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segunda-feira, 14 de maio de 2012

"Quero inundar-me de madrugada a alma e ver a vida com os olhos do meio-dia" (BAR)

                                                

                                                   Pessoa em mim


Dentre tantas passagens surpreendentes que se acham no trabalho de Comte-Sponville, denominado de A vida humana, a que dou a saber abaixo merece nossa atenção:

“Ninguém escolheu viver, nem ser si mesmo.”
(p. 25)

Seguirá  o filósofo contestando a posição de Sartre, para quem “cada pessoa é uma escolha absoluta de si mesma”. Para Sponville, no que estou de acordo, um recém-nascido é  exemplo suficiente para invalidar essa crença. Como poderia ter ele escolhido nascer? O nascimento nos arremessa à existência. Nascer é entrar em relação com o acaso. Nascer é sorte, escreverá Sponville.
Também a personagem Astanavis, professora do curso de suicídio, no qual se matriculou Antoine, no romance Como me tornei um estúpido, de Marin Page, põe-nos diante da nossa insensatez, sempre que supomos ser-nos possível a liberdade absoluta. Suas palavras nos convidam a pensar sobre o que é ser realmente livre. Leiamo-las com esmero:

“- Há uma censura do suicídio. Política, religiosa, social, natural até, pois a senhora Natureza não gosta de que tomemos liberdades com respeito a ela, quer manter-nos sob as rédeas até o fim, quer decidir por nós. Quem decide em relação à morte dos homens? Nós delegamos esta suprema liberdade à doença, aos acidentes, ao crime. Chamamos a isso acaso. Mas é falso. Esse acaso é a sutil vontade da sociedade que pouco a pouco nos envenena com a poluição, que nos massacra com guerras e acidentes... A sociedade decide, assim, a data de nossa morte pela qualidade de nossa alimentação, pela periculosidade de nosso ambiente cotidiano, pelas condições de trabalho e de vida. Nós não escolhemos viver, não escolhemos a nossa língua, o nosso país, a nossa época, os nossos gostos, nós não escolhemos a nossa vida. A única liberdade é a morte; ser livre é morrer.”

(p. 46)

Esses dois trechos me levariam a compor um outro texto. Mas meu objetivo aqui é outro, conforme se verá.

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Debruçar-me-ei sobre um poema atribuído a Alberto Caeiro, um dos pseudônimos do poeta Fernando Pessoa, com vistas a apresentar uma interpretação que, sem embargo da recorrência às contribuições da Crítica literária, se pretende interessante e desbravadora. Interessante, porquanto creio ter um valor sócio-cultural (ainda que permaneça inacessível ao público em geral ou aos especialistas). Desbravadora, porque pretende revelar sentimentos que me estão escusos, confusos ou dispersos. A indefinição é o que me define hoje; e eu não me atrevo a delinear os contornos de meu estado de alma agora, pois isso me consumiria muito tempo; ademais, se o fizesse, me lançaria a tal empresa sem a esperança de que, ao cabo de tão árduo trabalho espiritual, eu lograsse sucesso.
Não me agrada a teorização da literatura. Confesso resistir à leitura da crítica especializada. O olhar teórico é uma forma de visão que reifica, que engessa, “fragmenta” a realidade observada. Portanto, o olhar teórico sobre a literatura acaba por tratá-la como uma coisa que permanece, que é estável, embora se reconheça sua fugacidade, sua fluidez, sua dinamicidade. O olhar teórico cria uma ilusão de permanência. Por exemplo, a poesia escapa a qualquer tentativa de reificação pelo olhar teórico. Os sentidos poéticos estão sempre dispersos (aliás, como em qualquer outro gênero discursivo); mas, na poesia, além da dispersão dos sentidos, há que admitir a transmutação contínua deles. Para captar tal transmutação, é necessário sentir a poesia, e não lançar sobre ela olhares teóricos. A transmutação deve ser experimentada por cada leitor, que produzirá uma leitura em consonância com os seus propósitos, seu conhecimento de mundo, seu grau de conhecimento intertextual, e com o acúmulo de suas experiências de leitura.
Observe-se agora o poema de Fernando Pessoa, que transcrevo abaixo:

Se Eu PUDESSE trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar.
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...

Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade como a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...


