Mostrando postagens com marcador Realidade. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Realidade. Mostrar todas as postagens

domingo, 10 de abril de 2022

"Em vez de chamar uma percepção falsa de 'alucinação', deveríamos chamar a percepção externa de 'uma alucinação confirmada' ". (Hyppolyte Taine)




A realidade não é como parece ser

 

O  que exprimo aqui é uma intuição, uma intuição que os místicos hindus nos ensinam, intuição de que Schopenhauer também comunga, uma intuição que parece encontrar respaldo na física quântica. “A vida é como um sonho”. O que vemos, sentimos, experienciamos são apenas imagens deste sonho enigmático. Atores entram e saem de cena incessantemente. Aparecem e desaparecem para sempre como espíritos que se dissolvem no ar. Nada é substancial. Acidentes fatais, guerras, epidemias, catástrofes naturais, o tráfego dos pedestres, o barulho e a azáfama dos grandes centros urbanos, mares, tempestades, dia e noite, tudo isso é feito da matéria onírica. Nada deixará para trás um sinal, um vestígio. Nossas vidas frágeis e breves são feitas da matéria de que se fabricam os sonhos; elas têm o acabamento do sono. Eu não estou louco; ao contrário, encontro-me na mais profunda e cristalina Lucidez de quem chegou a compreender o Essencial. Todos vivemos sob a ilusão do véu de Maya. Acreditamos tocar uma realidade concreta com as mãos, mas, ao fazê-lo, ela se desmancha entre nossos dedos como castelos de areia; acreditamos existir independentemente de nós uma realidade exterior, maciça, cheia de luz e cores que captamos com nossos olhos. Erramos! É o nosso cérebro que constrói a realidade que experimentamos. O que vemos, sentimos, percebemos são modelos, imagens ou mapas mentais fabricados por nosso cérebro. É como o membro fantasma que mesmo amputado ainda é sentido. Algo estranho (fora do comum) acontece nessa experiência de quem tem uma perna amputada: a realidade e a sensação podem divergir, mas coexistir no cérebro. Os sinais não viajam de nossos olhos para o cérebro; é justamente o contrário que acontece: eles viajam do cérebro para os olhos. É o cérebro que constrói uma imagem do que prevê que os olhos devem ver. O realismo dependente do modelo, em física, não é uma forma de idealismo, porque não nega que existe um mundo exterior à nossa consciência. Mas o realismo dependente do modelo não se identifica com o realismo em sua versão tradicional, porque a realidade exterior existe na dependência de um modelo mental produzido pelo cérebro de um observador. A realidade não existe de modo autônomo, segundo a perspectiva do realismo dependente do modelo. Diz-nos o astrofísico Carlo Rovelli, “o que vemos não é uma reprodução do exterior. É o que esperamos ver, corrigido pelo que conseguimos captar”.  

Não quero convencer ninguém da razoabilidade destas epistemologia e metafísica. Assumo-as como fundamento de uma ética de compaixão e solidariedade para com todos os viventes, cuja existência está atolada na ilusão de Maya. Elas me ajudam a suportar o absurdo de uma existência cujas condições não foram escolhidas por mim, elas me ajudam a suportar o peso da perspectiva de minha morte inevitável, que avança insondável à medida que envelheço; elas me ajudam a aceitar a vanidade que corrói, até as raízes, todos os meus esforços, tudo aquilo que se me afigura como sumamente importante. Ter sempre em conta o caráter insubstancial da vida, de tudo aquilo que experienciamos constitui o princípio de uma ética do desapego, do desprendimento.

Assim diz um excerto de “A tempestade”, de Shakespeare:

 

“...as torres, cujos topos se deixam cobrir pelas nuvens, e os palácios, maravilhosos, e os templos, solenes e o próprio globo, grandioso, e também todos que nele aqui estão e todos os que o receberam por herança se esvanecerão, e assim como se foi terminando e desaparecendo essa apresentação insubstancial, nada deixará para trás um sinal, um vestígio”.

 

 

Disse que, à luz dessa intuição, corroborada pela física quântica, suporto o “ab-surdo”, isto é, o que é desagradável aos ouvidos, o que é incompreensível, porque é “alogos”, irracional, dissonante. Eis o absurdo: a absoluta gratuidade e contingência da existência. Camus chama absurdo ao divórcio entre o desejo humano de logicizar, de explicar racionalmente o mundo, de lhe conferir sentido e a realidade cruel, ilógica dos acontecimentos, ou ainda, absurdo é, para Camus, o divórcio entre a opacidade indiferente do universo e o desejo humano de sentido, clareza e felicidade.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

“A magia da linguagem é o mais perigoso dos encantos.” (Lord Owen Meredith)

                                                              



                                O feitiço do simbólico

 

Este texto poderia ostentar o título armário, que serviria como um frame para que eu começasse a discorrer sobre a experiência, bastante comum, que tive ao ajudar a desmontar um armário para dar lugar a um novo que também ajudei (indiretamente) a montar. O título “armário” representaria, assim, um modelo cognitivo da experiência de lida com as coisas, tão característica do senso comum. Enquanto eu estava ocupado com o desmonte do armário, eu habitava, por horas, o domínio intersubjetivo do modo de viver do senso comum. Meu corpo operava a fim de resolver problemas práticos, tais como o de saber que parte do armário deveria desaparafusar primeiro. Não que eu me dispensasse de pensar, mas o meu pensamento era orientado para a resolução de problemas de ordem prática. Nesse domínio de experiência, não faria sentido demorar-me em elucubrações metafísicas, filosóficas, em reflexões sobre o sentido do que fazia, sobre o que é um armário. O armário me vinha ao encontro como um estorvo, um problema prático que exigia solução. O relato sobre minha experiência de desmonte do armário configuraria, portanto, o frame a partir do qual eu me estenderia sobre como a leitura, os livros, a filosofia estruturam a minha vida diária. Agora, sinto que não era bem isso que eu queria dizer. A experiência do armário apenas seria uma espécie de “gatilho cognitivo” para que eu externasse um sentimento persistente e familiar que teria a seguinte formulação verbal: sinto que vivo transitando entre duas esferas, entre dois domínios de experiência, a saber, o domínio do senso comum, no qual ajo compartilhando com os outros (meus familiares, amigos) um mesmo “mundo”, e o domínio da experiência da filosofia, ou da leitura, que me faz ‘habitar’ outro mundo, um mundo mais significativamente profundo, um mundo à parte, um mundo que é mais complexo, mais vasto, um mundo que responde por anseios elevados, por necessidades psíquicas não satisfeitas pelas experiências comuns da vida diária, um mundo que me é acessível apenas pelos signos, pelos textos, porque é um mundo que se experiencia como mundo inteiramente textualizado. Viver, não raro, se me afigura como um esforço contínuo por fazer coexistir esses dois mundos, por fazer que se mantenham conciliados em alguma medida. A vida pode ser reduzida a este esforço: a conciliação entre o mundo da vida comum, no qual agimos conjuntamente com os outros e no qual estabelecemos com os outros relações de interdependência a fim de satisfazer necessidades práticas, emocionais, afetivas, no qual obramos, no qual nos esforçamos por obter os recursos materiais necessários à nossa subsistência, no qual sofremos uma série de perturbações imprevistas que quebram a rotina, no qual também fruímos alguns prazeres triviais, e o mundo da vida filosófica, da leitura, no qual a experiência que temos da realidade é profundamente transfigurada, é radicalmente transformada, no qual o espírito, absorto, frui prazeres mais prolongados. Assim, me apercebo como um sujeito esquizo, um esquizo-frênico. Não chego a sofrer, evidentemente, de esquizofrenia paranoide; mas tenho a experiência íntima de que a vida como leitor e como filósofo produz uma divisão, uma cisão, uma fissura (não chega a ser uma quebra, uma completa ruptura, o que constituiria um estado patológico) com o mundo tal como experienciado pelo senso comum. Já tive a oportunidade de falar sobre isso em outros textos. O filósofo também se orienta pelo senso comum, em sua vida diária, não como filósofo, mas como pai, filho, marido, cliente de banco, consumidor, paciente que busca assistência médica, etc. No entanto, o filósofo não se despe de seu modo de ser para assumir outros papéis; seu modo de ser está sempre disponível, sempre se intrometendo nos interstícios de sua experiência comum de mundo, o que, não raro, lhe traz algumas perturbações, algumas inconveniências, sempre que os modelos sociocognitivos ativados e compartilhados com o interlocutor não admitem a interferência de questionamentos profundos e elaborados . Não é que ele deixe de ser filósofo quando é pai, filho; porque a filosofia é seu modo de ser mais próprio. No entanto, ele sabe que, em sociedade, os indivíduos atuam como atores – são atores sociais -, e assumem papéis sociais institucionalmente fixados. Convém interromper o fio discursivo neste ponto, pois não quero trafegar por caminhos que me afastariam para bem longe das intenções iniciais me levaram a compor este texto. Espero que o que se seguirá não se apresente ao leitor tão transviado do motivo central que me incitou a escrever este texto.

