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quarta-feira, 29 de agosto de 2018

"Toda experiência profunda se formula em termos de fisiologia" (Cioran)



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A disposição afetiva pessimista e a disposição afetiva trágica: natureza e diferenças



1. As disposições afetivas trágica e pessimista


O conceito de afeto, tanto quanto o de disposição, cumprirá um papel importante no horizonte hermenêutico em que se inscreve este texto. Afeto é um conceito que encontramos na Ética de Spinoza. Nesse livro, afeto relaciona-se a pathos (paixão) e recobre a ideia de aquilo que nos põe em movimento, em relação com o mundo[1]. O afeto descreve certo modo de relação que estabelecemos com o mundo. Afeto “é, ao mesmo tempo, o sentimento e a impressão que causamos nos outros e o que os outros causam em nós” (Schöpke, 2010, p. 16). A categoria de afeto cumprirá a função de um dispositivo de interpretação com o qual buscaremos compreender as filosofias de Schopenhauer e de Nietzsche como exercícios espirituais destinados a cunhar dois tipos vitais humanos radicalmente distintos.
O conceito de disposição, por seu turno, encontra registro na obra Ética a Nicômaco, de Aristóteles. Nesse livro, disposições se definem como “estados de caráter formados devido aos quais estamos bem ou mal dispostos em relação às paixões”[2]. Como no excerto aristotélico a “disposição” se define como ‘estados do caráter’, e o caráter, para os gregos, combina entre si os aspectos psicológico e moral, buscamos em Jung uma definição de disposição que não abriga em seu campo intensional qualquer referência à moral. A definição proposta por Jung tem a vantagem de ser descritivamente adequada à compreensão do que entendemos por disposição afetiva. Para Jung, “disposição é uma propensão da psique para realizar algo determinado, para agir e reagir em determinada direção. (...) Pode-se definir disposição como uma ordenação – quer inata quer resultante da experiência – dos elementos orgânicos ou dos elementos mentais, ou de ambos”. (ênfase nossa).[3] Duas “fatias” do significado de disposição nos interessam para efeito de aplicação à proposta interpretativa em curso neste trabalho: propensão para e ordenação. Tendo em conta a compreensão jungiana de disposição como propensão para e ordenação dos elementos orgânicos quer inatamente fixada, quer decorrente da experiência, propomos subsumir o conceito de disposição no de destino. Mas destino não deverá ser entendido como ‘poder mais ou menos personificado que determina de modo irremediável o curso dos acontecimentos’. Ao tomar disposição como destino, aproveitamos as noções de propensão para e ordenação orgânico-mental, para construir dois significados que se fundem no conceito de destino: 1) como destino, a disposição caracteriza certo modo de estar afetado pelo enviar-se, pelo destinar-se da vida, cuja dinâmica de forças produz tais ou quais efeitos psicofisiológicos sobre um corpo vital humano; 2) como destino, a disposição não está sob o nosso controle, no sentido de que não escolhemos ser constituído psicofisiologicamente de tal ou qual modo[4].
Vale dizer que do fato de que não escolhemos a disposição que nos constitui não resulta que seja ela absolutamente inalterável. Não obstante, a alteração de uma disposição não depende de um ato deliberativo da vontade. Para que a alteração da disposição se dê, necessário é que o enviar-se da dinâmica da vida nos afete de modo diferente, que as conformações do enviar-se da vida modifiquem a estrutura afetiva de nosso corpo.
Entenderemos, portanto, por disposição afetiva um modo de ordenação dos afetos que nos predispõem, que nos fazem propensos a sentir e a perceber o mundo em consonância com o modo como o destinar-se da dinâmica da vida nos afeta e incide sobre nós, vale dizer, sobre nosso corpo, enquanto totalidade psicofisiológica.
Crendo esteja esclarecido o conceito de disposição afetiva, vamo-nos debruçar sobre a apresentação das características distintivas, das quais nos dá testemunho Rosset (1989), das visões pessimista e trágica. O esclarecimento dessas características deverá contribuir para que não se confundam as duas visões de mundo, muito embora elas não se diferenciem absolutamente. Conquanto seja pertinente, do ponto de vista teórico e metodológico, a maneira como Rosset as diferencia, no que nos diz respeito, será mais importante sublinhar a forma distinta como as duas disposições afetivas – a disposição afetiva pessimista e a disposição afetiva trágica – respondem aos dois pressupostos básicos, os quais as cosmovisões pessimista e trágica compartilham entre si:

1º pp. uma produção enunciativa sobre o pior;
2º pp. o reconhecimento da inerência do sofrimento ou da dor à dinâmica da vida.

