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sábado, 18 de setembro de 2021

“A filosofia não tem o poder de desesperar a humanidade”. ( Paul Veyne)




A NOSSA VÃ FILOSOFIA


“A filosofia não tem o poder de desesperar a humanidade”.

 Paul Veyne

 

 

Estou de acordo. Veyne pensa aqui o contrário do que pensa Deleuze sobre o papel da filosofia: uma filosofia que não desespera, que não entristece, perde sua razão de ser. Mas está bem. Veyne o diz no contexto em que considera a inquietação e o receio daqueles que viam em Nietzsche e em Foucault uma ameaça à inocência da juventude, que ainda se nutria do ideal revolucionário (à época de Foucault, evidentemente; hoje em dia, a juventude está mais preocupada em saber como se tornar uma celebridade de tik-tok ou de saber como pode se tornar um youtuber milionário).

Mas aqui insisto em que a filosofia parece ter um impacto ínfimo no modo de ser das coletividades humanas. Com ou sem filosofia, o mundo passaria bem ou mal... o mundo, de qualquer modo, levaria adiante sua marcha insensata em direção ao túmulo... Não quero parecer subestimar a influência das ideias sobre os modos de ser e sobre as mentalidades de uma época. Sim, Aristóteles moldou a visão de mundo dominante durante toda a Idade Média cristã, Descartes (e Newton) moldou a visão de mundo e do homem até o fim do século passado (a visão mecanicista de mundo fez escola). E não faltam exemplos de como o pensamento filosófico influencia os modos de ser e viver de uma época. Mas, em todo caso, não é a filosofia sozinha que causa as transformações; são necessárias, principalmente, mudanças no modo de organização socioeconômica e política, é necessário o desenvolvimento tecnológico, etc... Como diz Bachelard, o mundo em que se pensa não é o mundo em que se vive. Querem um exemplo? Veyne afirma que o páthos niilista que Nietzsche soube entrever parece incendiar mais a oratória do que a realidade. Niilismo? Quando me perguntam sobre o que versa minha pesquisa de doutoramento, a resposta que dou - “niilismo” - causa na face de meu interlocutor a mesma incompreensão e surpresa de quem ouve alguém falar que se interessa por “física quântica”. Para a maioria esmagadora dos animais humanos, “ o mais sinistro de todos os hóspedes” é tão invisível, misterioso; está tão distante - talvez não passe de um viajante que se perdeu vindo não sabemos de onde - quanto o espectro do comunismo que Marx dizia rondar a Europa de seu tempo.

Acho que, em parte, a filosofia, pelo menos desde Platão e Aristóteles, contribuiu para o seu ostracismo no viver comum, não porque tratasse, algumas vezes, de assuntos demasiado afastados da lida diária com a vida (talvez não só por isso), mas porque nos inculcou a crença ilusória de que a razão no homem era a sua parte mais elevada, o sinal do divino nele, que a filosofia se encarregaria de exercitar, para dignificá-lo, para torná-lo avizinhado com o próprio Deus (não o Deus cristão - fique claro -, que não aprecia concorrência) e tivemos de esperar um Nietzsche (sempre ele) para nos dizer que a nossa grande Razão não é mais do que um instrumento a serviço da sobrevivência da espécie... e a biologia , a paleontologia posteriormente viriam a dar razão a Nietzsche... nosso tão complexo e maravilhoso cérebro símio não foi projetado para elevadas elucubrações, para exaustivas ruminações espirituais... (claro que nosso cérebro é dotado de uma plasticidade impressionante, de uma capacidade incrível para desenvolver novos conhecimentos e habilidades; claro que ele é, em última instância, o criador do mundo humano, da cultura, da linguagem, da filosofia, da ciência, das artes, de tudo de que tanto se orgulha o macaco pelado que o carrega), mas este cérebro humano precisa de estímulos, de um meio ambiente rico de possibilidades criativas, de desafios, de uma paidéia para poder se desenvolver, sob pena de atrofiar-se, de adoecer, de ficar esclerosado e limitado ao que é: um pedaço esponjoso de carne... Aristóteles parece ter errado, ou melhor, parece ter superestimado a natureza humana, portanto, quando disse que somos naturalmente dispostos ao conhecimento teorético, à epistéme (ciência)... a filosofia não nos é conatural... no mais profundo de nós, ainda reside um caçador-coletor obstinado em garantir os recursos necessários à sua sobrevivência e não um Tales de Mileto interrogando-se sobre o primeiro princípio do Cosmo - aquele, por sinal, teria caído num poço enquanto, distraído caminhando olhava para o céu...( e parece que a maioria dos macacos pelados decidiu acolher a advertência da mulher de Trácia que troçou da imprudência do grande filósofo, enquanto ainda hoje riem da pavonice dele.

 


sexta-feira, 25 de junho de 2021

"Não há nada de errado com aqueles que não gostam de política, simplesmente serão governados por aqueles que gostam." (Platão)

 


               

                      Preleções sobre política

Uma contribuição para o enfrentamento

do analfabetismo político brasileiro

 

 

                                                PARTE 2


 

3. A política e a filosofia: um retorno às origens

 

Tendo analisado o bolsonarismo como um movimento autoritário de viés fascista, com ênfase em sua recusa aberta do pensamento e do conhecimento, na primeira parte deste estudo, dedico-me agora, nesta segunda etapa, a trazer à baila a experiência política da Atenas do século V-IV a.C. A Grécia Antiga, berço da civilização ocidental, é o solo progenitor da política. A filosofia nasce com os antigos gregos, e coube a Platão (427-347 a.C.) ser o primeiro filósofo a nos legar um sistema de pensamento político. Em outros termos, a filosofia política nasce com Platão. O que me interessa, então, é revisitar esta herança tão rica e preciosa do pensamento político da Antenas de Platão e Aristóteles (384-322 a.C.), com vistas a colher desse solo os subsídios necessários ao desenvolvimento de um debate público, no Brasil de hoje, mais amplo, mais elaborado, fundamentado teoricamente. Este será o objetivo que perseguirei também na terceira parte deste artigo, quando me debruçarei sobre a política tal como pensada e vivida na era moderna. Buscarei acenar para as contribuições de Nicolau Maquiavel e Thomas Hobbes, mas avançarei reflexões sobre conceitos tais como o de Estado, Democracia, Sociedade Civil, Poder, Política, Cidadania, entre outros, que precisam ser, segundo creio, bem definidos e esclarecidos para quem quer que esteja disposto a recusar-se a reduzir a atividade política a um negócio de plutocratas e de políticos profissionais que agem em proveito próprio para perpetuarem-se no poder. Não que esta não seja uma experiência política muito familiar na história de nossa sociedade; é, aliás, uma percepção generalizada entre pessoas em outros lugares do mundo, conforme mostrarei. Vivemos numa época em que é cada vez mais patente aos estudiosos da política o recuo das democracias e a deterioração do sistema político em vários países do Ocidente. Esta é uma questão que não deixarei de considerar, muito embora não venha a desenvolvê-la em profundidade. Comecemos, pois, nosso retorno à filosofia política grega. Espero que o leitor colha daí lições valiosas para que a sua existência como zoon politikon possa tornar-se mais fecunda enraizando-se no solo do verdadeiro pensamento.

 

3.1. O idiota é, antes de tudo, um marginal

 

Os antigos consideravam idiotés aquele que só se ocupava da vida privada, que recusava a política, que vivia uma vida apartada da atividade política, que dizia não à política. Os jornalistas Álvaro Borba e Ana Lesnovski, criadores do canal do Youtube Meteoro Brasil, são também autores do livro Tudo que você precisou desaprender para virar um idiota, publicado pela editora Planeta do Brasil, em 2019. Neste livro, os autores nos ensinam que o idiota é, antes de tudo, um marginal, e prosseguem nos seguintes termos:

 

(...) Originalmente, o termo ídhios era usado de maneira depreciativa para definir aqueles que se apartavam da vida pública na antiga Atenas: o cara abria mão da vida em sociedade, com suas regras e anseios civilizatórios, e automaticamente era chamado de idiota. Esse é o idiota ancestral. (ibid., p. 11).

 

Mas quem é o idiota hoje? Segundo os autores, o idiota do século XXI está obcecado pela política. Portanto, parece que os idiotas migraram do reduto da vida privada, de onde vociferavam contra a política e contra aqueles que se ocupavam da vida política, para povoar as esferas por onde transitam as questões políticas. No entanto, não basta habitar essas esferas para deixarem de ser idiotas. Como nos fazem ver os autores,

 

 (...) É nessa contradição entre o sujeito apartado das questões da vida pública, mas em imensa proporção disposto a atuar diretamente sobre elas, que mora uma explosiva combinação comunicacional. Pois o idiota agora não está sozinho. Em grupo, em rede, conectado, ele não quer saber de política, mas participa dela continuamente. (ibid.).