O mundo está em mim. Referir as impressões do exterior é necessário, porque, assim, mostro que a exterioridade biossocial não  está apartada de nós, como um mero cenário onde encenamos o drama da vida; essa exterioridade afeta-nos; exerce sobre nós uma influência intensa. Essa exterioridade é interioridade constitutiva; ela desarruma-me a alma.
Para principiar a reflexão sobre o poema de Fernando Pessoa, lanço mão de certos princípios de análise tomados à teoria gerativa de Análise do Discurso. No entanto, não me ocuparei com a exposição do modelo teórico e com a definição de seus conceitos; tais princípios me servirão apenas como instrumentos de interpretação, que me permitirão apresentar uma leitura o mais límpida possível. Quando me refiro à “leitura”, subentenda o leitor o adjetivo “analítico”, pois a leitura que se assenta em níveis implícitos do texto é, por definição, uma leitura analítica, a saber, uma leitura que desconstrói ou disseca o texto, de modo que possa construir-lhe um sentido. No entanto, a leitura que proponho não se realizará para além do poema, de modo a captar os intertextos, conquanto fique claro que toda leitura está em aberto, não é vedada, já que produz silêncios. Embora não me preocupe aqui em fazer uma análise intertextual, o poema, como todo texto, está grávido de intertexto.
Não me delongando na definição de leitura, convém dizer que o poema em tela se estabelece sobre as categorias subjacentes /humanidade/ versus /naturalidade/. Tais categorias constituem a oposição semântica de base do poema. O eu-lírico propõe que se aceite a naturalidade do homem. E para tanto, é necessário reconhecer o dualismo que tece o universo natural, do qual nós, seres humanos, somos elementos integrantes. O eu-lírico propõe, pois, uma (re)conciliação do homem com a natureza.
Como seja importante buscar a sistematicidade da análise que se propõe e como se admita que aquela oposição seja a base sobre a qual se construiu o poema, vou-me deter a meditar sobre o conceito de ‘natureza’ no poema de Fernando Pessoa. De imediato, pode-se afirmar que ‘natureza’ recobre um feixe de oposições; a natureza é um universo de oposições. Tais oposições se revestem de concretude em seqüências como “nem tudo é dias de sol”, “que haja montanhas e planícies”, “rochedos e erva”. Cabe fazer aqui uma ressalva: a oposição entre “rochedos” e “erva” se dá no nível conotativo. Assim, ‘rochedo’ se opõe a ‘erva’, tendo em conta a oposição entre ‘aspereza’ e ‘suavidade’, ou entre ‘o que é tosco ou rude à vida’ e ‘o que é favorável à vida’ (se pensarmos, por exemplo, nas ervas que são utilizadas para fins medicinais). Em “nem tudo é dias de sol”, depreende-se que há dias de chuva; portanto, estabelece-se, por inferência, uma oposição entre ‘sol’ e ‘chuva’. “Sol” é um elemento ‘fórico’ (ou seja, avaliado positivamente em determinada formação discursiva), e “chuva” é um elemento ‘disfórico’ (ou seja, avaliado negativamente).
Por outro lado, o conceito de humanidade se assenta numa suposta estabilidade; é a negação do contraste natural. Os homens, assim, parecem lidar mal com a flutuação entre felicidade e infelicidade; querem experimentar o prazer estável, perene (Freud nos ensinou por que tal condição não nos é possível). A oposição entre /físico/ e /psíquico/, que o eu-lírico se propõe desfazer, está clara no pararelismo entre “Sentir como quem olha” e “Pensar como quem anda”. Convém lembrar que /físico/ se associa a /natural/, e /psíquico/ a /humano/. “Pensar” e “Sentir” são faculdades do espírito; mas o Sentir também participa do físico; situa-se na intersecção; /andar/ e /olhar/ são faculdades físicas, a saber, do corpo. O corpo é um objeto natural; e é o corpo que vincula o homem, enquanto ser racional, ao ambiente natural (primitivo). “Ter um corpo” é admitir que somos um elemento dentre os elementos da natureza; o corpo nos insere no mundo. O homem “civilizado”, “educado” segundo os valores de sua comunidade e/ou sociedade, torna-se insensível às manifestações da natureza, torna-se indiferente à existência de uma natureza viva, da qual ele é um filho que se rebelou.
O conceito de humanidade evoca o conceito de homogeneidade. O homem busca a homogeneidade como aquilo que permite a estabilidade, porque desfaz os contrastes, transformando-os numa massa homogênea. O eu-lírico nos dá testemunho disso no limiar do poema: “Se eu pudesse trincar a terra toda/ E sentir-lhe um paladar/ Seria mais feliz um momento”. Note-se o desejo humano pela absorção do mundo através dos sentidos. O homem tem necessidade de domesticar a natureza. Ocorre que o “eu-lírico”, admitindo que aquela absorção acarreta estado de felicidade (felicidade que é instantânea), confessa-nos que nem sempre quer ser feliz, e acrescenta: “É preciso ser de vez em quando infeliz”. Logo, reconhecer a necessidade de ser infeliz, ou seja, aceitar o contraste entre /felicidade/ e /infelicidade/, torna o homem um ser natural; reintegra-o ao universo natural pela filiação à heterogeneidade, ao que está em eterna relação de contraste. É preciso reeducar para o sofrimento.
Na medida em que aceita as oposições entre os elementos naturais, o homem imerge na natureza, (re)integrando-se  a ela. A reintegração do homem à natureza depende da consciência de que o natural não é estranho ao humano, ao contrário do que se supõe geralmente (antes do social, há o natural): o homem necessita dos fenômenos naturais, por isso, como bem lembra o poeta, “e a chuva, quando falta muito, pede-se / por isso tomo a infelicidade como a felicidade/ Naturalmente, como quem não estranha/ que haja montanhas e planícies (...)”. Lembrou-me um pensamento que registrei certa vez, pelo qual confessei amar as tempestades.
Vale fazer uma pequena digressão, para fundamentar a interpretação que vê a natureza como um elemento reintegrador do homem. O homem é um ser que pode ser estudado sob várias perspectivas. Reconhece-se, consensualmente, que o homem é atravessado por uma dimensão natural e uma dimensão social. A dimensão natural o aproxima a várias espécies animais do planeta, a saber, dispõem-no entre os seres vivos que têm necessidades vitais, cuja existência se desdobra em estágios tais como ‘nascer’, ‘crescer’, ‘desenvolver-se’ e ‘morrer’. Podemos ir mais longe e dizer que somos partes integrantes do universo, visto que formados pelos mesmos elementos que deram origem às estrelas e aos demais corpos celestes. Os elementos químicos característicos da constituição dos seres vivos – carbono, oxigênio e nitrogênio – foram sintetizados nas fornalhas nucleares no interior das estrelas. Somos, pois, seres indissociáveis da estrutura do universo. Por que não filhos do Universo!
A dimensão social, por seu turno, na medida em que pressupõe a capacidade de o homem produzir cultura, traça uma linha divisória entre o homem e as demais espécies animais. É claro que há espécies animais que vivem em comunidades ou espécies de sociedade, como as formigas; mas a vida social humana apresenta características singulares: a) planejamento em função de objetivos específicos; b) divisão e organização de ações e operações; c) socialização dos instrumentos e dos produtos da atividade, ou seja, a acumulação das experiências de produção e a possibilidade de acesso das pessoas aos bens produzidos. Escusa dizer que a técnica fundamental que possibilita a dinamicidade e a recriação (representação) das relações sociais é a linguagem. Esta constitui a base das sociedades  humanas. Ela permite a conversão do instrumento técnico – que nos permite agir sobre a natureza – num signo, o qual permite evocar na mente do outro a ação e a finalidade para as quais o instrumento foi fabricado. O signo permite a socialização do fazer técnico, transformando-o em objeto de conhecimento, a saber, em saber técnico. Não desço a pormenores, embora me sejam interessantes as relações entre linguagem, cognição e cultura.
Em suma, quando se considera o homem em sua dimensão sócio-cultural, é preciso assumir como pressuposto o distanciamento entre ele e o meio bio-físico. O eu-lírico propõe um retorno ao berço natural, mas não como um estado de exílio do ser social – o que seria uma ilusão, pois seres humanos necessitam viver em sociedade; esta é uma superestrutura  que os educa, que os modela, que os condiciona, (embora não sejam completamente subjugados ou determinados). -, e sim como aceitação da dimensão natural como um das dimensões que os constitui.
Deve-se contemplar o belo no polo natural a que se atribui uma qualidade negativa. Nesse tocante, o homem é um ser “polarizado”, ou seja, tendemos a concentrar nosso anseio, afeto, interesse em certas extensões de coisas, rejeitando outras, que se lhes opõem. Por exemplo, amamos os dias de sol e nos demonstramos, muita vez, desfavoráveis aos dias de chuva. No Brasil, especialmente – país edificado sobre o mito da sensualidade, dos corpos dourados e sedutores – o “sol”, como símbolo que justifica/ sustenta a exposição dos corpos, como o elemento (simbólico) que incita a busca pelo padrão tropical de beleza (corpos dourados, bem torneados, etc.) – é supervalorizado. Quem nunca ouviu dizeres do tipo “todo carioca é apaixonado por praia”; “dia nublado não é a cara do carioca”. Não faço incursão aqui em discussão de ordem sócio-cultural, porquanto isso consumiria muito tempo.
O eu-lírico toma, portanto, a natureza como um elemento /eufórico/, ou seja, como um elemento positivo. Argumenta em favor da busca pela serenidade; mas só se pode ser sereno, quando se aceita ser natural. O homem alcança o estado de tranqüilidade, quando aceita saborear a felicidade e degustar a infelicidade. A reintegração do homem ao universo natural o coloca numa mesma cadeia de transformações; o dispõe entre os elementos regidos pelas leis naturais, dentre as quais destaca o eu-lírico a “morte”. A morte se estende a muitos aspectos do mundo bio-físico: os seres morrem, mas também as feições da natureza morrem. A morte é a condição natural que irmana o homem e as feições naturais do mundo: “E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre”.
Reconhecendo-se que o homem necessita contemplar o belo, como fonte de prazer, o eu-lírico nos ensina que é possível experimentar o belo no pólo negativo da natureza: “(...) o poente é belo e é bela a noite que fica...”. A beleza que se experimenta na contemplação do poente é extensiva ao nascimento da noite (pólo negativo).
Ao cabo de seu discurso, estando o homem reintegrado na natureza e convencido de que, em meio ao contraste das feições naturais, a coexistência entre a aspereza e a suavidade, entre a suntuosidade e a simplicidade , enfim, entre o positivo e o negativo, é possível extrair da terra o prazer, o eu-lírico submete sua expressão à síntese da essência do natural – natural que não se deixa domesticar-se completamente, pois esconde em suas entranhas uma vontade própria de vida, uma vontade infinita de potência, cujas forças são grávidas de uma intensidade tal, que escapa ao desejo humano por submetê-las ao seu talante. Destarte, encerra o poeta: “Assim é e assim seja...”.

