No reino das palavra
A diversidade funcional dos processos de
formação lexical
Convido o leitor a acompanhar-me na expedição para as
fascinantes regiões delimitadas pelo estudo da morfologia lexical, onde se põe
a descoberto a criatividade e a dinâmica envolvidas nos processos de formação
das palavras. Ao longo de nosso estudo, gostaria de provocar no leitor o mesmo
fascínio ou interesse que sinto ao investigar os mecanismos gramaticais que se
põem a serviço da produção de sentidos, fenômeno este ligado a radice à existência da linguagem. Não
há linguagem sem produção de sentidos; a linguagem só existe na medida mesma em
que serve à produção de sentidos. E a própria possibilidade de produção de
sentidos depende da utilização de alguma forma de linguagem.
As experiências escolares
do leitor fornecerão insumos a sua compreensão do tema a cujo tratamento é
destinado este texto. No entanto, é possível que alguns outros tantos
conhecimentos não estejam previamente disponíveis ao leitor e que, por
conseguinte, sejam adquiridos por ocasião da leitura deste texto. Se isso
acontecer, este texto terá cumprido o objetivo último a que visa.
Será necessário iniciar
nossa expedição com a apresentação de um conjunto de conceitos preliminares que
terão não só um inegável valor operacional, ao longo do trâmite analítico, como
também contribuirão para facilitar o entendimento do texto pelo leitor.
Considerem-se, portanto, os seguintes conceitos que são indispensáveis ao
desenvolvimento de nossa investigação e que convém sejam conhecidos previamente
pelo leitor:
1) morfologia
A Gramática Tradicional
nos habitou a definir a morfologia como “estudo da forma das palavras”. A
morfologia é o domínio da gramática que se ocupa da descrição da estrutura interna
da palavra. Do ponto de vista morfológico, a palavra, ainda que seja um ponto
problemático em termos de sua definição/identificação, é vista como uma
construção resultante da combinação de elementos formativos numa ordem fixa
segundo padrões previstos no sistema gramatical da língua. No capítulo da
morfologia, está, portanto, o interesse pelos tipos de morfemas, pelas formas
como eles se combinam para permitir a formação das palavras e pelos processos
de formação de palavras. A unidade mínima da análise morfológica é o morfema.
2) morfema
O morfema é a mínima unidade sonora dotada de
significado de que se constitui a palavra. Essa é a definição clássica
de morfema. Ela nos diz três coisas a respeito do morfema: 1) é uma unidade
mínima de sons; 2) essa unidade é dotada de significado; 3) essa unidade entra
na construção da palavra. Vejamos se essa definição satisfaz o caso da palavra amoroso. Vamos reunir a esta outras
palavras análogas, morfologicamente: gostoso,
saboroso, vaidoso, horroroso. Elas apresentam um elemento em comum: a
terminação “-oso”. Vamos organizá-las numa linha vertical, destacando, em
negrito, esta terminação:
Amoroso
Gostoso
Saboroso
Vaidoso
Horroroso
O destaque em negrito da
partícula “-oso” revela que também se destacam as partes: amor, gost-, sabor, vaid-, horror. Três dessas partes constituem formas livres na língua, isto é, podem
ser usadas em enunciados da língua como palavras. Duas delas, no entanto, são
chamadas formas presas porque só
podem ocorrer combinada com outras formas. Todas as pequenas partes são
unidades sonoras mínimas, e todas elas são dotadas de algum significado.
Ignorando o fato evidente de que “amor”, “sabor” e “horror” são formas dotadas
de significado, cumpre notar que mesmo as formas “gost-” e “vaid-“ comportam, na relação sistemática com o que se lhe segue, ou seja, com o
elemento “-oso”, uma base de significado. É importante destacar que elas
significam nessa relação sistemática, já que “gost-” em si é desprovido de
significado, não é uma palavra; mas é parte de uma palavra e é nessa pertença a
uma palavra que ela conserva a base do significado da palavra como um todo. A
partícula “-oso” também tem um significado na mesma relação sistêmica com o que a precede. Enquanto falantes nativos de português, sabemos que “-oso” indica a
noção de ‘grande quantidade de’. Desse exame breve da estrutura das palavras
“amoroso”, “gostoso”,”saboroso”, “vaidoso”, “horroroso”, segue-se que as partes
que delas destacamos são seus morfemas.
Cumpre notar um aspecto
importante dos morfemas: eles são unidades recorrentes. Por exemplo, o morfema
“-oso” se encontra em muitas palavras da língua portuguesa. A frequência ou
regularidade de uso é também um aspecto importante para distinguir o morfema do
seu alomorfe (literalmente, “outra
forma”). O alomorfe é uma variante de um morfema; sua frequência em termos de
uso é menor, porque é condicionada fonologicamente. Por exemplo, o morfema
“in-” que entra na composição de formas como infeliz, ingrato, infiel apresenta o alomorfe “i-”,
cuja ocorrência é condicionada pela presença dos fonemas /r/ e /l/ em sílaba
inicial de palavra, como em irreal
e ilegal. É o contexto fonológico
que constitui um condicionante para a ocorrência do alomorfe “i-”. Isso explica
sua baixa frequência de uso, quando comparada à alta frequência de ocorrência
do morfema “in-”
Uma distinção que se
costuma fazer e que se demonstra útil para explicar os fenômenos de alomorfia e
de cumulação é a distinção entre morfema
e morfe. O morfema é uma
abstração teórica, é uma unidade abstrata, na qual estão implicadas
possibilidades combinatórias e significados. O morfe é cada uma das formas de
realização do morfema. O morfe é, portanto, uma unidade concreta, atestável no
uso. Novamente, o critério da regularidade de uso, a que se associa presença ou
ausência de algum condicionamento, se faz necessário no momento em que
precisamos decidir pelo estatuto mórfico de uma unidade mínima de sons dotada
de significado. Por exemplo, para decidir chamar de morfema o “in-”, de
“infeliz” e de morfe o “i-” de “ilegal”, é necessário levar em conta a
frequência de uso (o fato de ser a forma altamente recorrente) e a
possibilidade ou não de haver condicionamento.
