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quinta-feira, 12 de março de 2015

A marcação de plural no sintagma nominal - "Olha os caderno novo que eu ganhei"

                
                                   


                          Um caso de variação linguística
                      A marcação de plural no sintagma nominal


“A começar do nível mais elementar de relações com o poder, a linguagem constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder”

(Maurizio Gnerre)


O tema deste texto recobre um fenômeno linguístico do qual se ocupa, com especial interesse, a sociolinguística. Tenciono dar a saber e discutir um caso de variação linguística a partir da análise da manifestação de concordância no interior do sintagma nominal.
Inicialmente, contudo, considerarei alguns conceitos sociolinguísticos pressupostos pela análise. Antes de apresentá-los, refiro um passo do linguista Marcos Bagno (2011), com o qual, na sua Gramática Pedagógica do Portuguêsnos adverte que a reação à mudança linguística é uma característica comum a todas as culturas humanas.


“A reação à mudança linguística é um traço universal das culturas humanas. A língua está de tal forma entranhada em cada um de nós que imaginar que ela um dia deixará de ser o que é se revela uma ideia insuportável, uma noção capaz de causar, em muitas pessoas, mesmo que inconscientemente, um medo quase semelhante ao medo de morrer. Porque a mudança da língua é, de fato, a morte da língua tal como uma geração de falantes a conhece (muito embora a língua esteja também, a todo instante, além de morrendo, renascendo) (...)”. (Bagno, 2011, p. 116)


Malgrado o exagero com que chega a comparar o medo da morte com o medo de uma suposta depravação da língua, Bagno permite-nos dizer que, se a reação à mudança linguística é um fato universal atestado em todas as sociedades, a variação e a mudança linguísticas também o são. Nenhuma língua natural permanece inalterável ao longo do tempo. Todas as línguas do mundo são perpassadas, essencialmente, pela diversidade de usos. Variação e mudança são fenômenos inerentes à realidade linguística. As línguas são dinâmicas, porque dinâmicas são as sociedades em que elas são usadas; as línguas variam e mudam, porque também variam e mudam as sociedades das quais aquelas são a base fundamental. A mesma ideia pode expressar-se na observação de que as línguas são fenômenos históricos, instituições culturais. Ora, nem a história, nem as culturas humanas permanecem inalteráveis. As línguas, portanto, não só acompanham as transformações histórico-culturais (também sociais, políticas, econômicas...), como também as expressam.
sociolinguística é uma das subáreas da Linguística e se ocupa com o uso social da língua no interior das comunidades de fala. A sociolinguística concentra sua atenção na correlação entre fatores linguísticos e fatores sociais que influenciam o uso da língua. Ela se situa no espaço interdisciplinar, na fronteira entre língua e sociedade, procurando dar conta, de modo especial, das ocorrências linguísticas concretas que comportam um caráter heterogêneo.