sábado, 3 de março de 2012

"É humano querer o que nos é preciso, e é humano desejar o que não nos é preciso, mas é para nós desejável." (Fernando Pessoa)


Horas Murchas


O mal todo do romantismo é a confusão entre o que nos é preciso e o que desejamos. Todos nós precisamos das coisas indispensáveis à vida, à sua conservação e ao seu continuamento, todos nós desejamos uma vida mais perfeita, uma felicidade completa, a realidade dos sonhos (...)
É humano querer o que nos é preciso, e é humano desejar o que não nos é preciso, mas é para nós desejável. O que é doença é desejar com igual intensidade o que é preciso e o que é desejável, e sofrer por não ser perfeito como se se sofresse por não ter pão. O mal romântico é este: é querer a lua como se houvesse maneira de a obter”

(Livro do Desassossego, p. 83)

Pensamentos  vigorosos e grávidos de inquietude tomaram formas robustas em meu espírito; num átimo apenas, parecia-me possível apreendê-los para discipliná-los ao gosto de meu senso crítico-reflexivo. No entanto, se me abateu sobre o espírito um desânimo que me tornou espinhosa a tarefa. Quiçá, agora que começo a escrever estas linhas, o texto que se desnuda ao gesto interpretativo do leitor possa parecer-lhe amputado. As palavras antes vivas de uma energia sanguínea e fervorosas na alma quiçá lhe pareçam esquálidas neste papel virtual.
Se, por ventura, os enunciados subsequentes vierem a animar o leitor, peço-lhe que não desista da leitura. É justamente o desencanto e o desânimo que alicerçam o grito amordaçado, portanto, inaudito, destas palavras. Há, como observa Pessoa, o que é indispensável à nossa vida e o que é desejável, sem que seja necessário. Todavia, somos seres de desejo. É humano desejar aquilo que nos é dispensável, aquilo de que não temos necessidade. A psicanálise ensina-nos, porém, que nós, seres humanos, não sabemos, na verdade, o que desejamos. Estamos sempre insatisfeitos com aquilo que conseguimos ser. O produto de nossos desejos é sempre visto como incompleto, insatisfatório, ineficiente. É o que nos ensina Fábio Herrmann, em O que é psicanálise?:

“(...) nós somos aquilo que desejamos ser. É fácil entender, já que desejo é o nome  daquilo que faz com que a gente pense, faça, seja. Ele parece vir de dentro da alma, mas é criado na vida social e biológica, de sorte que se pode dizer até que “somos desejados” desta ou daquela maneira. Somos desejados ativos ou entediados, cruéis ou compassivos, apavorados ou distraídos. Aliás, a humanidade deseja-se como é; e dizia, constrói-se e constrói o seu mundo de acordo com tal desejo. Só que não acredita que, de fato, se tenha desejado como é. Assim, tendo transformado o mundo a fim de lhe servir de casa [cultura], acha que não está ainda bem feito, que sobram muitas coisas desumanas a humanizar. O céu é muito alto, o tempo é longo demais, as guerras muito frequentes. Ora, se o tempo e o espaço são demais infinitos, é que os homens têm em si uma aspiração em desacordo com seu tamanho e duração de vida. Quanto às guerras, quem as faz?
(p. 55)

