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sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Não, português não é difícil!


                              

                              O mito e os equívocos
                      na compreensão comum da língua

Poder falar ou escrever sobre língua/ linguagem é um assunto que me agrada bastante.Mas não tratá-lo de modo trivial, ao sabor do senso comum que, em matéria de linguagem, espera ansiosamente pelas receitas que ensinem como se deve falar e escrever “corretamente” (uso aspas porque a noção de correção idiomática é problemática e dela já tive a oportunidade de tratar em outros textos). Quero aqui apontar as razões por que as pessoas, em geral, entre as quais estão aquelas altamente escolarizadas e letradas (jornalistas, escritores, profissionais da educação, filósofos, etc.), perpetuam a crença de que português é difícil. Particularmente, estou interessado em avaliar os equívocos subjacentes a um juízo que ouvi a uma adolescente há alguns dias, que tem mais ou menos a seguinte forma:

Português é muito difícil, porque tem muitas regras.

Note-se, desde já, que a garota justifica a dificuldade que encontra no estudo do português na escola (ela está cursando o último ano do ensino médio) com a declaração “tem muitas regras”. Vejamos separadamente os dois problemas aí, a saber, o ser o português uma língua difícil e o apresentar muitas regras.
Vou-me socorrer das lúcidas palavras de Marcos Bagno, em Preconceito linguístico, como é, como se faz (2004). No trecho abaixo, o linguista põe-nos o problema, apresentando-nos sua causa:

“Como nosso ensino da língua sempre se baseou na norma gramatical de Portugal, as regras que aprendemos na escola em boa parte não correspondem à língua que realmente falamos e escrevemos no Brasil. Por isso achamos que “português é uma língua difícil”: porque temos de decorar conceitos e fixar regras que não significam nada para nós. No dia em que o português se concentrar no uso real, vivo e verdadeiro da língua portuguesa do Brasil é bem provável que ninguém mais continue a repetir essa bobagem”.
(grifo no original)
(p. 35)

É fato já há muito reconhecido pelos especialistas que há uma grande distância entre os usos da língua que são ensinados na escola e os usos que realmente dela fazem os falantes nativos no dia-a-dia. O que explica, portanto, a reprodução da crença em que o português é uma língua difícil é a forma como essa língua tem sido estudada numa longa tradição de ensino. Afinal, como poderia ser difícil o domínio de uma língua para um falante nativo dessa língua, cuja aquisição se inicia muito cedo em sua vida, entre os três e quatro anos - falante que se serve dela com bastante naturalidade e eficiência nas inúmeras situações de interação em todos os momentos de sua vida? Como poderia ser difícil a sua própria língua materna, cujo sistema de regras (a gramática, falarei dela depois) ele internalizou em tão tenra idade? Qualquer falante nativo de português, independentemente do grau de escolaridade (mesmo um analfabeto) aceitará enunciados como (1) e (2) e rejeitará (3) e (4):
(1) O cachorro é de João
(2) Este brinquedo custa caro.

(3) * O cachorro está de João
(4) *Este o brinquedo custa caro.

(O * indica agramaticalidade)

Mesmo quase nunca consciente das regras subjacentes à construção de (1) e (2), qualquer falante nativo de português não tem dificuldade em considerar tais enunciados como bem-formados gramaticalmente. Ao contrário, não hesitariam em dizer que há algum problema nos enunciados (3) e (4). Para qualquer falante nativo, tais enunciados não são bem-formados, porque infringem alguma regra prevista pela gramática do português. Em (3), em enunciados em que figura uma estrutura do tipo ‘DE-possuidor’, usamos o verbo “ser” e não “estar” (cf. A pasta é do meu pai/ o livro é da minha professora/ o chinelo é do meu irmão). Estou simplificando, para os meus propósitos aqui, a descrição da regra. Já em (4), o português não admite o uso concomitante de artigo e pronome demonstrativo, ou seja, ou usamos o artigo, ou usamos o demonstrativo, mas nunca ambos. Evidentemente, o uso de uma ou outra unidade dependerá de fatores sociocognitivos (ou mais simplesmente contextuais). Para os mais familiarizados com os estudos gramaticais (digo “descritivos”), diremos que os pronomes demonstrativos podem ocupar a posição de pré-determinante (PreD) sempre que ocorra um numeral antes do substantivo núcleo, mas não podem ocupar essa posição caso ocorra artigo ou pronome indefinido. Senão, vejamos:

(5) Estes   quatro brinquedos custam caro.

