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segunda-feira, 29 de abril de 2013

Toda palavra é grávida de silêncio.


                                             



                                                 Indo além do texto


Este texto é mais um testemunho de minha obstinação docente no trabalho com o ensino da leitura. A confecção deste texto assenta no pressuposto de que a eficiência do processo de produção da leitura depende muito da capacidade de o leitor atuar cognitivamente nas camadas de sentidos subjacentes à superfície textual. Ademais, nesta exposição, assumo que o texto é um evento sociocognitivo-interacional complexo para o qual convergem diversas competências e/ou estratégias que são ativadas ou mobilizadas tanto pelo produtor, por ocasião da atualização do seu projeto de dizer, quanto pelo interpretante, por ocasião da interpretação/compreensão dos enunciados então produzidos.
O leitor experiente é aquele suficientemente habilitado a ir além da superfície do texto, no processo de interpretação, que visa à compreensão dos atos de linguagem.
Como eu esteja preocupado com a questão da leitura, limito a noção de texto à modalidade escrita, muito embora ‘texto’ seja toda e qualquer entidade linguística produzida num contexto determinado e preenchendo funções sociocomunicativas determinadas. Todo texto é, assim, uma unidade de comunicação, de modo que os enunciados produzidos na fala nada mais são do que textos.
Tendo em vista o exposto, meu objetivo será mostrar como o leitor pode se tornar mais competente, ao conseguir, com base no processo de inferenciação (processo básico e indispensável a toda prática linguageira) reconhecer pressupostos e produzir subentendidos. Além disso, também será minha preocupação aqui oferecer uma proposta de leitura de alguns trechos do texto de Sponville, em Amor à solidão (2006), orientada por um método que pode ser enunciado com as seguintes formas performativas:

1) Preste atenção nas palavras;
2) Vá além das aparências.

Bem sei que, tal como os formulei, os enunciados não esclarecem muito sobre como deve proceder o leitor. Vou então desenvolver um pouco esses dois comandos metodológicos. Em 1), solicita-se que o leitor atente para certas palavras que ativam processos de inferenciação. Essas palavras podem também estabelecer relações significativas importantes para a compreensão do texto como um todo. Elas podem sugerir associações com outras palavras num mesmo campo semântico. Grosso modo, podem ser palavras que “lançam” o leitor para fora do texto, num movimento cognitivo que, tendo início no texto, envolve a ativação de saberes de ordem vária que ele tem armazenados em sua memória. Muitas palavras servem como marcadores de pressuposição, ou seja, são índices que sinalizam para conteúdos não explícitos nos enunciados, embora intrinsecamente ligados a eles. Acredito que o princípio 1) ficará claro quando da análise dos textos de Sponville.
Em 2), pede-se que o leitor não se prenda à significação produzida na superfície textual. Nesse caso, está implícita a ideia de que, ao falarmos, ao produzir um discurso, instauramos, consciente ou inconscientemente, silêncios. O silêncio é sempre fundante dos sentidos. Não há sentidos sem o silêncio. Pelas palavras vazam silêncios. O silêncio é constitutivo da linguagem, porque a linguagem é insuficiente (ela não diz tudo). Conforme ensina Orlandi, em As formas do silêncio (2007):

“Com efeito, a linguagem é passagem incessante das palavras ao silêncio e do silêncio às palavras (p. 70)”.


Há, portanto, um jogo constante entre palavras e silêncios nas atividades linguísticas. É mister dizer, no entanto, que por silêncio não devemos entender ausência de palavras. O silêncio é onde se pode significar. As palavras transpiram silêncios; o silêncio está nas palavras, e não na ausência delas. Porque a linguagem não diz tudo, ao  se dizer fica sempre algo por ser dito, domínio este do silêncio, do possível, do múltiplo. É aí que o sentido faz sentido.
Para efeito de análise, em minha proposta de leitura dos textos de Sponville, levarei em conta os conceitos de pressuposto e subentendido, que passo a definir doravante. Ambos os conteúdos são implícitos. No entanto, há diferenças entre eles, como veremos.
O pressuposto está envolvido no processo de pressuposição, que é o processo através do qual o interpretante, por meio de inferência, e levando em conta uma base de conhecimento comum (com seu interlocutor), recupera um ou mais conteúdos implícitos, mas inscritos no enunciado. O pressuposto é, portanto, uma informação implícita que, não estando presente no enunciado, é dele dependente. Todo enunciado deve ser visto, nesta perspectiva, como constituído de dois níveis de sentido: o posto, que é o conteúdo proposicional, por exemplo, em “Maria ainda não chegou”, “põe-se” ‘Maria não chegou’; e o pressuposto, que é o conteúdo não explícito, mas inscrito no enunciado – o que significa dizer que pode ser recuperado com base numa palavra que o sinaliza ou o marca (marcador de pressuposição). No enunciado em tela, é a palavra “ainda” que marca a pressuposição, ou seja, que indica o pressuposto, inferido pelo interpretante, com base no enunciado, ‘Maria vai chegar’. Em outros termos, é o “ainda” que me permite inferir ‘Maria vai chegar’ (pressuposto).
Duas observações são fundamentais sobre o pressuposto: em primeiro lugar, o pressuposto é imposto, ou seja, é um conteúdo veiculado pelo enunciado, de modo implícito, evidentemente, para ser aceito. O pressuposto é assumido como inquestionável e, nesse sentido, da sua aceitação depende a continuação do discurso. Disso não se segue que não se possa questioná-lo, mas isso acarretaria sérias consequências para a interação. Num caso extremo, quando os pressupostos não são aceitos, o discurso pode ser interrompido (não há acordo sobre a validade dos pressupostos). Por exemplo, se alguém ousasse dizer algo como “Só a Grécia antiga produziu grandes filósofos”, provavelmente atrairia a objeção do seu interlocutor ao conteúdo pressuposto segundo o qual ‘em nenhum outro lugar se produziram grandes filósofos’. Evidentemente, nesse caso, o locutor não foi bem sucedido, já que pretendeu “impor” um pressuposto frágil, facilmente refutável por quem quer que conheça um pouco sobre a história da filosofia. Claro é que esse é um exemplo extremo; há situações que gerará controvérsias. De qualquer modo, importa entender que todo conteúdo pressuposto é colocado à margem da argumentação, de tal modo não que se  encadeia sobre ele, ou seja, os enunciados subsequentes não se relacionam ao pressuposto. Vejamos um exemplo:
(1) Meu pai ainda não chegou, mas minha mãe está em casa.

