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sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

"Na medida em que a fantasia fornece o enquadramento que nos possibilita vivenciar o real de nossas vidas como um Todo significativo, a desintegração da fantasia pode ter consequências desastrosas". (Slavoj Zizek)




A Dança da Morte

 

 

Uma jovem que faz vídeos de TikTok e que conta com quase 200 mil seguidores foi alvo da indignação, do repúdio e da desaprovação dos internautas, após um vídeo que ela fez no quarto de hospital onde sua mãe, em estado terminal de câncer, viria a falecer no dia seguinte. O acontecimento protagonizado pela jovem foi avaliado negativamente por meio das expressões “falta de respeito”, “absurdo”, “irresponsabilidade” (e imagino que os seguidores da jovem tenham usado outros tantos índices de avaliação negativa análogos). Permitam-me fazer uma interpretação do caso que torne visível aquilo que as manifestações simbólicas do senso comum não trouxeram à luz. Que os lacanianos me perdoem se, por ventura, me valendo dos três registros com que Lacan pensa a existência humana, eu ignore um ou outro aspecto da problemática por que eles respondem na teoria deste psicanalista francês.

Para Lacan, o imaginário, o simbólico e o real são os três registros fundamentais que estruturam a existência humana. Eles são as dimensões fundamentais em que um ser humano habita. Os três termos estão ligados de modo indissociável, e, a fim de ilustrar o fato de que “tudo começa com três”, ou seja, de que são necessários três elementos inextricavelmente articulados para que se tenha uma estrutura, Lacan lança mão do modelo de representação do nó borromeano. O imaginário, para Lacan, recobre a ordem do sentido. O imaginário é o domínio da nossa experiência vivida imediata da realidade, mas também de nossos sonhos e pesadelos. O imaginário é o imaginário do sujeito; é marcado por uma falta originária, uma hiância real que virá a ser preenchida pelo simbólico. Essa falta do imaginário do sujeito é uma hiância congênita que o ser real do homem apresenta em suas relações com o natural. Em suma, o imaginário, grosso modo, é o domínio do modo como as coisas aparecem para nós. O registro do simbólico, por seu turno, é o que Lacan chama “o grande Outro” - o outro invisível que estrutura nossas experiências da realidade. O registro do simbólico é da ordem do duplo sentido, porquanto permite ao falante mediar o encontro com o sem-sentido do real. O simbólico é o registro que vem ocupar, no sujeito, o lugar da falta real primordial do imaginário. O que é da ordem do ôntico, para o homem, é constitucionalmente marcado por uma falta originária. Há uma distinção fundamental entre o sujeito e o eu: o sujeito está numa relação excêntrica com o eu. O sujeito não é o indivíduo, isto é, o sujeito não é indiviso. Ao contrário, o sujeito é marcado por uma divisão constituinte, é determinado pelo simbólico, dividido entre os significantes que o constituem. O lugar do sujeito é o lugar do corte, da ruptura, ao passo que o eu representa a configuração de uma unidade, de uma completude, constituída imaginariamente. O que chamamos de realidade é uma montagem pela qual são responsáveis o simbólico e o imaginário. Toda a realidade, incluindo a realidade psíquica, é configurada a partir da fantasia inconsciente fundamental. O relacionamento do sujeito com outros sujeitos e com o mundo exterior será sempre mediado por essa tela da fantasia, protetora do real traumático. É a fantasia, constituída pelo simbólico, pelos significantes do Outro que medeia o encontro do sujeito com o que é inabordável enquanto tal – a saber, o real. Não é custoso entender em que medida o simbólico está no cerne da problematicidade da existência humana. A linguagem é, enquanto substituição do real inefável, uma possibilidade de atividade para o sujeito. O que era vivência passiva imediata para ele passa a ser vivido ativamente por meio da linguagem. A subjetivação das vivências depende do processo de simbolização que a linguagem permite. Todo uso da linguagem é metafórico, no sentido de que a linguagem, em si mesma, é da ordem da substituição de uma falta originária; ela, a linguagem, é, em si mesma, uma imensa metáfora. A precedência da ordem simbólica faz com que a linguagem seja o que constitui a realidade para cada sujeito, pois que, antes dela, só há a indiferenciação do real. Destarte, Lacan entende que a metáfora se situa no ponto preciso em que o sentido se produz a partir do não sentido, isto é, do real. A entrada do sujeito na ordem da linguagem – ordem simbólica – re-produz uma perda de ser original. A linguagem, inscrevendo-se no lugar da falta-de-ser, será sempre metáfora do sujeito. O Outro, enquanto lugar do significante, é o registro do simbólico, na medida em que o campo dos significantes é faltoso, incompleto; nele há sempre a possibilidade de um ato criativo, de um novo significante. Jamais se sai, portanto, do regime da linguagem. Estamos sempre mergulhados no campo da linguagem, e não existe qualquer outra linguagem, senão a linguagem verbal, que venha dar conta desse campo. Em suma, “o grande Outro”, que é o simbólico, é uma complexa rede de regras e significados que nos faz ver o que vemos da maneira como o vemos ( e o que não vemos da maneira como não vemos). Por fim, temos o real . O real de que fala a psicanálise não se identifica com a realidade biofísico-social. Em outras palavras, o real não é a realidade que conhecemos em nossa experiência de mundo cotidiana. O real é o impossível de ser simbolizado. O real é o que ex-siste, ou seja, o que está fora, o que escapa à trama do sentido. O real é o não-senso radical, o que não tem nenhum sentido. O real é a parte do sujeito que escapa à análise. O real se encontra além do simbólico e do imaginário, para além da palavra e da linguagem. O real, não sendo a realidade percebida, tampouco é a realidade psíquica. A realidade psíquica é a realidade do inconsciente, do desejo e de suas fantasias. Se a realidade exterior é fabricada, ordenada a partir da linguagem e tem como referência o sujeito, o real é o pré-subjetivo e constitui um registro distinto do simbólico. O real não se submete à organização do mundo externo nem obedece à organização da realidade psíquica. O real, situando-se além da ordem e da lei, está fora do campo do princípio de prazer. Ele coloca-se como um obstáculo ao princípio de prazer. O real é o oposto do imaginário. Destarte, o real excede à capacidade de representação psíquica: o real é a morte, a perda, aquilo que não tem inscrição possível no psiquismo. O real é, por excelência, o trauma, isto é, aquilo que não pode de modo algum ser assimilado pelo sujeito em suas representações simbólico-imaginárias. O real é o limite da simbolização. Em suma, o real é um encontro traumático, que não pode ser simbolizado, de extrema violência que desestrutura e fragiliza inteiramente nosso universo de significado. O real não é a coisa-em-si kantiana; não é uma coisa externa que resiste a ser apanhado na trama do simbólico, mas são as fissuras, os vestígios e as consequências, os efeitos que se deixam discernir na rede simbólica. O real é um efeito das lacunas e das incoerências da rede simbólica.

Nós nunca encontramos o real diretamente. Na verdade, nosso encontro com o real traumático é evitado pela fantasia.  Como diz Zizek, "a fantasia fornece o enquadramento que nos possibilita vivenciar o real de nossas vidas como um Todo significativo". ( 2017, p. 31). O real é o acontecimento - a morte da mãe, a perda definitiva no nunca mais, a ruptura de um vínculo no vazio do sem sentido do real. Tudo que o homem pode experienciar é da ordem do simbolizável; a ordem simbólica é fundante; ela sempre já existiu. A dancinha da jovem busca reinscrever o real traumático, o sem sentido no registro do imaginário-simbólico. E todas as avaliações negativas (expressas pelos significantes “absurdo”, “desrespeito”, e outros mais) que foram dispensadas sobre a jovem que fez a dancinha de TikTok, momentos antes da morte da mãe, são tentativas de reestruturar o domínio imaginário-simbólico, para que a morte encontre nele sentido, um registro significativo. A dancinha da jovem se inscreve na ordem simbólico-imaginária do banal, do trivial, do comum, do lúdico, da indiferença. Essa dimensão do banal, do comum, do lúdico absorve o acontecimento, diluindo o real traumático da morte. A morte é da ordem do sem sentido , da quebra, do corte com a ordem simbólico-imaginária. Quando vamos a um enterro, participamos de um evento de ritualização da morte. Nas práticas funerárias,  inserimos a morte na ordem simbólico-imaginária que estrutura a realidade comum vivida. A morte, tão banal e comum a todos os viventes , deixa de ser um evento da ordem natural simplesmente (morre-se e isso é tudo), para fazer parte da ordem simbólica (cultura). Assim, evitamos o confronto violento com o real da morte. Em nossa cultura cristã, a morte não é o fim da vida; a morte é ressignificada, semiotizada, como uma passagem, um acesso a outro modo de existir, a um além-mundo onde os mortos que enterramos viverão. A morte é, assim, um intervalo que interrompe, por certo período de tempo, a convivência daquele que deixa este mundo com aqueles que nele ficam. Tais formas de representar a morte expressam os modos como o evento da morte é inscrito na ordem simbólico-imaginária; em outros termos, as diferentes representações culturais da morte são as formas como o evento da morte passa a integrar os universos simbólicos, culturalmente construídos, no interior dos quais toda a experiência humana – é preciso frisar – é concebida como se realizando, se efetivando, se manifestando. 

O que causou indignação pública, ou mesmo escândalo, na dancinha de TikTok em face da mãe moribunda é menos a irrupção do domínio íntimo e privado na esfera pública do que o real da morte que ficou muito aparente. A insistência do real em se deixar ver, em aparecer nas fissuras do simbólico, provocou a reprovação do grande Outro. O grande Outro precisou intervir, com seus significantes, para restituir o modo simbólico-imaginário como o sujeito tem de experienciar o acontecimento da morte da mãe. Pois a dancinha expunha o que não pode ser tolerado, porque é real demais: a insignificância radical da existência e a banalidade da morte. A dancinha de TikTok continuaria a ser feita depois do sepultamento da mãe, porque, afinal, o banal da vida resiste, insiste e prossegue depois que a ‘seriedade’, a solenidade, o respeito, a deferência profunda à figura do morto e o assombro em face da inexorabilidade da morte são suspensos, são novamente afastados de nossa consciência imediata do mundo. Enterramos os mortos para que o horror do real que representam não nos atormente e não perturbe o curso normal e banal de nossas vidas. A vida precisa continuar significa precisamente isto: a morte e os mortos precisam deixar de perturbar, de desestabilizar a ordem simbólica e imaginária que nos permite levar adiante a vida. A dancinha do TikTok antecipou aquilo que tem de ser, de qualquer modo, feito: o mortos precisam deixar de nos perturbar, a morte deve manter-se afastada, por um longo tempo, da rede simbólico-imaginária que torna possível a vida social, e a banalidade do viver deve prevalecer sobre a insignificância radical da existência humana, que é demasiado real para ser encarada.