Instalados, na maior parte do tempo e na maioria das vezes, no senso comum, os indivíduos não se deixam afetar pela experiência do espanto, da admiração. O senso comum, sendo o modo espontâneo, “natural”, familiar, imediato de eles se relacionarem com o mundo, de o perceberem e o compreenderem fornece-lhes sempre esquemas práticos de simplificação, de superficialização das experiências que eles têm das ocorrências do real. No senso comum, a linguagem mesma não é sequer um objeto de problematização, de questionamento para eles. Instalado no senso comum, o homem usa a linguagem como mero instrumento de comunicação de seus pensamentos, de seus sentimentos, de suas ideias, crenças, opiniões, valores. Ao servir-se dela, com o propósito de exteriorizar os conteúdos de sua consciência, o homem comum acredita que a linguagem lhe dá acesso ao mundo já dado, objetivo, cuja existência é anterior à linguagem. Assim, a relação entre a linguagem e o mundo se resolve em termos de ajustes, acordos, correspondências objetivas entre o signo e o real, entre os enunciados que ele produz e a ordem já dada de uma realidade que a ordem simbólica apenas reflete, expressa, traduz (na verdade, a ordem simbólica não é sequer uma ordem que se sobrepõe à ordem do mundo; ela é identificada com a própria ordem do mundo; é subsumida nessa ordem, de modo que o mundo se organiza, se estrutura do modo como está estruturado e expresso na sintaxe da linguagem). A verdade é simplesmente um efeito da correspondência entre o enunciado e o mundo, entre as palavras, de um lado, e as coisas, de outro, entre o pensamento e a realidade exterior. Os desacordos, as desavenças, tão frequentes entre os interactantes nos usos da língua seriam, assim, sintomas de um descuido, de uma imperícia, de uma falta, de um erro, nas tentativas que fazem os interactantes de ajustar, de adequar suas produções linguísticas à realidade objetiva, previamente existente e estruturada.

No entanto, quando examinamos mais acuradamente como se dá a relação entre o ser humano, a linguagem e a realidade, descobrimos ser uma miragem essa crença numa relação especular entre a linguagem e o mundo. Não vou me deter nos meandros complexos, intrincados e fascinantes desse problema. Quero apenas manifestar aqui meu espanto: os seres humanos, sem se darem conta disto, existem como seres capturados na teia do simbólico. Toda a sua existência é capturada, está emaranhada nessa teia de símbolos, signos, linguagens (basta atentar para os espaços sociais onde a nossa vida acontece: eles são povoados de signos, linguagens, sinais, outdoors, imagens; basta se aperceber do modo como nossa vida está imersa nesses ciberespaços da internet onde circulam incessantemente palavras, hipertextos, hipersignos, hipermídias, linguagens e imagens diversas). Mas, ao acreditarem que estão a falar do mundo, o que eles fazem não é senão produzir e negociar, nas práticas sociointeracionais por meio da língua, modelos públicos de mundo, versões semiotizadas da realidade. Ao acreditar que eles falam de coisas previamente existentes à ordem do simbólico, à ordem do discurso, o que eles, de fato, fazem é falar de objetos-de-discurso, de referentes que se constroem cognitivamente no discurso e que são modificados, estendidos, ressignificados, trasformados nas práticas discursivas. Nós vivemos como se estivéssemos irremediavelmente sob uma espécie de “feitiço” do símbolo, de encantamento da linguagem: acreditamos falar do mundo propriamente, quando, na verdade, falamos acerca dos modelos de mundo fabricados simbolicamente. E o que é mais espantoso: travamos brigas, disputas, contendas, odiamos, guerreamos e matamos em nome desses modelos de mundo simbolicamente fabricados. Não nos dando conta de que, nas práticas diárias de uso da linguagem, estamos constantemente negociando significados, estamos produzindo efeitos de sentido, estamos agindo sobre os outros, tentando convencê-los, persuadi-los, de modo a modificar-lhes o comportamento, acreditamo-nos portadores da chave que nos dá um acesso direto, verdadeiro, imediato à realidade. Acreditamos que possuímos um saber sobre a ordem do mundo em si, sobre como o mundo é em si mesmo, independentemente da linguagem, da cognição, da percepção, da práxis histórica e cultural, que constituem, em conjunto, os modos pelos quais a realidade se constrói e se torna acessível, inteligível, compreensível ao animal humano. Loucura da condição humana: acreditar na transparência da linguagem, deixar-se enganar pela crença metafísica na linguagem, acreditar no “em si” do mundo que a linguagem se encarregaria de simplesmente espelhar, expressar. Essa forma de loucura é a da normalidade, é nossa “loucura normal”. Ela difere do delírio da esquizofrenia justamente porque a loucura normal rejeita a autonomização absoluta do signo, enquanto o esquizofrênico é aquele que sofreu a completa captura na trama do simbólico, é aquele para quem o mundo dos símbolos, dos signos se absolutizou, é aquele que “reconheceu” que não há nada ‘lá fora’ além das construções simbólicas fabricadas pelo discurso. Dizemos comumente que o “esquizo-frênico” perdeu o contato com a realidade - bem entendida: com a realidade da experiência comum, da experiência socialmente aceita, compartilhada, estabelecida como “norma”. Mas, se o louco é aquele que rompe com a realidade considerada “normal” por uma comunidade humana, então o que é a realidade? Não prova o louco que essa realidade não é senão um constructo, um modelo cerebral (mental), cognitivo, linguístico, cultural dependente da práxis histórica, dependente de acordos, de consensos humanos em coletividades? O louco não prova que a realidade objetiva não é senão um efeito, uma ficção (criação, fabricação) de experiências intersubjetivas que fundam um mundo; que o mundo objetivo é uma construção de relações intersubjetivas mediadas e estruturadas pelos significados que são produzidos e negociados nas inúmeras interações sociais por meio da linguagem?