(6) * Estes alguns brinquedos custam caro.

Fique claro que regra aqui está sendo usado no sentido de ‘princípio de instrução para a combinação de unidades linguísticas’. A regra, portanto, rege o uso adequado da língua, mas num sentido diferente do que normalmente a entendemos numa visão prescritivo-normativista de ensino de língua. Que fique claro: empreguei ‘regra’ no sentido de princípio de estruturação das unidades da língua. Sabe-se, por exemplo, que os sufixos “-ção” e “-mento”, que formam substantivos deverbais, são os mais produtivos. Assim, temos

(7) especificação, realização, formação, sufixação, dominação, significação, etc.
    envolvimento, entendimento, batimento, impedimento, estacionamento, etc.

No entanto, se a palavra terminar em “-izar”, a língua rejeita a anexação de ‘-mento’, admitindo apenas o uso de “-ção” (cf. atualização, mas não “atualizamento”). Trata-se aqui de uma restrição de ordem estrutural à aplicação da regra, que prevê a anexação de ‘-ção’ e ‘-mento’ para a formação de substantivos a partir de bases verbais. Para os demais casos citados, o que impede que tenhamos “formamento” ao lado de “formação” é simplesmente o fato de que, uma vez já disponível uma forma em “-ção’ na língua, não há necessidade de uma forma correspondente em ‘-mento’, a menos que a forma em “-mento” traga alguma especialização semântica. Veja-se o caso do par “nutrimento” e “nutrição”, que derivam do verbo “nutrir”. Como “nutrição” designa a ciência que estuda os alimentos, sentiu-se a necessidade de falar em “nutrimento” para se referir tão-somente ao alimento ou sustento, por exemplo, de atletas. Isso não significa que não usamos “nutrição” no sentido de ‘ato de nutrir’, como em “A nutrição dos atletas deve ser balanceada”. O dicionário Houassis registra as duas formas – nutrição e nutrimento – embora atribua à nutrição, além do significado de ‘ciência’, os de ‘alimento’ e ‘sustento’, reservando à palavra “nutrimento”  a noção de ‘ato ou efeito de nutrir’. As duas formas compartilham os significados “alimento” e “sustento”.
Devemos, contudo, não tomar os dicionários como manuais do saber inquestionável sobre a língua. Muitos usos não são registrados no dicionário e as interpretações dos usos podem ser equivocadas. Dizemos “A nutrição dos atletas é feita por um especialista”, querendo dizer que sua alimentação é orientada por um nutricionista; podemos dizer “O nutrimento dos meus filhos sou eu quem faz”, querendo dizer o sustento deles. Em suma, para evitar a associação que nutrição tem com um campo científico (“nutrição” designa um campo da ciência que estuda os alimentos), os falantes criaram a forma “nutrimento” que exclui de seu campo semântico a noção de “ciência”, compreendendo tão-só as noções de ‘ato de nutrir’ ou ‘sustento’.
Comparem-se, finalmente, as formas “descoberta” e “descobrimento”. Trata-se de duas formas resultantes da anexação de sufixos à base “descobrir”: “descob (ert) + a “ e “descobri + mento”. No entanto, os contextos de uso são diferentes e, portanto, as significações também o são Embora o mesmo dicionário registre “descoberta” como sinônimo de “descobrimento”, falamos em “descoberta científica” e não “descobrimento científico”. Por outro lado, falamos em “descobrimento do Brasil”. Com o uso de “descoberta”, nos referirmos a algo que veio à luz após investigação (algo que se revela depois de um longo trabalho investigativo). Além de associar-se a um evento grandioso, “descobrimento” pode também designar a exposição de algo que antes estava coberto (cf. o descobrimento do corpo/ da cabeça/ das mãos/ dos pés). Disso não se segue que não se possa usar “descobrimento” no sentido que lhe damos no domínio discursivo das ciências. Pelo menos, parece possível o uso de descobrimento tendo como complemento o ‘agente”.  Veja-se o exemplo abaixo:

(8) Antes disso, o reverendo Plot tinha encontrado um osso fêmur enorme em 1676 na Inglaterra. Acreditava-se que pertencia a um gigante. R. Brookes publicou um relatório sobre o descobrimento de Plot em 1763.