Imaginemos que (1) fosse produzido numa situação em que alguém estivesse procurando o meu pai e eu supusesse que essa pessoa poderia querer falar do que se trata com uma pessoa responsável. O pressuposto “contido” em “Meu pai ainda não chegou” não é “afetado” pelo encadeamento por meio de “mas...”. Portanto, ele está à margem do desenvolvimento da argumentação. No caso, eu reconheço que frustrei, inicialmente, o desejo do interlocutor de falar com meu pai, ao comunicar-lhe que ele não está em casa, mas tento evitar sua total frustração procurando sugerir que ele dê o recado à minha mãe, de modo que ela possa transmiti-lo a meu pai.
O subentendido, por outro lado, é particularmente dependente do contexto de comunicação e também supõe uma base de conhecimentos que se supõem partilhados pelos interlocutores. Mas difere fundamentalmente dos pressupostos porquanto é de inteira responsabilidade do interpretante. Aliás, o enunciador pode, inclusive, insistir com o enunciatário que não disse o que ele achou que disse. O enunciador, assim, não assume a responsabilidade pelo que disse (de fato, ele não disse), transferindo-a ao enunciatário. É este que, por inferência, com base no contexto de comunicação e no conhecimento partilhado, produz uma interpretação não prevista ou não desejada pelo enunciador. Veja-se o caso abaixo:

(2) A -  Você conhece esta música?
      B - Não é da minha época.
      A - Está me chamando de velha?

Em (2), a parte “está me chamando de velha?” não é de responsabilidade do enunciador B. Seu enunciado não permite ou não autoriza a suposição do enunciador A. De fato, o enunciador B não disse “você é velha”; foi o enunciador A que assim o inferiu. Ele faz uma interpretação, portanto, não autorizada pelo enunciado como ato de linguagem; no entanto, a interpretação do enunciador A é justificável com base num conjunto de hipóteses que ele formula. Essas hipóteses se baseiam em conhecimentos partilhados e pressupostos na situação de comunicação. Assim, quando pergunta “você conhece esta música?”, há a suposição por parte do interlocutor de que a música é antiga; e realmente é o que ele diz: “não conheço (está implícito), porque não é da minha época”, ou seja, “porque a música é antiga”. O conhecimento partilhado de que o enunciador A é uma pessoa mais velha do que o enunciador B favorece a produção do subentendido por A.
Chamo atenção para o fato de que o fenômeno dos implícitos (como o do pressuposto e do subentendido) ilustra a concepção de linguagem ou discurso como arena de conflitos. De fato, em muitos contextos, a produção de subentendido pode acarretar desentendimentos, discórdias ou mesmo brigas entre pessoas.
Um caso interessante de subentendido é o que envolve uma asserção em que um elemento de informação reconhecido como indiscutivelmente verdadeiro não é pertinente ao contexto, de modo que o interlocutor é levado a inferir a pertinência com base na informação veiculada. Para tanto, ele leva em conta o contexto.

(3)  A – Você gosta do presidente Lula?
       B – Cara, eu gosto do Brasil.

O enunciador A, reconhecendo que a resposta não é pertinente à pergunta, é levado a subentender que o enunciador B não gosta do Lula. É possível que A rejeite a inferência de B, e busque se explicar, o que desencadearia toda uma discussão subsequente sobre se faz algum sentido gostar de um país sem se preocupar em avaliar o trabalho do presidente.
Essa breve exposição e explicação dos fenômenos da pressuposição e do subentendido sugere a sua importância no processo de leitura, porque o torna mais criador e o leitor mais eficiente. Do reconhecimento do leitor dos pressupostos depende o seu sucesso interpretativo durante a atividade de leitura, na medida em que ele consegue atuar cognitivamente nas camadas subjacentes de sentido. Não menos importante, é claro, para o aperfeiçoamento da competência de leitura ou, para ser mais preciso, da competência comunicativa dos enunciadores, é a produção de subentendidos. Mas, nesse último caso, é necessário sensibilidade do enunciador para reconhecer quando a produção do subentendido é desejável e pertinente, sob pena de lhe trazer alguns prejuízos sociocomunicativos.
Tomarei, de agora em diante, para análise os textos de Comte-Sponville, a fim de produzir uma leitura que patenteie não só a importância dos conteúdos pressupostos para o processo mesmo de leitura, como também a importância de superar práticas que prendem o leitor à superfície do texto.

Quantos fogem da solidão, ao contrário, e são capazes de um verdadeiro encontro? Quem não sabe viver consigo, como saberia viver com outrem? Quem não sabe morar com sua própria solidão, como saberia atravessar a dos outros?” (p. 30).