Na verdade, frequência de uso e condicionamento são situações
correlacionadas: maior frequência de uso significa inexistência de algum
condicionamento para esse uso; inversamente, quanto menor a frequência
significa haver algum condicionamento para o uso. A ocorrência do morfe “i-” é
condicionada pelo contexto fonológico, como vimos. Ele só ocorrerá em palavras
cuja primeira sílaba apresenta ou o fonema /r/ ou o fonema /l/. Diremos,
portanto, que o morfema [in], uma unidade teórica, abstrata, se realiza, no uso
concreto, com o morfe “in-” ou com o morfe “i-”. Cada um desses morfes é um alomorfe
do morfema [in]. Linguistas há que, atribuindo ao morfema um valor ainda mais
abstrato, entenderão que o morfema correspondente ao conteúdo [NEGAÇÃO] e/ou
[PRIVAÇÃO] pode realizar-se com os seguintes morfes: “in-”, “i-”, “des-”,
“dis-” (discordar), “a-” (amoral, anormal). Segundo essa interpretação, o morfema deixa de ter um
registro fonêmico e passa a ser visto como um potencial de significado que se
realiza por mínimas unidades sonoras dotadas de significado em que se dividem
as palavras. Essas unidades mínimas de sons dotadas de significado que realizam
o morfema, no uso da língua, são os morfes.
Cabe, agora, perguntar,
afinal, como conseguimos identificar os morfemas constitutivos de uma palavra?
Há dois expedientes básicos: o da comutação e o da segmentação. O procedimento da comutação tem
precedência sobre o primeiro, pois ele nos permite determinar quais partes das
palavras são morfemas. Vou-me ater a esclarecer apenas este expediente. A comutação
é uma operação em cuja base está a interseção entre dois domínios através dos
quais funciona qualquer língua natural. Na terminologia saussureana, esses
domínios são: o das relações
paradigmáticas e o das relações
sintagmáticas. O primeiro corresponde ao eixo das oposições contrastivas (do tipo ‘x está em relação com y’,
pressupondo-se a linearidade do signo). Nesse eixo, se acham as relações de
combinação entre as unidades que não se excluem mutuamente. O segundo
corresponde ao eixo das oposições
distintivas (do tipo ‘ou x ou y’, que envolve possibilidades de atualização
no nível sintagmático). Nesse eixo, ocorrem as relações de seleção de unidades
passíveis de ocupar um mesmo lugar na cadeia sintagmática, razão por que essas
unidades se excluem reciprocamente. As relações sintagmáticas são sempre in praesentia; as relações
paradigmáticas são, por sua vez, sempre in
absentia. As relações sintagmáticas se situam no domínio da
horizontalidade, ao passo que as relações paradigmáticas apresentam-se no
domínio da verticalidade. Ilustremos esses dois níveis com a palavra “amoroso”:
Amor oso -------------- Nível sintagmático
-zinho
-zão
-eco
Nível paradigmático
Esse gráfico serve, em
primeiro lugar, para ilustrar o fato de que o funcionamento do sistema
gramatical da língua depende da articulação entre esses dois níveis. O nível
paradigmático compreende as formas que estão estocadas na memória do falante e
que estão disponíveis para uso. Mas o uso delas depende de escolhas operadas
pelo falante. Portanto, o domínio das relações paradigmáticas é o domínio das
escolhas operadas pelo falante com base num repertório de recursos de expressão
de que ele dispõe como parte de sua competência linguística. Cada escolha feita
é, então, atualizada no nível sintagmático, o que significa dizer que cada
escolha produz um significado determinado em consonância com as necessidades
sociocomunicativas do falante. O que é realizado no domínio sintagmático é a
manifestação de uma das muitas escolhas que ele poderia ter feito, sempre tendo
em conta certas restrições previstas pelo sistema. Por exemplo, o falante pode
escolher entre os morfemas “-eco”, “-zão” e “-zinho” para combinar uma delas
com a base “amor”, mas não pode escolher qualquer um dos morfemas “-ante”,
“-idade” e “-ente”. O sistema da língua desautoriza, por assim dizer, a escolha
de qualquer uma dessas formas pelo fato de nenhuma delas poder prender-se a um
substantivo. O morfema “-ante” serve à formação de substantivos ou adjetivos a
partir de verbos (estudar/estudante,
amar/amante, semelhar-se/semelhante, tolerar/tolerante). O morfema “-idade” deriva substantivos a partir de
adjetivos (feliz/felicidade; infeliz/ infelicidade). O morfema “-ente”, à
semelhança do que ocorre com “-ante”, deriva substantivos ou adjetivos de
verbos (combater/ combatente; resistir/resistente). O falante sempre pode
escolher e, de fato, ele usa a língua operando, a todo momento, escolhas
significativas, mas o faz segundo os padrões estruturais previstos pela
gramática da sua língua.