 

Como é possível que participem continuamente da atividade política e continuem a se desinteressar dela? É que o idiota continua sendo hoje, tal como era na Antiguidade, um sujeito autocentrado, egoísta, preocupado exclusivamente consigo. O que difere o idiota da antiga Antenas do idiota das redes sociais como Facebook do século XXI é que o idiota antigo ficava fora da política. Hoje, o idiota tomou de assalto a política. Ele entende a política a partir de seu ego. Como observam os autores, “tudo é feito por ele, para ele, em nome dele”. (p. 12). Por isso, o idiota combaterá qualquer filosofia ou pensamento que considera a problematicidade das questões políticas a partir de valores coletivos. Como bem espirituosamente escrevem os autores, “se há um coletivo, o idiota se sente ameaçado em seu direito sagrado de ser idiota”. (ibid., p. 12). Repensar, portanto, a política começando pelos antigos gregos se faz ainda mais necessário hoje porque os idiotas infestaram a vida pública com sua artilharia e munições de ódio e desprezo pelo bem comum. E se puderam infestar as esferas da vida pública, sobretudo pelas redes sociais, é que se sentem hoje representados nas esferas de poder. E quando os idiotas representados seguem um líder idiota que governa em nome do poder contra os princípios constitucionais que regem um Estado Democrático de Direito, é a democracia que corre sério risco de extinguir-se. Como nos lembram os autores, “(...) no século XXI, não é com  tanques de guerra nas ruas e tiros de canhão que se mata uma democracia, mas elegendo alguém disposto a subverter as regras do jogo” (ibid., p. 16). É o que nos ensinam Levitsky e Zilblatt, em Como as Democracias Morrem (2018), “democracias podem morrer não nas mãos de generais, mas de líderes eleitos – presidentes ou primeiros ministros que subvertem o próprio processo que os levou ao poder”. (p. 15). O idiota hoje não é bobalhão e importunador; ele é ameaçador e perigoso, ou porque está investido de mais poder político, ou porque seus modos de ser, pensar e viver encontram ressonância naqueles que hoje ocupam o poder de tomar decisões políticas que impactam significativamente nossas vidas. É oportuno lembrar que é no âmbito das significações que se dá a disputa pelo poder na atualidade. A guerra que travamos em torno do acesso ao poder e da limitação do poder daqueles que já o detêm é uma guerra semântica, em nossas sociedades democráticas modernas.

 

 

3.2. A política: uma experiência grega

 

Na Antenas em que viveram Platão e Aristóteles, a política era pensada como uma atividade pedagógica. A política visa à transformação de homens e mulheres em cidadãos. A política é paidéia. Essa é uma concepção de política que nos é estranha a nós, modernos. Na modernidade, a política passou a ser pensada/percebida como aquilo que diz respeito aos cidadãos, à gestão pública, ao governo e aos regimes de governo, à administração dos negócios públicos, e o governante é visto como gestor de uma grande empresa, que é a cidade, o município ou o país. Mas, como tentarei mostrar, é possível pensar a atividade política fora dos quadros do aparelho burocrata-adminsitrativo. É possível e necessário pensá-la como uma missão civilizatória, já que a política confere sentido humano ao mundo, confere significado para a vida dos seres humanos, seja como partes de uma coletividade, seja individualmente. É possível e necessário pensar a política como uma atividade libertária. Mas, por ora, nossa atenção será dispensada à concepção grega de política a partir das lições que nos foram legadas pela pena de Platão e Aristóteles.

O termo política foi cunhado com base na experiência da atividade social desenvolvida pelos homens na Pólis. Embora traduzido por cidado-Estado, o termo pólis designa melhor uma espécie de comunidade (koinonía). Como toda Kononía, a pólis possui seus próprios fins: é a comunidade cívica mais perfeita e adequada para a coexistência humana, lugar necessário do homem como ser racional. Para Aristóteles, o homem é um animal político  por natureza: ele está destinado naturalmente à vida na pólis. O homem é dotado de um instinto natural para a gregariedade. Aristóteles insiste em que a pólis é o lugar onde o homem poderá realizar a sua essência, porque a pólis é uma comunidade ordenada segundo a justiça e o bem comum. A finalidade precisa da pólis é a promoção do bem viver juntos, ou seja, do exercício de um modo de vida pautado pelos princípios da justiça e da virtude, pelo respeito à igualdade (isonomia) e à liberdade (eleutheros) dos cidadãos. Ser cidadão na antiga Atenas é diferente do que entendemos por cidadania hoje. Cidadão, na antiga Atenas, era o homem adulto, livre e nativo que gozava do direito de exercer a atividade política. Não eram cidadãos os metecos (estrangeiros residentes), os estrangeiros não residentes, as mulheres, as crianças e os escravos. Livres eram aqueles que não condicionavam sua vida à vida de alguém (como os escravos), ou que não condicionavam sua vida às necessidades materiais de subsistência. Igualdade é a condição daqueles que não estão sujeitos a relações assentadas em distinções hierárquicas (como marido e mulher), ou a relações baseadas no comando e na obediência (mestre/escravo; pai/filho).

A pólis será, portanto, a comunidade de cidadãos finalisticamente ordenada para o bem viver juntos (o bem comum). A autoridade desta comunidade é a política, o que significa dizer que a ordem política está baseada tanto na liberdade quanto na igualdade dos cidadãos. Para os antigos gregos, política e liberdade são a mesma coisa, conforme nos ensina Arendt, no seguinte excerto:

 

A “política”, no sentido grego da palavra, está, portanto, centrada na liberdade, com o que esta é entendida negativamente como o estado de quem não é dominado nem dominador e positivamente como o espaço que só pode ser criado por homens e no qual cada homem circula entre seus pares. Sem esses que são meus iguais, não existe liberdade, razão pela qual o homem que domina outros – e que precisamente por essa razão é diferente deles em princípio – é, de fato, mais feliz e invejável do que aqueles que ele domina, embora nem um pouco mais livre. Também ele se move em um espaço onde não há liberdade. (Arendt,  2016, p. 172).

 

 

Para os antigos gregos, portanto, quem domina e quem é dominado são ambos destituídos de liberdade. Isso pode parecer estranho para nós modernos, tão habituados que estamos a associar igualdade ao conceito de justiça, e não ao de liberdade. Hoje, definimos isonomia como “igualdade de todos perante a lei”. Mas, originalmente, isonomia não significava que todos os homens são iguais perante a lei ou que a lei é a mesma para todos, mas sim que todos têm o mesmo direito à atividade política. Na pólis, essa atividade era fundamentalmente dialógica, ou seja, assumia a forma de falar com os outros. Assim, isonomia é, essencialmente, o direito de falar e, como tal, é o mesmo que isegoria. Com Políbio, mais tarde, isonomia e isegoria passaram a dizer simplesmente isologia. Para os antigos gregos, quem falava sob o modo do mandar e quem ouvia sob o modo do obedecer não falava nem ouvia realmente; ambos não eram livres, porque estavam submetidos não ao diálogo, mas ao processo do fazer e do elaborar. As palavras funcionam aí como substitutas do fazer algo, de um fazer que pressupunha o uso da força e o ser coagido. Destarte, o déspota não é jamais livre, pois só conhece o mandar, o ordenar. Para falar, ele precisa de outros, seus iguais. Novamente é Arendt quem nos ensina o seguinte:

 

A liberdade não requer uma democracia igualitária no sentido moderno, mas uma oligarquia ou aristocracia muito estritamente limitada, uma arena na qual pelo menos uns poucos, ou os melhores, possam interagir entre si como iguais e entre iguais. Essa igualdade não tem, evidentemente, nada a ver com justiça. (ibid., p. 173).

 

 

Arendt chama de “preconceito moderno” a crença de que a política é uma necessidade imperiosa da natureza humana como a fome ou o amor. A filósofa lembra que “a política começa onde termina a esfera das necessidades materiais e da força física”. (ibid., p. 74). E ajunta que a política como tal existiu raramente e em tão poucos lugares, “que só umas poucas épocas extraordinárias a conheceram e a tornaram realidade”. (ibid.). Tornemos a considerar, contudo, a noção de pólis.