1. A noção de “erro” linguístico



Do ponto de vista sociolingüístico, o que, vulgarmente, se chama de “erro linguístico” baseia-se numa avaliação negativa que, não sendo de ordem linguística, é estritamente calcada sobre o valor social atribuído ao falante, considerando sua classe socioeconômica, seu grau de escolarização, seus antecedentes geográficos, sua maior ou menor participação nas esferas de poder, seu sexo, sua cor de pele e outros preconceitos culturais e socioeconômicos.
O suposto “erro” linguístico desencadeia, infelizmente, uma série de avaliações negativas sobre o falante e supõe uma cadeia de causas e consequências que, por ser de natureza ideológica, é, necessariamente, falsa: quem fala errado, pensa errado, age errado, não é estimável e confiável, etc.
Uma lição elementar da sociolinguística é que não há variação linguística sem alguma avaliação social. Numa sociedade tão fortemente hierarquizada como a sociedade brasileira, todos os valores culturais e bens simbólicos se situam também em escalas hierárquicas que se organizam segundo valorações como “bom”, “ruim”, “certo”, “errado”, “feio”, “bonito”, etc. A língua é o bem simbólico mais importante de uma sociedade, e seu uso, portanto, é submetido àquelas escalas hierárquicas de valoração.
Não menos importante é levar em consideração o fato de que, entre as formas de uso valoradas como “erradas”, há formas que se consideram mais “erradas” do que outras. A medida da gravidade desses “erros” é inversamente proporcional à escala de prestígio social: quanto menos prestigiado socialmente é o usuário da língua; quanto menor é seu nível socioeconômico, maior é a gravidade atribuída aos supostos “erros” de sua fala.
Não custa insistir em que as valorações positivas ou negativas que recaem sobre os usos linguísticos assentam em pressupostos, orientados ideologicamente, sobre a origem sócio-cultural e econômica dos falantes. Ademais, a classificação das variedades linguísticas em “certas” e “erradas” se faz com base em critérios políticos e ideológicos. Quem detém o poder dispõe das condições pelas quais pode impor (e impõe) a sua variedade linguística como aquela pela qual se deve pautar o comportamento linguístico de todos os membros da sociedade.
Como toda seleção implica exclusão, todas as demais variedades linguísticas dos grupos dominados serão tomadas como variedades “erradas”, “imperfeitas”, “inadequadas” e serão designadas com termos que carreiam grande teor de pejoratividade.
Destarte, quando os linguistas observam que não há usos linguísticos “certos” e “errados” em si, estão chamando a atenção para o fato de que “certo” e “errado” não são defeitos das formas linguísticas, mas efeitos da valoração socioideológica a que não só elas são submetidas, como também, mormente, seus usuários. Quem discrimina o modo de falar de alguém está discriminando, na realidade, a pessoa que fala e, por extensão, a classe social a que ela pertence. Por isso, o preconceito linguístico é, fundamentalmente, um preconceito social.




1.1. Heterogeneidade e unidade na língua


Todas as sociedades são constituídas por segmentos que atuam como forças em direção à mudança ou em direção à conservação do status quo. Os segmentos dominantes social, política, econômica e ideologicamente adotam a segunda direção: estão interessados na conservação do status quo. A língua, na medida em que é uma realidade social, encontra-se, permanentemente, suscetível à pressão dessas duas forças: uma que impulsiona a variação e a mudança; outra que pressiona no sentido de manter a unidade, refreando a variação. Há, portanto, uma tensão constante e interação entre essas duas forças antagônicas, donde resulta que as línguas exibem inovações, conservando, contudo, sua coesão interna.
A noção de comunidade linguística é dependente da convergência de padrões estruturais e estilísticos. Portanto, a comunidade linguística deve sua existência ao impulso que conduz à manutenção da unidade.
A variação ocorre em consonância com as propriedades sistêmicas da língua e se efetua porque é contextualizada e regular. Todas as línguas mantêm-se numa espécie de equilíbrio instável, porque, de um lado, exibem, fundamentalmente, uma pluralidade de usos, uma diversidade de formas de expressão que se realizam segundo padrões regulares; de outro lado, conservam padrões, que, por não variarem, se dizem categóricos, e que contribuem para produzir a coesão interna do sistema linguístico, sem a qual não haveria possibilidade de intercomunicação entre os falantes de comunidades de fala diferentes. Além disso, insisto em que a variação é ordenada, ela se submete a regras previstas pela gramática da língua.