Destaquei as formas “quantos “ e “quem” porque elas sinalizam conteúdos pressupostos. Elas levam o leitor a inferir informações que o enunciador supõe como indiscutíveis. Assim, o uso de “quantos” sugere que há pessoas que fogem da solidão, sugere que são muitas pessoas. A pergunta, como um todo, já prevê a resposta, ou seja, a resposta está pressuposta na pergunta. O enunciador já a pressupõe quando formula a pergunta. E a pergunta visa a suscitar a adesão do leitor à argumentação desenvolvida. A resposta esperada pelo enunciador é alguma coisa como “muitas” e o enunciador, ao formular de tal modo a pergunta, coloca o leitor numa posição de consentimento. O leitor não tem saída. O modelo de mundo proposto e suposto como partilhado leva o leitor a aceitar que “há muitas pessoas que assim se comportam”.
Em seguida, o enunciador, ao formular a pergunta encetada por “quem”, sugere que qualquer pessoa que não consiga viver bem consigo mesma dificilmente conseguirá conviver com alguém. O pressuposto aí é: quem são consegue viver bem consigo não conseguirá conviver com alguém.
O raciocínio elaborado até aqui vale para a última pergunta. Chamo atenção, no entanto, para a ocorrência da palavra “atravessar”, que suscita associação com “travessia” (“fazer a travessia”). Evidentemente, não devemos interpretar “atravessar” no texto com base no Núcleo metadiscursivo (Nmd) (Charaudeau, 2010, p. 35), isto é, com o significado sedimentado, constante e dicionarizado da palavra. Lembro que o sentido ou a significação é construída no discurso. O significado literal não existe. Charaudeau nos ensina sobre como se constrói o Núcleo metadiscursivo, ou seja, o que se chama comumente de “significado literal”:

“Tudo se passa como se o signo nascesse em um primeiro contexto – mas, é possível determinar um primeiro contexto? – e recebesse um primeiro emprego que tornasse esse signo dependente das circunstâncias que presidiram seu nascimento (a expectativa discursiva). Em seguida, este primeiro emprego seria explorado através de uma atividade de abstração que manteria certos componentes do primeiro emprego para reutilizá-los em um segundo emprego que dependeria de novas circunstâncias. A partir da existência desses dois empregos e de sua possível comparação, se construiria uma primeira sedimentação semântica que constituiria um primeiro saber metacultural sobre o funcionamento dos signos: isso nos levaria à determinação de um núcleo metadiscursivo. (p. 38)”

Em resumo, o uso é que vai cristalizando o significado, tornando-o um saber partilhado culturalmente.
Voltando à palavra “atravessar”, claro é que não ativamos o significado sedimentado ‘passar através de’ do domínio cognitivo ‘espacial’. Isso nos leva a operar associações com outras palavras ou expressões pertencentes ao campo semântico de “travessia” ou que guardem com ela alguma afinidade semântica. “Atravessar” ou “travessia” sugere a ideia de ‘movimento’, ‘esforço para ir além’, ‘ultrapassar’. Na travessia, há também o imprevisto, o contato com o desconhecido. A solidão do outro é o desconhecido para mim. E atravessá-la supõe que eu esteja disposto a aceitá-la, a conhecê-la, a aprender a lidar com ela. Portanto, a conviver com ela.
A conclusão que o texto de Sponville encaminha e quer que o leitor aceite é a de que viver bem com a nossa solidão é condição necessária para que nos relacionemos bem com o outro. Considerando-se a hipótese lacaniana segundo a qual o “eu é o lugar do desconhecimento”, o esforço dispensado na busca pelo autoconhecimento é indispensável para a construção de relacionamentos bem sucedidos. A experiência do desconhecido de si é precondição para a experiência do desconhecido do outro. Assim, propõe Sponville que é necessário aceitar a minha solidão, conviver bem com ela, para que eu consiga conviver bem com a solidão do outro.
Devo dizer que, em momentos anteriores, Sponville assume que a solidão é inerente à condição humana. Dirá ele que a solidão “ é o quinhão de todos nós” (p. 30). Na vida humana, segundo ele, “a solidão é a regra”.
Consideremos, finalmente, os dois excertos abaixo:

“(...) o amor, em sua verdade, é solidão”. (p. 30)

“O amor não é o contrário da solidão; é a solidão compartilhada, habitada, iluminada – e às vezes, ensombrecida – pela solidão do outro. O amor  é solidão sempre, não que toda solidão seja amante, longe disso, mas porque todo amor é solidão. (p. 31)”

As duas palavras importantes aqui são “amor” e “solidão”. Não há oposição entre eles. O amor supõe a solidão. Ou ainda, é solidão. E não poderia ser diferente, já que cada um de nós é ser de solidão. É claro que o amor supõe a relação com o outro; o amor pede-nos que aceitemos o outro em sua solidão, ou como solidão em si mesmo. No amor, há o encontro de solidões que desejam proteção mútua.
A palavra “solidão” sugere uma associação com “deserto”, não pela sua aridez, mas por não ser geralmente habitável. Lugar de solidão, portanto. E o amor é o encontro de dois desertos. O drama do amor consiste em desejar unir dois desertos formando um só deserto de solidões.
Chamo atenção para a ocorrência das palavras “habitada”, “compartilhada”, de um lado; e “iluminada” e “ensombrecida”, de outro. Todas são adjetivos que modificam “solidão”, mas a solidão do amor, a solidão que é amor. O amor supõe o milagre do encontro, especialmente se dermos razão a Sponville ao sugerir que a sociedade se estabelece sobre “ o dinheiro, o interesse, as relações de força e poder, o egoísmo e o narcisismo” (p. 32). O amor não é suficiente para construir uma sociedade. Para Sponville, e me parece que com ele está a razão, nas grandes cidades, predominam a indiferença e os egoísmos.
O amor é quando um mora no outro, ou ainda, quando um mora na solidão do outro. É o que nos sugere a palavra “habitada”. Interessante é o contraste sugerido pelas palavras “iluminada” e “ensombrecida”. No amor, a solidão de um pode iluminar a solidão do outro, mas também pode escurecê-la ou embaçá-la, o que supõe a insuficiência do amor para permitir a travessia da solidão do outro. Não raro, o que fica para o amante em sua solidão é o sentimento de não ser devidamente compreendido como ser de solidão pelo amado. Daí a sombra que o amor pode lançar sobre a solidão dos amantes. É a natureza antitética do amor: ele ilumina e ensombra. Ele não resolve completamente a solidão dos amantes, visto que não cabe ao outro resolvê-la. Cada qual deverá confrontar-se consigo mesmo em sua solidão, o que não exclui a partilha, a travessia dos dois pela solidão um do outro. Assim como o amor, a solidão é um latifúndio inalienável. 

