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quarta-feira, 20 de março de 2013

"Ao falar, queremos sempre causar impressão em nosso ouvinte" (BAR)


                

        Autocrítica: as imagens de si no galanteio


Sócrates ensinou o caminho para a sabedoria: “conhece-te a ti mesmo”. Esse aforismo estaria, segundo a tradição, inscrito nos pórticos do Oráculo de Delfos. A frase teria sido proferida pela pitonisa desse oráculo, chamada Femonoe. Seja como for, o “conhece-te a ti mesmo” abre caminho para o autoconhecimento, como a primeira etapa para conhecer modos de existência social mais profundos. Tenho seguido esta recomendação socrática desde há muito, através da escrita. Especialmente, durante os anos em que precisei de tratamento psiquiátrico em função da depressão, a escrita serviu-me de exercício para o autoconhecimento.
A questão de que me ocuparei neste texto tem a seguinte forma: Qual é a origem de nossas decepções no galanteio? Embora a palavra ‘galanteio’ seja definida de modo a colocar o homem como o responsável pelas lisonjas e finezas, as ideias que desenvolverei aqui valem também para as mulheres. Eu preciso, contudo, dizer o que me motiva a escrever este texto. Vou contextualizá-lo, portanto.
Estou participando de um site de relacionamentos, não faz muito tempo. Não cuido sejam necessárias muitas justificativas, mas decidi participar por me possibilitar conhecer mulheres e lidar com as dificuldades comuns da conquista. Evidentemente, minha intenção é namoro, mas, até que o namoro aconteça, é preciso dedicar-se à conquista ou ao galanteio (palavra fora de moda, bem o sei). Neste site, os participantes precisam escrever/falar sobre si mesmos e sobre a pessoa que buscam, ou seja, precisam construir um ethos (grosso modo, uma imagem de si) e uma imagem da pessoa que lhes seria, de algum modo, interessante. Antes de me decidir pelo tema deste texto, me sorriu a ideia de escrever sobre esses ethos. É interessante compreender como as pessoas constroem um ethos com vistas a serem bem-sucedidas na busca pelo parceiro/parceira ideal. Todavia, protelo o tratamento deste tema.
De certo modo, é de ethos que vou falar. Na verdade, do meu ethos. Mas, como o conceito é problemático, tendo sido, tradicionalmente, tratado na retórica em Aristóteles, interessado aos pragmatistas da argumentação, como Oswald Ducrot e retomado por analistas do discurso, como Charaudeau, o termo sofreu variações de sentido e de valor teórico. Como eu não pretenda considerar essas variações e valor, tampouco me aprofundar nas discussões em torno deles, vou optar por adotar a noção de imagem de si; mas não porque ela seja menos problemática, mas por ser de uso corrente. O rigor com que me habituei a desenvolver minhas reflexões impõe-me que eu a defina.
A noção de imagem de si se prende à ideia de representação, cuja base é simbólica, ou melhor, discursiva. Mas é preciso afastar do campo semântico de imagem ideias ligadas à inautenticidade, à falsidade, à insinceridade, que orbitam o campo ético. É claro que na construção da imagem de si questões éticas tais como a necessidade de ser autêntico, de ser sincero (falar a verdade), etc estão implicadas. Mas quero, inicialmente, evitá-las para definir o conceito. O que é uma imagem? Remetendo-nos  à palavra imaginação, “imagem” tem a acepção de representação mental de algum objeto. Sartre, por exemplo, entendia que a imagem é uma certa maneira de a consciência colocar para si um objeto. 
Quando aplicada ao domínio do ‘eu’, ou seja, quando entra a fazer parte da expressão ‘imagem de si’, a palavra significa a representação que esse ‘eu’ faz de si mesmo. A toda representação subjaz uma interpretação. O ‘eu’ que se representa ou que constrói uma representação de si (uma imagem de si) o faz na base de atributos, ideias, valores, crenças que associa a si mesmo. Evidentemente, trata-se de uma imagem que ele quer seja valorizada pelos outros. Os “Outros” desempenham um papel importante nesse processo de construção da representação de si, visto que o ‘eu’ se define, se constrói e só existe como sujeito social na relação com os outros. É mister entender que esses outros também constroem uma imagem do ‘eu’ com quem interagem, além, é claro, de construir uma imagem de si mesmos, já que cada outro é um ‘eu’ também.