  

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

"A verdade só pode ser dita nas malhas da ficção." (Lacan)


                           Imagem relacionada


                          O animal simbólico e o trágico

1. Situando o problema

O tema desta dissertação é o trágico, e o trágico será pensado como a qualidade fundamental definidora da condição humana. A condição humana é trágica – esse é o pressuposto central de toda a minha exposição. Usarei, pois, a forma substantivada “o trágico” para designar o modo de ser próprio do homem no mundo. A forma “tragédia” será empregada para designar um gênero literário. Além desse pressuposto central, que constitui o alicerce de toda a minha argumentação, há outros cinco que, reunidos, dão corpo à tese que pretendo sustentar:
1º pp. O aparecimento da linguagem verbal rompeu definitivamente a aliança entre o homem e a natureza. Desde então, o homem se viu condenado a uma solidão irremediável;
2º pp. É a linguagem que constitui o homem; o homem é efeito da linguagem;
3º pp. Todo o complexo institucional que chamamos de realidade social é fabricado, é construído pela atividade humana a partir da conjunção de elementos econômicos, culturais, ideológicos, políticos e históricos.
4º pp. O que chamamos de “realidade” é resultado de processos sóciocognitivos de fabricação ao longo da qual há uma contínua interação entre práticas culturais, percepção-cognição e linguagem.
5º pp. A linguagem verbal e as formas simbólicas desempenham um papel decisivo na criação da realidade de categorias, instituições, ritos, práticas e sujeitos.

Ao assumir que a linguagem constitui o homem, mantenho que o homem não é conatural ao mundo. Não se segue daí que eu rejeite ser o homem um animal, ter o homem um corpo biológico – posição, aliás, que estou disposto a defender sempre que o homem é pensado como se fosse dotado de algum privilégio ontológico. Malgrado esse reconhecimento, assumo a não conaturalidade do homem com o mundo, a fim de que o que há de trágico na condição humana se torne o mais transparente possível. O que penso ser mais espesso em minha tese consiste na afirmação de que a tragicidade da condição humana é um sintoma (no sentido psicanalítico, um conflito) do fato de sermos parasitados pela linguagem, do fato de sermos invadidos por ela. O animal simbólico, que é o homem, é um ser desnaturado, cuja existência está submetida ao regime da linguagem, do qual não pode escapar. O registro do simbólico é, portanto, constitutivo da nossa condição existencialmente trágica. Só há o trágico para um animal cuja existência foi capturada e é sustentada por uma teia de significados, de símbolos criada e reproduzida por esse mesmo animal que está condenado a significar. Portanto, a tese que esposo alinha-se com o horizonte hermenêutico psicanalítico, à luz do qual se afirma ser a linguagem o ponto de partida para a compreensão do que há de problemático no homem. Nesse sentido, concordo com Garcia-Roza:

A palavra não fez sua emergência no homem: o homem é um efeito dessa emergência. Tendo feito sua emergência, a palavra ressignificou ou simplesmente significou o próprio corpo com suas faculdades, assim como os objetos do mundo. (Garcia-Roza, 1990, p. 16).

A psicanálise recusa a precedência de um corpo biológico. Seu corpo é o corpo pulsional. Seu ponto de partida não é a suposição da existência prévia de uma ordem natural. Seu ponto de partida é a linguagem. É a linguagem que está na origem da constituição do animal extravagante, excêntrico, problemático, conflitual que é o homem.
Esclarecida, então, a orientação teórica à luz da qual se desenvolverão minhas reflexões, dou a conhecer o que me motivou a elaborar este texto. O seguinte trecho de Nietzsche, colhido de Genealogia da Moral (2011, XIII, p. 117) foi referido e comentado por Giacoia, em seu Nietzsche: o humano como memória e promessa (2014). Darei a saber, em primeiro lugar, o texto de Nietzsche; posteriormente, citarei Giacoia, que dele nos oferece uma interpretação que captou o que está no cerne da tese por mim apresentada.

(...) o homem é o animal doente, mais incerto, mais mutável, mais inconsciente, é o animal doente por excelência: donde lhe veio isto? Certamente provocou o destino e inovou mais, foi mais teimoso, mais audaz do que os outros animais; o grande experimentador de si mesmo insatisfeito, o insaciável, o que luta para reinar sobre os animais, sobre a natureza e sobre os deuses; o indomável, o futuro eterno, o aguilhoado pela espora que o futuro introduz na carne do presente, o mais valente dos animais, o de sangue mais rico, como não havia de estar exposto a doenças mais largas e mais terríveis?

Giacoia propõe uma leitura desse trecho de Nietzsche à luz de uma chave hermenêutica antropológico-cultural. Sua leitura descerra dois horizontes de sentido em que o texto de Nietzsche se deixa compreender: O primeiro deles encontra formulação linguística no seguinte trecho de Giacoia:

(...) a tese de Nietzsche dá ensejo a ser interpretada como uma hipótese que tem a forma lógica da causalidade: o homem é o animal doente, o mais prolongada e profundamente doente entre todos os animais porque é também o animal não fixado, sendo assim o grande experimentador consigo mesmo. (ibid., p. 24, ênfase no original).

Essa autoexperimentação do homem, vista à luz do horizonte semântico do “não fixado”, acarreta “a instabilidade, a flexibilidade, a multiplicidade e insegurança” (ibid.). Tudo isso pressupõe, segundo Giacoia, “mal-estar, sofrimento, insatisfação, ânsia, insaciedade permanente, mas também repto lançado ao destino, disputa por domínio sobre animais, natureza e deuses (também sobretudo sobre si mesmo)”. (ibid.).
A insistência cruel com que o animal humano escraviza, maltrata e mata os outros animais humanos e não humanos é um sintoma de sua doença como animal não fixado, um sintoma da negação de sua condição de animal, de seu destino animal, de ser alimento para vermes, de ter um corpo animal deteriorável e perecível.
A segunda linha de interpretação de Giacoia pauta-se pela afirmação de que o texto nietzschiano autoriza a inferência segundo a qual a mutabilidade constante, a insaciabilidade irrefreável são a natureza dividida e paradoxal do homem. Consoante nota Giacoia,

Sendo assim, faz parte desse paradoxo um excedente de força pulsional que ultrapassa toda fixação instintiva e faz do homem esse desafio permanente à estabilidade pensada no conceito de natureza, esse repto à autoconservação; eterna insubsistência, que o torna, por natureza, o animal mais exposto, o mais periclitado, o mais ameaçado pelo “acaso”, pelo “destino”, pela “natureza”. (ibid., grifo meu).


Portanto, consoante entende Giacoia, o mais enfermo dos animais, é também o mais problemático, “o que é mais digno de questão, o mais denso, profundo e pleno de futuro – um aguilhão na carne da natureza, de todo presente” (ibid., p. 25). O ser constituído de um excedente pulsional significa ser o homem um excesso, cujo reflexo é sua indigência crônica como corpo animal. Admitindo usar um vocábulo anacrônico em relação ao pensamento de Nietzsche, o autor acrescenta:

(...) diria que o homem é um animal doente porque não é um animal instintivo, mas pulsional e, mais ainda, provido de um excedente pulsional que o torna não fixado, instável, cuja estabilidade e fixação só pode ser realizada por sua própria obra, ou seja, por meio da história e da cultura, basicamente por meio das instituições. (ibid., grifo meu).

Uma vez que é o homem provido de um excedente pulsional, ele é um animal não especializado, desprovido dos recursos naturais indispensáveis à sua sobrevivência; ele é um animal exposto a uma tensão crônica de forças e tarefas internas e externas; é, em suma, atravessado por uma “indigência crônica”. Outrossim, afirmar ser o homem provido de um excedente pulsional é afirmar não ser possível reduzir sua vida a simples atos de satisfação de necessidades animais mínimas, como a fome e o instinto sexual.
Do exposto estende-se, pois, o solo filosófico, antropológico, psicanalítico a partir do qual a questão do trágico se nos impõe ao pensamento reflexivo como uma qualidade existencial da condição humana. Somos desnaturados, diferentemente dos demais animais, cuja vida é regulada exclusivamente pela gramática biológica, somos – repito – “infestados” pela linguagem, dominados por ela, estamos emaranhados nela. O que se seguirá é a expressão de um esforço analítico cuidadoso que visa a pôr a descoberto a condição constitucionalmente trágica do animal simbólico, que é o homem. O conflito insuperável entre o campo pulsional e a cultura é trágico.