Logo o leitor será conduzido ao desencanto que me alimenta estas palavras. Vale, por ora, referir outros trechos que nos ajudam a aclarar nossa consciência e assentar nossos pensamentos em terrenos sólidos. Leiam-se os trechos abaixo, colhidos de Preleções Sobre a Essência da Religião, de Ludwig Feuerbach. As citações constituem palavras do tradutor sobre as teses de Feuerbach, ainda na seção introdutória da obra. Leiamos com atenção os trechos, o primeiro dos quais mais longo, pois que referido na íntegra:

“A religião é, pois, a fase infantil da humanidade. Um dia o homem descobrirá que ele adorou sua própria essência, que criou em sua fantasia um ser semelhante a si, mas infinitamente mais perfeito, que está sempre pronto para lhe oferecer consolo no sofrimento e proteção nos momentos mais difíceis e angustiantes da existência. A religião será então substituída pela cultura, pela ética, pelo humanismo, porque só a cultura pode unir os homens, não a religião. A fé, a religião, separa, cria cisões entre os homens devido à rivalidade entre as diversas seitas. Não é ateu no verdadeiro sentido, diz Feuerbach, aquele que nega o sujeito, e sim o que nega os predicados do sujeito. Em outras palavras: o verdadeiro ateu não é aquele que diz “Deus não existe”, e sim o que diz “a bondade não existe, a justiça não existe, a misericórdia não existe”, etc., porque aqui surgiria o problema (...) concernente ao que seria mais importante: Deus ou suas qualidades? Ou ainda: devemos ser bons porque Deus é bom ou já não seria o próprio Deus bom porque é bom ser bom? Se o mais importante é então ser bom, podemos abraçar a bondade independentemente de Deus, mas se o mais importante é seguirmos a Deus, poderemos adorá-lo e cultuá-lo independentemente da bondade, o que a história mostra em todas as suas páginas através das crueldades praticadas pelo fanatismo religioso”.

(p. 10)

Feuerbach nos ensinará que a essência humana foi elevada e representada como Deus, para assim ser adorada. Divinizou-se o sentimento, a afetividade. Deus é mera abstração. Acompanhemos abaixo o raciocínio do autor, nas palavras do editor:

“Feuerbach concluiu então: não foi Deus que se fez carne para salvar o homem, porque antes de Deus se rebaixar ao homem foi necessária a elevação da essência humana até Deus, ou seja, foi necessária a divinização da afetividade, do sentimento. Deus torna-se, assim, um reservatório de todos os valores positivos aos olhos do ser humano, mesmo que sejam em si contraditórios. Por exemplo: Deus é infinitamente bom e justo, mas o homem não cogita que quem é infinitamente bom nem sempre pode ser justo e que, inversamente, quem é justo nem sempre pode ser bom. Deus, conclui então, é um conjunto de infinitos atributos exatamente porque não é nenhum, porque é uma mera abstração. Por isso é dito ser inefável, incognoscível, indefinível, inesgotável.”

(p. 8)

Mais adiante, encontramos outro trecho que vem confirmar uma intuição que tive a oportunidade de expressar em palavras alhures, neste espaço. Trata-se de um argumento poderoso, já que atinge o coração da fé. A conclusão a que chegamos é que, para crermos em Deus, ou para termos fé, precisamos ser egoístas, egocêntricos e soberbos. Este trecho busca desenvolver a origem da religião que, para o filósofo alemão, se encontra no medo. O medo produz no homem a necessidade da religião ou de Deus.

“O homem se sente condicionado, dependente; por isso teme pela sua vida, pela sua saúde, pela sua sorte, pelos seus interesses, sejam eles os mais quotidianos e superficiais. Daí poder a religião ser explicada também como um fruto do egoísmo. O homem chega a implorar aos deuses, antes de uma batalha, pela destruição dos seus inimigos. Muitas vezes não importa o que interessa a outros homens, mas sim o que interessa a quem implora, seja individual ou coletivamente. Assim, o homem rende graças por se sentir salvo ou curado, mas nesse momento não se lembra da justiça, pois não se lembra que outros homens não tiveram o mesmo privilégio e foram massacrados pelos mais estúpidos acidentes. Donde concluir Feuerbach que esta chamada Providência Divina ou Predestinação, que distribui felicidade e desgraça indistintamente para bons e maus, ricos e pobres, não possui uma só característica que a pudesse distinguir de “sua majestade o acaso”.
(p. 9)

Alhures, esta mesma ideia de egoísmo relacionada à fé ocorreu-me. Aquele que roga para que seja curado de câncer terá de ignorar que o vizinho ao lado, ou milhares de pessoas, morreu de câncer. Quem dá graças a Deus por ter saído ileso de um acidente, terá de ignorar que uma família morreu num acidente em outro lugar. Quem agradece a Deus o alimento que tem sobre a mesa, antes de degustá-lo, deverá ignorar que milhões de pessoas no mundo passam fome.
A sensatez de Feuerbach, seu espírito vivo e ácido, merece ser notada nas seguintes palavras que lhe são imputadas:



“Construo minhas ideias a partir das coisas e não procuro, como a maioria, ver as coisas através das ideias preconcebidas e impostas. E aos críticos respondia: Se for o caso, prefiro ser um demônio aliado à verdade do que um anjo aliado à mentira”.
(p. 11)