A pólis é uma associação política que reunia certo número de comunidades. A pólis era um estado federal, uma reunião de comunidades vizinhas, que compartilhavam entre si recursos e ambições. Em tempos de guerra, estavam submetidas ao poder dos mesmos chefes; nos tempos de paz, só admitiam um só soberano. Situada na tradição clássica, a política é uma ciência que pertence ao domínio da phrónesis (sabedoria prática). A política é de natureza normativa, pois que estabelece os critérios de justiça e do bom  governo, e examina as condições sob as quais o homem pode atingir a felicidade (o sumo bem) na sociedade, em sua existência coletiva. A pólis é uma comunidade organizada segundo a justiça e o princípio da autarkéia (autossuficiência, autogoverno). Ela é a consequência natural e necessária da atividade da razão prática, isto é, da capacidade humana de agir, em consonância com o verdadeiramente bom para nós e os outros, tendo em vista o bem viver juntos.

Convém, a esta altura, esclarecer por que Aristóteles considera o animal político que é o homem como um ser destinado a viver na pólis. Para entender isso, precisamos remontar à concepção de alma em Aristóteles. Concebendo a alma como enteléquia, isto é, ato primeiro e definitivo de um corpo, Aristóteles distingue nela três funções: a) a função vegetativa, como o nascimento, nutrição e crescimento; b) a função sensitiva, como movimento e sensação; c) a função racional ou intelectiva, como conhecimento, deliberação e escolha. Com base nessas três funções da alma, Aristóteles distingue entre uma alma vegetativa, uma alma sensitiva e uma alma racional ou intelectiva. Essa tripartição da alma feita por ele é resultado de sua investigação sobre os seres vivos em geral, no âmbito da biologia e da psicologia. A alma é o princípio da vida, e todos os seres vivos possuem, ao menos, uma alma. As plantas possuem apenas a alma vegetativa; os animais, por sua vez, possuem a alma vegetativa e a sensitiva; por fim, os seres humanos são constituídos de uma alma vegetativa, uma sensitiva e uma racional. A alma racional constitui a essência do homem. Também chamada de intelecto, ela é irredutível ao corpóreo; não se mistura com ele, consoante ensina Reale:

 

A afirmação de que o intelecto vem de fora significa que ele é irredutível ao corpo por sua intrínseca natureza, e é transcendente ao sensível. Significa que em nós há uma dimensão metaempírica, suprafísica e espiritual: é o divino em nós. (Reale, 2007, p. 89).

 

 

Os seres humanos, porque são compostos de uma alma vegetativa, de uma alma sensitiva e de uma alma racional, não devem viver apenas para satisfazer suas necessidades de natureza animal; devem, sobretudo, viver para o exercício do que há de mais elevado, do que é divino, em sua natureza – a razão, ou seja, a parte de nós que nos capacita para atingir o conhecimento verdadeiro. Ocorre, contudo, que não é suficiente apenas a razão para determinar nossas ações, ou seja, não basta saber o que é o melhor a ser feito. É necessário aprender a querer o que é racionalmente posto como verdadeiramente bom. Em outras palavras, é necessário que os fins que queremos alcançar por meio de nossas ações sejam fins moralmente bons. Aristóteles, por isso, afirma a utilidade da sabedoria prática (phrónesis) na determinação da ação. A phrónesis permite-nos o conhecimento dos princípios que orientam a conduta humana com vistas à felicidade (eudaimonia).

A pólis é, por natureza, anterior à casa e a cada uma de suas partes constitutivas; é governada pela justiça, cuja prática na pólis torna o homem o mais perfeito dos animais. Justiça significa ordem e racionalidade. Ela é um bem para a comunidade. Para Aristóteles, o homem injusto, o homem que vive apartado da justiça e da lei, é a pior de todas as bestas.

Vejamos, doravante, como Platão pensou a atividade política. Platão foi o primeiro dentre os filósofos a elaborar um sistema de pensamento político; e o fez com o propósito de definir a melhor forma de governo para a Pólis[1]. Aristóteles também estava interessado em determinar qual é a melhor politeia, ou seja, Constituição ou forma de Estado. Mas desse tema me ocuparei depois. Concentremo-nos na contribuição platônica para a determinação dos fins da política. Platão queria, portanto, determinar a melhor forma de governo da pólis. Para tanto, era necessário preparar gerações de filósofos em sua Academia para que se tornassem suficientemente aptos para o exercício das funções públicas. Mas também era necessário reunir um conjunto de reflexões teóricas que representariam o remédio a ser aplicado para a constituição de um novo corpo estatal. Ademais, Platão acreditava que esse corpo estatal deveria ser sustentado pela justiça e pela educação, os dois grandes pilares da filosofia política. Destarte, Platão vai propor a aproximação paulatina do filósofo, por meio da teoria (theoría), à realidade política, e sua prática (práxis), de modo que a maioria pudesse se conscientizar da necessidade de a pólis ser governada pelo rei-filósofo. Como político teórico, Platão teve o mérito de ter sido o primeiro filósofo que reuniu, numa síntese vasta e espantosa, a complexidade do funcionamento de todo um sistema político. Como filósofo, como estadista que pretendeu ser, raciona, viaja e elabora, a partir dos dados fornecidos pela experiência, a concepção sublime e original de um Estado Ideal. Expõe-lhe os amplos e sólidos alicerces; põe, a seu serviço, um grupo seleto de homens inteligentes e disciplinados, desapegados de interesses materiais, livres dos cuidados e do egoísmo da família.

Para Platão, a política é uma epísteme (ciência). E o político possui uma epísteme, ou seja, uma ciência que lhe é própria: a ciência das almas. Assim, segundo Chauí,

 

 

Graças às artes e ciências auxiliares, o político educa os cidadãos, urdindo os fios da Cidade (torce a natureza de cada um para que alcance a virtude que lhe é própria). Educados e urdidos os cidadãos, o político tecerá o tecido da Cidade, enlaçando os fios, isto é, criando laços de amor, matrimônio, companheirismo, solidariedade entre os caracteres opostos. Unirá moderados e enérgicos, velozes e intelectuais, impedindo laços entre os de mesmo caráter (pois tais laços não só enfraquecem o caráter pela repetição contínua dos mesmos traços como ainda os leva a formar partidos, facções e seitas e a lutar entre si). Aos cidadãos assim enlaçados, o político lhes atribui a função de fazer e aplicar as leis, distribuindo, segundo seus caracteres, as magistraturas, os cargos e funções públicas. O político é um artesão que fia e tece as almas para que realizem sua areté e a da Cidade. (Chauí, 2002, p. 314).

 

 

A analogia com a atividade do artesão, faz da política, para Platão, uma arte. Arte, em grego, se diz tékne (técnica). Mas, para Platão, o político não se define pela arte de tecer, e sim pela ciência dos laços. Se o político é um artesão, não seria ele um técnico? Deveras, o político pratica uma técnica, apenas na medida em que possui a ciência das almas humanas. Possuindo essa ciência, sua função é tecer os laços humanos. A ciência do político é a ciência dos caracteres humanos, dos seus acordos e desacordos, do que é bom ou excelente para cada um deles e do que os prejudica e os vicia. O político porta uma ciência diretiva, que tem de ser perfeita, não só porque recobre a totalidade dos homens que serão governados por ela, mas também porque é ela mesma a origem das normas, regras e leis. Assim, a ciência do político não se deixa determinar por nada mais além de si mesma. O político não apenas transmite ordens e as faz cumprir; ele as produz: o político é criador das leis fundadoras da pólis. O político, que possui, de fato, a ciência diretiva, ocupa-se da pólis inteira e a governa em sua totalidade. É importante atender no papel que desempenham as leis na constituição da ordem política para os gregos, no seguinte passo que nos dá a saber Chauí:

 

Normas, regras, ordens e leis criadoras não criam qualquer coisa: criam a vida coletiva, criam os viventes que irão viver juntos, produzem a alma da pólis ou a própria pólis como um ser vivo, pois dotada de alma (as leis, normas e regras). (ibid., p. 311).

 

Quão distante é a nossa concepção moderna de lei!. Nesse matéria, somos herdeiros antes dos romanos e do seu Direito que dos gregos. A lei para nós é comando; ela fixa limites, exige obediência e pune, na figura de seu guardião, o Juiz, aquele que a infringe. Claro é que a lei também é indispensável e necessária ao ordenamento político e jurídico de nossas sociedades atuais, mas não a percebemos como um dispositivo educativo. Faz-se mister acrescentar aqui alguns esclarecimentos. Por isso, interromperei, momentaneamente, o fio discursivo para estabelecer um contraste bem esquemático entre a política grega e a política romana.