1.2. Sistematicidade, legitimidade e estigmatização


Do ponto de vista da ciência linguística, todos os usos linguísticos são legítimos e se prestam à previsibilidade, em que pese às variações estilísticas.
É importante reconhecer que todos os padrões linguísticos se prestam à avaliação social, que pode ser positiva ou negativa, o que os torna indicadores do tipo de inserção social do falante. As formas que recebem maior valor social são aquelas que se fazem acompanhar de um alto grau de monitoramento e de letramento. Às formas de maior prestígio se associam maior sensibilidade, percepção e planejamento linguístico.
Não se ignore o fato de que a diversidade linguística se distribui num continuum. Assim, os falantes adquirem primeiro as variantes informais e, num processo sistemático e gradativo, vão apropriando-se de registros mais formais, que se aproximam das variedades de maior prestígio.
Todas as línguas, portanto, apresentam variantes mais prestigiadas do que outras. E entre as formas desprestigiadas, algumas são mais estigmatizadas do que outras, em virtude da classe social de seus usuários, os quais já são alvo de estigmatização em termos socioeconômicos e culturais.



1.3. Variação linguística: variantes e variáveis

A variação linguística, conforme deve ter ficado claro, é um fenômeno universal. A variação se manifesta por meio de formas linguísticas alternativas denominadas de variantes.
Variantes são, portanto, grosso modo, as diversas formas alternativas de se dizer a mesma coisa. Essas formas alternativas constituem um fenômeno variável.
Existem variáveis dependentes sempre que o uso das variantes for influenciado por variáveis, quer de natureza interna à língua, quer de natureza social (externa). Essas variáveis ou grupo de fatores que podem ser de natureza estrutural (interna à língua) ou de natureza social chamam-se variáveis independentes. Elas exercem pressão sobre os usos acarretando o aumento ou a diminuição de ocorrência das variantes.
Cumpre enfatizar que as variáveis recobrem tanto o fenômeno em variação quanto o grupo de fatores. Esses grupos de fatores são parâmetros reguladores dos fenômenos variáveis e condicionam positiva ou negativamente o uso das formas variantes.



2. A marcação de plural no sintagma nominal

2.1. O Sintagma nominal: definição e estrutura



sintagma nominal  é um constituinte oracional formado, necessariamente, de um substantivo ou palavra suscetível de ocupar a posição própria do substantivo, que é a de núcleo do sintagma nominal.  Doravante, usarei a abreviação SN para representar o sintagma nominal. Todo SN é, portanto, uma unidade significativa da oração e terá como núcleo uma palavra de natureza morfológica substantiva. O SN pode constituir-se de seu núcleo apenas, ou pode, além do núcleo, encerrar outras unidades articuladas a ele. Vejam-se dois exemplos que ilustram as duas formas de estruturação do SN: em (1), com apenas o núcleo; em (2), com elementos articulados ao núcleo.

(1) São Paulo é a maior cidade brasileira.
       SN
     núcleo


(2) Este meu anel de ouro.
            Núcleo

Em (2), toda a unidade “Este meu anel de ouro” corresponde ao sintagma nominal, cujo núcleo é “anel”. A esse núcleo, se acham articulados os elementos “este”, “meu” e “de ouro”. Em (1), a extensão do SN se reduz ao seu núcleo.

As unidades que se articulam ao núcleo do SN cumprem a função sintática de determinantes ou de modificadores. Os determinantes se dispõem à esquerda do núcleo; e os modificadores podem prender-se à esquerda (no caso dos adjetivos que admitem anteposição ao substantivo), mas, frequentemente, se articulam à direita do núcelo.
Considerem-se os exemplos abaixo (o asterisco marca a inaceitabilidade da construção e a interrogação a dúvida quanto à sua aceitabilidade):

(3) Este meu anel dourado
   * Este meu dourado anel

(4) Este excelente artigo histórico
  * Este excelente histórico artigo

(5) Os três meninos simpáticos
    Os três simpáticos meninos  (?)