Não hesitaríamos em usar “descoberta” no lugar de descobrimento, para nos referir ao achado científico do reverendo Plot. Nos exemplos abaixo, colhidos do site www.linguateca.pt., vemos as formas “descobrimento” e “descoberta” para referir-se ao conhecimento de territórios:


(9) par=ext203641-clt-94b-1: Mostrando-nos, sobremaneira, o risco daqueles que, na vida e na obra, assumiram e ainda assumem a poesia como força de descobrimento íntimo e de elucidação moral .



(10) par=ext218063-clt-93a-3: No ano em que, na Exposição Universal de Sevilha, a diplomacia do comissário Emilio Cassinelo permitiu a síntese expositiva de aspectos polémicos da história de Espanha -- descobrimento da América, desterro dos judeus e expulsão dos árabes --, a sociedade civil manifesta sintomas de um novo mal: o racismo .



(11) par=ext224942-nd-93b-3: Deus convocou o Anjo Consolador e mandou-o conversar com Cristóvão Colombo, que estava em profunda depressão desde as comemorações dos 500 anos do descobrimento da América, no ano passado .



(12) par=ext235874-clt-94a-1: Já enumerámos a descoberta das ilhas atlânticas, simples consequência do descobrimento das costas de África .

Em (9), “descobrimento” significa ‘autoconhecimento’, ‘revelação de si à própria consciência’. Em (10) e (11), a mesma forma designa o evento de descobrir (achar, encontrar) uma nova terra. Em (12), “descoberta” também é empregado nesse mesmo sentido com que usamos, normalmente,“descobrimento”.
Os parcos dados sugerem que não tem havido um esforço entre os falantes nativos de manter uma distinção semântico-pragmática rigorosa no uso das formas “descobrimento” e “descoberta”, pelo menos quando o campos experienciais ativados são o da geografia e das ciências (descobrir novas terras, o descobrimento do cientista ajuda na compreensão...).
O que vim fazendo até aqui foi mostrar como se faz descrição linguística, ou seja, como, grosso modo, trabalha um linguista. Ele trabalha com dados empiricamente demonstráveis e com formulação de hipóteses sobre como a língua funciona.
Proponho que se faça a distinção entre regras descritivas e regras prescritivas. O primeiro conjunto de regras compreende aquelas estipuladas pelo linguista quando da observação e exame do uso da língua na base de textos reais representativos de um corpus. Esse conjunto de regras constitui a gramática internalizada que todo falante nativo tem inscrita em sua mente/cérebro. Trata-se de um componente de regras que ele aciona intuitivamente para construir enunciados em sua língua materna. Cabe ao linguista produzir gramáticas (modelos teóricos) que constituem uma hipótese de como esse componente de regras funciona. Descrever a estrutura e o funcionamento de uma dada língua significa explicitar e explicar seus sistemas de regras (fonológico, morfossintático, semântico e pragmático).
As regras prescritivas são as que regulamentam o uso da variedade de prestígio de uma língua e que devem ser seguidas por todo aquele que pretende ser bem avaliado socialmente. Assim cabe distinguir entre a regra que nos instrui a usar o artigo antes do substantivo e a regra que exige que usemos a forma “dele” como complemento do verbo “gostar”, ao invés da forma “lhe” (cf. Eu gosto dele/ Eu lhe gosto). Nesse último caso, a inserção de “lhe” não viola o funcionamento do sistema gramatical, diferentemente do que sucederia, se usássemos o artigo depois do substantivo (cf. *Menino o falou alto).
A prova de que os falantes nativos de português seguem regras de modo intuitivo são as ocorrências abaixo.

Se eu _________,        você ____________.

            Canto                            dança
            Cantar                          dança
            Cantar                          dançará (vai dançar)
            Cantava                       dançava
           Cantei                            dançou
           * cante

Mas
Caso eu cante, você dança.