O gráfico também serve para
ilustrar o que é a comutação. Por comutação,
entende-se o procedimento de substituição de um elemento por outro no eixo
paradigmático, com vistas a verificar, sobretudo, o valor distintivo
(funcional, significativo) dos elementos envolvidos. A comutação é um
expediente de análise bastante útil nos estudos gramaticais. No que nos
importa, ele é útil porque permite determinar que pedaços da palavra são
morfemas. A comutação seve à identificação dos morfemas. Ora, se podemos
comutar “-re” com “-ante”, “-com” com
“-pos” em relação à base “por”,verificando que, a cada comuta, produz-se um
novo significado para o todo, então essas partículas são morfemas, ou seja, são
mínimas unidades sonoras dotadas de significado que compõem a palavra.
re-por
ante-por
com-por
pos-por
Reitere-se, pois, que os morfemas são os elementos formativos em
que se dividem as palavras e que se depreendem por ocasião da análise
morfológica, cujo objetivo não se limita à segmentação das palavras e à
identificação dos morfemas, mas também à descrição das regras ou padrões de
estruturação dos morfemas. Um exemplo é suficiente para ilustrar esse último
objetivo da análise morfológica. O morfema “-ção” que está na origem das
nominalizações (das quais falarei mais adiante) é bastante produtivo com as
formas verbais em “-izar”. Para cada forma verbal em “-izar” é possível prever
uma forma nominalizada terminada em “-ção”. Por exemplo, atualização, sistematização, integralização, confraternização, etc.
O morfema “-mento” também atua nas nominalizações. Temos “casamento”,
“armamento”, “sofrimento”, etc. Mas esse morfema não se combina com formas
verbais terminadas em “-izar”. Não temos algo como “confraternizamento”. Há,
portanto, uma restrição formal operando aqui, e a descrição morfológica precisa
dar conta disso, estipulando a existência de uma regra que diz algo como:
verbos em “-izar” admitem a nominalização com “-ção” mas nunca com
“-mento”. Segundo Basílio (2004), as
formas nominalizadas em “-ção” respondem a 60% dos casos. As formas
nominalizadas em “-mento”, quando comparadas às anteriores, atingem apenas 20%
dos casos das formações regulares. Mas esses dois morfemas são mais produtivos
do que outros que integram o mesmo grupo, especialmente porque eles são
semanticamente não marcados. Um morfema como “-da”, de “arrancada”, limita suas
possibilidades de combinação com diferentes bases, porque comporta
especificações semânticas. No entanto, de passagem, noto que as formas X-da são produtivas quando integram
expressões com os chamados verbos-suporte, na variedade coloquial da língua
falada. Vejam-se as perífrases abaixo:
(1) dar uma saída/
uma lavada/ uma olhada/ uma passada.
A baixa produtividade das
formas X-da se deve ao fato de elas
serem, via de regra, nominalizações de verbos de movimento, conforme vemos em
(2):
(2) entrada, saída, chegada, partida, vinda, ida, etc.
É essa especificação que
explica sua baixa produtividade. É preciso esclarecer que uso o termo produtividade
relativamente aos morfemas aqui contemplados para designar a possibilidade
ilimitada de haver novas formações lexicais governadas por regras de formação.
Regras produtivas definem as formações lexicais possíveis. Essa definição de
produtividade é um ponto bastante problemático em termos teóricos, mas
suficiente para iluminar o significado que ela assume na explicação dos
fenômenos anteriores.
3) derivação
Por derivação entende-se o processo de formação de palavras que se
realiza por meio da afixação de morfemas à base de uma palavra. O que estou
entendendo por “base” será definido mais adiante. Basta-nos ver a derivação
como um fenômeno linguístico que envolve o acréscimo de morfemas dotados de significado lexical à base de uma
palavra para a criação de novas palavras. Há dois tipos de derivação, segundo o
tipo de afixo que se junta à base:
a) derivação prefixal: é o
processo de formação de novas palavras pelo acréscimo de um prefixo a uma base
lexical.
Prefixos, por sua vez, são morfemas derivacionais que se ajuntam à esquerda da
base, como o “des-” de “desleal”.
b) derivação sufixal: é o processo de formação de novas palavras pelo
acréscimo de um sufixo a uma base lexical.
Sufixos, por sua vez, são morfemas derivacionais que se ajuntam à direita da
base, como o “-ção” de “exoneração”.
A base designa a raiz ou o radical. Todavia, na gramática normativa,
o radical é o morfema que resta depois que se separam, pela análise, os demais
morfemas, incluindo a vogal temática, cuja definição não nos interessará. Por
exemplo, em “criar”, o radical é “cri”, que resta depois que identificamos a
vogal temática “-a” e a desinência de infinitivo “-r”. Todavia, quando
consideramos a forma nominalizada “criação”, e dizemos que ela foi produzida a
partir de uma base verbal, queremos dizer que a base é “criar”, e não “cria”,
forma que sobra depois que dela destacamos o sufixo “-ção”. Portanto, a base
nem sempre se identificará com o radical. O conceito de base é mais abrangente,
porque recobre o de palavra e coincide, morficamente, com a palavra a partir da
qual se produziu uma nova forma. Assim, a base de “contextualizar” é
“contextual”; a base de “contextual” é “contexto”. A análise pode parar por
aqui, mas, se quisermos ainda identificar a vogal temática, que é “-o”, em
“contexto”, então diremos que o radical é “context-”. Há casos em que base e
radical coincidem, nas formas atemáticas, como “lealdade”. Uma vez retirado o
sufixo “-dade”, resta “leal”, que é a base ou o radical. Tanto a base quanto o
radical –e a primeira de modo evidente – comporta o significado básico da
palavra. Assim, a forma “desleal” significa ‘que não tem lealdade’. A noção da
negação da lealdade fica a cargo do prefixo “des-”; o significado ‘probidade’,
‘retidão’ está, por assim dizer, localizado na base “leal”.