2. Da tragédia ao trágico

Sabe-se que tragédia é um gênero de expressão artística, particularmente marcante na história do teatro. No domínio da arte, a tragédia, segundo alguns teóricos, não recobre apenas adversidades, sofrimentos, iniquidades, mas, principalmente, uma corajosa resistência ao destino. A tragédia deve, pois, expressar a reação a um evento, e não apenas o evento fatídico em si. Para alguns teóricos, a tragédia começa com a arte, que a vida imita. Com o tempo, o significado da tragédia foi estendido do domínio da arte para a vida, restando aqui um eco da arte, o qual foi silenciado quando a tragédia passou a caracterizar o modo de configuração da própria vida. Neste texto, defendo que o trágico é o modo próprio de constituição da condição humana. Nesse sentido, o trágico é uma categoria filosófico-hermenêutica com a qual a existência humana se converte em objeto para exame de uma filosofia trágica. Todo pensamento trágico quer “fazer o trágico passar do estado inconsciente para o consciente” (Rosset). Dado o inegável vínculo interdiscursivo entre o conceito de tragédia e o de trágico, não poderia tratar deste sem considerar aquele. Como já me ocupei, alhures, do modo como o pensamento trágico performatiza seu significado, cinjo-me, aqui, a citar o que nos diz Deleuze e Rosset acerca do trágico. Segundo Deleuze (2001, p. 29), “o que é trágico é a alegria”. O que Nietzsche viu e que Deleuze soube reconhecer e admirar é que o herói trágico é alegre. O trágico designa, para esses dois pensadores, a forma estética da alegria, que não sendo nenhuma solução moral da dor e do sofrimento, converte todo pesar, toda tristeza, toda infelicidade, mesmo a mais pungente e atroz, em objeto de afirmação. Para Rosset (1989a), uma filosofia trágica afirma o caráter originário do acaso, do acaso anterior à constituição de toda série de causas e de toda ordem, e afirma o caráter artificial de toda existência: artificial no sentido de que afirma a independência da existência com relação a todo princípio natural. O pensamento trágico, segundo Rosset, afirma a fundamental imprevisibilidade de todo ser, o acaso de toda constituição, a facticidade de todo fato. Conforme assinala Rosset (1989b, p. 300), “aprovar a existência é aprovar o trágico”, ao que acrescenta “ou a aprovação é trágica ou não há aprovação”. (ibid.). Tanto em Nietzsche, como em Deleuze e Rosset, o trágico é uma qualidade da afirmação, um elemento modal da aprovação incondicional da existência. O pensamento trágico é o pensamento da afirmação por excelência. Mesmo em face da constatação do que há de problemático, obscuro, sombrio, doloroso, aterrador na existência, o pensador trágico afirma o desespero jubiloso que quer o real tal como é (quem quer que esteja interessado nesse tema pode consultar: http://escritosdobar.blogspot.com/2018/08/toda-experiencia-profunda-se-formula-em.html.
 Um pensador como Schopenhauer não acompanha aqueles autores. Para Schopenhauer, “há sabedoria na tragédia, mas não há afirmação” (Eagleton, 2013, p. 112). A aprovação trágica não é uma aprovação do pior – que fique claro; é uma aprovação incondicional e total da existência, com suas alegrias e tristezas. Como ensina Maffesoli (2003, p. 116), “a especificidade do trágico é considerar a existência em sua totalidade: a luz necessita da sombra, o bem não é possível se não consentir ao seu contrário o lugar que lhe corresponde”. O pensamento trágico afirma a problematicidade insolúvel do mundo. O afeto trágico não diz senão isto: “só vale o que sabemos que vai acabar” (ibid., p. 58). Ainda segundo Maffesoli, “a sensibilidade trágica (...) aceita com sabedoria o que é. Acrescenta uma forma de intensidade ao viver o que é”. (p. 40-41).
A intensidade afetiva trágica encontra seu mais claro e vigoroso registro na afirmação: a medida da vida é viver sem medida: “viver apesar de tudo esta existência tolhida de vicissitudes, mas que segue sendo atrativa apesar ou por causa disso” (ibid.). O páthos trágico é o ter de jogar-se na vida como quem joga um jogo cujo resultado já está dado e no qual tudo está irremediavelmente perdido e, apesar disso, querê-lo jogar. Trágica é a condição humana marcada pelo desamparo, em frente ao qual o homem realiza a sua tarefa, assume a responsabilidade de ser livre e de dar um sentido à sua vida. Camus, em O homem revoltado, nos lembra que a consciência de que o sofrimento e a injustiça jamais serão totalmente eliminados faz parte da experiência trágica. O trágico também se deixa capturar na fórmula sartreana, com a qual se afirma a contingência radical da existência: “todo ente nasce sem razão, se prolonga por fraqueza e morre por acaso”.
Maffesoli, acerca da tragédia grega, diz que ela se caracteriza propriamente pelo seu caráter aporético: “ao contrário do drama, não oferece solução”.  Para Schopenhauer (2015, p. 294), “a única essência da tragédia é a exposição de uma grande infelicidade”. A infelicidade pode ser produzida pelo destino cego, acaso ou erro. Em Schopenhauer, a arte trágica expressa o conflito da Vontade com ela mesma de maneira aterrorizante. Para ele, a tragédia consiste “na exposição do lado terrível da vida, a saber, o sofrimento inominado, a miséria humana, o triunfo da maldade, o império cínico do acaso, a queda inevitável do justo e do inocente (...)”. (ibid., p. 292). O trágico é um sinal da misteriosa inexplicabilidade do cosmos. Ao dizer que o mundo é governado pelo acaso, o pensador trágico admite, tacitamente, que ele não é governado de forma alguma. Conforme nota Eagleton (ibid., p. 191), “a suposta inescrutabilidade do trágico, sua resistência a um mero raciocínio secular, pode ser explorada para esconder sua crueldade”.
O herói trágico age sem saber; o herói moderno sabe de sua ação. O que há de trágico na condição do herói clássico é o fato de ele se reconhecer responsável até mesmo por aquilo que ignora em suas ações. Édipo, por exemplo, age, mas não sabe acerca do alcance de sua ação, ao passo que Hamlet sabe o que está acontecendo, mas não sabe acerca do que o destino lhe reserva. Se é razoável sustentar que o herói trágico é, em grande medida, responsável pela própria ruína, é igualmente sustentável dizer que nenhum herói grego ou heroína aceita, de bom grado, seu destino. O trágico pode nos patentear o fato bastante perturbador de que, talvez, exista uma ordem do Cosmos, mas que ela não é justa.
É certo que muitas tragédias terminam com a distribuição de justiça; o que é trágico é que tenha de haver grande derramamento de sangue, grande sofrimento para alcançá-la. É a desproporção que constitui o verdadeiro terror trágico, de modo que justiça e tragédia parecem pouco compatíveis. Decerto, a punição precisa ser desproporcional; apenas aqueles que são virtuosos mas desafortunados despertam compaixão. A sintaxe trágica envolve a) um herói trágico como aquele que incorre num erro, em hamartia, b) que ultrapassa os limites, é tomado pela desmesura, hybris,  c) e sofre a reviravolta da desgraça, o que desperta o temor e a compaixão dos espectadores. O fato de que o sofrimento e a morte não poupam ninguém, nem os inocentes – isso é trágico.
A unidade de salvação e aniquilamento constitui uma característica fundamental de toda tragédia. Não é o aniquilamento que é trágico, mas o fato de a salvação tornar-se aniquilamento. Não é no declínio do herói que se cumpre a tragicidade, mas no fato de o herói sucumbir justamente no caminho que escolhera para fugir da desgraça. Segundo Eagleton (ibid., p. 42), a tragédia “precisa envolver mais do que a mera criação de um bode expiatório; precisa envolver uma corajosa resistência ao destino”.
São suficientes essas breves considerações sobre o significado da tragédia como gênero da arte; doravante, quero deter-me na descrição do aspecto sombrio, problemático, desesperador da experiência trágica como modo de se constituir da existência humana. Conquanto os estudiosos da tragédia tendam a sublinhar que a contingência radical da existência não é um elemento da tragicidade, parece-me difícil negar que, tendo deslocado nosso olhar da tragédia enquanto gênero de expressão artística para o trágico enquanto o modo de ser próprio da existência, a contingência radical de todo existente humano não possa compor-se com o trágico. Nesse caso, trágico é o fato de todo ente, de todo existente carecer de razão de ser; é o fato de o mundo não ter em si mesmo seu princípio de existência. Trágica também é a facticidade de todo existente humano: minha facticidade é o fato de eu me encontrar lançado no mundo em meio aos entes, simplesmente como são, sem necessidade, sem razão, como presença absurda e constatada. Se nem a contingência nem a facticidade são suficientes para a determinação do caráter trágico da existência, talvez seja o caso de articular a elas “o reconhecimento da existência pelo que é: precária, finita, sempre submetida à inexorável lei da morte de tudo e de todos” (Meffesoli, ibid., p. 58). Acresça-se a isso que a facticidade desvela “a incongruência notória entre aqueles que chegam ao mundo e as condições da chegada” (Sloterdijk, 2002, p. 123). É bem verdade que Sloterdijk designa tal incongruência “o nada”, mas ela parece dizer respeito muito mais à constatação, a qual não pode basear-se em qualquer medida razoável, do fato de que entre o nascimento, nossa chegada ao mundo, e as condições fáticas dessa chegada nada há senão o cego lance de dados do acaso. Nascer é estar lançado, em profundo estado de ignorância, à imponderabilidade, às flutuações do acaso.


2.2. O animal simbólico e a repressão básica

O nascimento é, para o animal simbólico que é o homem, apenas um ensaio do caráter trágico de sua condição. Encontrando-se no mundo, o homem precisará produzir mecanismos de defesa contra duas formas de medo: o medo da vida e o medo da morte. O animal simbólico angustia-se por ser-no-mundo, por encontrar-se no mundo. E, para evitar que seja dilacerado por um desespero generalizado, ele precisará lidar com o medo da morte, da vida, da experiência e da individuação. É preciso, pois, desobstruir o caminho que levará o trágico a passar da penumbra da vida semiconsciente da cotidianidade, do modo de vida inautêntico, para a clarividência do modo de vida autêntico, que é o do desespero controlado da Lucidez. Ignoro que haja um método mais eficaz para empreender tal desobstrução do que o debruçar-se sobre o modo como o homem lida com a certeza de sua finitude. Na maior parte do tempo, em condições normais, em que, desde o despertar até o adormecer, nos ocupamos com a lida da vida diária, em que perambulamos para lá e para cá, sem acreditar, em nenhum momento, em nossa morte, como se confiássemos plenamente em nossa imortalidade, estamos preocupados em dominar a morte, em manter controlado o terror da morte, que está universalmente presente em nosso funcionamento psicológico normal, muito embora seja, paradoxalmente, “total o nosso esquecimento desse temor em nossa vida consciente” (Becker, 2012, p. 37). Alguém poderia dizer, é claro, que sabe que vai morrer um dia, mas que não se importa, pois precisa aproveitar bem a vida e não pensar na morte e se importar com ela. Mas isso é uma admissão puramente intelectual, verbal. O afeto do medo da morte está reprimido. Alguém, então, poderia perguntar por que perturbar aquilo que está “adormecido”, por que correr o risco de ver-se tomado pelo terror que se manifestaria em consequência do despertar daquilo que é melhor que permanecesse “adormecido”. Não faltariam filósofos, sobretudo entre os gregos, para oferecer uma resposta. Um filósofo como Sêneca, por exemplo, poderia responder que viver a vida com a consciência constante da presença da morte é evitar a perda de si, é evitar a dispersão de si. Aprender a morrer é um exercício do meu viver. É uma tarefa da vida inteira. A morte é um problema da totalidade da vida. Por isso, pensar sobre a morte é ter em vista evitar viver uma vida desperdiçada, é evitar experimentar o tempo como perda. Para Sêneca, perder-se na multidão é perder-se de si. A existência é perda de si para quem vive em desperdício. Uma vida em desperdício não é uma vida livre. Liberdade é, para os gregos, autarkéia, domínio de si, ser princípio de si. A liberdade é uma qualidade da vida. Uma vida que pertença a si mesma é a liberdade. Em suma, citando Hadot (1999, p. 202), para um estoico como Sêneca, “o pensamento da morte iminente transformará de maneira radical a maneira de agir, fazendo que se tome consciência do valor infinito de cada instante”. Não obstante a lição estoica, que, pelo menos para mim, dá testemunho de uma profunda lucidez e é assaz preciosa, penso que nem todos são dotados da disposição afetiva para ocupar-se da morte. Quiçá, a maioria esmagadora dos homens não se sinta psicofisiologicamente predisposta a um tal exercício eminentemente filosófico. Estou entre aqueles que têm uma estrutura de caráter pessimista (não sendo nenhum privilégio, é uma experiência de destino) e, por isso, vivo continuamente com uma atenção a mim mesmo e com uma atenção na presença da morte iminente. Tem razão Becker, quando escreve:


É fácil perceber que (...) aqueles que tiverem experiências adversas no início da vida serão os mais morbidamente fixados na ansiedade da morte; e se, por acaso, quando crescerem, forem filósofos, é provável que façam da ideia da morte uma máxima central de seu pensamento – como fez Schopenhauer, que odiava a mãe e declarou ser a morte “a musa da filosofia”. Se você tem uma estrutura de caráter “amarga” ou teve experiências especialmente trágicas, deverá vir a ser um pessimista. (ibid., p. 34).