Urge definir os determinantes e os predicadores. Começo por responder à questão: o que são determinantes? A função sintática dos determinantes é desempenhada por unidades que se articulam à esquerda do substantivo, quer para identificar sua referência tendo em vista a situação espaço-temporal, quer para fixar-lhe o estatuto informacional, quer ainda para delimitar seu número. O grupo dos determinantes abriga: os artigos (definidos e indefinidos), os pronomes possessivosdemonstrativosindefinidos e os numerais ordinais e cardinais. Nesse grupo, também devemos incluir o pronome relativo “cujo”, que não nos interessará na presente discussão.
A classe dos determinantes é sintático e semanticamente heterogênea. Veja-se, a título de exemplificação, o comportamento semântico-pragmático do artigo definido e do pronome demonstrativo, nos sintagmas nominais destacados, nas frases abaixo:



(6) Dois homens encapuzados roubaram uma joalheria, mas os bandidos foram presos assim que deixaram o local.

(7) Nunca mais vi aquela moça que conheci naquela festa.


Em (6), o sintagma “os bandidos” comporta uma informação já dada, ou seja, faz remissão ao segmento “dois homens encapuzados”, anteriormente expresso. O artigo definido cumpre aí a função de indicar que a informação veiculada no sintagma que introduz é já conhecida do interlocutor/leitor. Por ocasião da leitura, o leitor constrói um modelo textual, que é uma representação mental que toma forma com base no texto e que funciona como uma memória partilhada e publicamente alimentada pelo próprio texto. Assim, uma vez introduzido no modelo textual do leitor um referente (ainda não mencionado), este passa a ter o estatuto “ativo”, porque sob o foco da memória de trabalho, é o que sucede em (6). A introdução do referente “dois homens encapuzados” torna-o passível de reativação, situação que se dá com a introdução do sintagma encetado pelo artigo definido “os bandidos”. O primeiro referente introduzido passa a preencher um “nódulo” no modelo conceitual do mundo textual construído. Nesse sentido, o artigo definido, que preenche a função sintática de determinante do SN “os bandidos”, é índice de identificabilidade do referente, ou seja, ele marca o estatuto informacional do referente como “identificável” ou acessível no modelo textual. Esse estatuto é garantido pelo compartilhamento de conhecimentos entre o locutor e o seu interlocutor. Em suma, o artigo definido é usado, sistematicamente, em sintagmas nominais que fazem remissão anafórica, ou seja, que devem ser interpretados em dependência com algum segmento anteriormente expresso no texto. Esses sintagmas introduzidos por artigo definido comportam, então, informação velha ou dada (isto é, já conhecida, ou acessível a partir de um segmento precedente, ou mesmo inferível a partir dos contextos sociocognitivos partilhados).
Em (7), o demonstrativo “aquele” é um dêitico memorial ou recognitivo, visto que sua interpretação referencial pressupõe o acesso a um tipo de conhecimento experiencial e socioculturalmente compartilhado (Roncarati, 2010, p. 65). Em outras palavras, o uso do demonstrativo recognitivo pressupõe a seguinte condição: o interlocutor deve compartilhar com o locutor algum tipo de conhecimento calcado na experiência que, em última instância, é de base sociocultural. A compreensão do sintagma encetado por esse demonstrativo depende de que o interlocutor possa acessar em sua memória o saber a respeito do referente categorizado.
Necessário será identificar as posições ocupadas pelos determinantes relativamente ao núcleo do SN. Como podem ocorrer mais de três elementos à esquerda do núcleo, a posição 1 será ocupado pelo elemento mais afastado do núcleo; e a posição quatro, pelo elemento mais próximo. As posições 2 e 3 seguem a ordem numérica. Assim, temos



(8) Todos os últimos bons alunos foram aprovados no vestibular.
     P1   P2   P3    P4




A identificação das posições será importante quando da investigação do fenômeno de concordância no interior do SN. Considere-se, agora, a função de modificador.
No interior do SN, o modificador é o adjetivo ou um substantivo que preencha a função do adjetivo. A função de predicador pode também ser desempenhada por um grupo formado de preposição (em geral, “de”) e substantivo. Esse grupo é um sintagma preposicional (SP) encaixado no SN. Chamamos modificadores, portanto, as unidades que, articuladas ao núcleo de um SN, lhe acrescentam um ingrediente semântico. Semanticamente, os modificadores qualificam ou classificam o referente designado pelo substantivo que preenche a posição de núcleo do SN. Seguem-se os exemplos abaixo, nos quais se destacaram as duas formas de manifestação do modificador nominal: em (9), na forma de adjetivo; em (10), na forma de SP (sintagma preposicional).