Importa ver que a representação de si ou a construção da imagem de si se dá no discurso, ou na interação com os outros. Portanto – repito – o ‘eu’ constrói uma imagem de si no momento em que está na presença dos outros, por meio do uso da língua. Ao falar, ele se representa (encena). Como os outros, além de construir uma imagem de si, constroem imagens do ‘eu’ com quem interagem, é correto falar em imagens recíprocas. Vamos facilitar um pouco as coisas. Imaginemos uma situação de interação face-a-face, em que dois e apenas dois interlocutores dialogam. Ambos se entendem como sujeitos sociais, que se reconhecem como um ‘eu’ (esse ‘eu’ é já uma imagem). Mas esse ‘eu’ toma forma ou se constrói (na relação com) no momento em que diz ‘eu’, no momento, portanto, em que se apossa da palavra. Ao falar, ele encena. Na encenação (na fala), ele (o eu) irá construir uma imagem de si que pretende seja reconhecida (valorizada) favoravelmente pelo parceiro de comunicação. O parceiro, que é, até então, o outro, constrói uma imagem (uma representação) desse ‘eu’, que pode ou não coincidir ou concordar com a imagem que o eu constrói de si mesmo. Nesse processo de construção interacional de imagens, os interlocutores estão, a todo momento, operando com base em hipóteses. Ao construir uma imagem de si, o eu está também formulando hipóteses sobre a imagem que o outro tem de si mesmo e sobre a imagem que o outro está construindo sobre ele (eu), sobre a imagem que ele- o outro- faz da imagem que o eu constrói para ele, e assim por diante. Em outras palavras, quando me represento, também penso sobre o que está pensando sobre mim o meu interlocutor, sobre o que ele pensa sobre o que eu estou pensando sobre ele. E a recíproca é verdadeira.
Os interlocutores – o eu e o outro – não só constroem imagens de si e uns dos outros, mas também do tema de que tratam. Sem pretender descer a pormenores teóricos (as teorias aí são muitas e os teóricos divergem), importa reter o seguinte: há três representações básicas. A primeira é aquela que o eu tem de si mesmo ou constrói para si mesmo; a segunda é aquela que esse ‘eu’ constrói para o outro (interlocutor); e a terceira é aquela construída sobre o tema tratado. Como o “eu” e o “outro” são sujeitos sociais, claro está que carregam em si uma herança sociocultural e histórica, de sorte que essas três representações se combinam com as representações culturais, aquelas forjadas nas experiências culturais de que participam. Trata-se de representações pré-construídas que são trazidas para interação.
Em suma, a construção da imagem de si é uma co-construção de base interacional, ou seja, que se dá pelo uso da língua. As imagens recíprocas são constantemente negociadas durante as práticas discursivas de que participamos.
Quero chamar a atenção para a importância das representações pré-construídas, as de base culturais. Como sejamos seres culturais, nossa representação de si se constituirá de uma herança de valores de nossa sociedade. É claro que os valores que assumimos podem entrar em conflito com os valores mais largamente disseminados e aceitos.  E é claro também que tais valores podem perdurar no tempo e provirem de uma dimensão mais universal, considerando-se a história da humanidade. Num mundo globalizado como o de hoje, é praticamente impossível não assumirmos valores produzidos por outras culturas com que a nossa cultura está em contato. Há mútuas influências culturais constantes.
 Como usamos, com bastante frequência, a palavra “valor” para referir-se a “valores culturais”, convém ter em conta o que significam “valores culturais”. Um valor cultural se define como uma ideia comum sobre como uma coisa deve ser classificada em termos de mérito, desejabilidade ou perfeição. Os valores podem ser empregados para classificar tanto abstrações quanto objetos concretos, bem como experiência, comportamento, características pessoais, estados de ser (por exemplo, estatura alta acima de estatura baixa, sadio acima de doente, etc.). Na noção de valor, o que importa é o fato de ser usado para categorizar as coisas umas em relação às outras em termos de importância. Os valores culturais diferem das preferências pessoais, na medida em que nestas o único árbitro é o indivíduo; para aqueles, a referência é a sociedade. Por isso, se consideramos a honestidade um valor cultural, é porque se trata de uma qualidade do modo de ser culturalmente prestigiada, desejada. Mas é sempre bom lembrar que, embora os valores culturais suponham um consenso, esse consenso nunca será completo ou total. Isso dá margem ao contraste ou ao conflito entre os valores que um indivíduo assume como componentes definidores de sua subjetividade e outros valores culturais geralmente aceitos por outros membros de sua cultura.
Não pretendendo me alongar sobre este tema, volto a considerar o problema da construção da imagem de si nas experiências de galanteio ou de conquista amorosa. Quando, neste momento, penso sobre esta questão, recordo como a imagem que construo de mim mesmo me levou a conclusões equivocadas, com base nas experiências de decepção que vivenciei.