Afixos são, portanto, morfemas que se anexam à base, quer para modificar o
sentido da palavra derivada, quer para acrescentar-lhe um significado que a
base não comportava, quer ainda para alterar sua classe gramatical. São afixos,
portanto, os prefixos e os sufixos. Os afixos se dizem formas presas, já que só podem ocorrer
articulados com uma forma da qual dependem. São prefixos os morfemas destacados
em: desigual, infeliz. São sufixos os morfemas destacados em: igualdade, dentuço.
4) Léxico
Léxico é nosso último conceito da série de conceitos preliminares
indispensáveis tanto ao exame dos processos de formação de palavras quanto à
compreensão pelo leitor por ocasião do desenvolvimento desse exame.
Tradicionalmente, o
léxico é visto como uma espécie de depósito de elementos, de recursos de
designação, o qual disponibiliza as unidades básicas que entram a fazer parte
da construção das frases. O léxico serve à categorização das coisas que se
tornam objetos de referência de nossos discursos.
No entanto, o léxico é
dotado de uma dinamicidade que a visão que se tem dele como uma espécie de
depósito de palavras mascara. Ora, ignora-se, assim, que estamos sempre
reproduzindo, reconstruindo novas entidades, novos objetos, novas relações, de
modo que é indispensável dispor de um sistema dinâmico que permita a expansão
do repertório de unidades de designação à medida que surgem novas necessidades
comunicativas. Portanto, o léxico não é apenas um conjunto de palavras; é,
fundamentalmente, um sistema dinâmico que encerra processos que estão a serviço
de nossas necessidades de comunicação. O léxico disponibiliza processos de
formação de palavras, que permitem não só a produção de novas unidades lexicais,
como também a aquisição de palavras novas por cada usuário da língua.
Cada usuário da língua
possui um léxico mental, que é seu
léxico interno, que se constitui não só de palavras que ele, falante, conhece,
mas também do saber operar com os padrões gerais de estruturação, em virtude
dos quais ele interpreta e produz novas formas. Portanto, o léxico mental
inclui uma lista de formas já feitas e um conjunto de padrões, de processos de
formação de palavras, que determinam estruturas e funções tanto das formas já
existentes, disponíveis, pois, no léxico mental, quanto das formas atualizáveis
para efeito de uso (formas possíveis).
2.
Afinal, por que formamos palavras?
A pergunta por que formamos palavras?
demandará minha atenção, doravante. Ela norteará todo o desenvolvimento do
exame da diversidade funcional dos processos de formação de palavras que terá
seu início com a apresentação das razões pelas quais formamos palavras.
Subjacente a um conjunto de razões, de motivações que se prendem às necessidades
pragmáticas, isto é, atinentes ao uso da língua, há uma razão básica para que
formemos palavras; essa razão, que caracterizo de cognitivo-pragmática, será
apresentada ao termo desta seção.
A primeira razão por que
formamos palavras liga-se à necessidade que temos de aproveitar o significado
de uma palavra já existente num ambiente sintático que exige uma forma que
pertence a uma classe gramatical diferente da classe da palavra primitiva.
Assim, temos uma palavra da classe substantivo,
seja fábrica, e precisamos usá-la
como verbo num ambiente sintático como (3):
(3) Eles ____ sapatos.
Suj. compl.
A mudança de classe é,
sem dúvida, uma forma muito comum que explica a razão por que formamos
palavras. Sucede, contudo, que há muitos processos de formação de palavras que
não mudam a classe das palavras. Veja-se, por exemplo, o caso dos diminutivos.
De “sapato” derivamos “sapatinho”, pelo acréscimo do sufixo “-inho” à base
“sapato”, sem que desse procedimento resulte mudança de classe gramatical.
Também as formações em “-eiro”, tais como “livreiro”, “chaveiro”, “sapateiro”,
“pedreiro”, que derivam, respectivamente, de “livro”, “chave”, “sapato” e
“pedra”, continuam sendo substantivos. Nesses casos, formamos palavras pela
necessidade de acrescentar um conteúdo semântico à forma primitiva.
Há, portanto, até o
momento, dois motivos pelos quais formamos palavras: 1) a necessidade de utilizar o significado de uma palavra em uma outra que
passará a pertencer a outra classe gramatical; e 2) a necessidade de acrescentar um conteúdo semântico à significação
básica da forma primitiva (sem modificação de classe gramatical). Essas
duas razões não dão conta, no entanto, de outras duas questões importantes que
se desdobram da questão inicial com que começamos esta seção:
1) Por que não dispomos
de uma palavra para uso em cada classe gramatical?
2) Por que não temos já
disponível uma palavra que comporte o conteúdo semântico já acrescido?