O termo política designava (e, em alguns casos, ainda designa), em locais como na Pérsia e no Egito, a atividade própria do governante que comada autocraticamente o coletivo em direção a certos objetivos, quais sejam, as guerras, as edificações públicas, a pacificação interna, etc. Na Grécia Antiga, além dessas atribuições do soberano, lhe cabia, através da atividade política, reunir todos os membros da pólis de modo a formar uma totalidade ordenada e sólida. O que a política grega acrescenta aos outros Estados é justamente  o que nós, hoje, na pós-modernidade, e especialmente, no Brasil, estamos perdendo: a referência à comunidade, ao coletivo da pólis, ao discurso, à cidadania, à soberania, à lei. A política dos romanos difere fundamentalmente da política dos gregos por servir a fins manifestamente particulares (isso não nos parece bastante familiar?!). A política, na Roma Antiga, deveria servir aos interesses dos gens[2] originais que precisavam assegurar o seu monopólio sobre as riquezas saqueadas ou sobre a exploração da terra. A palavra pátria, tão fartamente repetida pelo discurso bolsonarista, revela ainda essa origem familiar. Ela se forma a partir de pater, que quer dizer “pai” no sentido de “pai de família”, aquele que exercia poder absoluto sobre os filhos, mulher, escravos. Os nobres romanos seriam os patrícios, ou seja, os proprietários. Além destes, havia os escravos e aqueles que só possuíam a sua prole, chamados proletários (do latim proletarius). O proletário era o cidadão romano pobre cuja única utilidade era gerar filhos. O bom governante era visto como um tutor. Assim pensava Cícero, para quem o bom governante deve resguardar os interesses de seus pupilos mais do que aos seus próprios. O Estado romano seria como uma espécie de administrador que tutela interesses dos patrícios, impondo aos demais os interesses destes, seja pelos tributos – “impostos” -, seja utilizando-se dos não proprietários como instrumentos de saque, como guerreiros. Na Roma Antiga, portanto, a atividade política, além de se caracterizar pela dominação do Estado, concernia à relação entre tutor e pupilos. Essa relação era mediada pelo direito romano. O direito romano garantia a não interferência do Estado na propriedade privada, nos interesses dos patrícios e a não intromissão do público, do coletivo na esfera do privado, do particular. Ora, não é difícil inferir daí que o Estado moderno, mais amplo e mais burocratizado, servindo aos interesses particulares e setoriais e os estendendo ao conjunto da sociedade, sem qualquer compromisso como agente de realização do bem comum – como Tomás de Aquino batizaria o bem supremo de Aristóteles -, tem seu modelo em Roma. A Roma Antiga não era uma pólis. A atividade política romana nada tinha que ver com as relações cidade-Estado, mas era, sobretudo, um jogo entre tutores e pupilos – militares, burocratas e burguesia – e suas práticas de manipulação, corrupção e repressão. A atividade política, em Roma, centrava-se na disputa pelo poder de tutela do Estado, o qual era uma instituição a serviço de interesses privados.

 

 

3.2.1. A pedagogia política

 

A política, no pensamento de Platão, é indispensável à condução dos negócios públicos e representa o conjunto dos cuidados para com os indivíduos e os cidadãos. Cabia à atividade política o papel de determinar o destino da pólis e de determinar a realização do indivíduo. Para Platão, não é o indivíduo que existe para o Estado, mas o Estado que existe em função do indivíduo. Platão mantém que a legislação é responsável pelas grandes transformações na vida cotidiana e na vida individual. A função da política é educar, preparar os cidadãos com vistas a conduzir a pólis ao melhor. A política, tal como concebida por Platão, deve estar em conformidade com a Natureza (phýsis), adequada aos fins e em conformidade com o Bem Comum. O grande propósito da política é a educação dos cidadãos para a vida justa na pólis.

Traduzido como República, Estado ou Constituição, a politeia diz respeito aos regimes de governo. Platão julga bom e justo um governo apenas: a aristocracia. Cuida desfavoráveis à pólis: a timocracia, a oligarquia, a democracia e a tirania. Aristóteles acompanhava Platão na rejeição à democracia. Na verdade, Aristóteles denunciou os riscos de cada um dos regimes então conhecidos. Propôs para os gregos a politia como o regime de governo mais conveniente, a qual permitiria a alternância de homens capazes de governar e ser governados segundo a lei, mesmo que não sobressaíssem na virtude política. A politia é um termo médio entre a oligarquia e a democracia. Na politia, governaria uma multidão suficientemente abastada, não pobre como na democracia, para poder servir ao exército e se destacar nas habilidades guerreiras. Para Aristóteles, a democracia era uma forma de governo que favoreceria demais os pobres, descurando do bem de todos. Nós, modernos, veríamos nessa concepção negativa de democracia não a democracia como a concebemos mas a demagogia.

O Estagirita definia a Politeia ou Constituição como uma ordem de magistraturas, que estabelecem o seu modo de distribuição e determinam qual é o poder supremo. Magistrado, provém do latim magistratus, e significa tanto a função de governar como a pessoa que governa. Na Antiguidade, o magistrado era um funcionário do Estado investido de autoridade. São magistrados também os membros que participam da administração política ou que integram o governo de um Estado, tal como o Prefeito, o Governador e o Presidente da República. É mais comum, no entanto, atualmente, o uso de magistrado para se referir a juízes, desembargadores e ministros. Cada Constituição, segundo Aristóteles, determina como deve ser distribuída a autoridade política na pólis, como deve ser distribuído o poder. Se este pertence a um só, temos a monarquia; se pertence a um grupo apenas, temos a aristocracia; se pertence a todos os cidadãos, temos a república. Todos estes três regimes políticos são convenientes, a menos que façam predominar o interesse geral sobre os interesses particulares. Mas todos podem correr o perigo de desvios, sempre que precisamente os interesses particulares se sobreponham ao interesse geral. Destarte, a monarquia pode degenerar em tirania; a aristocracia, em oligarquia ou despotismo dos ricos; e a república, em democracia ou tirania das massas.

 

 

3.2.2. A política, a leis e a função do Estado

 

A política depende das leis para realizar-se e ser praticada. Mas, para os antigos gregos, as leis não se destinam apenas a proibir e coibir; elas também servem ao propósito de estimular, incentivar, educar. Às leis cumpre a função de incitar o político a dispensar os cuidados devidos à coletividade como um todo, bem como aos cidadãos, considerados partes de uma totalidade ordenada. No tocante à função do Estado, cabe a este não somente prover os cidadãos com o mínimo necessário à sua subsistência, como também – e sobretudo – conduzi-los para o bem viver. A verdadeira missão da política reside na educação, e educar as almas é a função do Estado. As almas são educadas para servir aos fins maiores do Estado (o que, para muitos de nós, modernos, defensores do regime democrático fundado na liberdade e pluralidade dos indivíduos, pode nos soar como uma forma de servidão totalitária). Cada tipo de função fixada para um cidadão exige um tipo de educação. O bem-estar da pólis e do indivíduo é determinado pelas condições em que se estruturam as políticas do Estado. A verdadeira função do Estado é desenvolver as habilidades, as aptidões dos cidadãos, a fim de que se tornem os mais excelentes e virtuosos. No pensamento platônico tanto quanto no de Aristóteles, política, educação e ética são indissociáveis. Na obra de Platão, a educação e a cultura constituem os alicerces da construção dos espaços públicos, de sorte que a política e as leis se põem a serviço da realidade educacional e dos ideias de felicidade humana.

 

 

3.2.3. Política e Justiça

 

Também política e justiça são indissociáveis no pensamento político de Platão. A justiça só pode realizar-se no Estado. Quando Platão afirma que ao Estado compete o papel de prover o indivíduo das coisas necessárias à sua subsistência, fica patente que o Estado existe em função do indivíduo. Indivíduo e Estado não se opõem, mas completam-se e se devem auxílio mútuo. O Estado, contudo, deve incumbir-se de tutelar os direitos dos súditos e fornecer aos cidadãos os meios comuns indispensáveis à sua felicidade neste mundo.

Considerar a justiça como uma realização que compete ao Estado é rechaçar a crença de que a ordem política é instituída com atos de irracionalidade violenta. Para Platão, pelo menos, as coisas não se dão dessa maneira (ou não deveriam se dar). Para ele, o arbítrio, a ignorância, a guerra, a força, a violência não são modos de realização do poder nem os meios de ter acesso a ele, nem de conservá-lo. Platão advoga em favor da política justa, cuja conquista e manutenção se devem ao conhecimento. Essa é a base de suas meditações sobre o Estado ideal. O Estado é, para Platão, o meio suficiente para poder realizar a felicidade geral (essa concepção de Estado não corresponde ao modo como realmente o Estado se instituiu e funciona, conforme mostrarei na terceira parte deste trabalho). Para Platão, o Estado deve proporcionar o exercício da virtude maior, deve possibilitar o alcance do Bem Comum. Por conseguinte, o Estado é exclusivamente Estado ético. O mau governo não cumpre sua função; ele não representa aquilo que deve à coletividade.