Estando de acordo com Unamuno (2013, p. 30), para quem “não basta pensar, devemos sentir o nosso destino” entrego-me à meditação sobre o aspecto constitucionalmente trágico de nossa experiência com a finitude como quem aceita realizar uma obra para a qual foi destinado. Viver e conhecer não é o mesmo. Há uma contradição entre viver e conhecer. Disso se segue que “o que é vital é antirracional, não apenas irracional, e tudo o que é racional é antivital. Essa é a base do sentimento trágico”. (ibid., p. 47). Filosofar, para mim, enquanto prática de exercícios espirituais, é uma exigência de ordem fisiológica, ou melhor, afetivo-fisiológica, pois que é preciso filosofar com muito mais do que com o cérebro; é preciso pensar “com todo o corpo e toda a alma, com o sangue, com o tutano dos ossos, com o coração, com os pulmões, com o ventre, com a vida”. (ibid., p. 30). Esta é uma exigência especialmente forte do pensamento trágico. Unamuno pensa que o sentimento trágico tem como lastro o divórcio entre o racional e o vital. É que o trágico, na medida em que é uma qualidade definidora da vida, deve ser uma experiência que se vive antes de ser pensada. O pensamento trágico evidencia que  “uma ligação indissolúvel une o gozo da vida ao conhecimento da morte, o conhecimento da vida àquele da tragédia” (Rosset, 1989a, p. 8). Como ensina Rosset (ibid.), “não há triunfo da vida sem um igual triunfo da morte, nem um verdadeiro transbordamento de alegria sem um igual transbordamento de desespero”. É que toda a alegria de viver que desconsidere o trágico é uma alegria inautêntica, facilmente desmentida por um instante de afronta do nada da lucidez. E, prosseguindo com Rosset, antes de retomar Unamuno, é preciso atender no seguinte: “o verdadeiro apaixonado da vida tem por principal e no fundo único objeto de aversão o otimismo e a estampa do trágico, culpados a seus olhos de constituir, sob as cores ordinariamente morais e bem-pensantes, um atentado permanente contra o real e a alegria de ser” (ibid.). Ora, um pensador como Epicuro não queria nos fazer experimentar outra coisa senão a alegria de ser, o prazer de existir. Mas, para a filosofia trágica, só é verdadeiramente atravessado por essa experiência quem se exercita no pensamento “da ligação entre a alegria de existir e o caráter trágico da existência”. Pois é isto a essência do pensamento trágico: não um pensamento da catástrofe, da fixação no pior, mas da ligação, da urdidura entre o transbordamento da alegria de viver e o transbordamento do desespero, da urdidura, do vínculo visceral entre o triunfo da alegria de ser e o triunfo da morte. O pensamento trágico não afirma uma felicidade “ao abrigo do otimismo” (ibid., p. 23), o que ele busca é “uma coisa inteiramente outra: loucura controlada e júbilo” (ibid.). A alegria trágica não é a alegria dos tolos, das massas irrefletidas de homens que desperdiçam o tempo e a vida a buscar os prazeres fugazes oferecidos pela sociedade de consumo. A alegria trágica tem sempre estampado diante de si o ensinamento do choro de Sólon, sobre o qual nos conta Unamuno (ibid., p. 32): “Um pedante que viu Sólon chorar a morte do filho lhe disse: “para que chora assim se não adianta?”. E o sábio respondeu: “precisamente por isso, porque não adianta””. O choro de Sólon é o choro do homem trágico, do homem que se sabe defrontado com o irremediável; seu choro é signo do valor inestimável de um ente amado que morreu, de um afeto que jamais voltará a encontrar. Seu choro é o choro de quem se desesperou e se liberou do desespero, de quem sabe que viver é, em grande medida, preparar-se continuamente para a experiência da despedida, do confronto com o “nunca mais”. Por isso, a despedida pela morte justifica o pranto de Sólon e o de todos os homens; por isso, todo cristão que chora a morte de alguém que amou é traidor: trai a fé mesmo que professa, pois que baseada na esperança da vida eterna, do reencontro com aqueles que amou. O choro pela morte é o choro mais imperioso, o mais urgente, o mais legítimo; pois no mais profundo do seu ser todo ser humano sente que jamais tornará a ver seu ente amado que morreu.
Encontrando-se, pois, no mundo, como um “animal inteiramente aberto à experiência” (Becker, p. 75), desprovido de um programa instintual que lhe possibilite ajustar-se completamente à natureza e a responder adequadamente aos estímulos desse mundo natural, “o homem não pode nem mesmo ter seu corpo como ponto pacífico, como podem ter os outros animais” (Becker, ibid.). A relação do homem com seu corpo é já extremamente problemática, conforme assinala Becker (ibid.):


(...) Para o homem, o seu corpo é um problema que tem que ser explicado. Não é só o corpo que é estranho, mas também sua configuração interior, suas recordações e seus sonhos. As próprias entranhas do homem – o seu eu – lhes são confusas. Ele não sabe quem é, por que nasceu, o que está fazendo no planeta, o que deveria fazer, o que pode esperar.

A dificuldade básica para o homem, segundo Becker, -  e o que entendo ser o centro nervoso, a nervura mesma de sua condição trágica -, consiste em “sermos simultaneamente vermes e deuses (...) outra vez: deuses e com ânus” (ibid.). O ânus não só se refere a uma parte do corpo animal que tem o homem, não só se refere à animalidade do homem, mas simboliza o destino de tudo que é da ordem da matéria, do bios e da phýsis: o definhamento, a deterioração, o apodrecimento e a morte. Dilacerado pelos dois grandes temores básicos – o da vida e o da morte -, o animal simbólico edifica o mundo da cultura – mundo entretecido pelos símbolos e significados que ele mesmo cria, numa tentativa dispendiosa e desesperada de pôr sob domínio, sobretudo, o terror da morte. Como ensina Cassirer (2012, p. 48), de modo perspicaz,

o homem não pode mais confrontar-se com a realidade imediatamente; não pode vê-la, por assim dizer, frente a frente. A realidade física parece recuar em proporção ao avanço da atividade simbólica do homem. Em vez de lidar com as próprias coisas, o homem está, de certo modo, conversando consigo mesmo.  


As quatro eminentes invenções da cultura – a arte, a religião, a filosofia e a ciência – estão a serviço da contenção desse terror. Filosofamos, certamente, para lidar com esse terror (Schopenhauer tinha razão, antes dele os gregos, é claro), direta ou indiretamente, quando abordamos o problema ou quando propomos rotas de fuga, deveras sutis, que não passam de tentativas de sublimação.
O que chamei de “a nervura de nossa condição trágica” precisa ser mais bem esclarecido. A experiência que o homem, enquanto animal simbólico, tem de seu corpo lhe evidencia uma cisão: todo ser humano é, ao mesmo tempo, um “eu” (veremos que esse “eu” não é uma substância, uma espécie de “fantasma na máquina”) e um “corpo”. Melhor será dizer: todo ser humano tem o sentimento de ser um “eu” e de “ter” um corpo. Por meio do “eu”, o homem se aproxima do “divino”: ele é um ser dotado da capacidade de pensar e de criar. Mas, por ter um corpo, o homem é arrastado, continuamente esmagado por sua condição animal – com os animais o homem compartilha o mesmo destino: o de ser alimento para vermes. Esse caráter dual do homem, antes de lhe ser um privilégio, é, na verdade, um pesado ônus. Comparado com o homem, o animal não sofre esse ônus: ele manifesta uma exuberante potência de viver, e só se entristece, se deprime, inclusive, em muitos casos, quando se sente privado dessa potência. Penso que, em grande medida, por ser constitucionalmente incapaz de levar a uma síntese a sua animalidade e a sua identidade simbólica, o animal humano se torna o animal mais doente, o mais profundamente e irremediavelmente doente. Esmagado pela confusão onde realmente está a identidade pessoal – ou seja, no eu ou no corpo -, o homem vive “tentando, com uma tenacidade além do normal, proteger-se contra os acidentes da vida e o perigo da morte, tentando usar símbolos da cultura como um meio de triunfar sobre o mistério da natureza, tentando fazer-se passar por tudo, menos por um animal”. Eis aí a repressão básica da condição humana: negação vibrante da vida física e do fantasma da morte. A cultura é a tentativa humana de oferecer uma solução conciliatória com a vida, de modo a torná-la possível. Enquanto se esforça por empreender e assegurar essa conciliação, o animal humano tenta evitar, nem sempre com muito sucesso, a percepção de que “a criação é um aterrorizante e grandioso espetáculo que se passa num planeta que vem ensopado, durante centenas de milhões de anos, no sangue de todas as criaturas” (Becker, ibid. ,p. 335). Não obstante, como ensina Schopenhauer (2014, p. 33), “com mil cuidados, mil precauções, durante todo tempo possível”, nos ocupamos de conservar e prolongar a vida, de alimentar a vontade de viver em nós; a vida, tal como uma bola de sabão é soprada, enche-se “durante muito tempo, não obstante a certeza que temos de que ela acabará por rebentar”. O trecho abaixo, colhido da pena de Schopenhauer, não deve ser lido como um testemunho de pessimismo, mas como uma grande advertência contra a loucura da condição humana, contra as insanidades diárias, contra a sofreguidão com que os homens se põem a serviço da reprodução de uma máquina socioeconômica e política que os transforma em meros autômatos, em meras peças de uma engrenagem, contra, sobretudo, nosso inveterado hábito de autoengano, a insistência com que defendemos as ficções sociais que nós mesmos criamos e em que acreditamos, autonomizamos, absolutizamos, em nome das quais travamos contendas, rixas, guerras e matamos.

O homem só vive no presente, que foge irresistivelmente para o passado, e afunda-se na morte: salvo as consequências, que se podem refletir no presente, e que só são obra dos seus atos e da sua vontade, a sua vida de ontem acha-se completamente morta, extinta (...) O presente foge-lhe, e transforma-se incessantemente no passado; o futuro é absolutamente incerto e sem duração... E assim como do ponto de vista físico, o andar não é mais do que uma queda sempre evitada, da mesma maneira a vida do corpo é a morte sempre suspensa, uma morte adiada, e a atividade do nosso espírito, um tédio sempre combatido (...) É preciso, enfim, que a morte triunfe, pois lhe pertencemos pelo próprio fato do nosso nascimento, e ela não faz senão brincar com a presa antes de devorá-la”. (ibid.).