Sabemos intuitivamente quais as correlações verbais são normais ou aceitáveis em português, quando do uso da conjunção condicional “se”. Apenas a forma do presente do subjuntivo “cante” é incompatível com o uso de “se”. No entanto, ela combina com “caso”. Isso se torna um problema para o aprendiz estrangeiro de português. A tarefa do linguista é observar o que as pessoas usam e descrever a regularidade do uso e os sentidos produzidos nas combinações em questão. Quando usamos o presente do indicativo na oração com “se” e na oração principal (a que segue, no caso), expressamos a ideia de ‘habitualidade’, ou seja, queremos dizer “toda vez que eu danço, você dança”.
Há regras semântico-discursivas operando nesses casos. Convém investigá-las e descrevê-las. Não me estenderei nesse terreno. Limito-me a dizer que tais regras não são de natureza prescritiva, no sentido de que elas tocam ao uso largamente aceito por todos os falantes nativos da língua. 
     Todos os usos linguísticos são sensíveis às situações de interação, por isso mesmo o uso da variedade de prestígio deve atender a expectativas contextuais. Usamos a variedade de prestígio quando há exigências ou expectativas, tacitamente estabelecidas em nossa cultura, para o uso dela, num dado contexto de interação. Devemos, portanto, entender que somos mais competentes comunicativamente quanto mais capazes somos de adequar os diferentes usos da língua às diversas situações sociocomunicativas. Isso significa que é tão inapropriado fazer uso da variedade coloquial, numa situação em que se espera o uso da variedade de prestígio, (numa entrevista de emprego, por exemplo) quanto inadequado é usar a variedade de prestígio, numa situação em que ela não é esperada ou exigida (na praia com os amigos, em casa com os familiares, etc.). 
           
      
Voltando, contudo, ao problema inicial, devemos considerar que o que se ensina nas aulas de português na escola é pura e simplesmente análise estrutural da língua. Põe-se a língua como entidade a ser dissecada em suas partes constituintes para posterior classificação. Nessa atividade, cobra-se o domínio das nomenclaturas, tais como “substantivo”, “adjetivo”, “sufixo”, “objeto direto”, “sujeito simples”, “oração subordinada substantiva objetiva direta”, etc. Na escola, a língua é estudada como um objeto desvinculado do uso, como uma realidade engessada, estática, como um ‘corpo’ cujas partes devem ser analisadas, sem que lhes reconheçam as funções comunicativas a que se prestam. Daí solicitar ao aluno que encontre os substantivos da frase “Nem todos os animais vertebrados são carnívoros”. Cobra-se ainda dele que indique o tempo em que o verbo “adorar” foi conjugado em “Se nós adorássemos andar a cavalo, nós teríamos pedido para cavalgar”. É também nesse modelo de ensino que o aluno é solicitado a classificar a palavra “que” nos seus diferentes empregos, como em:

(13) Eu disse que ele era meu professor.
(14) O que é isso?
(15) O relógio que você procurava está aqui.
(16) Que beleza!

Essa forma de ensinar pelo exercício de dissecamento-taxionomia da língua inclui também um formato prescritivista-normativista. Assim é que o aluno precisa saber usar o português de acordo com as regras que prescrevem a variedade de prestígio, isso justifica o ensino dos casos de concordância (verbal e nominal), bem como os de regência. Ensina-se, por exemplo,  o aluno a usar o verbo “assistir”, no sentido de “ver”, com a preposição “a”, muito embora o uso real da língua dispense essa preposição. O que lemos e ouvimos é “Pelé assistiu o jogo do Santos ontem na Vila Belmiro”. Como bem observa Bagno, o que se ensina não é o que realmente se usa. Estudos sociolingüísticos já vêm mostrando há tempo que a regência “assistir a” está cada vez mais em desuso, mesmo na língua escrita mais monitorada, mesmo entre os falantes considerados “cultos”. Os grandes jornais da imprensa escrita estão repletos de emprego do verbo “assistir” desacompanhado da preposição “a”. Sendo um verbo transitivo direto, ou seja, cujo complemento não é regido de preposição, “assistir” aceita normalmente a voz passiva (cf. O jogo do Santos na Vila Belmiro foi assistido por Pelé).
É também esse modelo de ensino que perpetua a rejeição a formas como “trago” e “chego”, quando figuram como verbos principais em locuções como em  “tinha trago a mochila” e “tinha chego às duas horas”. Todos os falantes mais escolarizados, ao ouvirem tais formas, costumam julgá-las “erradas”, “estranhas”, “de mau gosto”. Todos eles condenam as pessoas que as utilizam. Todos perguntam “não estão erradas?”. Uma explicação científica para a ocorrência dessas formas deve incluir as seguintes observações:

1ª observação: as formas “trago” e “chego” (fonologicamente semelhantes às formas de primeira pessoa do singular do verbos “trazer” e “chegar”, daí dizermos que são homófonas), se comportam estruturalmente como particípios do verbo “trazer” e “chegar”. Os particípios são as formas nominais do verbo que terminam, sistematicamente, em “-do” e vêm acompanhados dos auxiliares “ter” e “haver” (embora possamos ter particípios na função de adjetivos junto aos verbos “ser” e “estar”, nesse caso eles se flexionam em número e gênero).

(17) Eles têm cantado juntos todos os sábados.
(18) Elas estão encantadas com a sua presença.

2ª observação: os particípios, embora regularmente apresentem a terminação –do, podem apresentar as terminações “-a” ou “-o” (raramente, “-e”), passando a se chamar “particípios irregulares”. Há particípios que apresentam as duas terminações, como, por exemplo, “acendido” e “aceso”, “imprimido” e “impresso”, “elegido” e “eleito”, “pagado” e “pago”,  “pego” e “pegado”, “gastado” e “gasto”, “ganho” e “ganhado”.


Deixando os casos do grupo “ppgg” (pagar, pegar, gastar, ganhar) de lado, por enquanto, para os demais casos a regra válida para a variedade de prestígio da língua prevê o uso das formas em “-do” junto aos auxiliares “ter” e “haver”. Assim, na variedade de prestígio, diremos “eu tenho imprimido muitas provas ultimamente”, “nós havíamos elegido esse prefeito em outra ocasião”. As formas terminadas em “a” e “o” são usadas junto aos verbos “ser” e “estar” (e “ficar”, “continuar”): “A luz está acesa”, “a luz ficou acesa”, “aqui as provas são impressas com rapidez”.
Os usos de “pagar”, “pegar”, “gastar” e “ganhar” têm dado testemunho da dinamicidade inerente a toda língua. Apesar dos esforços por fixar regras, o uso tende a flexibilizá-las. Assim é que se pode ouvir e ler tanto “Eu tinha pagado a conta” quanto “eu tinha pago a conta”, e o mesmo vale, analogamente, para os verbos “pegar”, “gastar” e “ganhar”. Ouve-se tanto “O Flamengo tinha ganho o jogo” ou “O Flamengo tinha ganhado o jogo”.
Pode-se agora entender o que sucede com os casos de “trago” e “chego”. Os falantes criaram a forma irregular do particípio dos verbos “trazer” e “chegar”. Tradicionalmente, tais verbos só exibiam a forma regular do particípio, a terminada em “-do” (trazido, chegado). Evidentemente, as formas irregulares ainda não são aceitais (olha o uso de “aceita”) pelos falantes mais escolarizados e por isso são muito estigmatizadas. E o são porque tais formas são comumente utilizadas por falantes com baixo nível de escolaridade e provindos de uma classe socioeconômica menos favorecida. O julgamento que se estabelece por meio dos rótulos “certo” e “errado” tem base essencialmente elitista. “Certo” e “errado” são resultado de valorações sociais baseadas numa ideologia forjada nas práticas de dominação de classes, segundo a qual a língua exibe em si formas e usos corretos e errados. No entanto, a desconstrução dessa ideologia consiste em fazer ver que a língua considerada “certa” é a língua das classes dirigentes, sendo considerados desvios ou erros os usos da língua feitos pelas classes populares. É preciso fazer entender aos não-especialistas que quem está no poder vai querer impor sua forma de falar a todo o resto da sociedade e vai considerar os modos de falar não recobertos pela norma estabelecida pelo poder como desvios ou erros. No final das contas, vale insistir, a problemática da noção de erro em matéria de linguagem se desloca do âmbito puramente linguístico para o domínio do social, lugar onde é forjada. Censurar um uso linguístico é censurar a própria pessoa ou comunidade que dele se serve. No Brasil, o baixo nível de escolaridade está diretamente correlacionado com o baixo nível socioeconômico de um indivíduo. Sendo privado de uma escolarização plena, não tem ele acesso à variedade linguística de prestígio e, portanto, a um instrumento de poder fundamental com que poderá lutar por maior justiça e igualdade social. Sem o domínio desse capital simbólico, está ele excluído, marginalizado social, cultural e politicamente. Essa exclusão é reforçada todas as vezes que seu modo de falar é censurado e discriminado.