A justiça, que se faz no Estado, só se realiza quando as partes exercem suas funções conforme lhes foram previamente determinadas. A pólis, para ser justa, tem de funcionar à semelhança de um organismo cujas partes realizam suas respectivas funções. A tarefa de cada um é definida pela política e pelo corpo de dirigentes políticos. Platão pensa a ordem da pólis por analogia com a estrutura da alma. A alma precisa ser governada pela parte racional. As partes da alma estão organicamente a serviço da razão. Nenhuma das partes se sobrepõe às outras. Também a estrutura da pólis deve ser governada pela razão, e não pela paixão. A pólis se organiza em partes que não suplantam umas as outras. Portanto, a ideia de igualdade entre todos os cidadãos repousa na atribuição de funções a cada qual e na realização por cada um dessas funções com vistas ao bom funcionamento do todo. As distinções estabelecidas entre as partes se fazem com base nas aptidões de cada uma e não em critérios aristocráticos. A justiça e a ordem de uma sociedade consistem na distribuição harmoniosa e equânime das atividades ou das funções, no funcionamento harmonioso dessas atividades sob o governo do rei-filósofo, a quem tem a capacidade de determinar o melhor destino para a pólis, porque só ele conhece a ideia do Bem e é guiado por ela. Somente o filósofo é o representante apto para transformar a política no espaço das preocupações mais importantes para o crescimento da alma humana. Somente ele é capaz de aproximar os mortais (os humanos) do imortal (o divino), ligando-os.

 

 

Palavras finais

Antecipando uma característica contrastante, que se esclarecerá melhor na última parte deste artigo, entre a concepção política da Antiguidade e a da Modernidade, convém atender nas seguintes palavras de Arendt:

 

(...) desde a Antiguidade, ninguém acredita que o sentido da política seja a liberdade (...), no mundo moderno, quer teórica, quer praticamente, a política tem sido vista como meio de proteção dos recursos vitais da sociedade e da produtividade de seu desenvolvimento livre e aberto. (ibid., p. 163).

 

Para Arendt, política e liberdade significam a mesma coisa, pois “a liberdade de partir e começar algo novo e inaudito” e a “liberdade de interagir oralmente com muitos outros e experimentar a diversidade que é a totalidade do mundo” são “a substância e o significado de tudo que é político”. (ibid., p. 185). Para Arendt, “a política se baseia no fato da pluralidade humana” (ibid., p. 144) e acrescenta “política diz respeito à coexistência e associação de homens diferentes”. (ibid., p. 145). Só há, portanto, possibilidade de liberdade, para Arendt, no interior do espaço político; fora da política, não há liberdade possível para o homem. Ser verdadeiramente livre é não ser determinado ou movido pelas condições da existência concreta.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ARENDT, Hannah. A promessa da política. Trad. Pedro Jorgensen Jr. Rio de Janeiro: Difel, 2016.

METEORO BRASIL. Tudo o que você precisou desaprender para virar um idiota. São Paulo: Planeta Brasil, 2019.

CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia: Dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

REALE, Giovanni. Aristóteles. Trad. Henrique Cláudio de Lima Vaz e Marcelo Perine. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

 

 



[1] Os textos fundamentais em que Platão desenvolve uma discussão sobre a política são República, Político e Leis.

[2] Gens era um termo usado, na Roma Antiga, para referir-se à identidade familiar de um conjunto de famílias ligadas à aristocracia romana.




quinta-feira, 1 de outubro de 2020

"Um político divide os seres humanos em duas classes: instrumentos e inimigos." (Nietzsche)

                                                           



      

Bios theoretikós e bios politikos

 

Ocorreram-me agora as minhas insistentes indisposições para com os colegas que, em vez de se ocuparem com temas filosóficos, em razão dos quais nossas trocas verbais encontravam plena justificação, preferiam tagarelar sobre temas de nossa política nacional. O que me enfadava não era tanto a política como assunto, mas a lengalenga que subtraía ao tema "política" toda a sua problematicidade filosófica. Agora, pensando bem, minhas indisposições encontram apoio na tradição filosófica.

No início de nossa tradição de filosofia política, encontramos o desprezo de Platão pela política. Platão considerava que os assuntos práticos e as ações do homem não deveriam ser levados a sério. A única razão por que o filósofo interessava-se por esses assuntos repousava no reconhecimento de que o exercício da filosofia, infelizmente, dependia da boa condução deles, já que eles dizem respeito à convivência entre os homens. No começo da tradição, a política existe porque os homens vivem como mortais; mas a filosofia ocupa-se das questões eternas. Como o filósofo é também mortal, ele acaba por se interessar pela política também. Mas seu interesse não vai além da necessidade de garantir a boa condução dos negócios humanos, a fim de que o exercício da filosofia não seja perturbado ou impedido. 

O termo grego "scholè" não designa o ócio em geral, mas o ócio relativo à obrigação política. Por conseguinte, a liberdade do espírito para ocupar-se do eterno (aei on) só era possível se as necessidades básicas da vida mortal estivessem atendidas. Já com Platão, a política começou a abranger as atividades destinadas ao atendimento das necessidades básicas da vida. Assim, ao desprezo dos filósofos pelos assuntos fugazes da vida prática dos mortais, pôde-se acrescentar o desprezo especificamente grego por tudo que é necessário à mera subsistência. Em suma, quando os filósofos começaram a se preocupar com a política de maneira sistemática, ela passou a ser encarada como um mal necessário (e suspeito de que a maioria dos brasileiros hoje consentiria nesse juízo, sobretudo quando a relação entre o sistema político brasileiro e o homem comum, privando-o dos direitos de cidadania, o posiciona num lugar de mero pagador de impostos).

Decerto, não estou sugerindo que os filósofos de hoje devessem seguir a atitude grega e, especificamente, platônica, em face da política. Mas recordar essa herança filosófica de desprezo com a política contribui para advertir aos que, tendo pendor para a filosofia, preferem, no entanto, ocupar-se com a tagarelice diária sobre os assuntos políticos que o filósofo não é o político e nem o militante político e, quando o é, não ocupa mais, mesmo que por um breve momento, o lugar do filósofo. Em suma, recordar o desprezo dos antigos gregos para com a política é lembrar que a filosofia, como observa Arendt, está mais próxima da poiesis que da praxis.

 

quinta-feira, 22 de março de 2018

"(...) quando uma pessoa se dedica à filosofia no sentido correto do termo, os demais ignoram que sua única ocupação consiste em preparar-se para morrer e estar morto!" (Sócrates).


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A polissemia da morte no Fédon



Este texto constitui o trabalho final, avaliado com a nota máxima, da disciplina Filosofia Geral – Problemas Metafísicos III


1. Introdução

Resultado de imagem para Fédon  Constitui um corolário não só da Análise do Discurso, mas também das teorias linguísticas que tomam o texto para objeto de análise a afirmação de que, em face de um texto, muitas leituras são possíveis, muitos sentidos estão virtualmente disponíveis e podem ser construídos, embora nem todas as leituras, nem todos os sentidos sejam possíveis. Assim, embora a polissemia seja uma marca característica do discurso em geral, há tipos de discursos em que se percebe um controle maior dela, como sucede com os tipos polêmico e autoritário de discurso. No tipo autoritário, por exemplo, a polissemia tende a ser contida, estancada, uma vez que o enunciador se pretende único responsável pelo sentido e procura ocultar o referente por trás do que diz. São exemplos do tipo autoritário os discursos religiosos. Não obstante a variação do controle da polissemia, que, no tipo lúdico de discurso, chega a praticamente inexistir (no tipo lúdico, observa-se a expansão da polissemia e seu referente é mais transparente aos interlocutores), é ponto pacífico entre os estudiosos do discurso e do texto que não existe uma única leitura possível para um dado texto, mas muitas leituras. É com base nesse postulado teórico que nos propomos discutir duas formas de leitura que nos parecem autorizadas pelo texto de Fédon no tocante ao significado da morte. Em outras palavras, assumimos que a morte de que nos fala Platão, dando voz a Sócrates, nesse diálogo, pode ser interpretada de duas maneiras: a) como morte simbólica[1], ou seja, como uma experiência de negação da realidade vigente, ou de separação com relação aos hábitos e opiniões do homem comum[2]; b) como morte corporal ou metafísica, isto é, como separação entre a alma e o corpo. Chamamo-la de morte metafísica porque ela supõe a crença na sobrevivência da alma depois da sua separação do corpo. Trata-se também – se o preferirmos - de uma morte corporal, porque supõe que apenas o corpo perecerá.
Na discussão que, doravante, desenvolveremos sobre a conveniência dessas duas maneiras de interpretar o significado de morte no Fédon, buscaremos evidenciar não só que as duas leituras são autorizadas pelo texto, como também não são mutuamente excludentes. Ao contrário, pretendemos mostrar que elas são conciliáveis entre si. O modo como elas se conciliam esteia-se na hipótese de que a morte simbólica é uma experiência necessária e preparatória para a morte corporal; é uma experiência acessível apenas aos que se dedicam à filosofia (ao filósofo, portanto). A ser suficientemente provada esta nossa hipótese, a própria compreensão de filosofia como “um exercitar-se para a morte” significa mais do que um exercício de preparação para a fruição dos excelentes bens, dos quais se destaca como o mais elevado a conquista da sabedoria, depois de que a morte liberte a alma do cárcere corporal; significa também que a morte para a qual tende esse exercitar-se na filosofia é o estado de ruptura, de separação radical, de negação incondicional em que o filósofo deve encontrar-se relativamente ao modus vivendi dos homens em sociedade.