Se ao leitor pareceu que eu pretendo reunir argumentos em defesa do ateísmo, está enganado. Conquanto eu acredite que poderia eu escrever um livro sobre as vantagens em adotar o ateísmo, que poderia eu reunir nele uma enxurrada de críticas às religiões organizadas, especialmente à judaico-cristã, cuido não ser um empreendimento vantajoso, visto que o público a quem ele deveria atingir, possivelmente, o ignoraria por completo. Mais vale empregar esforços em empreendimentos que possam surtir efeitos desejáveis em curto prazo. Lamento, contudo, que livros como o de Bart D. Ehrman, como Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?, O que Jesus disse? O que Jesus não disse?, Os Evangelhos Perdidos, O Problema com Deus sejam completamente ignorados por muitos religiosos e apologistas da religião. Lamento que lhes sejam negados os conhecimentos que se acham nestes livros. Lamento que os dirigentes de suas formas de pensar, agir e compreender o mundo (pastores, padres, missionários...) lhes ocultem as contradições das Escrituras, a história de falsificações e disputas em torno dos Evangelhos. Lamento que ainda insistam em repisar clichês, tais como “religião não se discute”, coisa que aprenderam no interior de suas igrejas, já que posta seriamente em discussão a religião se esfacela, mostra sua nudez absurda. O sagrado só pode ser preservado, se intocável. Só há sagrado onde há proibição e veneração. Mas os objetos não são sagrados em si, mas assumem o valor de sagrado, pela ação simbólica dos homens. Isso me parece tão evidente, tão claro! Por que não o é para a grande maioria das pessoas no mundo?
Escrevo, no dia em que são trazidas à tona informações sobre as 32 pessoas que morreram na passagem de tornados no meio-oeste e sul dos Estados Unidos. Catástrofes que acontecem todo ano e que, surpreendentemente, não abalam a fé dos religiosos. Sequer parecem inquietados com o fato de que um Deus bom não poderia criar uma natureza tão destrutiva, tão nociva à vida dos seres que o adoram. A Natureza dá-nos em todo momento um tapa na cara, para que acordemos de nosso delírio. Mas ele é forte, penetrante, está arraigado na nossa consciência que, contaminada pela ideologia, de que é expressão, por excelência, a religião, inverteu a relação entre o céu e a terra. Se 32 pessoas morrem por causa de tornados, e se tornados são fenômenos naturais (da Natureza, supostamente criada por um Deus que é bom e amor), como eu poderia, ao menos, não desconfiar de que não há Deus nenhum a zelar por nós? As contradições a que se refere Feuerbach, que são engendradas pela ideia de Deus, sempre que a confrontamos com o modo como o mundo é (e não como gostaríamos, desejaríamos que fosse) saltam aos olhos:

1a  proposição: Deus é o criador de tudo que existe (da Natureza);
2a proposição: Deus é bom e justo
3a proposição: Deus é todo-poderoso

Vejamos o que realmente acontece: tornados matam 32 pessoas nos Estados Unidos; epidemias dizimam populações, etc. Se confrontadas com as evidências, as três proposições são falsas. A terceira proposição é facilmente refutada pela observação de que Deus não tem poder nenhum sobre a fúria da natureza. Se ele criou-a, não tem sobre ela qualquer controle. Nem sobre os microorganismos que matam milhares de pessoas.
Não me alongarei nesse tema, já que, como disse, não pretendo deslindar os embaraços feitos pela penetração das ideias religiosas nas formas como milhares de pessoas percebem/ compreendem o mundo.
Falava eu de empreendimentos que parecem merecer de nós algum esforço. Como pesquisador e professor, na minha agenda, figura o combate a outra forma de ignorância coletiva: a que engendra o preconceito linguístico. Outro fenômeno sócio-cultural tão característico de nossa sociedade que é disseminado em quase todos os setores e ignorado por quase todos os agentes sociais. Coloco-o no mesmo nível de gravidade, visto que produz exclusões, reforça as desigualdades.
A mim, lhe confesso, leitor, cansa ouvir coisas do tipo “Fulano não sabe falar português”, “Você só fala errado”, etc. Nesse domínio, também opera uma ideologia. As pessoas acreditam que há formas corretas e erradas em si mesmas de usar a língua. Acreditam que as expressões linguísticas são certas e erradas, como se tais valores independessem de quem as usam. E somente com muitas aulas de linguística, particularmente, de sociolinguística, podem, ao menos, reconhecer que ‘certo’ e ‘errado’ resultam de valorações sociais feitas pelos segmentos dominantes, ou seja, pela comunidade de falantes que gozam de poder econômico, político e cultural. A ideologia do erro em matéria de linguagem tem uma longa tradição, que remonta ao século V a.C.
Gostaria de que as pessoas fossem educadas, instruídas para que deixassem de escarnecer do modo de falar de seus semelhantes. Cumpre ao professor e à escola educar sociolinguísticamente nossos estudantes, para que compreendam que, por detrás da censura, dos comentários jocosos feitos sobre a fala do outro, existe o preconceito linguístico e a ideologia do “erro” a sustentá-lo. Se fosse trazido à consciência da grande maioria das pessoas que os usos considerados “errados” são aqueles feitos pelos membros das classes dominadas, pelos excluídos social, política e economicamente, ao passo que os usos considerados “corretos” são aqueles feitos pelos membros das classes dominantes, mais favorecidas social, política e economicamente, compreenderiam essas pessoas que o que determina a discriminação dos usos em certos e errados (que são tão só diferenças linguísticas!) é o poder e que tal discriminação vem reforçar as desigualdades, a exclusão nos domínios social, político e cultural. Quando usamos a língua, não custa insistir, podemos nos valer dela como um poderoso instrumento de discriminação social. Pelo uso da língua, demarcamos as fronteiras sócio-culturais entre nós e a quem nos dirigimos. Mostramos não pertencermos à mesma classe social do nosso enunciador, classe social que julgamos tão atrasada quanto “errados” são seus comportamentos linguísticos. Marcos Bagno, quiçá o mais inveterado combatente do preconceito linguístico em nosso país, bem escreve sobre o compromisso sócio-político que deve assumir todo professor de português.À página 81, em Nada na Língua é por acaso, escreverá:

“Numa sociedade que quer ser verdadeiramente democrática, é preciso conhecer, descrever, denunciar e combater os componentes do senso comum que funcionam como repressores de discriminação social, de humilhação, de opressão psicológica e até mesmo de violência física”.