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

"Quando jogamos o jogo da linguagem, jogamos com pressuposições" (BAR)



                                  Em cena: a pressuposição


Sobre moluscos e homens

Piaget, antes de se dedicar aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia pesquisas sobre os moluscos dos lagos da Suiça. Os moluscos são animais fascinantes. Dotados de corpos moles, seriam petiscos deliciosos para os seres vorazes que habitam as profundezas das águas e há muito teriam desaparecido se não fossem dotados de uma inteligência extraordinária. Sua inteligência se revela no artifício que inventaram para não se tornarem comida dos gulosos: constroem conchas duras – e lindas! - que os protegem da fome dos predadores. Ignoro detalhes da biografia de Piaget e não sei o que o levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos humanos. Não sabendo, tive de imaginar. E foi imaginando que pensei que Piaget não mudou o seu foco de interesse. Continuou interessado nos moluscos. Só que passou a concentrar sua atenção num tipo específico de molusco chamado “homem”. Se é que você não sabe, digo-lhe que muito nos parecemos com eles: nós, homens, somos animais de corpo mole, indefesos, soltos numa natureza cheia de predadores. Comparados com os outros animais nossos corpos são totalmente inadequados à luta pela vida. Vejam os animais. Eles dispõem apenas do seu corpo para viver. E o seu corpo lhes basta. Seus corpos são ferramentas maravilhosas: cavam, voam, correm, orientam-se, saltam, cortam, mordem, rasgam, tecem, constroem, nadam, disfarçam-se, comem, reproduzem-se. Nós, se abandonados na natureza apenas com o nosso corpo, teríamos vida muito curta. A natureza nos pregou uma peça: deixou-nos, como herança, um corpo molengão e inadequado que, sozinho, não é capaz de resolver os problemas vitais que temos de enfrentar. Mas, como diz o ditado, “é a necessidade que faz o sapo pular”. E digo: é a necessidade que faz o homem pensar. Da nossa fraqueza surgiu a nossa força, o pensamento. Parece-me, então, que Piaget, provocado pelos moluscos, concluiu que o conhecimento é a concha que construímos a fim de sobreviver. O desenvolvimento do pensamento, mais que um simples processo lógico, desenvolve-se em resposta a desafios vitais. Sem o desafio da vida o pensamento fica a dormir... O pensamento se desenvolve como ferramenta para construirmos as conchas que a natureza não nos deu.
O corpo aprende para viver. É isso que dá sentido ao conhecimento. O que se aprende são ferramentas, possibilidades de poder. O corpo não aprende por aprender. Aprender por aprender é estupidez. Somente os idiotas aprendem coisas para as quais eles não têm uso. Somente os idiotas armazenam na sua memória ferramentas para as quais não têm uso. É o desafio vital que excita o pensamento. E nisso o pensamento se parece com o pênis. Não é por acidente que os escritos bíblicos dão ao ato sexual o nome de “conhecimento”... Sem excitação a inteligência permanece pendente, flácida, inútil, boba, impotente. Alguns há que, diante dessa inteligência flácida, rotulam o aluno de “burrinho”... Não, ele não é burrinho. Ele é inteligente. E sua inteligência se revela precisamente no ato de recusar-se a ficar excitada por algo que não é vital. Ao contrário, quando o objeto a excita, a inteligência se ergue, desejosa de penetrar no objeto que ela deseja possuir.
Os ditos “programas” escolares se baseiam no pressuposto de que os conhecimentos podem ser aprendidos numa ordem lógica predeterminada. Ou seja: ignoram que a aprendizagem só acontece em resposta aos desafios vitais que estão acontecendo no momento (insisto nessa expressão “no momento” – a vida só acontece “no momento”) da vida do estudante. Isso explicaria o fracasso das nossas escolas. Explicaria também o sofrimento dos alunos. Explicaria a sua justa recusa em aprender. Explicaria sua alegria ao saber que a professora ficou doente e vai faltar... Recordo a denúncia de Bruno Bettelheim contra a escola: “Fui forçado (!) a estudar o que os professores haviam decidido o que eu deveria aprender – e aprender à sua maneira...” Não há pedagogia ou didática que seja capaz de dar vida a um conhecimento morto. Somente os necrófilos se excitam diante de cadáveres.
Acontece, então, o esquecimento: o supostamente aprendido é esquecido. Não por memória fraca. Esquecido porque a memória é inteligente. A memória não carrega conhecimentos que não fazem sentido e não podem ser usados. Ela funciona como um escorredor de macarrão. Um escorredor de macarrão tem a função de deixar passar o inútil e guardar o útil e prazeroso. Se foi esquecido é porque não fazia sentido. Por isso acho inúteis os exames oficiais ( inclusive os vestibulares ) que se fazem para avaliar a qualidade do ensino. Eles produzem resultados mentirosos por serem realizados no momento em que a água ainda não escorreu. Eles só diriam a verdade se fossem feitos muito tempo depois, depois do esquecimento haver feito o seu trabalho. O aprendido é aquilo que fica depois que tudo foi esquecido... Vestibulares: tanto esforço, tanto sofrimento, tanto dinheiro, tanta violência à inteligência... O que sobra no escorredor de macarrão, depois de transcorridos dois meses? O que restou no seu escorredor de macarrão de tudo o que você teve de aprender? Duvido que os professores de cursinhos passem nos vestibulares. Duvido que um professor de português se saia bem em matemática, física, química e biologia... Eles também esqueceram. Duvido que os professores universitários passem nos vestibulares. Eu não passaria. Então, por que essa violência que se faz sobre os estudantes?
Ah! Piaget! Que fizeram com o seu saber? Que fizeram com a sua sabedoria? É preciso que os educadores voltem a aprender com os moluscos...