2. A doutrina da imortalidade da alma


Com a apresentação da doutrina da imortalidade da alma, pretendemos fornecer um enquadramento de sentido à luz do qual a leitura canônica da morte em Fédon se descerre de tal modo, que não seja confundida com a outra forma de leitura desse tema já por nós referida.
 É a dimensão místico-religiosa do pensamento de Platão que trataremos de pôr a descoberto. Os temas da imortalidade da alma, da metempsicose e do destino das almas têm sua origem no pensamento órfico-pitagórico de que Platão foi um herdeiro.[3] Mas dizer que Platão foi um herdeiro não significa afirmar que ele não foi responsável por imprimir um caráter próprio na recepção do pensamento órfico-pitagórico. O ponto de partida para o que poderíamos chamar inovação platônica na doutrina órfica da imortalidade da alma prende-se ao fato de Platão conferir a essa doutrina um lugar de importância no tratamento da ética e da política. Sócrates disse que o homem é a psyché (a alma), mas dizer isso apenas era insuficiente para Platão, pois que seu mestre deixou por resolver o problema que consiste em saber se a psyché é imortal ou não.
A cosmovisão órfico-pitagórica assenta numa clara oposição entre a alma e o corpo: o corpo está destinado a morrer; a alma está destinada a viver eternamente. Quem vive em função do corpo vive para aquilo que está destinado a perecer; quem vive em função da alma vive para aquilo que está destinado a viver para sempre, logo viver tendo em vista a purificação da alma, mediante um contínuo progresso de desapego do corpo.  As injustiças sofridas pelos justos só afetam o seu corpo e podem, em casos extremos, levar à morte este corpo; mas, sendo justo, o que ele perde é apenas o corpo; a alma é salva para gozar da eternidade. Novamente, deve-se enfatizar que essa visão da vida não foi simplesmente apropriada por Platão, “ela alcança um novo significado depois da “segunda navegação”, isto é, depois da descoberta do mundo inteligível” (Reale, 2007, p. 183). Platão se encarregou de demonstrar racionalmente a imortalidade da alma, crença sem qual a visão órfica da vida deixa de ter sentido. Consoante ensina Reale a respeito da inovação platônica, entendida como uma ressignificação da doutrina órfico-pitagórica,


No orfismo tratava-se de uma simples doutrina misterosófica; nos pré-socráticos que tinham aceitado a visão órfica, era um pressuposto em contraste com seus princípios físicos; em Platão, ao contrário, está fundamentada e apoiada perfeitamente sobre a metafísica, isto é, sobre a doutrina do supra-sensível, da qual se torna como que um corolário (...). (ib.id., ênfase no original).


No Fédon, é possível distinguir entre três provas da imortalidade da alma.[4] A primeira delas, que não irá nos interessar aqui, tem base heraclitiana e, por isso, envolve a percepção da realidade como atravessada pelos contrários (justo/injusto; belo/feio/ vida/morte, etc.). Essa prova encontrará seu bom termo na doutrina da reminiscência. Vamo-nos deter na apresentação das duas outras provas oferecidas por Platão e que ele mesmo julgava mais importantes.
A primeira das duas provas que devemos elucidar começa pela asserção segundo a qual a alma humana é capaz de conhecer as coisas imutáveis e eternas. Todavia, para a alma poder apreender essas coisas imutáveis e eternas, ela deve possuir como conditio sine quo non uma natureza que lhes seja afim. Em outras palavras, a alma deve ser também imutável e eterna, para que possa conhecer as coisas imutáveis e eternas.
Essa prova assenta na premissa de que há duas instâncias de realidade, a saber, o mundo sensível (visível) e o mundo inteligível (invisível). O mundo inteligível é imutável, suas condições não variam; mundo sensível, por outro lado, é mutável. Platão estabelecerá uma correlação do corpo e da alma com esses dois domínios do real. Ora, notará Platão que o corpo é visível e passível de sofrer mudança e, por isso, assemelha-se ao mundo visível ou das coisas sensíveis; a alma, porque é invisível e imutável, assemelha-se ao mundo inteligível, que é invisível e imutável.
Uma vez que se oriente pelas percepções sensíveis, a alma incorre, facilmente, em erro e se confunde, porquanto as percepções sensíveis são mutáveis tanto quanto os objetos a que elas se referem. Quando, entanto, a alma se eleva para além do domínio das coisas sensíveis, recolhendo-se em si mesma, ela não erra mais e pode contemplar as Ideias puras, bem como o objeto que lhes é correspondente no mundo inteligível. Uma parte fundamental desse argumento consiste em ver que, conhecendo no mundo inteligível o objeto adequado das Ideias, a alma reconhece também que é afim a essas Ideias e, dado que pensa as coisas imutáveis, a alma permanece, ela mesma, imutável.
A alma, portanto, é imutável e eterna assim como imutáveis e eternas são as Ideias por ela contempladas e às quais ela é afim. Resta demonstrar que a alma também é dotada de um caráter divino. Para tanto, argumentará Platão que, quando unida ao corpo, a alma comanda o corpo, e o corpo lhe deve obediência. Ora, uma característica importante do divino é comandar, e do que é mortal é ser comandado. Por conseguinte, a alma é afim ao divino; e o corpo, ao mortal. Acompanhemos o testemunho desta primeira prova:

- Admitamos, portanto, que há duas espécies de seres: uma visível, outra invisível.
-Admitamos.
- Admitamos, ainda, que os invisíveis conservam sua identidade, enquanto que com os visíveis tal não se dá.
-Admitamos também isso.
- Bem, prossigamos – tornou Sócrates. – Não é verdade que nós somos constituídos de suas coisas, uma das quais é o corpo e a outra, a alma?
- Nada mais verdadeiro!
- Com qual dessas duas espécies de seres podemos dizer, pois, que o corpo tem mais semelhança e parentesco?
- Eis uma coisa que é clara para toda a gente: com a espécie visível.
- Por outro lado, que é a alma? Coisa visível ou coisa invisível?
- Não é visível, pelo menos aos homens, Sócrates!
- Todavia, quando falamos do que é visível e do que não o é, fizemo-lo com relação à natureza humana? Ou talvez creias que foi a propósito de qualquer outra coisa?
- Foi a propósito da natureza humana.
- Portanto, que diremos da alma? Que ela é coisa visível, ou que não se vê?
- Que não se vê.
- Vale dizer, por conseguinte, que ela é uma coisa invisível?
- Sim.
- Logo, a alma tem com a espécie invisível mais semelhança do que o corpo, mas este tem, com a espécie visível, mais semelhança do que a alma?
- Necessariamente, Sócrates.

(...)

- Penso não haver ninguém, Sócrates, por mais dura que tenha a cabeça, que seja capaz de não concordar, seguindo este método, em que, em tudo e por tudo, a alma tem mais semelhança com o que se comporta sempre do mesmo modo, do que com as coisas que não o fazem.
- E o corpo, por seu lado?
- Com a outra espécie.
- Tomemos agora um outro ponto de vista. Quando estão juntos a alma e o corpo, a este a natureza consigna servidão e obediência, e à primeira comando e senhorio. Sob este novo aspecto, qual dos dois, qual dos dois, no teu modo de pensar, se assemelha ao que é divino, e qual o que se assemelha ao que é mortal? Ou acaso pensas que o que é divino existe, por sua natureza, para dirigir e comandar, e o que é mortal, ao contrário, para obedecer e ser escravo?
- Penso como tu.
- Com qual dos dois, portanto, a alma se assemelha?
- Nada mais claro, Sócrates! A alma, com o divino; o corpo, com o mortal.
- Bem, examina agora, portanto, Cebes, se tudo o que foi dito nos conduz efetivamente às seguintes conclusões: a alma se assemelha ao que é divino, imortal, dotado da capacidade de pensar, ao que tem uma forma única, ao que é indissociável e possui sempre do mesmo modo identidade: o corpo, pelo contrário, equipara-se ao que é humano, mortal, multiforme, desprovido de inteligência, ao que está sujeito a decompor-se, ao que jamais permanece idêntico. Contra isso, meu caro Cebes, estaremos em condições de opor uma outra concepção e provar que as coisas não se passam assim?
- Não, Sócrates.
- Que se segue daí? Uma vez que as coisas são assim, não é acaso uma pronta dissolução o que convém ao corpo, e à alma, ao contrário, uma absoluta indissolubilidade, ou pelo menos qualquer estado que disso se aproxime?
- E por que não, com efeito?[5]