Quando dizemos que toda língua se constitui de uma gramática, estamos querendo dizer que toda língua comporta um sistema de regras e unidades, por meio das quais estas podem ser combinadas em construções de extensão e nível variados. Assim, existe uma regra em português que prevê o uso do verbo na primeira pessoa do singular sempre que usamos na posição de sujeito o pronome “eu”. Todo falante nativo dirá ou escreverá “Eu amo, adoro, gosto, aceito, bebo, etc.”. Mas não dirá nunca “Eu ama, adora, gosta, aceitamos, etc.”. Trata-se de uma regra mais rígida, ou seja, que não admite escolhas. Há, contudo, regras mais flexíveis, tais como a que admite o uso ou não do artigo antes do pronome possessivo. Podemos dizer “O meu irmão” ou tão-somente “meu irmão”.
Vejamos como o componente de regras funciona no domínio da regência verbal a partir de alguns exemplos. De fato, não temos escolhas ao usar o verbo “gostar”. Temos de usá-lo com a preposição “de”, impreterivelmente. Dizemos “Eu gosto de chocolate” e não “Eu gosto chocolate” (embora a criança, nas fases iniciais de aquisição da linguagem, possa dizê-lo). Também não podemos usar outra preposição no lugar da preposição “de”: * Eu gosto a chocolate; *Eu gosto para chocolate. Em inglês, ao contrário, dispensa-se qualquer preposição quando o complemento de gostar (like) é um substantivo. Em inglês, dizemos “I like chocolate”.
O verbo “amar”, por seu turno, deve ser empregado sem qualquer preposição na relação com seu complemento. Dizemos “Eu amo você”, “Nós amamos nossos avós”. O uso da preposição “a” tem, tradicionalmente, valor estilístico. Mas é necessário dizer que tal uso não parece vigorar ordinariamente. Na fala cotidiana, não dizemos “amar a nossos pais”, mas “amar nossos pais”.
Sabemos também que verbos há que mudam de significado conforme mude a regência. É o caso de “confiar”. Regendo a preposição “em”, “confiar” tem sentido de ‘ter confiança’, ‘depositar esperança’, como em “Eu confio em você”. Mas, se usado com a preposição “a”, tem o sentido de “entregar aos cuidados de”, como em “Confio a você meus meninos”.
Uma regra bem flexível em português é a que prevê o apagamento do sujeito, quando empregado na primeira pessoa (do singular ou plural). Dizemos “Estamos aqui reunidos” ou “Nós estamos aqui reunidos”, ou ainda “ (Eu) Estou aqui reunido”.
Não posso mais, neste espaço, me demorar na discussão sobre como se comporta esse mecanismo de regras que chamamos de gramática. Gostaria de referir, antes de terminar, o trecho da professora Irandé Antunes, em Muito além da gramática – por um ensino de língua sem pedras no caminho (2007), que corrobora o princípio teoricamente incontestável segundo o qual todas as línguas do mundo se constituem de um sistema de regras:

Todos os usos da língua são submetidos à aplicação de regras. A própria natureza das línguas, que faz delas meios da inter-relação social, marcas da identidade cultural dos grupos, leva a esse cuidado, para que as línguas mantenham seu padrão e a cara que tem”.
(grifo no original)
(p. 72)

Uma última observação importante: as regras que apresentei aqui são as que seguem os usuários da língua de modo intuitivo e que são descritas e explicadas pelos linguistas. O papel do linguista é descrever e explicar os padrões de usos da lingua, é descrever e explicar seu modo de estruturação e funcionamento. O linguista NÃO DITA O QUE SE DEVE DIZER OU ESCREVER, ELE APENAS DESCREVE E EXPLICA O QUE E COMO SE DIZ. Para tanto, ele formula hipóteses e as testa na observação dos dados linguísticos, representados em um corpus.