 



Nesta oportunidade, vamos estudar os mecanismos de construção da teia textual, ou seja, da estrutura do texto. Avaliarei o modo como o autor, se valendo dos recursos que a língua lhe disponibiliza, produziu seu texto a fim de satisfazer os propósitos previstos por seu projeto de dizer. Cabe, porém, veicular os seguintes pressupostos em que assenta a análise cuja realização eu me proponho:

1º pressuposto – Toda atividade linguística envolve textos que são produzidos com uma dada intenção, em dadas circunstâncias, para o atingimento de determinados objetivos;

2º pressuposto – Todo texto é produto de uma atividade social – a linguagem – e, como tal, orquestra ações linguísticas que servem à produção de um determinado efeito sobre o interlocutor;

3º pressuposto – O processamento textual deve ser pensado a partir de duas perspectivas: a do produtor e a do interpretante. Do ponto de vista do produtor, o processamento textual consiste num tipo de atividade, num só tempo, linguística e socio-cognitiva, durante a qual o produtor, valendo-se de um vasto repertório de formas de conhecimentos armazenados em sua memória, de uma série de estratégias sociocognitivas  (p.ex. a mobilização dos mecanismos de referenciação) e elaborando hipóteses sobre os conhecimentos supostamente compartilhados com o sujeito interpretante, vai construindo seu texto segundo um projeto de dizer. Do ponto de vista do interpretante, o processamento textual também é um tipo de atividade, mediante a qual quem interpreta atua cognitivamente sobre o material linguístico, também se valendo de estratégias cognitivas (ex. produzindo inferências ancoradas na relação entre informações textualmente dadas e informações pressupostas como parte dos seus conhecimentos prévios), para, assim, reconstruir a intenção do produtor e produzir um sentido, uma leitura.
4º pressuposto -  ler ou produzir um sentido são sinônimos. Ler não é decodificar sinais linguísticos organizados numa cadeia sintagmática. A leitura pressupõe a interação entre autor-texto-leitor. É uma atividade durante a qual o leitor está, a todo momento, atuando por meio de atividades de inferenciação , as quais envolvem a utilização de seu conhecimento de mundo e o estabelecimento de uma relação não-explícita entre dois segmentos textuais ou entre segmentos textuais e os conhecimentos indispensáveis à produção da leitura.

5º pressuposto – a argumentatividade é uma qualidade inerente à linguagem. Toda atividade linguística é, de algum modo, argumentativa, na medida em que visa a produzir uma reação ou efeito no interlocutor.

Baseando-me nesses cinco pressupostos, vou empreender a análise de algumas das estratégias de que se valeu o autor de Sobre moluscos e homens para produzir um sentido (o produtor também produz um sentido, já que ele elabora um projeto de sentido, através de seu texto, e espera que o leitor o reconheça e o aceite).  Essas estratégias podem ser divididas em cognitivas, textuais e sociointeracionais. Todos os tipos de estratégias estão, evidentemente, presentes quando da produção/ interpretação do texto. No entanto, não vou me preocupar aqui em pormenorizá-las. Basta-me notar que as estratégias textuais estão relacionadas à organização da informação, à formulação do próprio texto, aos mecanismos de referenciação e ao “balanceamento” entre informações explícitas e informações implícitas (Koch, 2003).
Os fenômenos discursivos que considerarei são os seguintes (na ordem de análise):
1.       pressuposição;
2.       referenciação;
3.       sequenciação textual;
4.       modalização;
5.       intertextualidade e polifonia.

Nesta oportunidade, no entanto, só me ocuparei com o fenômeno da pressuposição:

1. A pressuposição: uma atividade constitutiva do discurso

Uma maneira clara e simples de começar a abordar um tema tão complexo como este é dizer que, em toda atividade linguística, comunicamos mais do que aquilo que efetivamente dizemos. Todo texto (vale reiterar essa imagem e insistir nesta lição) assemelhasse a um iceberg, na medida em que deixa à superfície uma parte pequena de informações, matendo submersa uma grande parte informações. Portanto, todo texto encerra explícitos e uma gama diversa de implícitos.
Se tivéssemos de codificar na língua todos conteúdos de consciência ou todas as informações que pretendemos comunicar, a língua, enquanto atividade social, perderia muito em eficiência, já que produziríamos textos densos em informações desnecessárias, porque redundantes. E redundantes porque já previstas pelo conhecimento de mundo do interlocutor. Assim, em qualquer evento sociointeracional realizado pelo uso da língua, produzimos nossos textos na base de um conjunto de saberes que supomos partilhar com nossos interlocutores. Por exemplo, se digo

(1) Hoje, fui a uma churrascaria e comi muito.

Esse enunciado foi produzido na base de uma série de pressupostos sobre os saberes compartilhados entre o locutor e o interlocutor. Assim, o locutor enuncia (1) partindo da hipótese de que o seu interlocutor já sabe:

a) o que é uma churrascaria;
b) que  se trata de um lugar especializado em servir churrasco;
c) que lá há mesas e cadeiras onde nos sentamos para almoçar ou jantar;
d) que lá há garçons que nos servem;
e) que, normalmente, se come bastante nesse lugar.

Podemos imaginar quão despropositada seria a versão (1a) do referido enunciado.

(1a) Hoje, fui a uma churrascaria. Churrascaria é um restaurante onde se serve churrasco. Lá, nós nos sentamos à mesa e, não tendo acesso ao cardápio imediatamente, esperamos que um garçom o traga, para que escolhamos o que queremos comer.  Na churrascaria, geralmente se come bastante.

Esse texto faria sentido, ou melhor, teria valor funcional, caso nosso interlocutor, sendo um estrangeiro visitando o Brasil, quisesse saber o que é uma churrascaria. Sendo brasileiro nosso interlocutor, as informações que damos a respeito da churrascaria são desnecessárias, porque parte do conhecimento sociocultural que compartilhamos com ele.
Sem mais delongas, começarei a tratar do fenômeno da pressuposição, sem pretender fazer vasta incursão teórica, lançando mão da definição apresentada por Rodolfo Ilari, em Introdução à Semântica (2003). Escreve o linguista:

“Diz-se que uma informação é pressuposta quando ela se mantém mesmo que neguemos a sentença que a veicula”.
(p. 85)

Essa é uma definição operacional de pressuposição, já que nos fornece informação sobre um expediente, tradicionalmente, usado para o reconhecimento do pressuposto: a negação. Conforme ensina o autor, se nos valermos da forma de negação “não”, aplicando-a num enunciado como (2), a informação pressuposta será aquela que não se altera, a despeito do uso da negação:

(2) O carro parou de trepidar.
      O carro não parou de trepidar.