Em outras palavras, tanto a cosmovisão pessimista quanto a cosmovisão trágica concordam em que: 1) é possível desenvolver um pensamento do pior; 2) a dor ou o sofrimento são experiências inerentes à dinâmica da vida.
Doravante, lancemos olhares sobre o modo como Rosset nos apresenta a distinção entre o pensamento trágico e o pensamento pessimista. Rosset começa por notar que subjaz a todo pensamento filosófico um desejo; esse desejo reside na origem da filosofia. No caso particular da filosofia trágica, o filósofo é movido por algo que “quer o trágico”. Nietzsche é uma expressão paradigmática desse querer, pois seu querer assume a forma de um “sim” incondicional à vida. Não cabe aqui esclarecer o que significa, para Nietzsche, dizer sim incondicionalmente à vida. É forçoso protelar o tratamento desse ponto para que não nos desviemos demais do objetivo a que visamos nesta seção, qual seja, o de dilucidar a diferença entre as disposições afetivas pessimista e trágica. Não deixaremos, no entanto, de tecer considerações esclarecedoras no que toca ao caráter incondicionalmente afirmativo da filosofia trágica de Nietzsche.
Rosset prossegue afirmando que “a intenção trágica [sic.] não é comandada por uma visão pessimista do mundo”. (Rosset, 1989, p. 19). Disso não resulta que o pensamento trágico não seja expressão de uma visão de mundo “mais pessimista que qualquer pessimismo”. (ibid.). O que o pensamento trágico produz é uma interpretação deveras pessimista do real, mas essa interpretação não se encaminha no sentido da desaprovação do mundo, muito pelo contrário. O pensamento trágico, a despeito de pôr a nu o caráter doloroso da existência, a miséria da condição humana, a inexorabilidade do destino humano que, posto sob a consciência crítica, se revela irracional, sustentará uma aprovação jubilosa da existência.
Rosset se refere a duas diferenças maiores entre o pensamento trágico e o pensamento pessimista: a diferença de conteúdo e a diferença de intenção. Do ponto de vista da diferença de conteúdo, o pessimista supõe a existência de uma natureza, do ser, de uma ordem do real, a qual considerará má e insatisfatória. É nesse sentido que o pessimista afirma o pior. O pessimismo realça e condena a incoerência do já ordenado: o mundo deve ser desaprovado, porque sua ordem é má. Para Rosset, a filosofia pessimista é uma filosofia que, assumindo o ‘dado’, ou seja, o mundo já ordenado, dotado de uma “natureza” (essência), reputá-lo-á mau, tenebroso, um erro que não deveria ser. Por outro lado, o pensamento trágico, negando a existência do ‘dado’, isto é, do mundo ordenado, se constitui num pensamento do acaso. Nas palavras de Rosset,


Não somente o pessimista não acede ao tema do acaso, como ainda a negação do acaso é a chave-mestra de todo pessimismo, assim como a afirmação do acaso é aquela de todo pensamento trágico. O mundo do pessimista está constituído de uma vez por todas; donde a grande palavra do pessimista: “Não se escapa”. O mundo trágico não foi constituído; donde a grande questão trágica: “Aí não se entrará jamais” (...). (ibid. p. 20, ênfases no original).


Ainda segundo o autor, não é nem o humor, nem o afeto que distinguem entre os dois pensamentos. O pensador trágico e o pensador pessimista encontram-se em igualdade de humor e afetos.
Se não são os afetos nem o humor que estão na base da diferenciação entre o pensamento trágico e o pessimista, em que termos se deve expressar tal diferença? Do que se expôs, fica claro que a filosofia trágica e a filosofia pessimista se diferenciam relativamente à afirmação ou à recusa de uma ordem do mundo já dada. O pensamento trágico a recusa; o pensamento pessimista a supõe e afirma a irracionalidade dessa ordem dada. Assim, para o pensador pessimista, o que existe não é objeto adequado para o pensamento. Segundo Rosset, o pensamento pessimista é a grande filosofia do ‘dado’, isto é, a filosofia pessimista assume a existência de um mundo já ordenado, cuja natureza é má. O pessimismo filosófico, na medida em que é uma filosofia do ‘dado’ enquanto já ordenado, coincide com a filosofia do absurdo.
Deveríamos concluir do que precede que a categoria do absurdo é um traço distintivo importante na caracterização dos pensamentos pessimista e trágico? Será que estamos autorizados a dizer, a partir de Rosset, que a filosofia trágica nega a absurdidade da existência? Uma tal conclusão é autorizada por Rosset, consoante podemos ler no seguinte passo:



Esta filosofia do absurdo [a filosofia pessimista] não é tanto contrária ao pensamento trágico quanto sem relações com ele. Trata-se aí, com efeito, de uma absurdidade segunda, condicionada, que se sustenta no sentido uma vez constituído: mostra-se que os “sentidos” apresentados pelo mundo existente recobrem outro tanto de não-sentido em relação a tudo aquilo que o homem se pode representar em matéria de finalidade”. (ibid., p. 22-23, ênfase no original).