Tenho conservado e negociado uma imagem de mim mesmo cujos atributos, evidentemente, suponho atraentes às mulheres de um modo geral. É importante a suposição aí, como vimos. Tendo experimentado decepções, conclui que elas são insensíveis ou incapazes de reconhecer os valores de que se compõe esta imagem. O erro, que vale para todos nós, homens e mulheres, está aí.
A imagem que construo de mim é a de um homem que é amante da linguagem, amante da leitura e da escrita, poeta e intelectual, idealista, romântico e fiel. Por alguns anos – e esta crença foi reforçada por familiares -, acreditava que estas qualidades eram as qualidades mais unanimemente apreciáveis entre as mulheres. Acreditava que essa imagem pudesse me acarretar a ventura amorosa. O erro está nesta suposição, ou melhor, na suposição de que devemos sempre agradar os outros. O erro está em buscar construir uma imagem de amante infalível e em supor que ela nos levará ao sucesso em todas as nossas tentativas de requestar as atenções de uma pessoa.
Não é porque eu me considere um poeta, um escritor competente, um intelectual que, pelo estudo, alcançou uma formação acadêmica sólida; não é porque eu seja fiel e delicado no trato, e romântico declarado, que devo estar seguro de que sou o candidato ‘ideal’ a conquistar o coração de uma mulher. E isso vale para as mulheres em relação aos homens. Se assim fosse, os poetas não seriam, como foram muitas vezes na história, infelizes no amor; se assim fosse, os filósofos e demais intelectuais não deveriam ter fracassados nos relacionamentos amorosos. Ser delicado pode, inclusive, dar margem a que se suspeite de nossa orientação sexual (não que isso seja um problema, de modo algum). Quero, apenas, dizer que a delicadeza num homem pode ser interpretada como um sinal de homossexualidade. Aliás, certa vez, na faculdade onde estudei, uma menina perguntou a uma amiga minha se eu era gay, com base em sua interpretação do modo gentil e carinhoso com que sempre tratei as minhas amigas de classe. Isso só corrobora essa ideia. Interessante é ver que, por um lado, não é verdade que todos os homossexuais sejam ‘delicados’ (portanto, ser delicado não seria um traço que define a orientação sexual num homem); por outro lado, não menos interessante é ver como se constrói, no imaginário coletivo, a partir da palavra ‘delicadeza’, a distinção do comportamento de gêneros: em nossa sociedade, as mulheres devem ser delicadas, mas os homens não. Não raro, homens rudes são mais apreciados. Estou pensando em delicadeza como ‘fineza’, ‘gentileza’ e ‘amabilidade’, e não no sentido de comportamento estereotipado de afetação ou de pieguice (que fique claro!)
Sabemos que os poetas cantaram suas dores; os filósofos, muitos deles, fracassaram no amor; os delicados podem ser considerados gays; e os fiéis estão fora de moda. Muitas vezes, os cafajestes é que prosperam; e, enquanto os mais eloquentes podem até atrair admiração, os que sequer conseguem formar uma frase, sem recheá-la de gírias ou empobrecê-la semanticamente, conseguem manter seu celular repleto de nomes de mulheres. Muitas vezes, são aqueles para quem Drummond é o sobrenome de seu último advogado que trabalhou para garantir os benefícios do segundo divórcio que prosperaram; muitas vezes, são aqueles para quem Azevedo e Varela eram os sobrenomes dos seus últimos patrões que conquistam todas as meninas da night.
Felizmente, hoje entendo que a suposição de que a imagem que construo de mim deva, necessariamente, garantir-me ventura amorosa é um engano. Muitas vezes, a inteligência afugenta; a poesia mela; o romantismo, além de também melar, deturpa; e ser fiel coloca-nos sob alguma suspeita; e as delicadezas nos estereotipam. Mas não há razão para desespero e desalento. Lembro novamente: não temos de agradar sempre e a todos (aliás, é uma ilusão pretender agradar a todos e, ainda que isso fosse possível, não vejo como seríamos mais felizes). É importante ser autêntico, é claro. Ser autêntico é construir uma imagem de si condizente com as formas como realmente nos comportamos e somos (ou com os modos de estar em cada situação). É sair da zona das aparências. Mas, cientes de que, ainda assim, corremos o risco de não agradarmos. Lembremos que os inautênticos(as) também são amados(as) e estão com seus celulares ( e iphones) repletos de candidatas/candidatos.