Tanto na forma afirmativa, quanto na forma negativa, o conteúdo “o carro trepidava antes” não se altera. Portanto, é ele o conteúdo pressuposto. Vale notar que esse pressuposto está ancorado numa expressão linguística na base da qual nós o produzimos – a expressão parou de.  Trata-se de um marcador de pressuposição.  Certos verbos ou locuções verbais têm a propriedade de permitir a inferência ou a ativação de conteúdos pressupostos, tais como ‘continuar’ , ‘tornar-se’, ‘ficar’, “deixar de”.
Outro expediente, comumente, empregado para o reconhecimento de conteúdos pressupostos é a interrogação. O conteúdo pressuposto se mantém sempre que aplicamos o procedimento de interrogação num enunciado. Assim, se o enunciado (2) fosse produzido com uma força ilocucionário de pergunta,

(2a) O carro parou de trepidar?

o conteúdo pressuposto ‘o carro trepidava antes’ não se altera. Escusa dizer que este ‘antes’ remete a um momento anterior ao momento da enunciação (ao aqui-agora do discurso).
Embora os dois expedientes sejam, decerto, úteis para o reconhecimento de pressupostos, seu emprego tem limitações. Não podemos nos servir deles em todos os casos, como em (3):

(3) Eu sei que você não foi à escola.

Essa frase compõe-se de dois segmentos, que chamamos de oração. O primeiro segmento, tradicionalmente, é classificado como oração principal (Eu sei); o segundo, como oração subordinada ((que) você não foi à escola). Na primeira oração (a principal), figura o verbo “saber”, que é considerado um verbo factivo, ou seja, um verbo cujo uso implica a pressuposição de que a proposição seguinte (você não foi à escola) é um fato. Portanto, com o verbo “saber”, o falante pressupõe como fato o conteúdo proposicional da oração subordinada. Nesse caso, qualquer tentativa de aplicar aqueles expedientes se demonstra inapropriada. Como a oração subordinada já encerra a partícula “não”, que modifica todo o predicado “foi à escola”, não cabe aí inserir outra forma negativa. Por outro lado, a transformação da frase para a versão interrogativa é assaz sensível ao contexto..  Pode-se, é verdade, atribuir uma força ilocucionária de pergunta a (3), a fim de buscar, retoricamente, invalidar o pressuposto do interlocutor. Assim, numa situação em que uma adolescente, que quisesse fazer com que o pai acreditasse que ela foi à escola, dissesse (3a)

(3a) Minha mãe sabe que eu fui.

a mãe da menina poderia replicar produzindo (3b)

(3b) Eu sei que você foi (à escola)?

A intenção da mãe é claramente desmentir a menina. Mas o pressuposto do enunciado (3) não se mantém.
Para fins de determinação do conteúdo pressuposto de (3), claro está que os dois expedientes se demonstram ineficazes.
Precisamos avançar um pouco mais. Ducrot (1978), consciente da diversidade de abordagens que se encontram na esteira dos estudos sobre pressuposição, procura sumariar em dois grupos as conceituações conflitantes. Segundo o linguista, o fenômeno da pressuposição foi considerado e definido numa perspectiva lógica, com base no critério da negação e das noções de verdade e falsidade da proposição; e numa perspectiva pragmática, que associa o fenômeno de pressuposição às condições de emprego. Diversos são os estudiosos que se ocuparam do tema, mas é, em Ducrot, que o fenômeno em pauta pôde ser contemplado como constituinte do próprio sentido do discurso. Com Ducrot, a pressuposição é enfocada à luz de uma teoria da argumentação. Passa a ter ela um papel específico no discurso, tornando-se um dos fatores responsáveis pela construção do sentido. O mecanismo de pressuposição é, portanto, entendido como um recurso argumentativo. Segundo Fiorin (2004: 182):

“O uso adequado dos pressupostos é muito importante, porque esse mecanismo linguístico é um recurso argumentativo, uma vez que visa a levar o leitor ou ouvinte a aceitar certas ideias. Com efeito, introduzir no discurso um dado conteúdo sob a forma de pressuposto implica tornar o interlocutor cúmplice de um dado ponto de vista, pois ele não é posto em discussão, é apresentado como algo aceito (...)”.

                                                   (grifo meu)

O referido passo se acha no artigo A linguagem em uso, integrante da coletânea Introdução à Linguística – objetos teóricos (2004). Precisarei me deter um pouco nele para tecer algumas considerações. Começarei a me situar, doravante, na perspectiva de Ducrot (1972), à luz da qual a pressuposição é considerada integrante do sentido dos enunciados.
A primeira lição importante a ser colhida deste trecho é que os conteúdos pressupostos são na verdade, colocados à margem da argumentação. Eles não são apresentados para orientar a argumentação. Os conteúdos pressupostos são apresentados para serem inquestionáveis, incontestáveis, de tal modo que a rejeição deles implica a impossibilidade de levar adiante o próprio discurso. Portanto, a continuação do discurso depende da aceitação dos pressupostos.
Tendo verificado que os testes de negação e interrogação, que são, tradicionalmente, aplicados para o reconhecimento dos conteúdos pressupostos, se demonstram inaplicáveis em muitas frases, Ducrot propõe outro critério : o critério do encadeamento. Esclarece-nos Ducrot:

“Se uma frase pressupõe X, e um enunciado desta frase é utilizado num encadeamento discursivo, por exemplo, quando se argumenta a partir dele, encadeia-se sobre aquilo que é posto, e não sobre o que é pressuposto”.

(Ducrot, 1972. apud. Koch: 2004, 65)

Assim, o autor propõe um novo conceito de pressuposto. Vai entendê-lo como informações que, embora inscritas no enunciado, não constituem base sobre a qual o enunciador faz recair o encadeamento. Assim, encadeia-se sobre o posto e não sobre o pressuposto.
Veja-se o exemplo abaixo:

(4) Luís parou de fumar, mas não foi fácil.