Só a morte me apartará dos livros. A busca pelo conhecimento, em qualquer domínio que ele me seja possível, de acordo, contudo, com as minhas inclinações, só será interrompida quando a luz de meus olhos se apagar. Por vezes, recairá sobre mim o mesmo desalento que me faz buscar novos caminhos profissionais, que me faz dar as costas para a cultura do efêmero, do entretenimento, da alienação. Deixo a lua onde ela deve ficar; não aspiro mais do que àquilo que o meu breve tempo de existência me permite alcançar. E em face de uma audiência inaudível, contento-me em ser eu – um inconformado conformado a mim mesmo.









sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

"Invejo todas as pessoas o não serem eu" (Fernando Pessoa)

 
                                  

                                            Pessoa em mim
                            Impressões do desassossego


Ainda estou por descobrir se a vida me está atravessada na alma, ou se eu nasci atravessado na vida. No entanto, tenho este sentimento vigoroso de mim e ele abriu-me um livro que é só meu. Suas páginas são manchadas com minhas lágrimas e com o meu sangue. E nelas eu estampo minhas tristezas, desnudo minha alma que vive a deslizar pelo amor. Embora poucas, as alegrias que ficam espalhadas não são menos intensas.

Tenho uma forte sensação de mim. Não temo a morte porque compreendo que toda forma de vida tende a ela. É o imperativo natural: tudo que vive deve morrer. Abro as páginas de Pessoa e o que acho ali me traz uma paz perturbadora, um espanto sereno; e me deixo estar, com os olhos pregados nestas palavras:

“Fui um momento com consciência, o que os grandes homens são com a vida. (...) Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é ter subitamente a noção de mónada íntima, da palavra mágica da alma. Mas essa luz súbita cresta tudo, consume tudo. Deixa-nos nus até de nós”
(pp. 70-71)

O desassossego de Pessoa acolhe-me como um ninho acolhe uma ninhada. Este desassossego aninhado em minha alma desde que fui lançado a essa existência que excede às pretensões da razão, e desde que lhe reconheci o caráter contingente, pelas mãos de Sartre, esse desassossego me é tão íntimo, que suspeito teria sido eu que o sentia em outras épocas.

“Considero então que coisa é esta a que chamamos de morte. Não quero dizer o mistério da morte, que não penetro, mas a sensação física de cessar de viver. A humanidade tem medo da morte, mas incertamente, o homem normal bate-se bem em exercício, o homem normal, doente ou velho, raras vezes olha com horror o abismo do nada que ele atribuiu a esse abismo. Tudo isso é falta de imaginação. Nem há nada menos de quem pensa que supor a morte um sono. Por que o há-de ser se a morte se não assemelha ao sono? O essencial do sono é acordar-se dele, e da morte, supomos, não se acorda. E se a morte se assemelha ao sono, deveremos ter a noção de que se acorda dela. Não é isso, porém, o que o homem normal se figura: figura para si a morte como um sono de que não se acorda, o que nada quer dizer. A morte, disse, não se assemelha ao sono, pois no sono se está vivo e dormindo, nem sei como alguém pode assemelhar-se a morte a qualquer coisa, pois não pode ter experiência dela, ou coisa com que comparar. A mim, quando vejo um morto, a morte parece-me uma partida. O cadáver dá-me a impressão de um trajo que se deixou. Alguém se foi embora e não precisou de levar aquele fato único que vestira”.
(p. 71)

Não sinto medo da morte, tampouco me esquivo de pensá-la. Ela, como o amor, é tema recorrente em minhas páginas. Pensar a morte permite-nos sentir mais visceralmente a vida, a vida que pulsa em nossas entranhas, não do corpo, mas da alma. Quando pensamos, nos comprometemos mais com a vida. Pensá-la é ressenti-la. E cada pensamento que dedicamos a ela é um pouco dela que ressentimos. Quando pensamos sobre a morte, retiramos-lhe a catadura de horror. De fato, não acordamos da morte, como acordamos de um sono. O despertar para a morte só pode acontecer quando reconhecemos à vida o direito de morrer. Somos grávidos da morte, e esta certeza não se pode abortar. Abortam-se vidas prematuras, mas a morte está entranhada em nós; nascemos pré-destinados a ela. Não há vida sem morte; nem se pode morrer sem estar vivo. É óbvio, dirão, mas insistimos em negar essa implicação.

“O que tem a Assustadora Morte para Assombrar o Homem,
Se as Almas, assim como os Corpos, morrem?...
Da aflição e da dor nos libertaremos;
Não iremos sentir, porque não Seremos”.

(Lucrécio)

Se não mais seremos, não mais sentiremos; não-ser é o fim da consciência. Nada restará de nós, salvo as lembranças na memória dos que aqui ficaram. E, se, por ventura, tivermos sido artistas, legaremos nossa obra à posteridade; isso já é uma forma de sobreviver; mas entenda-se bem: a obra não torna à vida o artista, apenas o torna rememorável. O pó deixa a sua grandeza na obra legada. Isso distingue os artistas (poetas, escritores, escultores, pintores...) dos demais. A morte não os aniquila por completo.
A morte, que, por definição, não nos legará dor alguma (simplesmente porque não há mais o que sentir, quando se está morto) é temida porque ela atinge a todos nós, seres cientes dela, indiscriminadamente. A ela não importa se você se realizou ou não enquanto ser humano. O medo da morte advém, na verdade, do medo da não-realização enquanto pessoa. Provavelmente, uma pessoa que se realizou numa vida de longevidade não temerá tanto a morte.
A fragilidade da vida e a inexorabilidade da morte não me assombram, não me atormentam; sinto-as na lucidez imperturbável de meu espírito; sinto-as pulsantes em minha carne. Eu represento a morte de tudo quanto é baixo nesta vida e proclamo as alturas das coisas delicadas, frágeis, porém sublimes: a alma, o amor, a amizade, a ternura, a existência, a consciência de existir, de estar em relação de significação com os outros...
Eu só sei de mim, se não ignorar o outro, mas preciso dar-lhe a indiferença para alcançar uma dimensão mais potente e íntegra de mim. Dar-se demais ao outro nos fragmenta, e não convém viver colhendo os pedaços de nós, pois que talvez não tenhamos tempo de reunir os fragmentos.
Não temo a morte e sei que ela me espreita; porém o sentimento que tenho dela me adverte, me sinaliza como devo experienciar o tempo breve que tenho de vida. Eu existo por consentimento da morte. A morte é como o credor que nos permite viver, a despeito das dívidas. Viver bem é adiar o pagamento.
Uma consciência aguçada da existência implica reconhecer que a divisão passado-presente-futuro é mera abstração feita pelos homens, é uma forma de representar a temporalidade que se experiencia; uma dimensão que, de outro modo, é um ir-se imensurável. Donde se segue que o futuro é a não-consciência; que sou no presente e só posso saber de mim neste instante mesmo em que estou consciente de que sou entre as coisas e as pessoas que me cercam. O futuro não é senão o presente que não se realizou para a consciência para a qual só há presente (o passado é memória da qual temos que tomar consciência, só assim o passado é presente a nós). A vida se dá a nós através dos momentos, dos instantes e dos sentimentos experienciados, desde o momento em que acordamos até o momento em que repousamos para o sono da noite. A vida se dá a nós pelos relacionamentos, pelo existir que é estar em relação com o mundo, uma relação significativa. Os homens são seres de sentido e o sentido lhes é essencial. Homens vêem-se às voltas com questões sobre o sentido da vida. Quando o sentido lhes escapa, a vida perde o valor. Essa necessidade de dar sentido às suas experiências de mundo explica por que os homens precisam dar sentido à morte. Se a morte é o fim da consciência, se ela porá fim a tudo que experienciamos, então deve ela também ter sentido. Somos caçadores de sentido! Mas a morte é o esvaziamento do sentido. Vida e morte nos vinculam ao absurdo. A morte implode a razão. A vida a excede. À razão resta compreender os modos como a vida se dá, como se manifesta, como é experienciada, sem nunca pretender alcançar-lhe as raízes que lhe permitiram acontecer (para o homem comum deve ser assim). A vida aconteceu e nós passamos a existir. Trazemos na alma excesso de sentido que será destinado ao nada. Para mim, é isso que torna a vida plena de sentido.