A segunda prova de que trataremos no Fédon exige que consideremos um aspecto da teoria da alma que se nos apresenta indispensável, já que se trata de um saber pressuposto por essa segunda prova. Tomemos, então, a segunda prova que se acha no Fédon e que nos interessa dar a saber. Essa prova se estrutura em torno da proposição: as Ideias contrárias não podem combinar-se entre si nem permanecer juntas. Daí se segue que elas são mutuamente excludentes. Da impossibilidade de elas se combinarem resulta também a impossibilidade de elas se combinarem com as coisas sensíveis que delas participam essencialmente. Platão observará, então, que entrando a fazer parte de uma determinada coisa, uma Ideia leva a desaparecer a Ideia que lhe é contrária e que até então estava nessa coisa. Em outras palavras, se uma Ideia entra numa coisa, a Ideia contrária que estava na coisa anteriormente à entrada dessa Ideia é “expulsa” da coisa onde estava. As duas Ideias, por serem contrárias, não podem coexistir na mesma coisa. Assim, por exemplo, o Grande em si e o Pequeno em si se excluem mutuamente; a mesma exclusão mútua é necessária quando tais Ideias entram a fazer parte das coisas. Assim, uma coisa grande não pode ser pequena e vice-versa. O mesmo princípio de exclusão mútua é extensivo às coisas que, não sendo contrárias entre si, apresentam atributos que são contrários uns aos outros. Por exemplo, o fogo e a neve, embora não sejam contrários entre si, apresentam atributos essenciais que são contrários entre si; sejam: [quente] e [frio]. Ora, o fogo não é compatível com a Ideia do frio, nem a neve é compatível com a Ideia do quente. A presença do quente faz a neve dissolver; a presença do frio faz o fogo apagar-se.
Procuremos, agora, estender esse argumento ao caso da alma. A alma, conforme se depreende da teoria da alma, é vida. Psykhé encerra a Ideia de vida. Ela é que dá vida ao corpo. Justamente porque, para um grego, a alma tem como marca essencial a vida, jamais poderá admitir em si a morte ou tornar-se mortal. A morte, portanto, não pode afetar a alma; a morte só corromperá o corpo. A alma, por sua vez, por ocasião da morte do corpo, se desprende deste e se dirige para outro lugar.
Podemos, então, compreender, a título de conclusão, que a alma, na medida em que essencialmente encerra a vida, sendo a vida seu atributo estrutural, não pode abrigar a morte, visto que a Ideia de vida e a Ideia de morte, segundo o princípio da exclusão mútua dos contrários, são totalmente excludentes. É por essa razão que um grego recusa como absurda uma combinação como “alma morta”. Trata-se de um sintagma tão antitético, para um grego, quanto a combinação “neve quente”.



3. A morte como separação da alma e do corpo


Tendo em mente a teoria da imortalidade da alma, não podemos nos esquivar a aceitar a conclusão de que o significado mais transparente de morte em Fédon é o da morte como separação da alma com relação ao corpo. Trata-se do que chamamos morte metafísica, uma vez que, tendo se libertado do corpo, a alma não se extingue. A morte como separação da alma com relação ao corpo está assentada na crença de que, tendo ela habitado o corpo de um filósofo, poderá fruir no Hades “excelentes bens”, conforme nos afirma Sócrates: “(...) considero que o homem que realmente consagrou sua vida à filosofia é senhor da legítima convicção no momento da morte, possui esperança de ir encontrar para si, no além, excelentes bens quando estiver morto”[6]. A compreensão da morte como separação da alma com relação ao corpo aparece em diversos momentos no diálogo. Num desses momentos, Sócrates a apresenta após indagar a Símias sobre ser a morte alguma coisa:


- Segundo nosso pensar, é a morte alguma coisa?
- Claro – replicou Símias.
- Nada mais do que a separação da alma e do corpo, não é? Estar morto consiste nisto: apartado da alma e separado dela, o corpo isolado em si mesmo; a alma, por sua vez, apartada do corpo e separada dele, isolada em si mesma. A morte é apenas isso? (ênfase nossa)[7]


Notemos que Sócrates termina seu turno de fala com a pergunta “A morte é apenas isso?”. Símias concorda que é apenas isso, mas Sócrates prossegue fazendo considerações sobre como deve ser a vida própria de um filósofo. À medida que vamos acompanhando Sócrates na descrição de como deve viver um filósofo, conseguimos, com uma atenção redobrada em nossa leitura, ‘pinçar’ aqui e ali uma compreensão de morte não redutível à anteriormente apresentada, sem bem que, de modo algum, divorciada daquela. Antes, porém, de discorremos sobre o modo como essa outra compreensão de morte vai-se iluminando ao longo do diálogo, devemos não perder de vista o fato de que a compreensão da morte como “separação da alma com relação ao corpo” dá sustentação à doutrina do destino das almas e assegura ao filósofo sua condição de amante da sabedoria. Sendo amante da sabedoria, o filósofo, em vida, jamais poderá conquistá-la. Porque é amante da sabedoria, ele a persegue obstinadamente; ele a deseja, sem jamais possuí-la. A sabedoria só poderá ser conquistada, segundo crê Platão, após a morte corporal – a da separação da alma com relação ao corpo. Somente a alma em si, a alma liberta daquilo que a estorva, poderá conhecer as Ideias em si, a Verdade em si:



Inversamente, obtivemos a prova de que, se alguma vez quisermos conhecer puramente os seres em si, ser-nos-á necessário separar-nos dele e encarar por intermédio da alma em si mesma os entes em si mesmos. Só então é que, segundo me parece, nós há de pertencer aquilo de que nos declaramos amantes: a sabedoria. Sim, quando estivermos mortos, tal como indica o argumento, e não durante a nossa vida! Se, com efeito, é impossível, enquanto dura a união com o corpo, obter qualquer conhecimento puro, então de duas uma: ou jamais nos será possível conseguir de nenhum modo a sabedoria, ou a conseguiremos apenas quando estivermos mortos, porque nesse momento a alma, separada do corpo, existirá em si mesma e por si mesma – mas nunca antes.[8]


É evidente aí que a morte de que nos fala Sócrates é a morte corporal. Enquanto está vivo, enquanto sua alma está atada ao corpo, o filósofo jamais poderá conquistar a sabedoria, pois que o corpo constitui um empecilho para a conquista do conhecimento verdadeiro, para a contemplação da Verdade: “durante todo o tempo em que tivermos o corpo, e nossa alma estiver misturada com essa coisa má, jamais possuiremos completamente o objeto de nossos desejos!”[9]. É que, já o sabemos,

Não somente mil uma confusões nos são efetivamente suscitadas pelo corpo quando clamam as necessidades da vida, mas ainda somos acometidos pelas doenças – e ei-nos às voltas com novos entraves em nossa caça ao verdadeiro real! O corpo de tal modo nos inunda de amores, paixões, temores, imaginações de toda sorte, enfim, uma infinidade de bagatelas, que por seu intermédio (sim, verdadeiramente é o que se diz) não recebemos na verdade nenhum pensamento sensato; não, nem uma vez sequer! (...).[10]

No seu desprezo pelo corpo, Sócrates o considera a sede das concupiscências, das paixões, as quais são suficientemente poderosas para “provocar o aparecimento de guerras, dissenções, batalhas”; ademais, é o corpo que nos incita à posse de bens e ao acúmulo deles, tornando-nos seus “míseros escravos”. Teria o filósofo o mesmo destino dos demais homens, qual seja, o de tornar-se escravos das necessidades do corpo? Não! Porque o filósofo se distingue dos demais homens por um modo de ser que lhe é próprio: o da vida filosófica. Ao dedicar sua vida à filosofia, o filósofo vive tanto quanto possível afastado dos bens e dos prazeres do corpo, e volta-se para os bens da alma, quais sejam, a virtude e a verdade. É preciso dizer mais: o filósofo se distingue dos demais homens e, portanto, não tomará parte no destino destes, porque, dedicando-se à filosofia, é o único capaz de realizar plenamente a ascese filosófica: “a alma do filósofo, alçando-se ao mais alto ponto, desdenha o corpo e dele foge, enquanto por outro lado procura isolar-se em si mesma”[11]. É consabido que a ascese passou a designar, com os pitagóricos, cínicos e estoicos, a forma da vida moral que visa à realização da virtude por meio da limitação dos desejos e da renúncia. A ascese tal como proposta em Platão para o filósofo é – parece-nos- a noção-chave que nos permite conciliar os dois significados à luz dos quais podemos compreender a morte em Fédon. Esclarecer esse ponto de nossa discussão será a tarefa desta última parte.