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

O mundo é traduzido em linguagem



                     A linguagem que não vemos
        Contra a ingênua visão instrumentalista da língua


Parte 2

Este texto se pretende um prosseguimento do texto intitulado A gramática que não aprendemos, postado neste blog.  Nesta oportunidade, vou-me esforçar por argumentar contrariamente a uma visão reducionista de língua, segundo a qual ela é um instrumento de comunicação. Sigo a tendência comum, nos estudos funcionalistas, de não fazer distinção entre língua e linguagem e usarei os dois termos indiferentemente para designar um tipo específico de sistema semiótico. Necessário é observar que, ao usar o termo linguagem, refiro-me à linguagem verbal.
Pretendo aqui demonstrar a relação necessária entre linguagem, cultura, percepção-cognição na fabricação da realidade, na constituição do pensamento e na construção do conhecimento. Desse modo, viso a contribuir para que a compreensão do papel e da importância da linguagem na vida do homem seja alargada, de modo que se supere a visão limitada e equivocada da linguagem como instrumento de comunicação de pensamentos. Quando enfocada na dinâmica social, a linguagem deve ser encarada como uma atividade, como uma prática, como uma forma de ação no mundo e sobre os outros. Pelo uso da língua, nós agimos, executamos atos de linguagem, com os quais influenciamos ou modificamos o comportamento do outro. A língua é lugar ou domínio de inter-ação social.


1. A linguagem segundo Halliday

Começarei situando minha discussão sobre as questões recobertas pelo complexo fenômeno da relação mútua entre linguagem, cultura, percepção-cognição na perspectiva do funcionalismo desenvolvido por Michael Halliday, linguista australiano de origem britânica que, em trabalho conjunto com estudiosos como Ruqaiya Hasan, Christian Mitthiessen e Geoff Thompson, tem se dedicado, desde 1970, a uma intensa produção de estudos sobre a linguagem e o seu ensino, recobertos pela designação Linguística Sistêmico-Funcional (LSF). Não teciono resenhar à exaustão o modelo de Halliday, mas tão só apontar os postulados e conceitos que balizarão as reflexões que se seguirão.
O termo funcionalismo recobre um conjunto heterogêneo de abordagens sobre a linguagem que, no entanto, compartilham entre si dois postulados: a necessidade de estudar a língua em uso e a primazia da função sobre a forma. Embora não negligenciem a descrição da estrutura da língua, os linguistas cujos trabalhos se desenvolvem na esteira do funcionalismo insistem em que se deve dar prioridade à compreensão das funções a que serve a língua. O princípio basilar por que se norteiam os estudos funcionalistas pode ser expresso da seguinte forma: o uso da língua influencia e/ou determina a forma dos seus enunciados. Para os funcionalistas, as escolhas linguísticas que fazemos, a configuração estrutural de nossos enunciados são influenciadas pelas funções que cumpre a língua nos mais diversos contextos sociais de interação.
A LSF, sendo uma abordagem da linguagem marcadamente social, enfoca a língua em uso nos mais variados contextos sociais. Revelando uma face sistêmica – portanto, não deixando de integrar em seu modelo uma análise das relações entre os diferentes estratos da linguagem, perspectiva esta à luz da qual a gramática é entendida como uma rede de escolhas -, a LSF, porque também é funcional, compreende a linguagem em sua relação necessária com a estrutura social e se estriba na tese, segundo a qual nós usamos a linguagem para satisfazer determinadas necessidades sociais.
Halliday está, particularmente, interessado em compreender como a língua se estrutura com vistas à satisfação de necessidades relacionadas ao seu uso social em contextos social e culturalmente definidos. Nunca é demais insistir em que a coluna vertebral dos funcionalismos, em Linguística, assume a forma da tese segundo a qual o uso influencia a forma da língua. Em outras palavras, os funcionalistas, ainda que proponham modelos teóricos diversos e nem sempre comensuráveis, estão de acordo quanto à proposição segundo a qual a forma que assumem nossos enunciados é influenciada pelas necessidades decorrentes do uso a que eles sevem. De acordo com essa perspectiva, a linguagem é um a forma de interação social. De fato, sustentam os funcionalistas que uma das funções a que seve o uso da língua é permitir que seus usuários interajam em sociedade. A abordagem funcionalista da linguagem prevê que os falantes usam a língua para atuar no mundo, para agir uns sobre os outros, para influenciar o comportamento uns dos outros.
Vale lembrar que não é minha intenção cobrir todos os postulados do funcionalismo proposto por Halliday, tampouco descer a pormenores sobre as dimensões teórico-metodológicas da LSF. A decisão por começar referindo a contribuição de Halliday e por apresentar, em linhas gerais, o que é o funcionalismo em Linguística foi motivada pelo reconhecimento da importância que têm suas reflexões para a pavimentação dos caminhos que nos conduzirão à compreensão da relação intrínseca e recíproca entre linguagem, cultura, percepção-cognição.
Antes de pontuar as ideias que me parecem lançam alguma luz sobre essa relação, gostaria de considerar a concepção de Halliday de linguagem como semiótica social. Halliday nota que, acima de tudo, a linguagem é um sistema social ou cultural produtor de significados, os quais servem para construir a realidade. De acordo com essa visão, a linguagem é indissociável do contexto sócio-cultural em que ela é usada, e a cultura, que é uma dimensão desse contexto, deve ser vista também como um sistema semiótico (um sistema de significados).
É necessário esclarecer que, em semiótica, devemos distinguir, segundo Halliday, três aspectos que lhe são intrínsecos: o físico, o biológico e o social (Halliday & Mathissen, 1999, p. 507). A semiótica designa o estudo científico das propriedades dos sistemas de comunicação, seja naturais, seja artificiais. Desde de Peirce (1834-1914), a semiótica, como parte da abordagem filosófica da linguagem, recobria o estudo dos sistemas de signos e símbolos em geral. Mais recentemente, a semiótica passou a abrigar uma análise da comunicação humana interessada em todos os seus modos de percepção - audição, visão, tato e olfato.
Na Europa, especialmente, a análise semiótica se desenvolveu como parte de um trabalho destinado a compreender todos os aspectos da comunicação tomados como sistemas de sinais, ou seja, sistemas semióticos. A língua está entre os sistemas semióticos, produzidos culturalmente. Outros exemplos de sistemas semióticos são: a música, a alimentação, o vestuário, a dança, a arte, a religião, etc.
Para Halliday, a linguagem é um sistema semiótico mais geral, visto que é uma linguagem natural, falada por seres humanos e aprendida como língua materna. Deve-se destacar, nesse sentido, a propriedade que tem a linguagem de servir à tradução de todos os demais sistemas semióticos. Seu uso supõe um ambiente físico, um organismo biológico capaz de produzir sinais e uma ordem social de relações interativas que lhe garante significado. Na visão funcionalista, os significados são construídos interacionalmente. A interação social pela linguagem se expressa na forma de negociação de significados. Ao usar a língua, os falantes estão, constantemente, negociando significados.
Halliday nos ensina que, quando buscamos investigar de que modo a linguagem se relaciona com a cultura, ou ainda, quando buscamos compreender como se manifesta a relação necessária, indissociável e dinâmica entre esses dois domínios do universo social, impõem-se ao reconhecimento fatos que nos despertam para o papel fundamental que a língua/linguagem cumpre em nossas vidas. Elenco, abaixo, esses fatos:

1) O uso da linguagem serve não só para estruturar as nossas experiências de mundo, mas também para dar sentido a elas;

2) A linguagem torna possíveis as nossas interações com outras pessoas;

3) O uso da linguagem não só serve para moldar a realidade, mas também para defendê-la contra os que a ela se opõem;

4) A linguagem toma parte do mecanismo perceptual-cognitivo e cultural de fabricação da realidade e serve ao homem para que essa mesma realidade de cuja construção ela participa seja por ele examinada.