(9) O anel dourado.

(10) O seu trabalho de história.



2.2. A marcação do plural no SN

Principalmente a partir de 1980, foram produzidos muitos estudos sobre a concordância de número no SN. Esses estudos apontam uma significativa variedade de padrões de concordância, não só em função do diversificado número de unidades que podem preencher o sintagma nominal, como também em função de fatores linguísticos e societários condicionantes.
Com vistas a examinar a questão, vou-me ater apenas às três primeiras, se bem que dispensarei especial atenção à primeira e à segunda, dentre as cinco variáveis consideradas pelos estudos. Essas cinco variáveis são as que se demonstraram mais relevantes na marcação do plural no SN. Seguem-se as variáveis:

1) alterações morfofonológicas decorrentes do mecanismo de flexão;
2) estruturação do SN;
3) características dos falantes (sexo, idade, nível de escolarização, origem urbana ou rural);
4) tipos de registro (formal ou informal);
5) modalidade da língua (falada ou escrita).



2.3. Alterações morfofonológicas e estruturação do SN


A classe de palavra e sua posição na estrutura do SN são variáveis importantes para o estabelecimento de padrões de concordância nominal. Não menos importante para a compreensão do referido fenômeno é considerar o princípio de saliência fônica, que se caracteriza pela maior ou menor identidade entre as formas singular e plural nos vocábulos.
Com base no princípio de saliência fônica, observou-se que as formas menos marcadas fonologicamente, ou seja, aquelas em que a diferença fônica entre singular e plural repousa apenas na presença do morfema de número [s], seriam mais suscetíveis de não apresentar a marca de número. Por outro lado, as formas mais marcadas para o plural tenderiam a apresentar a ocorrência da marca de plural. Considerem-se os seguintes exemplos que ilustram essa condicionante fonológica para a marcação de plural no SN:

(11) Ela levou os menino pra escola.

(12) Desenhou uns corações no caderno.




Em (11) e (12), destacou-se em negrito o núcleo do SN. Em (11), a marca de plural foi cancelada no núcleo (aparecendo apenas no determinante), em virtude de a marcação de plural no substantivo “menino” ser menos saliente, ou seja, essa marcação se faz apenas com o acréscimo da desinência de número [s]. Nesse caso, a tendência é pluralizar apenas o determinante e deixar no singular o núcleo do SN. Em (12), tanto o determinante quanto o substantivo núcleo foram pluralizados, porque, nesse caso, há maior saliência fônica na marcação de plural no substantivo, dado o fato de formas terminadas em “ão”, muita vez, sofrerem uma mudança morfofonológica maior quando flexionadas para o plural. No caso da palavra “coração”, o plural modifica a configuração fonológica da última sílaba “-ção”, que passa para “-ções”. O princípio de saliência fônica mostra que, nesse caso, quando se marca o plural, o que se ouve é outra configuração fonêmica.
Outro princípio, igualmente relevante, que tem sido levado em consideração por diversos estudos é o do paralelismo formal. Reza esse princípio que marcas acarretam marcas, e ausência de marca (marca-zero) leva à ausência de marca.
Assim, estando presente o morfema de plural [s], ele poderia condicionar a presença dessa marca nos demais elementos do SN. Analogamente, a ausência da marca num elemento do SN acarretaria a ausência da marca nos demais elementos. Senão, vejamos:

(13) TodoS  oS meuS livroS são novos.
                   Sintagma nominal

(14) Comprei oS livro didático.