sábado, 19 de novembro de 2011

"Tudo que sabemos é uma impressão nossa, e tudo que somos é uma impressão alheia (....)" (Fernando Pessoa)

                                      

                                                  Divagações
                                              Do desassossego

Bastam-me estes dois passos de Pessoa, em Livro do Desassossego, para que eu possa aqui dar um testemunho de mim. Deles se originará esta enxurrada de reflexões, com as quais eu me derramo neste papel virtual.

“O único modo de estarmos de acordo com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios”.
(p. 56)

“Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou”
(p. 45)

Intentando evitar a fratura do pensamento do poeta, refiro abaixo, na íntegra, os textos donde estes fragmentos foram retirados:

Tornamo-nos esfinges, ainda que falsas, até chegarmos ao ponto de já não sabermos quem somos. Porque, de resto, nós o que somos é esfinges falsas e não sabemos o que somos realmente. O único modo de estarmos de acordo com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios. O absurdo é o divino”.


Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou. Uma réstia de parte do sol, um campo próximo, um bocado de sossego com um bocado de pão, não pensar muito o conhecer que existo, e não exigir nada dos outros nem exigirem eles nada de mim. Isto mesmo me foi negado, como quem nega a esmola não por falta de boa alma, mas para não ter que desabotoar o casaco”.