O enunciado (4) compõe-se de duas orações, a segunda das quais se articula à primeira por meio do articulador discursivo “mas”. É por meio do “mas” que se opera o encadeamento de um segmento com o outro.
Em “Luís parou de fumar”, há um pressuposto: “Luís fumava”. Assumir este pressuposto é condição para a própria existência de “Luís parou de fumar”, já que só posso dizer “Luís parou de fumar” se sei que ele fumava (ou seja, se disponho de um conhecimento pressuposto sobre o hábito de fumar de Luís).
Note-se que o encadeamento com “mas” não incide sobre o conteúdo pressuposto, que é colocado à margem da argumentação. Eu poderia argumentar no sentido de levar meu interlocutor à conclusão de que parar de fumar exige força de vontade. Enunciando (4), comunico que Luís parou de fumar, não sem algum obstáculo (não foi fácil, ele teve dificuldades). O argumento introduzido pelo “mas” se prende ao que é posto no segmento anterior, não afeta o conteúdo pressuposto “Luís fumava”. É a aceitação desse pressuposto que permite a continuação do discurso.
Evidentemente, alguém poderia se demonstrar surpreso com o fato de Luís ter sido fumante. Nesse caso, o pressuposto não é compartilhado com o interlocutor. Uma das condições para que haja interação entre as pessoas, através do uso da língua, é que elas estejam de acordo quanto aos pressupostos implicados por seus enunciados.
Convém, contudo, atentar para a advertência que nos faz Fiorin (2004), na obra já citada aqui:

“Quando se diz que o pressuposto não é sensível á negação, à interrogação e ao encadeamento do posto, não se está dizendo que não se possa negar o pressuposto, interrogar sobre ele ou fazer encadeamento com ele, mas apenas que, quando a negação, a interrogação atingem o posto, não alcançam necessariamente o pressuposto”.
(p. 182)
(grifo meu)


Segundo Fiorin, a introdução de um pressuposto faz com que o interlocutor aceite um dado ponto de vista, já que o pressuposto é aduzido como fora de discussão.
A língua disponibiliza uma série de recursos que marcam a pressuposição. A essas unidades chama-se marcadores de pressuposição. Entre eles estão:

adjetivos,
verbos que indicam permanência ou mudança de estado (continuar, ficar, tornar-se, ganhar, etc.),
verbos modalizadores (pretender, saber, alegar, supor, presumir, etc.),
 certos advérbios (p. ex. o advérbio “mais” em “Ele não é mais bobo”, em que “mais” implícita a ideia de que antes alguém era bobo),
 orações relativas restritivas,
certas conjunções (mas, antes que, depois que, se, etc.).

Retomemos o texto, a fim de analisar os pressupostos que nos deixa entrever.
Começo notando, de início, a ocorrência da conjunção “antes que”, que é um marcador de pressuposição.
Piaget, antes de se dedicar aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia pesquisas sobre os moluscos dos lagos da Suíça.

Como marcador de pressuposição, a conjunção “antes que” permite-nos inferir que a oração que introduz descreve um estado-de-coisas (um recorte representacional de mundo) tomado como fato.  A verdade da proposição “Piaget dedicou-se aos estudos da psicologia da aprendizagem” é pressuposta. Decerto, um pressuposto incontestável, já que sabemos que Piaget se dedicou a estudar os processos de aprendizagem nas crianças. Vale notar que o autor conta com o conhecimento prévio do leitor sobre quem foi Piaget e sobre seu interesse pelos estudos de psicologia da aprendizagem.
Vejam-se, agora, as ocorrências abaixo:

(...) não sei o que o levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos humanos.

Vejam os animais. Eles dispõem apenas do seu corpo para viver.
Somente os idiotas armazenam na sua memória ferramentas para as quais não têm uso

Se foi esquecido é porque não fazia sentido.


Vimos que verbos de valor epistêmico, de que é um exemplo o verbo “saber” no primeiro fragmento, permite pressupor a factualidade do estado-de-coisas descrito na oração completiva. Ou seja, “o que levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos humanos” é tomado como um fato. Embora o autor desconheça, ignore, houve uma razão para o abandono dos estudos sobre moluscos e o interesse pela aprendizagem dos homens.
O uso de “apenas” põe que ‘o corpo dos animais é o único instrumento para a sobrevivência de que eles dispõem’; mas permite-nos pressupor “eles dispõem do corpo”. Vejamos outro exemplo com “apenas”:

(5) Apenas eu fui premiado.

A informação explícita é “fui a única pessoa a ser premiada”. O uso de “apenas é que marca o pressuposto:

Pp.  Eu fui premiado.

O caso de “somente” é análogo ao de “apenas”. Introduzindo “somente” o autor permite-nos inferir o pressuposto segundo o qual “os idiotas armazenam ferramentas (conhecimentos) inúteis”. O conteúdo explícitamente comunicado é “um único tipo de pessoas (os idiotas) armazena conhecimentos inúteis”.
O “se” permite o pressuposto de que, naquelas circunstâncias, o esquecimento é comum, ou é um fato frequentemente constatado.
Doravante, vou tecer alguns comentários sobre como os pressupostos inferidos desses fragmentos se integram no projeto argumentativo do autor. Para tanto, transcrevo abaixo as partes maiores do texto em que se acham aqueles fragmentos.

1. Sua inteligência se revela no artifício que inventaram para não se tornarem comida dos gulosos: constroem conchas duras – e lindas! - que os protegem da fome dos predadores. Ignoro detalhes da biografia de Piaget e não sei o que o levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos humanos. Não sabendo, tive de imaginar.

2. Vejam os animais. Eles dispõem apenas do seu corpo para viver. E o seu corpo lhes basta. Seus corpos são ferramentas maravilhosas: cavam, voam, correm, orientam-se, saltam, cortam, mordem, rasgam, tecem, constroem, nadam, disfarçam-se, comem, reproduzem-se.