Convém, pois, insistir em que, de um ponto de vista funcional, o significado é construído na interação social pelo uso da língua, e não é algo que as expressões linguísticas comportam.
Tomemos a relação entre linguagem e contexto, dada a importância que este conceito desempenha na abordagem funcionalista. A relação entre linguagem e contexto não deve ser concebida como a relação entre o quadro e sua moldura. O contexto não é uma moldura ou cenário onde os eventos linguísticos acontecem. Linguagem e contexto são interdependentes, e este último limita nossas escolhas linguísticas.
Não me alongarei sobre o significado de contexto no funcionalismo, embora eu precise enfatizar que esse conceito alicerça toda abordagem funcionalista de linguagem. Mesmo não tencionando pormenorizar seu significado, não poderia deixar de notar que, para o que se segue, necessário se faz reconhecer, na noção de contexto, uma interface cognitiva. Sem negar o entorno biofísico-social, é necessário reconhecer que sua influência sobre o uso da língua só se dá numa forma semiotizada, porque representado em modelos mentais em que se organiza todo um complexo de conhecimentos e crenças, alocado em nossa memória. Esses modelos consistem em conjuntos estruturados de formas de conhecimentos, crenças, valores adquiridos pelos usuários da língua nas mais diversas experiências sócio-culturais de que participam.
Tanto a linguagem quanto o contexto social são, assim, entendidos como abstrações que se complementam. Assim, a construção sócio-cultural e semiótica da realidade não se dissocia da construção do sistema semiótico que é a linguagem. A linguagem, como sistema semiótico, codifica a realidade, visto que, “nosso ambiente é moldado pela cultura e as condições em que nós aprendemos a linguagem são, de modo geral, culturalmente determinadas” (Halliday, 1978, p. 1-3; p. 23). Para Halliday, a realidade é construída por meio da troca de significados na interação social, e os significados tornam-se constitutivos da própria realidade. Compreendendo os significados como componentes constitutivos da realidade, Halliday advoga a necessidade de pensarmos a linguagem como uma atividade produtora de significados, a qual toma parte, de modo indissociável, da dinâmica de nossas experiências vitais. A linguagem é, assim, inseparável do próprio viver, que, no homem, se manifesta num mundo social. Halliday, contudo, não nega que a linguagem sirva para construir e representar experiências pessoais, mas ele insiste em que é próprio da linguagem tornar possível e manifestar a dimensão intersubjetiva das experiencia humanas.
Mesmo incorrendo na inconveniência de eu ser repetitivo, reitero a ideia de que a linguagem atende a diversas demandas sociais, a fim de sinalizar para uma outra característica fundamental da língua: ela é uma rede de sistemas funcionais. Em outras palavras, o uso da língua se manifesta por meio de enunciados ou textos que cumprem funções múltiplas. Toda unidade linguística é multifuncional. Trata-se de um axioma que dá coerência e coesão às diferentes abordagens funcionalistas. Trata-se de um principio que norteia as reflexões desenvolvidas na corrente de estudos funcionalistas.
Não posso deixar de notar a dimensão da importância que Halliday atribui à linguagem, ao considerá-la como uma realidade constitutiva do próprio viver. Para ele, não é possível ao homem dar uma ordem (estrutura, organização, sentido) às suas experiências de mundo que seja diferente da ordem que ao mundo impõe a linguagem. O homem, pela linguagem e na linguagem, dá ordem às suas experiências de mundo, e esse mundo não conhece outra ordem senão a que a linguagem lhe impõe. Disso se segue que Halliday não hesita em propor definir a experiência em termos de linguagem. Para ele, a experiência é a realidade que os indivíduos constroem para si mesmos mediante a língua.
Antes de pôr termo a esta seção, quero tecer algumas considerações sobre o significado da dimensão sistêmica da língua no modelo da LSF. Na LSF, a língua é um complexo sistema semiótico que se organiza em vários níveis ou estratos.
São três estratos diferentes que dão forma ao sistema. Eles se organizam segundo o grau de abstração: o semântico, o léxico-gramatical e o grafo-fonológico. Cada estrato é uma rede de relações de escolhas em termos de som, fraseado (estruturas gramaticais e itens lexicais) e significado. Esses estratos se relacionam pelo mecanismo de realização.
Na concepção de língua como rede sistêmica, a semântica constitui o nível-base, que é realizado pelo estrato léxico-gramatical ou fraseado; este, por sua vez, é realizado pelo sistema grafo-fonológico ou sistema de som-grafia. A léxico-gramática e a semântica, que constituem o plano do conteúdo, permitem a expressão indefinida do potencial de significados da língua. O termo potencial é importante na compreensão do mecanismo de realização A realização é um conceito que se refere à relação entre os diferentes sistemas que compõem a língua. Cada um desses sistemas ou camadas define um potencial, ou seja, um conjunto de possibilidades – um potencial de significado, um potencial de fraseado e um potencial de expressão.
O potencial de significado é realizado tanto no potencial de fraseado quanto no potencial de expressão. Um sistema, portanto, redunda no outro. Um não existe sem o outro. Eles se determinam mutuamente.
Acrescente-se que as opções semânticas constroem as opções contextuais e estas são construídas pelas opções léxico-gramaticais. Assim também, as escolhas semânticas são ativadas pelas contextuais e, ao mesmo tempo, ativam as opções léxico-gramaticais.
A linguagem, por conseguinte, realiza um sistema semiótico mais abstrato, qual seja, o contexto social. A realização é, pois, um processo de re-codificação ou simbolização, o que supõe um processo de construção e reconstrução mútua entre a linguagem e o contexto social, ou seja, a linguagem constrói o contexto e é por ele construída; ela o reconstrói e é por ele reconstruída.
Halliday vê o texto como uma instanciação das escolhas léxico-gramaticais. O texto, quando cotejado com a cultura, é menos abstrato, e os significados que o estruturam são mais abstratos do que os fraseados que os expressam. O texto é o que se pretende significar, tendo em conta o potencial de escolhas de significados. O texto realiza as escolhas operadas no nível semântico por intermédio da léxico-gramática.  Por instanciação, devemos entender uma dimensão abstrata que realiza o movimento contínuo do significado entre os estratos do sistema.
A gramática, na LSF, é uma rede de sistemas de escolhas.
Sem supor ter esgotado o tema relativo à visão funcionalista de linguagem, sistematizada na LSF, noto, em síntese, que a linguagem cumpre um papel fundamental no desenvolvimento psicossocial e intelectual humano, visto que é por meio do seu uso que os padrões sócio-culturais são transmitidos, que os indivíduos aprendem a agir como sujeitos sociais em coletividade, adquirindo e pondo em prática modos de pensamento, ação, crenças e valores de seu grupo. Insisto: a linguagem é o lugar onde se revela a dimensão social da existência humana.