O que Becker entende como “levar a vida a sério” se afina bem com a sabedoria trágica, mas é um “levar a sério” estranho ao homem da cotidianidade mediana, seja ele um operário, um cientista, um burocrata, seja um chefe de Estado. Pondera Becker: “acho que levar a vida a sério significa mais ou menos o seguinte: seja lá o que o homem faça neste planeta tem que ser feito na verdade vivida do terror da criação, do grotesco, do ronco do pânico debaixo de tudo, ao contrário, será falso” (Becker, ibid., p. 336). Antes de me deter um pouco em esclarecer o que angustia a criança, vale ainda atentar para o modo como o animal humano, segundo Becker, experiencia a precariedade de sua condição enquanto ser-no-mundo:

O homem reluta em enfrentar o peso esmagador do mundo, os verdadeiros perigos desse mundo. Ele retrai-se para não se perder nos devastadores apetites dos outros, para não rodopiar sem controle nas garras e presas de homens, animais e máquinas. Como organismo animal, o homem sente em que tipo de planeta foi colocado – o apavorante, o demoníaco frenesi no qual a natureza liberou bilhões de apetites de seres orgânicos individuais de todos os tipos. Isso sem falar em terremotos, meteoros e furacões, que parecem ter seus próprios apetites infernais. Cada coisa, para que possa se expandir prazerosamente, está sempre engolindo outras. Os apetites podem ser inocentes, por se construírem numa dádiva da natureza, mas qualquer ser vivo apanhado nas malhas dessa infinidade de interesses contrários que agitam este planeta é uma vítima em potencial dessa inocência – e o ser vivo, assim, se esquiva da vida com medo de perder a própria vida. A vida pode sugar o indivíduo, solapar suas energias, submergi-lo, tirar-lhe o autocontrole, dar tanta experiência nova com tanta rapidez que ele irá explodir. Pode fazê-lo destacar-se entre os outros, emergir em terreno perigosos, jogar-lhe por cima novas responsabilidades que precisam de grande força para serem suportadas, expô-lo a novas contingências, novas chances. Acima de tudo, há o perigo de um escorregão, um acidente, uma doença imprevista e, naturalmente, o perigo da morte, a sucção final, a submersão e a negação totais. (ibid., p. 78-79).


A dualidade do animal humano, quando confrontada com o saber acerca da finitude de sua existência, expõe à luz do dia, num momento de atormentada lucidez, a tensão afetiva que ela é, mas que se mantém, na maior parte do tempo, sob controle. Refiro-me à dualidade que consiste em sentir-se um “eu” e um “corpo”, ou “um deus com ânus”. Tendo um sentimento de eu, o animal humano:

(...) tem uma identidade simbólica que o destaca nitidamente da natureza. Ele é um eu simbólico, uma criatura, com um nome, uma história de vida. É um criador com uma mente que voa alto para especular sobre o átomo e o infinito, que com a imaginação pode colocar-se em um ponto no espaço e, extasiado, contemplar o seu próprio planeta. Essa imensa expansão, essa sagacidade, essa capacidade de abstração, essa consciência de si mesmo dão literalmente ao homem a posição de um pequeno deus na natureza, como sabiam os pensadores da Renascença”. (Becker, ibid., p. 48).

É bem verdade que a descrição feita por Becker desse homem constrói mais a imagem de um cientista ou de um astronauta do que a de um operário, o que não invalida o cerne do argumento: cada indivíduo humano constrói para si, nas relações com os outros, um “eu”, que é um efeito da ordem do imaginário. Mas a experiência subjetiva que ele tem desse “eu” não é de modo algum “imagética”. O animal humano identifica a si mesmo com este eu, portador de uma autobiografia: é um eu que vive um vasto e complexo conjunto de experiências emocionais, afetivas, cognitivas nas relações com outros seres humanos e animais, um eu que se alegra, ri, se diverte, trabalha, estuda, chora, namora, forma laços conjugais, tem filhos, etc. Por outro lado,

(...) ao mesmo tempo, como também sabiam os sábios orientais, o homem é um verme e um alimento para vermes. Este é o paradoxo: ele está fora da natureza e inevitavelmente nela; ele é dual, está lá nas estrelas e, no entanto, acha-se alojado num corpo cujo coração pulsa e que respira e que antigamente pertenceu a um peixe e ainda traz as marcas das guelras para prová-lo. Seu corpo é um invólucro de carne, que lhe é estranho sob muitos aspectos – o mais estranho e mais repugnante deles é o fato de que ele sente dor, sangra e um dia irá definhar e morrer. O homem está literalmente dividido em dois: tem consciência de sua esplêndida e ímpar situação de destaque na natureza, dotado de uma dominadora majestade, e no entanto retorna ao interior da terra, uns sete palmos, para cega e mudamente apodrecer e desaparecer para sempre (...). (ibid., p. 48-49).

Vemos, pois, ganhar carne o trágico da condição humana nessa tensão entre o amor-próprio do homem, seu narcisismo básico, que, ao longo dos 150 mil anos, desde o surgimento do homo sapiens, não diminuiu – amor-próprio constituído de símbolos, palavras, sons, imagens – e sua condição de criatura, de um animal que “é cônscio de sua limitação animal”. Eis, pois o horror, que  o animal humano mantém afastado de si por meio de mecanismos de repressão cultural: “ter surgido do nada, ter um nome, consciência de si mesmo, profundos sentimentos íntimos, uma torturante ânsia íntima pela vida e pela auto-expressão – e, apesar de tudo isso, morrer” (ibid., p. 116). E Becker se pergunta: “que tipo de divindade iria criar um alimento para vermes tão complexo e caprichoso? Divindades cínicas, diziam os gregos, divindades que usam os tormentos do homem para se divertirem”. (ibid.).
O que angustia a criança? A angústia, desde Kierkegaard, é uma forma de temor, mas difere do medo por carecer de objeto (isto é, falta-lhe uma causa específica). Angústia é sempre angústia de nada. Heidegger entendia que na angústia o nada se revela e assedia o ser-aí. Na angústia, o homem é atravessado pela experiência da perda de mundo, mas também é por ela que o homem aceita o fato de ser um ser-para-a-morte. Aquilo com que a angústia se angustia é o ser-no-mundo. Para os meus propósitos, porém, será bastante dizer que, na criança, o afeto de angústia se manifesta como temor da vida e da morte: 1) teme a impotência humana diante das forças da natureza; 2) teme os perigos da vida; 2) o doloroso enigma da morte; 3) as grandes necessidades do destino, contra os quais não há remédio. Segundo Becker (ibid., p. 78), a criança se angustia em face do “fato de que a vida é demais para ela e de que, na verdade, ela tem de evitar um excesso de pensamento, de percepção e de vida. Ao mesmo tempo ela precisa evitar a morte, que ronda qualquer tipo de atividade despreocupada, que lhe espia por sobre os ombros enquanto ela, a criança, brinca”.
Na terceira seção deste ensaio, antes da conclusão, demorar-me-ei no desenvolvimento da tese, que venho, então, buscando sustentar, segundo a qual o afeto trágico, que caracteriza fundamentalmente a existência humana, está originalmente implicado no desenvolvimento do animal humano como animal simbólico. A partir dessa terceira seção, transitarei pelo terreno da psicanálise freudiana/lacaniana com vistas a demonstrar por que o trágico é o modo de ser fundamental e próprio do homem, a raiz a partir da qual se edifica sua existência.


3. O animal simbólico ou animal trágico

O domínio de referência à luz do qual tratarei do desejo é o da psicanálise freudiana/lacaniana. Por conseguinte, deixo, forçosamente, fora do escopo de minhas considerações tanto a definição spinozista de desejo como um apetite quanto a de Deleuze & Guattari (2011). Spinoza, aliás, chega a dizer que, por desejo, entende “todos os esforços, todos os impulsos, apetites e volições do homem” (Spinoza, 2011, p. 141). Em seu Anti-Édipo, Deleuze subverte o modo como a psicanálise compreende a relação do homem com o mundo, relação centrada na hipótese do complexo de Édipo, o qual se baseia no padrão de referência do Pai. Em vez de assumir o desejo como falta, Deleuze mantém que “nada falta ao desejo, não lhe falta o seu objeto”. (ibid., p. 43). Para Deleuze, o desejo produz, produz o real; ele é produtor de realidade. Conquanto julgue inestimável a contribuição deleuzeana, entendo que ela não fornece os elementos necessários para o tratamento da questão que me interessa neste ensaio.
Na medida em que a psicanálise assume como postulado básico a precedência da linguagem, do simbólico sobre uma ordem natural, o próprio homem e sua condição problemática se constituem como uma questão cujo tratamento não se faz senão por meio de remissões ao simbólico, à estrutura significante. Conceitos tais como o de desejo, sujeito, pulsão, inconsciente, em virtude dos quais a psicanálise se diferencia tanto da psicologia quanto da biologia, devem sua consistência ao registro do simbólico, ou melhor, ao postulado segundo o qual o homem é um efeito da linguagem. É por isso também que o corpo que interessa à psicanálise não é o corpo biológico, mas o corpo pulsional. Se nascemos com necessidades, nunca as experimentamos pura ou diretamente, ou seja, sem a mediação da linguagem. A vida biológica é, como tal, excluída da experiência do sujeito, que se relacionaria com ela por intermédio da linguagem, que a fragmenta. Não custa lembrar que a hipótese do inconsciente é que confere à psicanálise sua especificidade, sua razão de ser. O inconsciente é a base de toda a vida psíquica; é o psíquico em si e sua realidade essencial. O conceito de inconsciente se elabora a partir da articulação entre o psíquico e a linguagem, os quais, por sua vez, se inscrevem numa relação intersubjetiva permeada pelo afeto. O psiquismo é um rede de traços articulados por operadores lógicos e temporais, em torno de um acontecimento denominado de trauma (acontecimento real fundador das perturbações psíquicas).  Freud, em 1890, concebeu o psiquismo como um aparelho de linguagem, isto é, um conjunto de signos que dotava de sentido os acontecimentos vivenciados pelos indivíduos. Já em 1895, Freud dirá que o psiquismo não é apenas um aparelho de linguagem, ou seja, um conjunto de signos; é também um campo de intensidades (pulsões). O psiquismo, portanto, constitui um campo de signos permeado por intensidades, de maneira que as representações-palavra seriam reguladas por investimentos afetivos, comandando então o psiquismo de maneira permanente. O psiquismo é, pois, concebido fora da relação especular entre as palavras e as coisas. Feitas essas considerações preliminares, passarei a me ocupar de alguns conceitos da teoria psicanalítica, importantes para que compreendamos de que modo o simbólico constitui a instância de abertura do homem para a experiência trágica. Só há o trágico para o animal simbólico que é o homem – é o que procurarei demonstrar a partir do exame de conceitos estruturantes da teoria psicanalítica freudiana/lacaniana.