O exemplo (13) ilustra a situação em que a presença da desinência [s] em todos os determinantes acarreta a sua presença no núcleo do SN “livros”. Esse é o padrão de flexão adotado pelos falantes das variedades de prestígio da língua, nas quais a marcação de plural se faz por redundância: marca-se o plural em todos os determinantes passíveis de flexão, o que leva a necessidade de pluralizar também o núcleo do SN. No exemplo (14), entretanto, ainda que a marca de plural ocorre no determinante, ela é cancelada no núcleo, o que implica seu cancelamento no modificador também. Os falantes que seguem esse padrão de concordância nominal não sentem a necessidade de operar com o princípio de redundância; eles apenas sinalizam que o SN está no plural marcando com [s] o primeiro elemento do sintagma. É importante dizer que eles não erram; apenas seguem outra regra ou padrão.
Conquanto variáveis como tonicidade do item no singularcontexto fonológico subsequente possam ser consideradas na compreensão da variabilidade dos padrões de concordância no SN, as que foram anteriormente mencionadas têm se demonstrado mais relevantes.
Voltarei a considerar aspectos estruturais do SN que se apresentam como fatores importantes na marcação de plural em seu interior. Agora, no entanto, refiro o resultado de um estudo que levou em conta variáveis sociais.





2.4. Variáveis sociais

Quando se consideram as variáveis sociais, é notável que, no Brasil, sobressaia o nível de escolaridade do falante, que é um marcador de sua classe social.
Almeida (1997) e Brandão & Almeida (1999), desenvolvendo pesquisas que coletavam registros de fala de indivíduos analfabetos com baixo nível de escolaridade (tendo no máximo a quarta série do ensino fundamental), em zonas rurais do Rio de Janeiro, constataram que chega a 87% a frequência com que se dá o cancelamento da marca de plural no núcleo do SN. Por outro lado, o cancelamento dessa marca nos determinantes e modificadores é menor: 4% naqueles; 21% nestes.
É necessário certo cuidado na interpretação desses dados, pois que uma série de condicionamentos se entrecruzam, do que resultam diferentes combinações de itens marcados/ não-marcados quanto ao número.

2.5. Revisitando aspectos estruturais

Volvendo olhares para a estruturação do SN novamente, é necessário considerar, em primeiro lugar, a complexidade da estruturação do SN, o qual pode se constituir de mais de três elementos suscetíveis de flexão, chegando a cinco, como se pode ver em (15):

(15) Todos os nossos últimos bons alunos ingressaram em universidades públicas.

No corpus de Almeida, figuram SNs com apenas dois elementos. Sendo estruturalmente mais simples, esses SNs ou apresentam todos os seus elementos flexionáveis com marca de plural, ou apenas o primeiro deles. Ressalte-se, todavia, que, uma vez ocorrendo o numeral no SN, é sistemático o cancelamento da marca de plural no núcleo. Os exemplos (16), (17) e (18), a seguir, ilustram casos de SN com um elemento apenas articulado ao núcleo ou com um numeral:

(16) As espadas são de ouro.

(17) A gente pesca em outraS lagoa.

(18) Ele tem três barco.

Os SNs que exibem mais de dois elementos, quer encerrem três, quer encerrem quatro, são, deveras, mais interessantes. A variedade dos padrões demanda nossa atenção.
Atendo-me aos elementos que se topam à esquerda do núcleo, há que destacar os seguintes padrões de concordância nominal:

a) havendo um e apenas um elemento flexionável antes do núcleo, esse elemento recebe a marca de plural. O núcleo, por sua vez, pode recebê-la ou não.

(19) As espinhas miúdas.
(20) Uns barco novo.

(21) Aquelas onda perigosa.

É claro que (19) ilustra o padrão que governa a concordância nominal nas variedades de prestígio da língua. Nas variedades de menor prestígio, o padrão é outro: marca-se o plural apenas no determinante, deixando no singular o núcleo.

b) ocorrendo dois constituintes pré-nucleares flexionáveis, o que ocupa a posição 1 recebe a marca, e o que ocupa a posição 2 pode recebê-la ou não:

(22) Todos os prato
(23) Todos esses dia.
(24) As própria rede.