É importante compreender
o alcance dessas duas questões. O que queremos saber é por que a língua não
disponibiliza palavras inteiramente diferentes para cada uma das situações
mencionadas. É verdade que dispomos de pares como querer/ vontade; belo/bonito;
escrever/ apagar; sujar/ limpar, etc. Mas esses exemplos não
recobrem toda a imensidade de casos em que simplesmente não temos palavras já
prontas para uso em cada classe gramatical, nem palavras que já comportem o
conteúdo semântico que pretendemos atualizar. Em contrapartida, a língua dispõe
de pares como gosto/gostoso;
sabor/saboroso; fazer/desfazer, etc, em que verificamos o aproveitamento de
material lexical já disponível com mudança de classe ou não do produto do
processo. Assim, formamos “desfazer” a partir da base “fazer”, pelo acréscimo
do prefixo “des-”. Não houve mudança de classe gramatical. Por outro lado,
formamos “saboroso” a partir de “sabor”, pelo acréscimo do sufixo “-oso” à base
“sabor”. Houve mudança de classe gramatical. Notemos que os sufixos, ao
contrário dos prefixos, via de regra, são responsáveis por conferir à palavra
derivada outra classe gramatical. A anexação do sufixo “-oso” ao substantivo
“sabor” acarreta a produção de “saboroso”, que é um adjetivo. O sufixo “-oso”
é, portanto, utilizado na formação de adjetivos a partir de substantivos.
É preciso ponderar que,
se para cada necessidade de uso, tivéssemos uma palavra inteiramente diferente,
multiplicar-se-ia demasiadamente o número de palavras em nosso léxico mental, o
que tornaria a língua, enquanto sistema de comunicação, muito menos eficiente.
A razão básica, portanto,
por que formamos palavras consiste em evitar a sobrecarga de nossa memória, já
que seria muito custoso para nós o processamento e a estocagem de palavras
diferentes que atendessem às nossas praticamente infinitas necessidades
comunicativas, em diferentes contextos de uso da língua. Há, portanto, um ganho
cognitivo significativo quando podemos ampliar o repertório de recursos de
comunicação (palavras) com base no material já disponível no léxico. Esse ganho
é ainda mais evidente quando consideramos que o número de afixos de que
dispomos para formar novas palavras é limitado, a ponto de eles poderem ser
listados, ao contrário do número de palavras que podemos produzir, cuja
quantidade é demasiadamente superior para ser registrada em listas.
Não se pode perder de
vista, então, o fato de que a razão fundamental por que formamos palavras é a
mesma por que produzimos frases: o
mecanismo gramatical da língua busca atingir o máximo de eficiência, que se
expressa no máximo de flexibilidade e dinamicidade com o custo mínimo na
estocagem de elementos de expressão na memória. Imaginemos como seria difícil para a nossa memória
processar e estocar formas diferentes para cada necessidade que temos de uso
das palavras nas mais diversas situações de interação.
É a flexibilidade da
língua que se preserva mediante o mecanismo de formação de palavras, em virtude
do qual podemos dispor, para efeito de uso, de um número imenso de formas de
comunicação, sem que precisemos sobrecarregar nossa memória. Embora
eu não tenha a intenção de adentrar nos detalhes sobre o ganho cognitivo que se
segue daí, chamo a atenção para o fato de que o que chamamos de cognição recobre todas as atividades
mentais associadas com o pensamento, o conhecimento, a memória e a linguagem. A
memória está, portanto, envolvida na cognição e ela não permite apenas o
armazenamento de informações/conhecimentos, mas também a recuperação desses
conhecimentos para serem utilizados em novas formas de aprendizagem. A memória
é aprendizagem que persiste através do tempo; ela é dinâmica, demanda sempre
trabalho, que envolve codificação de informações, retenção (armazenamento) e
recuperação dessas informações. Em suma, uma memória que estivesse
sobrecarregada de informações novas, que só operasse com input, num cenário hipotético,
inviabilizaria o próprio processo de construção do conhecimento.
2.1.
As funções dos processos de formação de palavras
Segundo Basílio (2003), a
formação de palavras cumpre três funções fundamentais, a saber: a função de denominação, ligada a
necessidades semânticas; a função de
adequação discursiva; e a função de adequação sintática.
Vamo-nos deter no exame de
casos que correspondem a cada uma dessas funções, às quais atende a formação de
palavras.
2.2. Casos de função semântica
Constitui exemplos de formação
de palavras em que se verifica uma função puramente semântica a maioria das
ocorrências de prefixação e de composição.
A prefixação não acarreta,
conforme dissemos, mudança de classe da palavra derivada. Processos de adição
do prefixo “re-”, que expressa ‘repetição’, como em “reler”, “refazer”,
“reescrever”; do prefixo “des-”, como em “desfazer”, “desleal”, ilustram o
acréscimo de um conteúdo semântico sem que a forma derivada tenha mudado de
classe gramatical.
A composição, por sua vez,
pode envolver ou não mudança de classe. Assim, ou o composto conserva a mesma
classe gramatical da sua base, ou o composto, como um todo, torna-se um membro
de outra classe gramatical. Formas como navio-escola,
peixe-espada e azul-celeste
ilustram casos de composição que mantêm a classe gramatical e comportam apenas
função semântica de especificação.
Por outro lado, há mudança de
classe gramatical nos compostos guarda-chuva,
guarda-costas, porta-luvas e porta-estandarte.
A mudança de classe decorre da própria função de denominação envolvida no
processo. O que se verifica aí é que a base da composição é um verbo (guardar/ portar) e o produto é um
substantivo que designa objetos ou pessoas (porta-luvas/ guarda-costas) a partir da sua função. A motivação
para a mudança de classe é, portanto, de ordem semântica.
2.3. Casos de função semântica exclusiva
2.3.1.