2. Linguagem, cultura e realidade

A cultura é uma dimensão do processo social; ela se apresenta sob duas formas: uma, material; outra, imaterial. A cultura material encerra tudo que é produzido pela atividade humana e por ela transformado. Trata-se de uma dimensão da cultura acessível à experiência sensível dos membros de uma sociedade. A cultura material inclui desde a preparação de alimentos, passando por hábitos alimentares e de se vestir, até a produção de arte, literatura, música, cinema, novelas, ciência, religião, etc.
A cultura não-material abriga as crenças, os valores, conhecimentos, ideologias; enfim, símbolos que modelam e informam a vida das pessoas nas relações que estabelecem entre si em sociedade. A cultura não-material encerra os sistemas sociais, que se definem como conjuntos de elementos culturais que, relacionados em dependência recíproca, compõem uma unidade. É no interior dos sistemas sociais que se definem tipos de relações sociais, as posições que ocupam os agentes sociais. Essa noção supõe que o todo importa mais que as partes que o compõem. Constituem exemplos de sistemas sociais, entre outros, casamentos, times de futebol, amizade, consultórios médicos, empresas, governos, exército, etc.
A cultura não-material forma um grande sistema de atitudes, crenças, valores, normas que estruturam nossas experiências. É nela que devemos, pois, situar a linguagem.
Não pretendendo me estender sobre a problemática do conceito de cultura, cinjo-me a observar que a cultura é o próprio modo de existir do homem. Em outros termos, a existência humana é existência cultural, no sentido de que são os homens que, em coletividades e com o concurso da linguagem, produzem sua existência. A cultura compreende todas as experiências vivenciadas, todas as atividades e seus produtos, tudo que o homem faz, realiza, adquire e transmite pelo uso da linguagem. A cultura produz e molda os costumes,  estabelece os padrões, as normas, a moral, as leis, as crenças, os conhecimentos, modela hábitos e comportamentos, fornece as condições para o desenvolvimento de habilidades e capacidades ; em uma palavra, é o domínio onde o homem se humaniza; é o domínio graças ao qual ele se desprende da ordem natural, toma distância de si e do mundo para exercitar a reflexão sobre ela, sobre o mundo e sobre si mesmo; é o domínio onde o homem reflete sobre seu próprio lugar no universo.
Na cultura, o homem deixa de ser um mero objeto dos instintos, para tornar-se sujeito da história. Sua experiência deixa de pautar-se meramente pela necessidade de sobrevivência, para tornar-se fonte de expressão de significados, para tornar-se ela mesma significativa. Em Ensino de Português –Fundamentos, percursos, objetos (2007), Azeredo enfatiza a dimensão do significado como própria do mundo humano:

“O mundo humano não é um mero conjunto de objetos, mas um sistema de significados; não se encontra “fora” do homem como uma coleção de coisas que ele possui, ganha, perde, deseja ou descarta; o que chamamos “mundo humano” é o universo de valores e conceitos que interiorizamos ao longo da vida, no convívio com nossos semelhantes, muitas vezes estruturados dicotomicamente, como realidade/fantasia, remédio/veneno, normalidade/diferença, prazer/sofrimento (...) É esta interiorização que nos humaniza, à medida que nos integramos “na sociedade dos seres humanos””.
(p. 17)


O mundo dos objetos, das coisas, dos entes com que o homem entra em contato é constituído como uma gigantesca rede de significados. Esses objetos, coisas e entes que de serve o homem para uso recebem um “investimento simbólico”. Ao pensar neste objeto que seguro com uma de minhas mãos e que uso para escrever, e que chamo “caneta”, dou-me conta de que, ao receber um nome que o define, esse objeto passa a existir para mim (e para toda a comunidade a que pertenço) independentemente de eu a estar fazendo uso dele. Esse objeto, ao ser nomeado, passa a existir num campo perceptual-cognitivo entretecido de significado, passa a existir como conceito em minha mente e no “mundo humano”. Esse objeto, a caneta, entra a fazer parte de uma rede de relações significativas com outros “objetos-significados”.
A palavra “caneta” define para mim as propriedades e a função do objeto que designa. Essa definição lhe fixa um “lugar” relacional no mundo dos conceitos, que é uma dimensão fundamental do mundo humano. A linguagem, por meio de sua realização no discurso, transforma os objetos do mundo em objetos do discurso, isto é, em referentes. São propriamente os referentes que passam a configurar campos conceituais, universos de significados, nos quais as nossas experiências de mundo se estruturam.
Transformado em um objeto-de-discurso, o elemento acessível à nossa experiência sensorial – a caneta – pode ser reunida a outros referentes correlacionados, por exemplo, pela função, tais como “lápis” e “lapiseira”. “Caneta”, “lápis” e “lapiseira” se relacionam pela função que lhes é comum, qual seja, a de permitir que escrevamos. Esses referentes podem-se reunir a outros com base no campo experiencial designado pela ação de “escrever”, tais como “borracha” e “papel”.
Como membro de uma dada cultura, disponho do conhecimento enciclopédico, que me permite dizer que, no mundo moderno, a maioria das pessoas escreve em papéis. A associação de ideias, comum na prática psicanalítica, ilustra como a língua, interagindo com a cognição, organiza nossa experiência de mundo, com base na formação de campos conceituais. Por exemplo, quando trazemos à mente o conceito de ‘caneta’, tendemos a associá-lo a ‘escrever’, ‘papel’, ‘lápis’, ‘escritório’, ‘estudar’, etc. Claro é que podemos fazer associações imprevistas ou mesmo extravagantes, porque não esperadas com base no conhecimento comum suposto como partilhado com o interlocutor. Assim, alguém, ao pensar em “caneta”, poderia associá-lo a “tédio”, “pai”, “coação”, “ônibus”, “Paulinho”, etc. Mesmo que essas palavras não compartilhem traços semânticos com a palavra “caneta” ou, dito doutro modo, mesmo que elas não pertençam ao mesmo campo semântico, elas integram o campo experiencial do locutor, elas se revestem de significado no conjunto de experiências do locutor com “caneta”. O locutor, ao associar “tédio” a “caneta”, por exemplo, vincula “caneta” a uma atividade que considera entediante. Essa atividade pode ser o exercício de copiar a matéria que o professor escreve no quadro ou a prática de assinar inúmeros documentos no trabalho. Cite-se, novamente, Azeredo que, desta vez, nos ensina sobre o valor da palavra:

“A palavra é o mais elaborado, versátil e abrangente instrumento de criação, circulação e assimilação de representações do conjunto de nossas experiências da realidade. Eu diria, até mesmo, que a linguagem é muito mais que um instrumento: ela é o próprio espaço simbólico que torna possíveis essas representações e, em larga medida, é por meio dela que modelamos mentalmente o que chamamos de contexto social em que interagimos. Esse contexto não é um dado real objetivo; mas uma construção mental das pessoas, um quadro de referência que nos orienta sobre o que podemos ou devemos dizer, o que podemos ou devemos ouvir (...)”.
( grifo meu, pp. 69-70)