Nos três exemplos, o núcleo é mantido no singular. A despeito da variabilidade da macação de plural nos determinantes, via de regra, a marca de plural aparece sempre no primeiro elemento. Pode-se estipular uma regra que parece estar sendo seguida, que se formaliza como: havendo dois determinantes flexionáveis no SN, é suficiente marcar o plural apenas no primeiro elemento. Note-se que a marca [s] pode ser cancelada no segundo elemento, como mostra o exemplo (24).

c) se o elemento pré-nuclerar se acha na posição 3, o cancelamento da marca é a norma.

(25) Os dois melhor mês.

Em (25), há três elementos antes do núcleo, e a regra parece prever o cancelamento da marca [s] apenas no terceiro elemento, o que ocupa a posição 3, a mais próxima do núcleo.

Quando se consideram os modificadores que se dispõem à direita do núcleo, ou seja, os elementos pós-nucleares, o padrão é o cancelamento da marca de número no modificador. Vejamos os exemplos abaixo:

(26) Uns barco novo.

(27) Umas nuvens cinzenta.

(28) Uns vinte ano passado.

Esses casos também ilustram a variabilidade comum à marcação de plural no interior do SN. Note-se que todos os determinantes aparecem no plural. Essa é uma regra que já vimos: havendo um elemento flexionável antes do núcleo, esse elemento é pluralizado. O núcleo, conforme vimos também, pode ou não receber a marca de plural: em (26) e (28), ele não apresenta a marca; apenas em (27), apresenta-a. Como, no entanto, estamos levando em consideração o que ocorre com o modificador, ou seja, com o adjetivo posposto ao núcleo do SN, inferimos daí que os falantes parecem estar seguindo um padrão bastante regular: o cancelamento sistemático da marca de plural no modificador pós-nuclear.
Cumpre ainda observar que a ocorrência de um numeral em qualquer das posições pré-nucleares é condição para o cancelamento de plural no elemento seguinte, conforme atestam os seguintes exemplos:


(29) Esses três tipo.

(30) Três outro garoto.

Outros estudos, levando em conta o cruzamento de variáveis tais como distribuição dos constituintes do SN e o tipo de marcas precedentes, atestaram que os elementos pré-nucleares tendem a ser atualizados com a marca de número, e os constituintes nucleares e pós-nucleares tendem a não apresentar a marca, muitas vezes, de modo categórico e independentemente de haver ou não marcas formais e/ou semânticas anteriormente enunciadas.
Considerando-se tão-só a distribuição dos constituintes, isto é, a ordem em que ocorrem, o cancelamento de marca verificou-s em 6,5% dos casos nos elementos pré-nucleares, 82% nos nucleares e 89% nos pós-nucleares.
Os casos visitados, nesta exposição, não esgotam a complexidade do fenômeno de concordância no SN. Outras estruturas oracionais, em que figuram SNs, como as construções predicativas e passivas com “ser” tiveram de ser colocadas fora do escopo de minhas preocupações, dadas as limitações de espaço. Não obstante, os casos examinados aqui revelam que o mecanismo de concordância nas variedades desprestigiadas da língua é extremamente complexo; é mais complexo do que o padrão seguido pelos falantes cultos, que tendem a estender a marca de plural a todos os elementos flexionáveis do SN.
Tendo em vista tudo que foi exposto, é importante frisar que os falantes que não seguem a marcação de plural por redundância, a que se verifica nas variedades formais da língua, não estão cometendo erros, mas seguindo outros padrões. Nas variedades desprestigiadas da língua, a operação de concordância depende não só da noção de conjunto extensiva ao SN, mas também da noção de subconjuntos que do SN se infere. Assim, ao conjunto de elementos que se acham à esquerda do núcleo, aplica-se, normalmente, a marca de plural; aos que se acha à direita, essa marca não é aplicada.