Formação de verbos a partir de adjetivos
As formas nacionalizar, simplificar e amolecer, por exemplo, são formadas com
base nos adjetivos nacional, simples
e mole, respectivamente. Nesse
processo, há uma base adjetiva da qual se deriva um verbo cujo significado
corresponde a uma mudança de situação, isto é, algo ou alguém passa a ter a
propriedade expressa pelo adjetivo.
Tomem-se os seguintes
exemplos abaixo:
(3) O presidente
nacionalizou as empresas.
(4) O diretor simplificou
o processo de admissão.
(5) O meu dente amoleceu
Embora haja, como se vê,
mudança de classe gramatical neste processo de formação, não parece correto
dizer que a função do processo é a mudança de classe. Senão, vejamos.
Um exame do caso torna
claro um fato: a forma derivada apresenta um significado preciso. É a
necessidade de expressar a noção de ‘mudança de estado tal que algo passa a ter
uma determinada propriedade” que o processo satisfaz. Naturalmente, a mudança
de classe decorre do fato de que essa noção é tipicamente expressa por um
verbo. A mudança de classe decorre da função semântica para cuja satisfação
serve o processo.
2.3.2. Nomes de agente
Também nos processos de
formação de nomes de agente e instrumento, dos quais entra a fazer parte o
sufixo “-dor” (ou seu alomorfe “-tor”), como em varredor, computador, administrador, consultor (no
caso, temos o alomorfe “-(t)or”), há basicamente uma função semântica
envolvida.
Tal processo serve à
necessidade de caracterizar um indivíduo (agente) ou um objeto (instrumento)
pela atividade ou função expressa pela base verbal. Na medida em que na
formação de agente/instrumento a função básica é fazer referência a indivíduos
e objetos, qualquer regra de formação de agentes/instrumentos produzirá
substantivos, visto que entidades só podem ser designadas por substantivos.
Novamente, nesse caso, a
mudança de classe é apenas uma consequência, ainda que necessária, da função
semântica a que serve o processo.
3. Casos de função sintática com
mudança de classe
Serão contemplados, nesta
seção, casos de formação de palavras que comportam a função de adequação ao
enunciado. Os primeiros casos a serem analisados são aqueles que satisfazem uma
função sintática.
A função sintática quase
nunca é a função exclusiva de um processo de formação de palavras. Por um lado,
porque as classes de palavras costumam ser definidas também, ou principalmente,
em termos semânticos. Por outro lado, quando se leva em conta o enunciado na
totalidade discursiva, as possíveis funções sintáticas acabam por ser tornar
marginais em face de uma função discursiva determinante que se impõe sob a luz
da análise.
No entanto, há, pelo
menos, um caso em que uma função exclusivamente sintática parece entrar no
horizonte da formação de palavras. Trata-se do caso de formação de advérbios em
“-mente”. Seguem-se estes dois
exemplos:
(6) a. Eu vou ser honesto com você.
b. Eu vou falar honestamente com você.
(7) a. É possível que
chova hoje.
b. Possivelmente,
vai chover hoje.
Os exemplos acima
ilustram a situação em que a inserção na frase da forma adverbial acarreta a
necessidade de ocupar a posição de predicador com um verbo, levando o adverbial
a preencher a posição de modificador do verbo, no caso (6); ou de toda a
oração, no caso (7).
Ora, no momento em que
formamos um adverbial em “-mente”, fazemo-lo por uma motivação puramente
sintática: o uso de um verbo na posição
de predicador. Esse predicador será acompanhado de uma forma adverbial na
posição de modificador. Notemos que o uso do verbo “ser” não é compatível com o
uso de adverbiais em “-mente”, já que o verbo “ser” não tem função predicativa,
e adverbiais em “-mente” modificam termos predicadores como verbos plenos e
adjetivos (cf. Maria é irresistivelmente
bonita / Ele agiu rapidamente).
Essa parece ser uma condição sintática imposta por esse tipo de advérbio.
3.1. A função sintática da nominalização
A nominalização recobre o
conjunto de processos através dos quais se formam substantivos a partir,
sobretudo, de verbos, mas também de adjetivos.
Os processos de
nominalização devem sua complexidade, em parte, ao fato de que servem a funções
múltiplas e simultâneas.
Mas é possível verificar
uma função sintática isoladamente na nominalização de verbos. Vejamos os casos
abaixo:
(8) a. A professora
finalmente corrigiu as provas.
b. A correção
das provas finalmente foi feita pela professora.
(9) a. O governo esperava
que a economia crescesse neste trimestre.
b. O governo esperava o crescimento da economia neste
trimestre.
Claro está a
correspondência morfossemântica entre a forma verbal (a) e a forma nominal (b)
nos dois exemplos. A forma nominalizada que ocorre nos exemplos (b) atende à
função de adequação sintática às estruturas nominais. Vamos esclarecer este
ponto. Se quisermos usar o conteúdo semântico da forma verbal “corrigir”, em
(8), numa forma que ocupe a posição de sujeito, deveremos formar a partir de
“corrigir” uma correlato nominal, ou seja, deveremos formar um substantivo
correspondente a partir da forma verbal “corrigir”. Poderíamos também
aproveitar o substantivo formado em outra função sintática, como a de
complemente verbal, caso em que teríamos de usar um verbo como “fazer”. Assim,
poderíamos ter: “A professora fez a correção das provas finalmente”. Não menos
importante é notar que a formação de “correção” implica conferir à frase outra
configuração sintática, de modo tal que o que era objeto direto do verbo “corrigir”
torna-se complemento nominal da forma “correção”. Tal complemento é regido da
preposição “de”. O mecanismo pode ser ilustrado da seguinte forma:
CORRIGIR Y
<__________> CORREÇÃO DE
Y.