3. O corpo não aprende por aprender. Aprender por aprender é estupidez. Somente os idiotas aprendem coisas para as quais eles não têm uso. Somente os idiotas armazenam na sua memória ferramentas para as quais não têm uso. É o desafio vital que excita o pensamento.

4. Acontece, então, o esquecimento: o supostamente aprendido é esquecido. Não por memória fraca. Esquecido porque a memória é inteligente. A memória não carrega conhecimentos que não fazem sentido e não podem ser usados. Ela funciona como um escorredor de macarrão. Um escorredor de macarrão tem a função de deixar passar o inútil e guardar o útil e prazeroso. Se foi esquecido é porque não fazia sentido.

Em 1, o autor assume sua ignorância sobre as razões pelas quais Piaget desistiu de estudar os moluscos para ocupar-se com os estudos sobre o comportamento humano. Essa ignorância reconhecida tem pouca importância na orientação argumentativa que toma o discurso àquela altura. Assumindo-se o pressuposto de que há razões para que Piaget passasse a estudar a psicologia da aprendizagem dos seres humanos, importa, para efeito de argumentação, levar o leitor a perceber uma relação analógica entre os moluscos e os humanos. O autor lança mão de um artifício a fim de solucionar o problema de sua ignorância sobre a motivação de Piaget: o da imaginação. Daí em diante desenvolve um raciocínio calcado sobre analogia.
Em suma, basta que autor e leitores estejam de acordo no tocante ao pressuposto de que houve razões para que Piaget mudasse seu foco de interesse; o desconhecimento dessas razões, contudo, não constitui dificuldade nenhuma para a argumentação, já que o que importa é causar a adesão do leitor à analogia proposta. Se o leitor aceita as semelhanças apontadas pelo autor entre moluscos e homens, a questão das razões por que Piaget passou a se interessar pelos estudos dos humanos não têm relevância.
Em 2 e 3, as expressões “apenas” e “somente” permitem-nos inferir o pressuposto ‘eles dispõem de seu corpo’ e ‘os idiotas aprendem ou armazenam coisas (ou ferramentas) para as quais não têm uso’, respectivamente. Em 2, o autor procura criar um consenso sobre a suficiência do corpo do animal, como meio de sobrevivência. E o justifica enunciando uma série de habilidades de que os animais dispõem pelo uso do corpo (cavam, voam, correm...). Elencando as atividades que os animais desempenham com o corpo, o autor opõe seres incapazes de pensar, mas dotados de um corpo que satisfaz às suas necessidades de sobrevivência, a seres dotados da capacidade de pensar, mas com um corpo inapropriado para todos os atos de sobrevivência. Em 3, o pressuposto torna-se mais discutível, em  função do uso de “idiotas” na expressão descritiva “os idiotas”. Descreve-se um tipo humano. O uso de ‘idiota’ tem efeito pejorativo. Quem seriam os idiotas? O autor não se referiria – creio eu – a uma pessoa que manifesta retardamento mental profundo. Nesse caso, tendo a pessoa muita dificuldade para aprender, não está em questão a utilidade ou inutilidade do que ela aprenderia. Descartamos essa hipótese e ficamos com a hipótese, mais plausível, segundo a qual “idiota” significa, simplesmente, ‘indivíduo estúpido ou ao qual falta bom-senso’. Todavia, ainda não sabemos a identidade desses indivíduos. Eruditos são pessoas que exibem profundo conhecimento em uma ou em várias áreas do saber. A menos que todos os conhecimentos acumulados tenham uma utilidade imediata, seriam eles idiotas? Se rejeitamos esta hipótese (provavelmente, porque eruditos acumularam conhecimentos úteis, ao menos, para que alcançassem status em sua vida profissional), não encontro meios para identificar os idiotas a que se refere o autor.
Talvez ‘idiotas’ não tenha um referente determinável e funcione como mero rótulo que sinaliza para a impropriedade do raciocínio segundo o qual podemos armazenar conhecimentos inúteis à vida.
De qualquer forma, o que é preciso ficar clara é a capacidade de o leitor interagir com o autor e com o texto, por meio da formulação de hipóteses sobre os sentidos possíveis. O que eu fiz aqui, ao tentar descobrir o referente de ‘os idiotas’ e ao tentar questionar a possibilidade de armazenar conhecimentos inúteis foi uma atividade cognitivo-interacional que teve por base o texto. Eu interagi com o texto. Por isso, o leitor nunca é passivo, mas um sujeito ativo que produz um sentido (dentre os muitos possíveis), valendo-se, para tanto, de várias estratégias sociocognitivas. O leitor, ao ler um texto, está, a todo momento, produzindo hipóteses, fazendo inferências.
Finalmente, em 4, pressupõe-se o esquecimento (foi esquecido) do conhecimento ensinado, mas não aprendido. O aprendido é aquilo que foi retido na memória. Se a memória “deixa passar” algum conhecimento, é porque ele não foi, verdadeiramente, aprendido. Uma vez assumindo a possibilidade de esquecer aquilo que, um dia, foi ensinado (esse é o pressuposto), então podemos aceitar o argumento do autor segundo o qual a memória só retém o que foi, realmente, aprendido. Para tanto, o autor recorreu à imagem do escorregador de macarrão.
De tudo que foi exposto, pôde-se depreender a importância de recuperar, durante a atividade de leitura, os conteúdos implícitos, que são indispensáveis à produção de sentido. O uso adequado dos pressupostos é fundamental para a eficácia da atividade argumentativa. A pressuposição é um mecanismo argumentativo. Lembro as palavras de Fiorin (2004), novamente, das quais colhemos uma lição que não pode ser esquecida:

“A pressuposição aprisiona o leitor ou o ouvinte numa lógica criada pelo produtor do texto, porque, enquanto o posto é proposto como verdadeiro, o pressuposto é, de certa forma, imposto como verdadeiro. Ele é apresentado como algo evidente, indiscutível”.
(p. 182)
(grifo meu).