3.1. As pulsões e o desejo

Sustenta a psicanálise que o desejo é causado por um objeto que falta e que é responsável pela estrutura faltosa que causou o advento do simbólico, tendo sido este o fator absolutamente novo da evolução. Com o advento do simbólico, a linguagem tornou possível um acesso diferente ao real. Foi graças esse acesso mediado pela linguagem que se constituíram as quatro mais importantes criações do homem: a arte, a religião, a filosofia e a ciência.
O desejo, marcado sempre por uma falta, não pode ser formulado em palavras; ele não é articulável em palavras no discurso, embora seja articulado no inconsciente. O sujeito da psicanálise é sujeito do desejo, sujeito do inconsciente; é o correlato ativo da falta. A falta é fundante do sujeito. O sujeito não nasce nem se desenvolve. Ele é um efeito do campo da linguagem; é efeito da ordem simbólica. Na medida em que é sujeito do inconsciente, o sujeito é um efeito de um sistema de significantes articulados em cadeias. Para Lacan, o sujeito é um ato de resposta ao Outro, o qual, por sua vez, é o esqueleto material e simbólico da ordem social e cultural. O sujeito tanto mais existe quanto mais é abolido, elidido. O que elide o sujeito é o significante, que o funda e o constitui. O sujeito não é o nome para um referente empírico. O sujeito é sempre sujeito suposto. Em suma, o sujeito é o átomo do simbólico: não tendo significação alguma, é uma suposição do significante, que se impõe a nós. Portanto, o sujeito da psicanálise distingue-se tanto do sujeito cartesiano – porque não é um sujeito que se inscreve no ato de conhecer, um sujeito suposto nesse ato – quanto do sujeito kantiano, já que não é um sujeito transcendental, inscrito no campo do entendimento. Outra distinção deve ser esclarecida aqui: o sujeito não se confunde com o ego, o eu. O “eu” é da ordem do imaginário e do sentido, enquanto o sujeito é dividido entre os significantes do simbólico. O sujeito jamais alcança uma unidade, pois é já sempre dividido, atravessado pelo conflito, marcado pela impossibilidade de se identificar de modo absoluto. Não há, para Freud, nenhum “eu” verdadeiro a ser encontrado. A mente é um caos, e os sujeitos humanos devem esforçar-se pela construção do ego, e não por buscar um eu interior, que é inexistente. Para Freud, a alma humana está irremediavelmente cindida: a divisão da alma decorre, em grande medida, da repressão do desejo. E essa repressão é inevitável, porque onde há vida civilizada há perda da satisfação das pulsões.
Se o sujeito é sujeito do desejo, segue-se que o que causa o sujeito é um objeto faltoso. Lacan chama de “objeto a” a esse objeto faltoso. O objeto a é a presença de um vazio, um cavo, um buraco. Perdido definitivamente para a espécie, o objeto a é faltoso para cada sujeito. É a rede de significantes que funda tanto o corpo como corpo pulsional quanto institui o objeto como objeto a. O objeto a é a falta, o furo central em torno do qual se organizam os significantes. O objeto a é da ordem do real (veremos o que significa  “ o real” para a psicanálise, mais adiante). Voltarei a considerar a importância do objeto a para a compreensão do sujeito quando me debruçar sobre a distinção entre das Ding e die Sache, dois termos que, em alemão, designam, “coisa”. Urge considerar, doravante, o conceito de pulsão.
Uma maneira simples de definir pulsão consiste em tomá-lo como motor do funcionamento do aparelho psíquico. A pulsão é uma força ou pressão que afeta o organismo a partir de dentro e o impele a realizar ações que buscam uma descarga de excitação, ou seja, a satisfação. A pulsão tem sua fonte na excitação corporal, num estado de tensão e seu objetivo é pôr termo a esse estado de tensão. Freud observará que a pulsão é um conceito fronteiriço entre o psíquico e o somático. A pulsão é sempre um representante psíquico dos estímulos que provêm do interior do corpo e atingem a mente, como uma medida de exigência. As pulsões vão constituir uma nova realidade corporal, irredutível ao natural, ao instintivo. Não são desvio do natural, mas diferença pura. As pulsões designam “um estado de dispersão de intensidades corporais” (Garcia-Roza, 1990, p. 19). As pulsões são intensidades anárquicas, que se referem ao corpo anárquico, desordenado. A psicanálise leva em conta a dualidade corpo-linguagem/ pulsões anárquicas. Essa dualidade é interpretada em termos de Ordem/Acaso. O corpo-linguagem inscreve-se no lugar da Ordem; e as pulsões, no lugar do Acaso.
Assim como foi por efeito do aparecimento da linguagem que as pulsões se constituíram, será também por efeito da linguagem que elas serão ordenadas. O corpo resultante dessa ordenação será um corpo submetido à ordem simbólica, ou seja, um corpo-linguagem. Por conseguinte, conforme assinala Garcia-Roza (ibid.):

Se admitirmos esta ficção como ponto de partida estratégico, veremos que a ideia de um mundo natural e ordenado, independente da linguagem, é que se apresenta como fictício. É apenas no lugar da linguagem que podemos supor um mundo que lhe seja anterior, mundo dos começos, mundo verdadeiramente mítico.


Eis o que não se pode perder de vista, quando consideramos ser o trágico uma experiência própria da condição humana: a relação humana com o corpo-objeto é caracterizada pela impossibilidade de completude, porque mediada pela linguagem. O que a psicanálise chama de pulsão sexual é a pulsão que diz respeito a esse corpo-linguagem, visto que o sexual supõe forma, ordem, e somente podemos falar em forma e sentido no lugar da ordem e da linguagem. Tanto a pulsão, como o desejo e seu objeto são efeitos da linguagem. A pulsão é também da ordem do real.
Assim como o desejo é marcado pela falta, o objeto absoluto falta também para a pulsão, mas falta no sentido paradoxal de que esse objeto da pulsão nunca existiu. Lacan pensa o homem como desejo, desejo que permanece como falta. O objeto absoluto é essa falta. O homem é pensado, portanto, a partir dessa falta do absoluto para o qual, no entanto, ele, homem, se inclina, na condição de ser de desejo. Entre a pulsão e o objeto, interpõe-se o desejo e a fantasia. Um objeto só se constitui em objeto da pulsão se ele for objeto para o desejo. Como é a fantasia responsável pela articulação entre o objeto e o desejo, ela é mediação necessária entre a pulsão e o objeto. Nisso consiste, pois, o estatuto da fantasia: cabe à fantasia articular a pulsão – força constante – ao objeto. A fantasia funciona como uma espécie de tela entre o sujeito e a pulsão. A fantasia transforma o gozo em prazer. A fantasia é o que protege o sujeito do real. Entre o corpo pulsional e o objeto, interpõe-se, portanto, o desejo e suas fantasias; e isso significa dizer que entre corpo pulsional e objeto impõe-se a rede de significantes da linguagem. É fácil ver que é constitucionalmente impossível ao animal humano viver sem fantasias; isso deveria servir de advertência para todo credo racionalista que pretenda liberar o homem de suas ilusões e fantasias. Este texto pretende também ser um alerta sobre o fato de que qualquer proposta que reivindique a naturalização do homem deve, primeiramente, compreender de que modo o animal humano é constituído pela linguagem. A linguagem é mais do que uma faculdade cognitiva que lhe permite usar uma língua, é mais do que um instrumento de comunicação. O que a psicanálise nos mostra é que a linguagem é o campo de significantes que estrutura a condição humana, que a constitui. Graças à linguagem, o homem é filho de uma negatividade: é filho de um buraco, de um abismo; ele nasceu quando se negou a morrer ajustado, quando perdeu sua unidade com a natureza, quando no seu ser natural foi feita uma “rachadura”. Ao reprimir sua natureza animal (pode-se dizer, de certo modo, ao perder sua natureza animal), o homem teve de inventar uma segunda natureza, chamada “cultura”, que funciona como uma espécie de tampa, um tampão que o impede de ver o abismo que o constitui. O trágico aqui, que o animal humano insiste em recusar, que não pode ver verdadeiramente, é que ele ensaia a pose de um deus, mas morre como todo animal.
As pulsões estão à deriva, o que significa dizer que estão sempre remetidas ao acaso dos encontros. O encontro, no entanto, é sempre faltoso. Esse encontro faltoso vai ser submetido ao ordenamento pelo mundo dos signos. O que estrutura a libido – entendida como energia vital fundamental - não é o primado do genital, mas a articulação das pulsões com a rede de significantes. É na sua articulação com a rede de significantes que uma ordem lhe é imposta. Trata-se, porém, de uma ordem que lhe é externa, ordem própria dos signos e não das pulsões; é por essa razão que só se pode alcançar uma satisfação parcial. Como soube ver bem Schopenhauer, grande precursor da psicanálise, a satisfação plena é impossível; e essa impossibilidade se deve ao fato de à pulsão ser dado jamais o objeto, que falta, mas um substituto, um representante.  Ora, se, por um lado, a submissão ao mundo dos signos inviabiliza a satisfação plena; por outro lado, essa mesma submissão multiplica de forma incomensurável as possibilidades de satisfação (embora parcial). Nisso reside o equívoco fundamental da pulsão. O mundo para o qual ela tende, se inclina, é um mundo que é efeito de outra ordem, a saber, da ordem simbólica, mundo este onde não há que buscar o objeto perdido, dado que esse objeto jamais o habitou.