ATUALIZAR Y
< __________> ATUALIZAÇÃO
DE Y.
4. Funções discursivas
As funções discursivas
compreendem muitos aspectos que tocam aos enunciados quando os consideramos
como partes de uma atividade discursiva. Vou destacar dois tipos de função,
nesse tocante: a função de atitude
subjetiva e a função textual.
4.1. Função de atitude subjetiva
A função de atitude
subjetiva é comum a um vasto número de processos de formação de palavras em
português, se bem que, na maioria das vezes, ela se faça acompanhar de outras
funções, sobretudo de natureza semântica.
No entanto, há um caso
típico de processo de derivação que serve exclusivamente à função de indicar a
atitude subjetiva. Trata-se do caso dos diminutivos
que comportam um conteúdo pejorativo.
A pejoratividade é um
componente semântico que serve à expressão, por excelência, da atitude
subjetiva do falante relativamente ao conteúdo do seu enunciado. O português
apresenta uma gama variada de afixos destinados à formação de pejorativos. No
entanto, esses afixos, em geral, carreiam a pejoratividade junto de outra
função ou significado qualquer.
Há um caso em que temos o
uso do diminutivo com a função exclusivamente pejorativa, todavia. Desse caso
são exemplos as ocorrências em “-inho”. Vejamos os exemplos abaixo:
(10) Que mulherzinha,
esta Joana!
(11) Ele é um jogadorzinho
de segunda divisão.
(12) Não estudo com esse professorzinho.
Em nenhum dos exemplos
acima, o sufixo “-inho” expressa diminuição de tamanho, conforme se pode ver.
Em todos os casos, a forma diminutiva comporta conteúdo pejorativo e serve para
desqualificar a pessoa a que o substantivo se refere. Nos três casos, a
pejoratividade produz um efeito de desmoralização da entidade a que se refere a
forma nominal.
Outro caso interessante
em que se faz presente a função de atitude subjetiva é o uso do diminutivo para
expressar afetividade, especialmente na linguagem coloquial falada. Um exemplo
é suficiente para atestá-lo:
(13) Filinho, a sopinha
está pronta!
As formas “filinho” e
“sopinha” marcam afetividade no discurso do locutor. Essas formas diminutivas,
carreadas de afetividade, também sinalizam outros fatos que não podem passar ao
largo de uma descrição que pretenda abarcar aspectos discursivos da formação de
palavras. Um dos aspectos diz respeito ao contexto de familiaridade que essas
formações sugerem. Ou seja, são tipicamente usadas em contextos em que os
interlocutores mantêm entre si uma relação de alta proximidade ou
familiaridade. Elas também estão associadas às estratégias de preservação da
face. O uso do diminutivo afetivo neutraliza atos de fala potencialmente
ameaçadores da face, como os de convite ou interpelação. Finalmente, outro
aspecto interessante, que deve ser considerado, de um ponto de vista
sociolínguístico, é que as formas de diminutivo afetivo caracterizam a fala das
mulheres. Diminutivos com carga afetiva são frequentes no discurso feminino,
conforme atestam ocorrências como “Menina, comprei um vestidinho que vai
arrasar!”, “Esse garotinho é muito fofinho”, etc.
4.2. Função textual
Também a função textual
liga-se a processos de formação de palavras que apresentam outras funções. A
nominalização é, novamente, o candidato, por excelência, para exemplificar a
manifestação da função textual.
A função textual da
nominalização é a função primária. Vimos que esse processo cumpre uma função
sintática; mas esta função está a serviço de uma função mais ampla e
fundamental: tornar possível a
progressão textual por meio de encaixamentos múltiplos que se fazem
sintaticamente.
Antes, porém, de
considerar esta função textual básica da nominalização, notemos que esse
processo atende às necessidades de estruturação do enunciado. Seu uso serve
para satisfazer certas condições estruturais que se impõem por ocasião das
próprias escolhas operadas pelo falante para a construção dos seus enunciados.
Vejamos dois exemplos:
(14) Agradecemos a sua
participação neste evento.
(15) O não-pagamento da
fatura na data prevista implicará juros.
Em (14), a forma
nominalizada “participação” preenche a condição exigida pela valência do verbo
“agradecer”. Esse verbo rejeita para a posição de complemento orações
subordinadas. Uma construção como (14a) é gramaticalmente inaceitável:
(14a) * Agradecemos que
você participou...
Em (15), o uso da forma
nominalizada, além de marcar um estilo estereotipado de advertência ao cliente,
serve para evitar a atualização de variáveis previstas na valência verbal. No
caso específico de (15), essa variável seria o sujeito cuja presença carrearia
um efeito que se aproximaria ao de intimidação. A forma nominalizada neutraliza
esse efeito, evitando a atualização da variável correspondente ao sujeito, além
de servir à produção de um efeito de sentido outro: o de marcar a
impessoalidade na tentativa de lembrar ao consumidor a necessidade de
cumprimento das exigências previstas pelo contrato, sob pena de encargos
legitimados pelo próprio contrato. Por exemplo, se (15) fosse construído com o
verbo “pagar”, poderíamos ter como resultado algo como (15a):
(15a) Se o senhor
não pagar esta fatura na data prevista, serão cobrados juros.