4. A morte como morte simbólica


Antes de buscarmos testemunho no diálogo de Fédon da compreensão da morte como morte simbólica e antes mesmo mostrar de que modo a ascese permite que as duas formas de ler a morte em Fédon podem-se articular, gostaríamos de dizer que a vida ascética que deve ser vivida pelo filósofo é condição necessária para a sua purificação. Essa purificação lhe garantirá uma boa sorte depois que chegue ao Hades. A maneira de atingir a purificação é pelo exercício de uma vida virtuosa orientada pela temperança, coragem e justiça e, sobretudo, orientada para a busca da verdade. O filósofo sendo o tipo humano, por excelência, que se ocupa de viver virtuosamente e de perseguir a verdade terá, depois de morto, o privilégio de morar junto aos Deuses. A sorte daqueles que viveram contrariamente à virtude é muito diferente: “Todo aquele que atinja o Hades como profano e sem ter sido iniciado terá como lugar de destinação o Lodaçal, enquanto aquele que houver sido purificado e iniciado morará, uma vez lá chegado, com os Deuses”.[12]
Retomemos aqui a ideia de que “estão se exercitando para morrer todos aqueles que, no bom sentido da palavra, se dedicam à filosofia”[13]. Sócrates insiste em que a única ocupação daqueles que se dedicam à filosofia “consiste em preparar-se para morrer e estar morto”.[14] Esse trecho é importante porque nos chama atenção para a ambiguidade desse preparar-se para morrer e estar morto. Mas a percepção dessa ambiguidade só é suscitada em nós quando topamos com outros trechos em que fica patente que a morte de que Platão fala não é a morte metafísica, mas a morte enquanto renúncia ao modus vivendi típico do homem comum. Numa dessas passagens, Sócrates indaga a Símias se não lhe parece que um homem a quem não interessa os prazeres do corpo não está próximo da morte:



- Sem dúvida, a opinião do vulgo, Símias, é que um homem, para o qual não existe nada de agradável nessa espécie de coisas e que com elas não se preocupa, não merece viver, mas, pelo contrário, está muito próximo da morte quem assim não faz nenhum caso dos prazeres de que o corpo é instrumento?[15]



Embora a “morte” de cuja proximidade Sócrates fala aqui possa ser a morte como separação da alma com relação ao corpo, o “estar próximo da morte” não é estar propriamente morto, é viver como se estivéssemos mortos; por conseguinte, é viver sob o modo da separação, da renúncia a certo modo de viver ocupado com os prazeres do corpo. Entendemos, portanto, que, nesse excerto, já podemos, ao menos, entrever a concepção de morte como morte simbólica. Vejamos, contudo, se há outros trechos que nos autorizem a fazer essa leitura. Noutra passagem do diálogo, Sócrates fala de como a purificação era experienciada no Orfismo.

- Mas a purificação não é, de fato, justamente o que diz uma antiga tradição? Não é apartar o mais possível a alma do corpo, habituá-la a evitá-lo, a concentrar-se sobre si mesma por um refluxo vindo de todos os pontos do corpo, a viver tanto quanto puder, seja nas circunstâncias atuais, seja nas que se lhes seguirão, isolada por si mesma, inteiramente desligada do corpo e como se houvesse desatado os laços que a ele a prendiam?
- É exatamente isso.
- Ter uma alma desligada e posta à parte do corpo, não é esse o sentido exato da palavra “morte?”
- É exatamente este o sentido.[16]


Ora, Sócrates fala em purificação como uma forma de morte, de sorte que aquele que se tornou purificado atingiu um estado de vida onde a alma já não se deixa perturbar pelas necessidades e/ou paixões do corpo. O purificado vive como se a alma estivesse separada do corpo. Esse estado vital assemelha-se à própria morte propriamente dita; mas não é a morte metafísica. Portanto, parece-nos indubitável dizer que também nesse excerto “morte” significa “morte simbólica”. Ora, o filósofo, na medida em que se exercita na filosofia, se prepara para essa forma de morte, que consiste na renúncia ao modus vivendi do homem comum, sempre ocupado com as necessidades do corpo, sempre ávido de fruir prazeres fugazes. Mas o exercitar-se para essa forma de morte constitui uma etapa da preparação para a morte como desligamento da alma em relação ao corpo – portanto, para a morte propriamente dita. 
Finalmente, vale referir outra passagem da qual é possível inferir a compreensão da morte como morte simbólica. Nesse trecho, Sócrates fala sobre o manter-se afastado tanto quanto possível da sociedade (bem como do corpo) se quisermos nos aproximar do conhecimento verdadeiro.



(...) por todo tempo que durar nossa vida, estaremos mais próximos do saber, parece-me, quando nos afastarmos o mais possível da sociedade e união com o corpo, salvo em situações de necessidade premente, quando, sobretudo, não estivemos mais contaminados por sua natureza, mas, pelo contrário, nos acharmos puros de seu contato, e assim até o dia em que o próprio Deus houver desfeito esses laços. E quando dessa maneira atingirmos a pureza, pois que então teremos sido separados da demência do corpo, deveremos mui verossimilmente ficar unidos a seres parecidos conosco; e por nós mesmos conheceremos sem mistura alguma tudo o que é. E nisso, provavelmente, é há de consistir a verdade. Com efeito, é lícito admitir que não seja permitido apossar-se do que é puro, quando não se é!”. Tais devem ser necessariamente, segundo creio, meu caro Símias, as palavras e os juízos que proferirá todo aquele que, no correto sentido da palavra, for um amigo do saber. (...).[17]


Esse afastamento tanto quanto possível da sociedade e da união com o corpo significa perfazer aquilo para o qual se destina a vida do filósofo: a morte simbólica, sem a qual a busca da verdade se lhe torna inviável. Todavia, a condição para atingir esse estado de renúncia, de separação é o exercício da ascese, é viver de tal modo desinteressado, apartado, desocupado das solicitações do corpo, dos seus anseios desmedidos, moderando suas paixões. A ascese funciona, pois, como um registro semântico ou conector de isotopia[18], que possibilita conciliar os dois significados de morte em Fédon. Essa conciliação é possível porque a vida ascética preconizada para o filósofo tanto atende à necessidade de ele permanecer vivendo enquanto tal, ou seja, enquanto amante da sabedoria, em cuja busca persiste sem ser desviado dela pelas intransigências excessivas do corpo, pela desmesura de suas paixões, quanto atende à esperança que nutre em tomar posse da sabedoria quando do definitivo desligamento da alma em relação ao corpo.






REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHAUÍ, Marilena. Introdução à filosofia – Dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise de Discurso. São Paulo: Contexto, 2005.
 PLATÃO. Coleção Os pensadores. Diálogos: O Banquete, Fédon, Sofista, Político. São Paulo: Abril Cultural, 1972.
REALE, Giovanni. Platão. São Paulo: Loyola, 2007.




[1] A expressão “morte simbólica” foi sugerida pela professora Izabela Bocayuva como parte da leitura que ela mesma faz do significado da morte em Fédon.
[2] Usamos a expressão “homem comum” para designar o gênero de homem que vive imerso na cotidianidade, assumindo as crenças, os preconceitos, os comportamentos, os significados partilhados por todos os demais com quem convive num espaço sócio-político-cultural.
[3] Excederia os limites deste trabalho o pretender discorrer sobre o que foi a tradição órfica. Bastar-nos-á enfatizar que as doutrinas das quais Platão dará uma demonstração racional se situam na esteira da tradição órfico-pitagórica.
[4] Considerando-se Fédon, Fedro, República e Leis, o número das provas podem aumentar para cinco (Chauí, 2002).
[5] Fédon,79a-80b.
[6] Fédon, 64a.
[7] Ibid., 64b.
[8] Ibid., 67d-e.
[9] Ibid., 66b.
[10] Ibid., 66c-d.
[11] Ibid., 65d.
[12] Ibid., 69c.
[13] Ibid., 68a
[14] Ibid., 64a
[15] Ibid., 65a.
[16] Ibid., 67d.
[17] 67a.
[18] “Um conector de isotopias é um termo que possui dois ou mais significados, isto é, um termo polissêmico, presente no texto, que possibilita sua leitura em dois planos distintos, que permite a passagem de uma isotopia a outra”. (Fiorin, 2005, p. 115).