atributos isolados, absolutos e imóveis (a infinidade, a perfeição etc.) excluindo os seus contrários. Mas este Deus sem contradições supostas não consegue pensar, senão ao preço da contradição! A contradição desprezada vinga-se. Sobre ele. E até sobre Deus. Pois se Deus é pura ideia, toda contradição na ideia de Deus recai em Deus”.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

Catecismo da Igreja Catótilca. São Paulo: Loyola, 2000.

 

FERRARI, Lilian. Introdução à Linguística Cognitiva. São Paulo: Contexto, 2011.

 

GUITTON, Jean; BOGDANOV, Grichka; BOGDANOV, Igor. Deus e a Ciência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

 

MCKENZIE, Stven L. Como ler a Bíblia: História, profecia ou literatura. São Paulo: Edições Rosari, 2007.

 

SCHÖPKE, Regina. Matéria em movimento: a ilusão do tempo e do eterno retorno. São Paulo: Martins Fontes, 2009

 

SEIFE, Charles. Alfa e Ômega: a buscado pelo início e o fim do Universo. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

 

TRIGUEIRO, Edmac. História do Universo. Osasco, SP: Novo Século Editora, 2011.

 

VERRET, Michel. Os marxistas e a religião. Lisboa: Prelo, 1975.

 

 

WALTERS, Kerry. Ateísmo: um guia para crentes e não crentes. São Paulo: Paulinas, 2015.