Ocorre que o uso da forma
verbal “pagar” produz uma condição sintática pragmaticamente indesejável: a
possibilidade de ocorrência do sujeito (cf. o senhor). Mesmo que o sujeito não
fosse lexicalizado, continuaríamos tendo como resultado um enunciado diretivo,
impositivo, que produz um efeito de intimidação. Ademais, supõe uma relação
pessoal com o cliente. É oportuno evocar o princípio básico do funcionalismo,
segundo o qual a forma dos nossos
enunciados é determinada pelas funções a que eles servem, ou seja, pelas
necessidades sociocomunicativas dos usuários da língua. Os enunciados
assumem uma determinada forma/estrutura em virtude das funções para cujo
cumprimento eles são produzidos. A função determina a forma dos enunciados
linguísticos.
As formas de
nominalização também cumprem a função de progressão textual. Elas ocorrem,
muitas vezes, em contextos de remissão anafórica. Nesses casos, usamos a forma
nominalizada para retomar todo um enunciado anteriormente expresso, como no
exemplo abaixo (16):
(16) A professora já
corrigiu as provas. A correção até que foi rápida.
(17) Todos os prédios da
região foram demolidos. A demolição foi considerada um sucesso.
As formas nominalizadas
“correção” e “demolição” retomam o que foi enunciado anteriormente.
4.3. Função de estruturação textual
O uso da forma
nominalizada com função anfórica pode muito bem ser recoberto pelos casos de
função de estruturação textual. Mas preferi ilustrar essa função com outro tipo
de atividade de construção textual.
A nominalização também
cumpre uma função propriamente textual quando, através de seu uso, o falante
torna seu texto legível e, por conseguinte, inteligível, para o que ele lança
mão de encaixamentos múltiplos. Dificilmente, seu texto seria compreensível sem
o recurso da nominalização. Senão, vejamos:
(18) A constatação
do descumprimento do acordo acarretará a cobrança de juros e a
subsequente anulação do contrato pela empresa prestadora de serviços.
Tentemos dar outro
torneio a essa frase, substituindo cada forma nominalizada, em destaque, por seu correlato derivante:
(18a) * Constatar-se que
se descumpriu o acordo acarretará cobrar juros e subsequentemente se anulará o
contrato pela empresa prestadora de serviços.
Outras possibilidades de
construção poderiam ter sido propostas, respeitando a condição de substituir as
formas nominalizadas por seus correspondentes derivantes. É certo que todas as
possibilidades levariam a um resultado gramaticalmente pouco aceitável ou
inaceitável para os falantes nativos de português. A boa formação do enunciado
depende do uso adequado das formas nominalizadas. Isso mostra a importância
dessas formas para a estruturação textual. É interessante ver que, ao usar a
forma verbal “cobrar”, o adjetivo “subsequente” teve de dar lugar ao advérbio
“subsequentemente”. Mas o uso desse advérbio acarretou a perda de material
sintático em seu entorno, pois o artigo que integrava o SN (a subsequente
anulação) teve de ser suprimido, em virtude da própria eliminação do SN.
De tudo que foi exposto até
aqui, segue-se que a tendência geral dos processos de formação de palavras é a
de cumprirem uma função semântica ou uma função mista. A nominalização é um
caso claro de processo que serve a mais de uma função.
5. Um caso de processo com mudança
de classe: a formação de verbos a partir de substantivos
Para por termo a este
texto, proponho, nesta seção, examinar um caso de processo de formação de
palavras em que está implicado mudança de classe.
O verbo é uma classe
gramatical que se define semanticamente por expressar ações, estados ou
processos no tempo. Ademais, ele é a forma, por excelência, que cumpre a função
de predicação no interior da oração. A estrutura predicativa da oração tem no
verbo seu centro irradiador. Ele é o predicador.
Do ponto de vista
morfossintático, o verbo não só ocupa a posição de predicador, como também
apresenta as flexões de tempo, modo, número, pessoa e aspecto. Pela flexão em
número e em pessoa, se realiza o fenômeno da concordância do verbo com o seu
sujeito.
Os processos de formação
de verbos atendem, portanto, à necessidade de construir predicadores que
expressem ações e processos (os processos de formação produtivos limitam-se aos
de ação e processo). Esses predicadores formados pelo processo comportarão as
características gramaticais próprias do verbo.
A função a que serve a
formação de verbos a partir de substantivos consiste em aproveitar o conteúdo
semântico expresso pelo substantivo-base para designar a ação ou o processo
expresso pelo verbo. Vejam-se os exemplos a seguir:
(19) João carimbou
o documento.
(20) Pedro encaixotou
as frutas.
(21) Elisa escovou
os cabelos.
Cumpre ver que as formas
verbais sublinhadas tomam seu conteúdo do significado dos substantivos
correspondentes “carimbo”, “caixote” e “escova”. Em (14), carimbo define a ação
de carimbar. O significado de carimbar pressupõe o de carimbo.
Duas observações finais
se impõem aqui. Em primeiro lugar, a ação designada pelas formas verbais
derivadas se define em função do instrumento envolvido na ação. Cada um dos
substantivos-base designa um instrumento ou objeto com base no qual
representamos uma ação categorizada na forma verbal correspondente. Os verbos
formados a partir de substantivos correspondem a processos verbais
fundamentalmente relacionados aos substantivos de que derivam.
Em segundo lugar, é
necessário ver também que, se o verbo “carimbar” não existisse, o ato de
carimbar teria de ser expresso, necessariamente, por outro verbo acompanhado do
complemento “carimbo”, como em (19a):
(19a) João pôs o carimbo
no documento.