3.2. Representações-coisa e representações-palavra

Em princípio, frisa-se que Ding, que significa “coisa”, em alemão, não se confunde com objeto (em alemão, Gegenstand). Objeto se define como aquilo que se coloca “diante de nós” como correlato da percepção, da consciência. Objeto deriva do latim objectum, no qual o prefixo “ob” significa “diante de”. Freud faz uso distinto dos termos que, no alemão, significam “coisa”: die Sache e das Ding. Das Ding é o objeto perdido e que deve ser reencontrado, muito embora, paradoxalmente, jamais o tenhamos experimentado. É na busca de das Ding (Coisa) que se vai constituir a trama das representações. Essa busca será governada pelo princípio de prazer. Esse princípio atua sobre as representações, produzindo a transferência de energia de um representante para outro representante sucessivamente, de modo que nos movimentamos em torno de um centro sem nunca atingi-lo. Esse centro é das Ding.O primeiro representante de das Ding é a pulsão, o que instaura, ao mesmo tempo, uma aproximação e distância. Quando se constitui o registro das representações, ou seja, dos representantes ideativos da pulsão, todas as representações se tornam equidistantes do objeto perdido.
Freud distingue entre sachevorstellung, ou representação-coisa e Wortvorstellugen (representações-palavra). As representações-coisa estão ligadas às representações-palavra de modo necessário. As coisas (Sachen), uma vez que constituem o mundo organizado, mundo dotado de ordem humana, passam primeiro pelo investimento simbólico, ou seja, da palavra. As coisas estão, portanto, desde o início, submetidas à ordem simbólica. Isso significa dizer que o modo como temos experiência das coisas é ordenado pela linguagem; significa dizer que o mundo das coisas é um mundo semiotizado. Nesse sentido e para este mundo semiotizado, é um equívoco pensar nas palavras como ‘etiquetas’ que colocamos nas coisas, como se estas preexistissem à linguagem. Das Ding, por seu turno, designa a coisa de modo diverso. Das Ding habita um outro lugar, para além do universo da linguagem. A importância do papel desempenhado pelas palavras consiste em que elas dotam as representações-coisa de realidade por meio do discurso. As palavras é que possibilitam a articulação das representações-coisa com o pré-consciente. Die Sache é a palavra da Coisa (Ding). Vamos esclarecer melhor esse ponto.
As representações-coisa se inscrevem no inconsciente, ao passo que a representação-palavra pertence ao campo do pré-consciente/ consciente. Mas, no inconsciente, as representações-coisa estão articuladas pelos significantes, formando uma estrutura do inconsciente. Deve-se, pois, a esta altura, distinguir entre a linguagem como função e a linguagem como estrutura. Na condição de função, a linguagem corresponde à representação-palavra. Trata-se da atividade de simbolização da linguagem que se dá no nível pré-consciente/consciente. A linguagem como estrutura, por outro lado, refere-se à linguagem estruturante da rede de significantes no nível inconsciente (representações-coisa). As representações-coisa, conforme disse, estão no inconsciente, mas articuladas como significantes, já que a linguagem está presente desde o início em sua função estruturante. É como representação que a coisa (Sache) se constitui. Para Freud, representação é a forma ideativa da presentificação da pulsão no aparelho psíquico. Ela toca ao elemento imaginário do objeto. Representação é o que se constitui ao redor da Coisa (Ding) como aparição, como fantasma. Portanto, o mundo das representações se organiza numa ordem que é a ordem das possibilidades do significante. A coisa-Ding é muda; ela nada tem a ver com a palavra.
Das Ding não pertence ao espaço da representação, muito embora deixe uma marca, um vestígio de sua presença na ausência. Há algo no nível das representações-palavra que sinaliza para a Coisa (Ding). Todavia, esse algo, não sendo a Coisa disfarçada, é um vazio que não pode ser preenchido adequadamente por objeto algum. Esse vazio é o objeto a; mas o objeto a não é Das Ding; é o índice ou testemunha de das Ding como objeto perdido. Esse índice – objeto a – não é um objeto específico, mas um furo, um vazio. O objeto a não é objeto do desejo, mas objeto-causa do desejo. A função do objeto a-, causa do desejo, é ser produtor da falta, e sua relação com a pulsão é a de ser contornado por ela. A pulsão aponta para das Ding e, ao mesmo tempo, a contorna. As pulsões são, desde o início, inibidas quanto ao seu alvo. É desse desvio quanto ao seu alvo (a satisfação) que Freud fala como sendo o mecanismo da sublimação. Para Lacan, a relação entre a sublimação e das Ding posiciona o homem como médium, um intermediário entre o real – que não se confunde, conforme veremos, com a realidade – e o significante. Consoante pondera Garcia Roza (ibid., p. 89),


Todas as coisas criadas pelo homem e que são do registro da sublimação são de algum modo representadas por um vazio porque não podem ser representadas por outra coisa, “ou mais precisamente, porque só podem ser representadas por outra coisa”.




3.3. Princípio de realidade

No tocante ao princípio de realidade, cumpre dizer que ele não diz respeito ao mundo da experiência sensível, não diz respeito à realidade biofísico-social, mas aos signos que o indicam. É por força dessa insistência significativa do simbólico que a vida se acha presa ao simbólico de maneira despedaçada, decomposta, fragmentada, e o ser humano se acha, ao menos em parte, fora da vida. Por isso, o animal humano participa da pulsão de morte, e o registro do simbólico está numa relação com a pulsão de morte. O princípio de realidade diz respeito à quantidade de energia conservada e suportada pelo organismo para que ele responda adequadamente à necessidade de conservação da vida. No entanto, o mundo ao qual tal princípio nos remete não é o mundo ordenado de que temos consciência. Nossa psique fornece sempre, seja no nível pré-consciente/consciente, seja no nível inconsciente, signos, ou mais precisamente, significantes. O que nos é fornecido está submetido à função estruturante da linguagem. Em outras palavras, o que encontramos são sempre Sache (representações-coisa) e nunca Ding (a Coisa).
O princípio de realidade só pode funcionar mediante um sistema de neurônios denominado por Freud neurônios ômega. O que os neurônios ômega fornecem é um signo de realidade e não a realidade ela própria. O ponto de partida do princípio de realidade são as informações enviadas pelo sistema ômega de neurônios, os quais são responsáveis pela percepção. Todavia, o princípio de prazer atua precisamente sobre a percepção e, uma vez que o princípio de realidade visa a uma identidade perceptiva, deriva daí um paradoxo no próprio princípio de realidade: ele torna difícil distinguir entre uma identidade perceptiva alucinatória e uma identidade perceptiva real. O princípio de realidade não corrige o mundo interno em relação ao mundo externo, mas corrige o mundo interno em relação a si mesmo.
De tudo que precede, segue-se que o aparelho psíquico, porque se constitui como mediador entre o corpo e o mundo exterior, e porque se estrutura segundo princípios que são conformes à linguagem, esse aparelho acaba por isolar o indivíduo da própria realidade. O aparelho psíquico passa então a ser composto por signos dessa realidade externa. E, como sabemos que os signos são equívocos, enganosos, o autoengano e o equívoco são inerentes à relação que mantemos com a realidade externa.

3.4. O real, o simbólico e o imaginário

Real, simbólico e imaginário constituem três registros psíquicos que, não podendo ser analisados separadamente, constituem uma tripartição estrutural sem a qual, segundo Lacan, não se poderia compreender satisfatoriamente as teses freudianas sobre o psiquismo. Essas três categorias estavam apenas entrevistas no pensamento de Freud; coube a Lacan formulá-las e defini-las. Os três termos estão ligados de modo indissociável, e, a fim de ilustrar o fato de que “tudo começa com três”, ou seja, de que são necessários três elementos inextricavelmente articulados para que se tenha uma estrutura, Lacan lança mão do modelo de representação do nó borromeano.
O real de que fala a psicanálise não se identifica com a realidade biofísico-social. Em outras palavras, o real não é a realidade que conhecemos em nossa experiência de mundo cotidiana. O real é o impossível de ser simbolizado. O real é o que ex-siste, ou seja, o que está fora, o que escapa à trama do sentido. O real é o não-senso radical, o que não tem nenhum sentido. O real é a parte do sujeito que escapa à análise. O real se encontra além do simbólico e do imaginário, para além da palavra e da linguagem. O real, não sendo a realidade percebida, tampouco é a realidade psíquica. A realidade psíquica é a realidade do inconsciente, do desejo e de suas fantasias. Se a realidade exterior é fabricada, ordenada a partir da linguagem e tem como referência o sujeito, o real é o pré-subjetivo e constitui um registro distinto do simbólico. O real não se submete à organização do mundo externo nem obedece à organização da realidade psíquica. O real, situando-se além da ordem e da lei, está fora do campo do princípio de prazer. Ele coloca-se como um obstáculo ao princípio de prazer. O real é o oposto do imaginário. Destarte, o real excede à capacidade de representação psíquica: o real é a morte, a perda, aquilo que não tem inscrição possível no psiquismo. O real é, por excelência, o trauma, isto é, aquilo que não pode de modo algum ser assimilado pelo sujeito em suas representações simbólico-imaginárias. O real é o limite da simbolização. Em suma, ele é, no animal humano, o registro do trágico.
O simbólico, por seu turno, identifica-se com o campo da linguagem, por meio do qual o sujeito impõe resistência ao real traumático e reconstitui incessantemente seu imaginário que está, continuamente, submetido à invasão do real. O registro do simbólico é da ordem do duplo sentido, porquanto permite ao falante mediar o encontro com o sem-sentido do real. O simbólico é o registro que vem ocupar, no sujeito, o lugar da falta real primordial do imaginário. O que é da ordem do ôntico, para o homem, é constitucionalmente marcado por uma falta originária. Há uma distinção fundamental entre o sujeito e o eu: o sujeito está numa relação excêntrica com o eu. O sujeito não é o indivíduo, isto é, o sujeito não é indiviso. Ao contrário, o sujeito é marcado por uma divisão constituinte, é determinado pelo simbólico, dividido entre os significantes que o constituem. O lugar do sujeito é o lugar do corte, da ruptura, ao passo que o eu representa a configuração de uma unidade, de uma completude, constituída imaginariamente. O que chamamos de realidade é uma montagem pela qual são responsáveis o simbólico e o imaginário. Toda a realidade, incluindo a realidade psíquica, é configurada a partir da fantasia inconsciente fundamental. O relacionamento do sujeito com outros sujeitos e com o mundo exterior será sempre mediado por essa tela da fantasia, protetora do real traumático. É a fantasia, constituída pelo simbólico, pelos significantes do Outro que medeia o encontro do sujeito com o que é inabordável enquanto tal – a saber, o real. Não é custoso entender em que medida o simbólico está no cerne da problematicidade da existência humana. A linguagem é, enquanto substituição do real inefável, uma possibilidade de atividade para o sujeito. O que era vivência passiva imediata para ele passa a ser vivido ativamente por meio da linguagem. A subjetivação das vivências depende do processo de simbolização que a linguagem permite. Todo uso da linguagem é metafórico, no sentido de que a linguagem, em si mesma, é da ordem da substituição de uma falta originária; ela, a linguagem, é, em si mesma, uma imensa metáfora. A precedência da ordem simbólica faz com que a linguagem seja o que constitui a realidade para cada sujeito, pois que, antes dela, só há a indiferenciação do real. Destarte, Lacan entende que a metáfora se situa no ponto preciso em que o sentido se produz a partir do não sentido, isto é, do real.  A entrada do sujeito na ordem da linguagem – ordem simbólica – re-produz uma perda de ser original. A linguagem,  inscrevendo-se no lugar da falta-de-ser, será sempre metáfora do sujeito. O Outro, enquanto lugar do significante, é o registro do simbólico, na medida em que o campo dos significantes é faltoso, incompleto; nele há sempre a possibilidade de um ato criativo, de um novo significante. Jamais se sai, portanto, do regime da linguagem. Estamos sempre mergulhados no campo da linguagem, e não existe qualquer outra linguagem, senão a linguagem verbal, que venha dar conta desse campo.
No tocante ao imaginário, cumpre dizer que é o registro oposto ao real. O imaginário, por isso, recobre a ordem do sentido. O imaginário é imaginário do sujeito;  é marcado por uma falta originária, uma hiância real que virá a ser preenchida pelo simbólico. Essa falta do imaginário do sujeito é uma hiância congênita que o ser real do homem apresenta em suas relações com o natural.