Duas ideias me parecem se destacar em importância, nesse passo de Azeredo, tendo em conta a relação entre linguagem, cognição e realidade. A primeira é que a palavra nos permite criar representações de nossas experiências de mundo; a segunda é que a linguagem é muito mais do que um instrumento que nos permite comunicá-las; ela é o “lugar simbólico” que nos permite produzi-las. Para Azeredo, a linguagem dota o homem de uma espécie de sétimo sentido (já que o sexto é geralmente destinado à intuição), que se sobrepõe aos demais “em um universo de conhecimento e significados a que só tem acesso através do símbolo” (p. 70).
Teremos a oportunidade de avaliar, com alguma atenção, o papel da cognição na fabricação da realidade e o modo como ela interage com a linguagem e a cultura. Por ora, prossigo trazendo à cena outro domínio extremamente importante na consideração da inter-relação entre linguagem, cultura e realidade. Trata-se do domínio da práxis. É na práxis, por meio da produção de representações simbólicas, que o homem vai interiorizando o mundo para se tornar um ser social.
Se o homem, à semelhança do que sucede com os outros animais, toma parte da dimensão biológica, é somente ele, cuja existência se desenrola especialmente na dimensão simbólica, que pode libertar-se dos condicionamentos a que as outras espécies da natureza estão irremediavelmente entregues. A capacidade de linguagem é a linha demarcatória entre o homem e os animais não humanos. Por meio dela, nós construímos o mundo em que vivemos, no curso da história, mundo que, por força da função de simbolização da linguagem, é segmentado e transformado em ‘dados’ de nossa consciência, na forma de conhecimento. O mundo do homem é um mundo dotado de significado, mundo onde ele mesmo, o homem, tem um significado. Ouçamos, novamente, Azeredo:

“(...) as palavras são símbolos, graças aos quais “a realidade bruta” de nossos sentimentos e sensações é transformada em um “universo dotado de sentido”. Ter ou representar um sentido é a função do símbolo, propriedade que não têm os instrumentos e ferramentas na sua utilidade primária”.
(p. 74)


Que elas – as palavras – não são coisas ou instrumentos (exceto, metaforicamente) fica claro também quando nos apercebemos de sua função de presentificação, isto é, a palavra presentifica o que não nos é imediatamente acessível aos sentidos. Em geral, falamos sobre coisas, entes, que não são acessíveis à nossa experiência sensorial imediata (não podemos vê-los, tocá-los, etc.); descrevemos situações, falamos sobre experiências ou acontecimentos que não estamos vivenciando no momento mesmo em que a eles nos referimos. Que o poder das palavras é muito mais do que servir de artefatos para comunicar pensamentos também fica claro quando nos damos conta de que milhares delas designam conceitos que só existem como entidades mentais, tais como “bruxa”, “felicidade”, “aspereza”. Esses dois últimos substantivos são, tradicionalmente, chamados de abstratos, porque designam propriedades que abstraímos das coisas ou entes, para conferir-lhes uma existência independente como ‘conceitos’. O substantivo “bruxa” se diz “concreto”, porque designa uma entidade que concebemos como um conceito independente de outro conceito. Se “felicidade” designa uma qualidade ou estado “abstraído” de quem é feliz (cf. Pedro é feliz, ou seja, a felicidade é uma propriedade de Pedro), “bruxa” designa um ente concebido na imaginação como se tivesse uma existência independente de outro ente. Não se segue daí que a distinção entre “abstrato” e “concreto”, na base da qual se classificam semanticamente os substantivos, deva ser interpretada em termos discretos, ou seja, supondo-se que haja limites rígidos entre as duas noções. Na verdade, concreto e abstrato ocupam extremos num contiuum que supõe graus numa escala em que o uso fixa maior ou menor abstratividade/concretude ao significado das palavras. Pense-se na palavra “cobertura”. Em “a cobertura televisiva”, “cobertura” comporta um significado mais abstrato. Trata-se da ‘situação em que a televisão registra um fato ou acontecimento’. Mas, em “consertei a cobertura da casa”, “cobertura” tem um significado “concreto”, designando “telhado”. Assim também “acampamento” tanto pode designar “o evento de acampar” (abstrato)  quanto “o lugar em que se acampa” (concreto) (cf. Hoje, faremos um acampamento/ Vamos montar o acampamento).
Sabe-se que diferentes línguas recortam o mundo de modos diferentes. Ainda que falantes de línguas diferentes disponham de um aparelho perceptual-cognitivo que é o mesmo para todos os seres humanos, que é comum à espécie humana, eles não vêem o mundo da mesma maneira, visto que cada língua recorta, segmenta  “a realidade bruta do mundo” de modo diferente. As línguas codificam a realidade de modos distintos. Em A língua do Brasil amanhã e outros mistérios (2004), o linguista Mario Perini faz algumas considerações bastante interessantes a esse respeito. Nessa obra, ele escreve o seguinte:

“Cada língua é um retrato do mundo, tomado de um ponto de vista diferente, e que revela algo não tanto sobre o próprio mundo, mas sobre a mente do ser humano. Cada língua ilustra uma das infinitas maneiras que o homem pode encontrar de entender a realidade”.
(p. 52)


Memória, imaginação e linguagem – são as três dimensões que possibilitam ao homem libertar-se das exigências naturais extensivas aos demais animais.




3. A Linguagem e a fabricação da realidade


Em Kaspar Hauser ou a fabriação da realidade (2003), Izodoro Blikstein estuda o papel que desempenha a linguagem na construção da própria realidade que o homem experiencia. A tese dele pode ser formulada como se segue: a realidade que experienciamos é produto de uma interação contínua, na práxis social, entre linguagem, percepção-cognição e cultura. A visão de Blikstein está sintetizada no seguinte excerto:

“Para o senso comum, a realidade parece não constituir problema algum: real é todo o universo estável e tangível de sons, cores, formas, espaços e movimentos. Trata-se, no entanto, de uma ilusão: na verdade o que julgamos ser a realidade não passa de um produto da nossa percepção cultural. Percebemos os objetos que as nossas práticas culturais já definiram previamente, em outras palavras, a realidade já foi fabricada por toda uma rede de estereótipos culturais, que condicionam a percepção. Tais estereótipos, por sua vez, são garantidos e reforçados pela linguagem”.
(grifo meu)