Agora, preciso sentir-me. Preciso pensar, mas pensar dói. Não que seja uma dor que repercuta fisicamente; é uma dor mais aguda porque esteriliza a alma; é quando desejamos tanto dizer, que as palavras se tornam escassas, elas nos escapam; o sentido míngua. Na cama, livros espalhados; estava disposto a lê-los, mas os deixei ali, para escrever. Ler e escrever, ler e escrever, escrever e ler, e ler para pensar e escrever para refletir sobre o já pensado e sentir o que foi lido e escrito e pensado. Ao cabo dessas atividades, resta-me o sentir. É o sentir a que viso. O sentir é o sentido – o sentido para o qual aponta meu esforço intelectual. No início, eram as palavras; no fim, é o sentir.
Meu irmão, que, em raras ocasiões pode dizer-me alguma coisa significativa, declarou-me, há poucos dias, que há pessoas que apenas passam pela vida. Sim, como os transeuntes por que nós passamos cotidianamente e deles nos esquivamos. Alguns de nós são transeuntes da existência. Atravessam as ruelas, as ruas, as estradas, as avenidas da vida com o único propósito de chegar ao outro lado. São meros atravessadores que sabem – aliás como todos nós sabemos – que vão morrer e, ainda assim, se contentam em apenas atravessar.
E eu não me refiro aos indigentes, ao largo dos quais passamos indiferentes nas ruas. Não me refiro aos desgraçados, aos miseráveis, aos marginalizados deste mundo, cuja existência míngua a cada dia, sem que de nossas pálpebras caia uma gota de lágrima. E não nos culpemos por isso, já que não temos para com eles nenhuma afinidade. O lamento, quando há, é sufocado pela indiferença, que é nosso escudo contra as decepções da vida. Ser indiferente é um estratagema para nos protegermos; ser indiferente, muitas vezes, é necessário. A felicidade de cada um de nós depende de que olhemos para o mundo indiferentes; nosso olhar deve ostentar a indiferença, porque, do contrário, viveríamos imersos num profundo mal-estar e faríamos da melancolia nossa acompanhante no viver cotidiano. Tenho de reconhecer, em que pese o excesso de sentir que tece a essencialidade de minha alma, que certa dose de insensibilidade é condição para que possamos olhar através da janela, mesmo num dia chuvoso, e sentir a alegria de viver.
Dizia que não me referia aos indigentes, mas aos que foram privilegiados pela vida, ou, se preferirem, os privilegiados socioeconomicamente.  No entanto, não quero dar ao meu discurso um tom sociológico. Existem, como cantou Tim Maia, os que nascem para sofrer e os que nascem para sorrir. E dentre os que sorriem demais ou esporadicamente, dentre os que são abastados e os que vivem sem muitos recursos econômicos, há uma grande faixa de pessoas que entulham a vida de prazeres fugazes, que não alcançam senão as aparências das relações e que, portanto, apenas seguem na travessia.
Estas pessoas estão, portanto, de acordo com uma das formas de a vida se dar; elas seguem as tendências como seguem as roupas da moda; e como a moda é, por definição, comportamento efêmero, é o espaço institucional em que tudo que circula é passageiro e descartável, essas pessoas estão sempre dispostas a abandonar certos padrões, certas tendências, certos modismos, sempre que lhe são oferecidas alternativas, novidades, últimos lançamentos. A travessia torna-se assim camaleônica. Elas se adaptam a dadas condições de existência social; dançam conforme a dança (enquanto se entusiasmam com as novas músicas). Acontece que eu não sei dançar muito bem, minha dança descompassa e meu canto desafina. E a música de minha alma remonta a tempos antigos em que o deleite provinha das sonatas do coração.
Donde se segue que há entre mim e a vida um profundo desacordo, visto que eu sou fiel a mim mesmo, estou tão de acordo comigo, que só posso dormir tranquilo quando o primeiro pensamento da manhã se harmoniza com o último pensamento da noite, tornando-me presente a mim mesmo. Evidentemente, ao longo do dia, milhares de pensamentos trafegaram em minha alma, alguns, certamente, desencontrados; mas, ao cabo de um dia, se meu último pensamento traz-me à consciência o sentido de unidade entre o que fui (em momentos anteriores) e o que sou, posso, então, dormir um sono sereno.
A intuição do poeta a respeito de nossa incapacidade de nos conhecermos a nós mesmos realmente é confirmada pelas ciências da mente. Somos um estranho vivendo em nós mesmos. Algumas pessoas experimentam isso de modo desastroso; outras lidam com esse estranhamento com serenidade; outros mais com perspicácia; e ainda há os que, estranhando-se a si mesmos, fazem arte. Há os que se sentem confortáveis em si mesmos; e há os que dariam tudo para evadir-se (assim mesmo furtivamente, para que não sejam notados pelo superego, que viria nessa tentativa de fuga uma transgressão).
Entre os transeuntes da existência, há milhares que pedem muito à vida. Desejam carros, milhões de reais, aquela viagem dos sonhos, um condomínio de luxo, um corpo escultural, o cargo de poder, entre outras tantas aspirações. Sinto que meu sofrimento primevo fez-me pedir pouco à vida, salvo o desejo de vivê-la. Isso, talvez, seja muito, mas nem sempre a vida me caiu como uma roupa bonita que nos torna irresistível numa noite agitada. Houve tempo em que a vida me era pesada, me sabia indigesta.
Com a maturidade e, embora na infância ofertado com mimos e presentes, descobri, entre as superfluidades que entulham nossas vidas, o essencial. Então, pedi à vida esse essencial: amor e conhecimento. O conhecimento, ou o saber é uma riqueza cuja conquista só dependia de mim (embora eu tenha contado com a ajuda de tantos outros); mas notem “com a ajuda”. O amor, contudo, não depende de quem o deseja; o amor implica o outro; e os outros com os quais me relacionei não participavam da mesma extensão do amor da qual eu tomava parte. O amor convoca o outro a participar de um mesmo sentido conosco. Não tardou para que eu reconhecesse que a reciprocidade amorosa era um pedido exorbitante. É que para muitos o amor não é o essencial; é um adendo que se vier a calhar, muito bem, senão, o eu se abarrota de si e, na ilusão de sua auto-suficiência, pensa ou diz, mesmo que contrafeito, “estou feliz sozinho”.
A felicidade na solidão é uma ilusão constante numa geração incapaz de experienciar relações duradouras e emocionalmente consistentes. Frustrados, homens e mulheres da modernidade líquida enganam-se a si mesmos, e supõem, mesmo que contrariamente à própria natureza da espécie de que eles são exemplares (de uma perspectiva biológica), que eles se bastam a si mesmos. A crença na felicidade de viver solitariamente é produto da ideologia individualista que prescreve a supremacia do indivíduo sobre o coletivo. Primeiro eu, depois eu, depois eu e... depois eu...
Entendam, mesmo que eu possa parecer enfadonho, mas o óbvio é carecido de atenção, já que, muitas vezes, ele nos elucida: nós, seres humanos, somos seres sociais. A relação entre o indivíduo e o todo (a sociedade) é uma relação dialética, na medida em que não há indivíduo sem o social, e este não pode ser pensado sem os indivíduos que o compõem. Mas a ideologia individualista mascara essa evidência.
Felizmente, existe o amor, que nos convoca para olhar o social, o amor nos implica nesse social, nos abre para o outro. A abertura que o amor nos provoca, que é nossa capacidade de nos relacionar com o exterior (não só com o interior), torna-nos sensíveis ao entorno social, que inclui as pessoas a quem destinamos carinhos ou nossas disposições de afeição. E não se entenda esse amor como amor universal, que é uma utopia, uma idealização, fruto de nossa ingenuidade. Freud nos ensinara a esse respeito: o amor é uma moeda cara demais para ser distribuída aleatoriamente ou a todos. É impossível amar aquele que nos é estranho, com o qual não temos nenhuma afinidade.
Talvez, melhor seria falar em moral. É a ela que devemos, na verdade, essa abertura para o social. A moral surge no momento em que um homem se relaciona com outro homem, em que cada um tem de reconhecer o domínio de sua individualidade e liberdade e atuar em benefício comum, ou, ao menos, tentando evitar prejuízos recíprocos. A moral surge no instante do confronto com o sujeito e o social, ou o mundo. No entanto, creio em que sem o amor não é possível a moral. Mas insisto em que se trata de uma forma específica de amor: é o amor que rejeita toda forma de violência. Claro: se os homens vivessem abandonados aos seus impulsos, atacando e matando uns aos outros, a vida em comunidade seria impossível e é mais vantajoso para a vida individual que haja um esforço cooperativo entre todos - homens e mulheres.
Já enfadado, fico com a sensação de que não disse tudo. Ao tentar externar-me com exatidão, creio ter oferecido senão inexatidões de minha alma; é a sensação de que eu me escapo a mim mesmo e nunca atinjo um núcleo de sentido palpável. Talvez, porque o sentido não é palpável mas fluente... ele se esvai... escorre e tentado capturá-lo, nos perdemos no meio do caminho, como quem se encontra perdido numa encruzilhada.
Sinto que sou um projeto irrealizável e que o meu eu mesmo é uma afronta ao mundo. De resto, sobra-me aquela sensação de que estou de acordo com o eu sou.