3.5. O Campo pulsional: pulsões de vida e pulsão de morte

Segundo Freud, fazendo eco a Schopenhauer, anteriormente à hegemonia do princípio de prazer, o psiquismo se regularia originalmente pelo princípio do Nirvana, sendo necessária a incidência insistente de Eros, para que o prazer se instituísse finalmente como princípio regulador da vida. O psiquismo é movido por um confronto interminável de forças. Entre o amor e a discórdia, há uma guerra permanente no psiquismo, de maneira que representar como se processa essa guerra não é mais uma possibilidade fácil para o sujeito. Há, pois, um fundo de acaso contra o qual se estabelece uma ordem e com a qual ela mantém uma relação estrutural. O Id é uma instância psíquica inconsciente, embora não se confunda com o inconsciente. As pulsões estão situadas para além do Id. As pulsões são forças que, supostamente, existem por trás do Id e que representam as exigências que o corpo faz relativamente à psique.
O homem trágico aparece, portanto, no discurso psicanalítico a partir do reconhecimento da presença de forças em constante conflito – pulsões de vida e pulsão de morte. A mais primitiva delas, a pulsão de morte, é irrepresentável e seu movimento se expressa, inexoravelmente, em direção à morte, à extinção do indivíduo e ao seu retorno a um estado anterior de coisas.
Ao postular a existência de um conflito insolúvel entre as pulsões de vida e a pulsão de morte no psiquismo humano, Freud reconhece sua dívida para com o filósofo pré-socrático Empédocles (492-432 a. C.). Empédocles concebia esse conflito no âmbito cosmológico. Para ele, as partículas primordiais do Cosmos (terra, água, fogo e ar) combinam-se entre si sem qualquer ordem estabelecida. Foi por força do acaso que surgiram os primeiros seres vivos.  Empédocles entendia que todas as quatro substâncias conservam-se como raízes do Cosmos. Essas raízes sempre existiram, mas elas se misturam entre si em proporções variadas, de modo a produzir a estrutura do mundo e as coisas do céu. Empédocles atribuiu a dois princípios ativos a mistura das substâncias fundamentais: a Eros (Philia) e a Discórdia ou Ódio (Neikos). O Amor é responsável por combinar os elementos, e o Ódio, por separá-los. Em determinado momento, as substâncias crescem para ser uma entre muitas; noutro momento, dividem-se para ser muitas a partir de uma. Há, pois, um movimento contínuo de união por força do Amor e de separação por força do Ódio.
Em sua constituição, o mundo passa por quatro fases:
1ª fase: o mundo é uma esfera homogênea que se encontra em repouso. No início, existia uma esfera em que estavam intimamente misturadas todas as substâncias, de tal forma que não se podia distinguir qualquer delas;
2ª fase:  em determinado momento, o Ódio, que, na primeira fase, encontrava-se no extremo limite da esfera, começa a dirigir-se para o centro, provocando a separação das substâncias. Nessa fase, o Ódio ainda não exerce domínio total, pois o Amor ou Philia ainda preside a algumas reuniões.
3ª fase: o Ódio domina por absoluto, tendo-se o Amor se afastando. O domínio total do Ódio vai levar à total separação das diferentes substâncias.
4ª fase: com a aproximação do Amor e o afastamento progressivo do Ódio, o processo de agregação se reinicia, culminando com a mistura completa da primeira fase.

A dinâmica de mistura e a separação das substâncias explica o devir e a multiplicidade do mundo. Todo nascimento é também morte, porque, se, por um lado, dá início a um novo conjunto; por outro lado, faz desaparecer algo que já existia sob uma forma diferente. A teoria cosmológica de Empédocles encaminha a conclusão segundo a qual Philia e Neikos, ou Amor e Ódio, são princípios responsáveis pela união/junção e desunião/ separação das substâncias fundamentais. Esse duplo movimento tensional inerente ao cosmos explica a existência dos diferentes seres, todos sujeitos aos dois impulsos simultâneos e divergentes.  Por fim, para Empédocles, toda ação é resultado da associação e do acaso.
Inspirado na teoria de Empédocles, Freud supõe a existência de um conflito permanente no interior do ser humano. O animal humano é dotado de uma potência de destruição. Nosso corpo, ao pretender evitar a morte, desvia a pulsão de morte para fora e, assim, o ataque destrutivo é dirigido contra os objetos. Com a noção de pulsão de morte, Freud inscreverá a violência como um forte elemento caracterizador da psique humana. A pulsão de morte, nesse contexto teórico, é tanto o retorno ao inorgânico quanto o prazer na destruição de si mesmo e do outro.. O estado de perfeito equilíbrio é encontrado apenas no mundo inorgânico, antes de a vida ter feito sua emergência. Uma vez tendo produzido o desvio – a vida – o destino natural da pulsão de morte não pode ser outro senão o retorno ao inorgânico (por isso, Freud entendia que o sentido da vida, sua direção, é a morte). As pulsões de vida e a pulsão sexual são ordens emergentes a partir de um estado anárquico que seria a vida em seus começos. A vida é, para Freud, perturbação, e o que é perturbado é a quietude do inorgânico. Como não existe pulsão de morte nem pulsões de vida em si, ou seja, isoladamente, deve-se falar em campo pulsional, um campo constituído de corpos-força que são as pulsões de vida e de morte interligadas.
As pulsões de vida são ruidosas e pródigas em nos fornecer seus representantes psíquicos. Por outro lado, a pulsão de morte é silenciosa e tende a se ocultar. A pulsão de morte representa o caos-acaso. Ela representa o fundo-acaso sobre o qual se diferenciam as pulsões de vida como ordem. Com o retardo do retorno ao inorgânico, as pulsões de conservação puderam se desenvolver. As pulsões de conservação dizem respeito ao nosso caminhar inevitável para a morte, visto que sua função é garantir que o transcurso da vida até a morte se dê por circunstâncias imanentes ao próprio organismo. Em outros termos, as pulsões de conservação asseguram que os seres vivos venham a morrer por causas naturais. A pulsão sexual ou pulsões de vida instituem uma pluralidade de ordens sobre um fundo pulsional anárquico.
Segundo Lacan, a pulsão de morte dever ser entendida como uma vontade de destruição, mas não “vontade” à moda schopenhaureana. A pulsão como vontade de destruição não é uma tendência a reproduzir o mesmo (por exemplo, o mesmo mundo tormentoso, como em Schopenhauer); mas vontade de recomeçar com novos custos. A pulsão de morte pode ser vista sob três domínios semânticos: 1) o da entropia, ou seja, o do nível dos sistemas materiais inanimados; 2) o do nível dos organismos, dos seres vivos: retorno ao inanimado; 3) como vontade de destruição e potência indispensável à criação.
A pulsão de morte é o que se repete. Mas repetição aqui não é reprodução, como nos advertia Kierkegaard, Nietzsche e Deleuze. Repetição não é repetição do mesmo, mas repetição diferencial. Tanto para Kierkegaard quanto para Nietzsche, a repetição implica algo novo. Freud e Lacan endossam essa visão: a repetição implica o novo, é criação de diferenças. A pulsão de morte, na medida em que se opõe a Eros, constitui um obstáculo grande para a cultura. É que Eros é responsável pelas unidades, pelas uniões, e a cultura, na medida em que produz reuniões, agrupamentos (família, sociedade, nações, etc.) é a tentativa de realizar o que é exigência de Eros. A cultura estaria, pois, a serviço de Eros. Todavia, a pulsão de morte, na condição de potência destrutiva, tem como alvo a disjunção das unidades, a recusa da permanência. Se a pulsão sexual é conservadora, porque, além de instituir uniões, tende a mantê-las, a pulsão de morte é renovadora, subversiva. Como esteja a serviço do questionamento do status quo, a pulsão de morte é potência criadora. Portanto, se Eros tende à unificação, à indiferenciação, a pulsão de morte, como princípio disjuntivo, é produtora de diferenças.
Para Lacan, a pulsão de morte é antinatural; para Freud, ela é anticultural. Não é antinatural porque visaria à destruição da natureza, tampouco é anticultural porque visaria à destruição da cultura; mas porque coloca em questão tanto uma quanto a outra, ou seja, porque recusa a permanência do “mesmo”, provoca tanto na natureza quanto na cultura a emergência de novas formas. Na condição de repetição diferencial, a pulsão de morte é um estímulo para o psíquico, mas não é um estímulo psíquico. As pulsões não são estímulos fisiológicos, porque, ao contrário destes, as pulsões atuam como força constante. A pulsão é externa ao aparelho psíquico, se situa além da linguagem e da ordem; por conseguinte, se acha no lugar do acaso e da dispersão – e, mesmo assim, tem uma historicidade. Sua historicidade consiste em que a pulsão se refere a algo memorável ou memorizado. É porque se dá uma presença da pulsão no psiquismo humano que a historização (o memorável) é possível. Como a pulsão só é pulsão pela inscrição no simbólico, a historicidade da pulsão é a sua não naturalidade. A rememoração deve sua possibilidade à cadeia significante. Ao ser capturada pela rede de significantes, a pulsão ganha historicidade.
A pulsão de morte é uma potência de destruição, porque ela atua disjuntivamente contra a perpetuação das formas e uniões levadas a efeito por Eros. Se entendermos o desejo como pura indiferença, o projeto de Eros é a eliminação da diferença e, portanto, do desejo, numa indiferenciação final. A pulsão de morte, enquanto potência destrutiva, é o que impede a repetição do mesmo, produzindo, pela disjunção, a emergência de novas formas. Ela é, portanto, criadora, e não conservadora, dado que impõe novos começos ao invés de produzir o mesmo. Consoante assinala Garcia-Roza (ibid., p. 137), “a verdadeira morte – a morte do desejo, da diferença – sobrevém por efeito de Eros e não da pulsão de morte”.

4. Para concluir

Chamar ao homem animal simbólico significa admitir que ele é um animal excêntrico, extravagante, pois que desnaturado, atravessado pelo desajuste em relação à ordem natural. O animal humano é marcado constitucionalmente por uma falta irremediável, intransponível porque o humano nele é efeito da linguagem, é um efeito da ordem do simbólico. Se o homem é constituído de um excedente pulsional, em função do qual se pode explicar ao mesmo tempo seu excesso e indigência crônica em relação à ordem natural, é porque sua existência mesma está inteiramente submetida ao regime da linguagem. Há um conflito insuperável entre o campo pulsional e a cultura; é nesse conflito que se inscreve o trágico da condição humana. O sentimento do caráter trágico da vida e a consciência constante de que toda a sua vida é um transcorrer para a morte inevitável é o preço alto que o homem teve de pagar quando a evolução lhe tornou possível o desenvolvimento da faculdade da linguagem, sem a qual não seria capaz nem de pensamento conceitual nem de conhecimento racional, mas em virtude da qual, por outro lado, se tornou o ser mais infeliz, o mensageiro de seu próprio agouro, o caminhante que sabe que caminha em direção ao seu inevitável aniquilamento e que, mesmo certo do vaticínio de seu fim, precisa continuar a inventar ficções para poder viver e não pode, por um momento sequer, livrar-se das fantasias que o protegem de um confronto com o real que, se ocorresse, o levaria à loucura desordenada, desintegradora e ao aniquilamento.