A percepção, ensina Blikstein, depende de uma construção e de uma prática social. É na prática social ou na práxis que reside o mecanismo que gera o sistema perceptual que fabricará o referente. A fabricação do referente estrutura-se nas seguintes etapas, sugeridas pelo autor: 1) realidade/ estímulos; 2) prática social ou práxis; 3) percepção/cognição/ponto de visto; 4) referente.
O referente não deve, contudo, ser tomado como um objeto do mundo extralinguístico; mas como uma entidade discursiva. O mundo textualizado, o mundo reconstruído no discurso não é um espelho do mundo de nossa experiência imediata. Não falamos, no discurso, de objetos do mundo propriamente, mas de objetos do discurso. Não se está negando a existência do mundo tal como nos é acessível à experiência sensorial; o mundo “real” existe, conforme assinala Blikstein, como uma totalidade de sensações, de estímulos, movimentos, cores, formas, etc. O que se nega é que a língua reflita esse mundo, como um espelho que reflete nossa imagem. Quando articulamos a linguagem à engrenagem de fabricação da realidade, quando a pensamos na relação necessária com a práxis e o nosso aparelho perceptual-cognitivo, o referente que resulta dessa interação se converte em uma entidade do discurso. É no próprio processo discursivo que os referentes vão sendo fabricados, estendidos, transformados, etc.
Blikstein nos lembra que “sem práxis não há significação” (p. 54). Para ele, a língua atua sobre a práxis (p. 60). Destarte, o homem cognoscente, vivendo na dimensão da práxis, desenvolve, para existir e sobreviver, mecanismos não-verbais que lhe permitem diferenciar e identificar as feições do continuum do real. O homem move-se no tempo e no espaço de sua comunidade. Por isso, precisa estabelecer e articular traços de diferenciação e identificação que o auxiliam a discriminar, reconhecer, selecionar, dentre os estímulos do continuum do real, as cores, as formas, as funções, os espaços e tempos indispensáveis à sua sobrevivência. Tais traços adquirem, no contexto da práxis, um valor positivo que se relaciona por oposição a um valor negativo ou pejorativo. Assim, impregnados de valores positivos/negativos, eles convertem-se em traços ideológicos.
Os traços ideológicos desencadeiam a estruturação de “formas” ou “corredores” semânticos, por onde atravessam os fios básicos de significação, as chamadas isotopias da cultura de uma comunidade. Em nossa cultura, “em cima” é um traço de valor positivo, enquanto “abaixo” tem um valor negativo. Esses traços ideológicos constituem a base dos corredores semânticos ou isotópicos da verticalidade positiva em oposição à horizontalidade pejorativa.
São os corredores semânticos ou isotópicos que vão delimitar a percepção/cognição, gerando padrões ou modelos de percepção, chamados de “óculos sociais” (Schaff).
Os óculos sociais são os estereótipos de percepção. São com esses estereótipos que “vemos” a realidade e fabricamos o referente. Agora, estamos em condições de compreender o papel da língua na fabricação da realidade. A língua age sobre a práxis e sobre os corredores isotópicos e sobre os estereótipos perceptuais. Estabelece-se, assim, uma interação entre língua e práxis de tal modo, que, à proporção que nos socializamos, mais difícil torna-se distinguir as fronteiras entre ambas. É na ação sobre a práxis que a língua modela o referente. Blikstein entende que a cognição está sujeita a uma atividade incessante de estereotipação, cuja consequência é que passamos a considerar como real e natural a totalidade do universo de referentes e realidades que são, na verdade, fabricados. Consoante nota o autor,

“A língua “amarra” a percepção/cognição, impedindo o indivíduo de ver a realidade de um modo ainda não-programado pelos corredores de estereotipação como Sísifo, estaríamos condenados a conhecer, ou a reconhecer, sempre a mesma realidade.”
(p. 82)


Com Blikstein, devemos concluir que o processo de conhecimento da realidade, a fabricação da realidade são governados por práticas culturais, percepção e linguagem. É a práxis que produzirá os universos simbólicos. O universo simbólico é a matriz de todos os significados socialmente objetivados e subjetivamente reais. A linguagem constitui o mais importante meio de socialização. Ela é o principal veículo por que o mundo real “fora” da consciência passa a corresponder ao que é real “dentro” da consciência. Assim, a linguagem permite a tradução da realidade objetiva em realidade subjetiva e vice-versa. O mundo se traduz como linguagem.




4. Linguagem e cognição

Como campo de estudo estabelecido, a Linguística Cognitiva surge nos anos de 1980, embora a expressão “linguística cognitiva” já aparecesse no cenário da Linguística desde os anos de 1960. Não será equivocado sugerir que suas primícias já se encontravam na Gramática Gerativa, proposta por Noam Chomsky, ainda que seu modelo de gramática nunca tenha sido qualificado de cognitivista. Mas coube a Chomsky promover uma virada cognitivista no interior da Linguística. Estudiosos que trabalham nessa nova vertente de estudos da Linguística concordam com a fórmula chomskyana “a linguagem é o espelho da mente”.
No entanto, a Linguística Cognitiva se distancia do modelo chomskyano sob muitos aspectos, entre os quais destacamos um que é fundamental: ao contrário do que propunha a teoria gerativa, o módulo cognitivo da linguagem não é independente de outros módulos cognitivos (por exemplo, raciocínio matemático, percepção, etc.) A Linguística Cognitiva nega a independência entre os módulos, adota uma perspectiva não-modular, segundo a qual, na mente, atuam princípios cognitivos gerais que são compartilhados entre a linguagem e outras capacidades cognitivas. Ademais, a Linguística Cognitiva postula uma interação entre os sistemas da linguagem, mais propriamente entre o sistema sintático e o sistema conceptual.
A tese básica da Linguística Cognitiva é a seguinte: a relação entre a linguagem e o mundo é mediada pela cognição. Nessa perspectiva, o significado não é mais considerado um reflexo do mundo, tampouco se encontra “embutido” nas palavras, mas é uma construção por meio da qual o mundo é apreendido e experienciado. Vale notar que, provavelmente, a maior dificuldade que temos em definir o significado e pensá-lo repousa no fato de que não podemos sair do significado, para pensá-lo. Não é possível pensá-lo e defini-lo como um objeto a partir do qual tomamos distância. Tente, leitor, responder à questão: o que é o significado? Ou ainda: o que queremos dizer com “isso significa”? Estamos imersos no significado, por isso ele se torna uma realidade tão difícil de definir. Não estou dizendo que seja impossível propor definições de significado, tampouco que não o compreendamos; estou, no entanto, dizendo que para pensar e definir o significado lançamos mão de estruturas significativas, de cadeias de significados, assim como para definir o que é linguagem, usamos a própria linguagem, ou para definir o que é palavra, usamos palavras.
Disse que, na perspectiva da Linguística Cognitiva, as palavras não têm significado. Preciso acrescentar que elas servem, na verdade, de pistas para a construção do significado. Uma hipótese comum às abordagens cognitivistas da linguagem é a de que a linguagem serve à organização, processamento e transmissão da informação semântico-pragmática. Insisto em que a Linguística Cognitiva entende o significado dos enunciados como construção mental, como movimento ininterrupto de categorização e recategorização do mundo, que se realiza com base na interação entre estruturas cognitivas e modelos de crenças e conhecimentos socioculturais compartilhados. Assim, estabelece-se uma semântica cognitiva que assenta numa visão do significado linguístico como produto de um saber enciclopédico. Seguem-se os exemplos abaixo, com os quais busco ilustrar a ideia de que o significado não se acha contido nas palavras e como ele é dependente de um saber sobre o mundo:

(1) O gato está no sofá.
(2) As flores estão no vaso.
(3) A camisa está no armário.

Do ponto de vista cognitivo, a preposição “em” marca uma relação do tipo “contém x”. O exemplo (3) ilustra o significado que se estabilizou pelo uso, o significado que se sedimentou no uso, ou seja, o significado do qual se diz, de um modo um tanto grosseiro, “literal” -  “contém x”. Em (3), sabemos que a camisa está totalmente dentro do armário. Mas, em (2), as flores não estão totalmente contidas no vaso; e, em (1), decerto, o sofá não contém o gato. Em (1), a preposição “em” situa numa superfície alguma coisa. Entendemos (1) como “o gato está em cima do sofá”. Veja-se ainda o caso (5), abaixo:

(5) Esse ônibus passa em Vila Isabel?

Quando usamos o verbo “passar” construímos, em geral, uma experiência em que alguma coisa ou um ente animado “movimenta-se através, ao longo de, próximo de”, como em “Eu passei pela rua em que você mora” ou “Eu passei por você, mas você não me viu”. Na primeira frase, “passar por” significa “ir-se através de, ao longo de”; na segunda frase, significa “transitar próximo de”. Essas frases não pretendem esgotar as possibilidades de uso do verbo “passar”, evidentemente. Seus usos são muitos e configuram experiências variadas. Não obstante, elas servem para ilustrar o fato de que o significado de (5) não se deduz do verbo “passar”, mas se constrói com base numa informação semântico-pragmática, num saber comum, em expectativas sobre qual o significado deve ser construído. O que queremos saber com (5) não é se o ônibus passará pelo bairro de Vila Isabel como um caminhante que passa por uma rua sem parar; na verdade, nós queremos saber se ele para num ponto em Vila Isabel. O uso de “em” marca um dos pontos de destino do ônibus. Mas o significado é sempre negociado, pois o interlocutor, a quem perguntamos se o ônibus passa em Vila Isabel, poderia responder algo como “passar ele passa, só não sei se para”. Nesse caso, nosso interlocutor constrói um significado diferente do que nós produzimos e esperávamos que ele reconhecesse. Para nós, “passar em Vila Isabel” significa “parar num ponto em Vila Isabel”; para ele, ao contrário, significa “atravessar o bairro de Vila Isabel”.
Veja-se como se constroem os significados da preposição “para” nos casos abaixo:

(6) Eu não estou para o seu Alberto.
(7) Eu não estou nem aí para você.
(8) Eu comprei um relógio para você.
(9) O bolo é para comer.

Assumindo o princípio de que o significado constrói nossas experiências de mundo e de que ele é construído no discurso, podemos compreender os significados ativados na relação da preposição “para” com os constituintes oracionais, nos casos acima. Em (6), “para”, na combinação com “estar” (estou para), serve à produção do significado que se define mais ou menos como “não quero que o seu Alberto saiba da minha presença”. Em (7), “para”, combinado com a expressão “estou nem aí” indica a pessoa que é alvo de minha indiferença. Em (8), “para” introduz o destinatário ou beneficiário da compra. Em (9), “para” introduz um constituinte que denota a finalidade ou fim a que serve o bolo.
Os exemplos considerados aqui patenteiam o fato de que o significado não se constrói com base numa unidade linguística que se toma isoladamente, mas nas relações entre as unidades linguísticas na totalidade do enunciado ou discurso, sob a influência inegável dos contextos sociocognitivos partilhados pelos interlocutores.. Mas nem as unidades linguísticas nem a totalidade do enunciado ou discurso comportam ou contêm o significado. Para a Linguística Cognitiva, as unidades linguísticas servem de pistas para a construção do enunciado. Essa corrente de estudos linguísticos adota uma perspectiva assentada no uso e sustenta que o contexto (sociocognitivo) orienta a construção do significado.
O conhecimento enciclopédico é um sistema de conhecimento estruturado em rede. Os diferentes aspectos do conhecimento ativados por uma palavra não têm status idêntico. Tome-se, por exemplo, a palavra [QUEIJO]. Ela especifica uma forma, no domínio espacial/visual; uma configuração de cor, no domínio cromático; uma indicação de gosto, no domínio das sensações do paladar/cheiro, mas também toda sorte de saberes que resultam de nossas experiências com o queijo, por exemplo, o conhecimento de que é comestível, de que é um derivado do leite, de que entra na composição de certos alimentos, de que possui vários tipos, etc.
Evidentemente, certas especificações são mais centrais do que outras. Acrescente-se que a centralidade dessas especificações está relacionada à possibilidade de sua ativação no contexto de uso, de modo que as palavras não podem ser vistas como “pacotes” que armazenam o significado, mas sim como vias de acesso aos sistemas de conhecimento.



4.1 Categorização

A categorização está entre os fenômenos mais importantes de que se ocupa a Linguística Cognitiva e é reconhecidamente uma atividade central da linguagem. A categorização é a atividade por meio da qual nós agrupamos entidades semelhantes (objetos, pessoas, lugares) em classes específicas. Categorias são módulos que enformam os pensamentos e com os quais eles são entretecidos.
A categorização é uma função essencial da linguagem. Para falarmos do mundo, precisamos segmentá-lo e classificar suas entidades em classes específicas, com base em propriedades que lhe são comuns. As estratégias de categorização prendem-se de modo intrínseco à capacidade de nossa memória. Não nos é possível criar um número infinito de categorias, sob pena de sobrecarregar a memória.
Por fim, destaco os seguintes pontos que não podem ser olvidados:

1) A categorização sugere que as línguas se relacionam com um mundo desorganizado e, não raro, caótico;

2) Não há uma relação especular entre a língua e o mundo, senão uma relação necessariamente mediada pelo aparelho perceptual-cognitivo dos falantes, tendo em conta suas características e restrições;

3) As categorias não representam divisões que se fixam pelo arbítrio, mas que se baseiam em capacidades cognitivas da mente humana;

4) Os limites entre as categorias não são rígidos. Entre os elementos de um conjunto, há uns mais prototípicos do que outros, e entre os prototípicos e as fronteiras categoriais, há membros intermediários que se organizam segundo uma escala de prototipicidade.

5) A categorização supõe níveis de inclusão, entre os quais um é o nível básico de especificidade.

As sequências de palavras a seguir ilustram a situação de 5):

Veículo – carro – ônibus – trem
Fruta – banana – banana-maçã
Ser vivo – animal – cachorro – basset

As palavras em negrito são os termos que comportam o nível básico de especificidade relativamente aos membros das classes “veículo”, “fruta” e “animal”.
Embora não se possa negar que existem processos mentais que não são especificamente linguísticos, como, por exemplo, o reconhecimento de rostos, a (re)construção de espaços, a depreensão das relações entre as partes que constituem o todo, etc., é forçoso reconhecer a interdependência entre linguagem e cognição. Uma das consequências que daí se seguem é que, no momento em que a criança domina o uso da sua língua materna, sua capacidade de produzir/construir conhecimento tem um ganho qualitativo enorme, muito porque ela passa a atuar significativamente por meio de símbolos num mundo onde as pessoas ao seu derredor são herdeiras de um sistema que fixa para os signos os mesmos valores fundamentais e onde elas o transmite tal como o receberam.
Pensar é julgar, escreveu Kant. “Pensar é conhecer através de conceitos” (Kant). E como poderiam existir conceitos senão pelas palavras que os criam? De que é feito o pensamento senão de palavras? Para a Antropologia, pensar é articular/produzir uma compreensão do mundo pela linguagem. Pensar, no sentido em que considero aqui, é uma atividade da consciência que não seria possível sem a linguagem verbal. Pensamos articulando palavras. Pensamos graças à nossa capacidade de linguagem.
Pensar não é tão-só, é claro, um ato individual; é, sobretudo, um ato coletivo, na medida em que as categorias do pensamento, com as quais compreendemos o mundo, nos são fornecidas pela linguagem via cultura.

Pensar também é um ato coletivo em outro sentido: no sentido de que os significados que estruturam nosso pensamento são culturalmente produzidos e compartilhados. Finalmente, vale reiterar, a cultura é um sistema que dá ordem ao pensar e ao agir. 


                                      Resultado de imagem para REALIDADE