Devemos, pois, reter que o pensamento pessimista, porquanto supõe a existência de um mundo já ordenado, pressupõe que esse ordenamento está investido de um sentido já constituído. Mas esse sentido já constituído pelo fato mesmo de haver ‘ordem’, uma natureza do mundo, se imiscui com uma vasta facha de sem-sentido. Em outras palavras, por mais que o homem possa “ver” uma ordem teleologicamente constituída no mundo, há sempre uma grande parte dessa ordem que se mostra desprovida de qualquer sentido.
Para o pensador pessimista, o absurdo está aí, já constituído, já instalado nas formas como o sem-sentido irrompe na malha do sentido, de tal modo que o pretenso sentido da ordem do mundo não elide as tribulações do sem-sentido, sempre persistente e perturbador daquela ordem. Destarte, o pensamento pessimista, seguindo a compreensão que tem dele Rosset, assume um sentido dado, a partir do qual esse pensamento explorará a fragilidade, a insuficiência desse sentido. O pensador pessimista denuncia o caráter insensato da ordem ontológica vigente. A ordem do mundo, no entanto, vige, mesmo que se apresente como desordem, como absurda (isto é, sem sentido).
Por seu turno, o pensamento trágico afirma a inexistência de um sentido já dado, mesmo que o mais absurdo. O pensador trágico sustenta a insignificância de tudo. Sendo afirmação do acaso, o pensamento trágico “é não somente sem relações com a filosofia do absurdo, como ainda é incapaz de reconhecer o menor não-sentido; o acaso sendo, por definição, aquilo a que nada pode desobedecer”. (ibid., p. 23, grifos nossos).
Consideremos, agora, a diferença entre a filosofia pessimista e a filosofia trágica do ponto de vista da intenção. Em consonância com esse ponto de vista, a sabedoria pessimista se caracteriza pela constatação, resignação e sublimação mais ou menos compensatória. A sabedoria trágica, por outro lado, recusa a constatação, ou, melhor ainda, se orienta pela impossibilidade de constatação. Tampouco é uma sabedoria que se erige “ao abrigo da ilusão” (ibid.). Também não afirma uma felicidade “ao abrigo do otimismo” (ibid.). Segundo Rosset, o pensamento trágico busca “uma coisa inteiramente outra: loucura controlada e júbilo”. (ib.id.). Façamos eco às palavras de Pascal, embebidas na loucura jubilosa do homem trágico, que cai no abismo dançando: “Nós somos tão necessariamente loucos que seria estar louco por uma outra espécie de loucura, não estar louco”. (...) “Alegria, alegria, lágrimas de alegria”. (apud. Rosset, p. 23-24).
Em que medida as considerações de Rosset sobre a diferença entre a sabedoria trágica e a sabedoria pessimista ajudam-nos a determinar a orientação diversa, não coincidente, das disposições afetivas a que já aludimos? Da compreensão de Rosset da diferença entre as duas sabedorias, colheremos as noções de acaso e absurdo, aprovação incondicional e desaprovação.
Em consonância com a lição de Rosset, diremos que a disposição afetiva trágica afirma e/ou celebra o júbilo na insignificância radical da existência, a coragem no enfrentamento do caráter deveniente da vida, a qual se revela como fluxo incessante que arrasta tudo que existe para o aniquilamento. A disposição afetiva trágica sustenta a aprovação jubilosa da existência.
A disposição afetiva pessimista, por sua vez, é movida pela resignação em face da crueldade do real, pela constatação do caráter insatisfatório, absurdo e aterrador da existência. A resignação pessimista pode vir acompanhada de uma proposta compensatória ou consoladora, animada, no entanto, pela negação da vida sem concessão, pela recusa da existência como irremediavelmente má, pela desaprovação da ordem do mundo considerada como desprovida de qualquer sentido último.
Acresce-se que as duas disposições afetivas afirmam o desespero, mas o fazem em sentidos diversos: a disposição afetiva trágica afirma o desespero jubiloso que quer o real tal como é. Para a disposição afetiva trágica, o devir, que caracteriza a impermanência de todas as coisas, que torna todas as coisas destituídas de densidade ontológica, não constitui razão para a negação do mundo. Por isso, o pensador trágico dará sua aquiescência ao fluxo incessante, ao destinar-se inexorável de tudo que existe ao aniquilamento. Um exemplo desse espírito trágico está muito claramente sumariado no seguinte trecho de Ecce Homo (2013, p. 107-108):



A afirmação do fluir e da destruição, elemento decisivo numa filosofia dionisíaca; o dizer “sim” à contradição e à guerra; o devir, com uma recusa radical do próprio conceito de “ser”- nisso tenho de reconhecer, em qualquer circunstância, o que está mais próximo de mim dentre o que até agora se tem pensado.



Consoante afirma Rosset (2000, p. 35), a sabedoria trágica enuncia “(...) uma fidelidade incondicional à nua e crua experiência do real”.
A disposição afetiva pessimista afirma o desespero como desesperança desorientadora, quanto à possibilidade de encontrar qualquer sentido último para a existência. Esse desespero aterrador inspira no espírito pessimista o pensamento de recusa do real tal como é, ao mesmo tempo em que lhe inspira a força com que denuncia o caráter insatisfatório, contraditório e mau da existência. O desespero pessimista orienta-se sempre no sentido da negação do mundo: desespero-me de buscar um sentido para a existência – diz o pessimista -, logo a existência é um inconveniente, um desastre, um acontecimento absurdo ao qual só posso dar minha desaprovação. A lenda do rei Midas, relatada por Nietzsche em O nascimento da tragédia, e referida antes por Schopenhauer, em O mundo como vontade e representação, merece ser evocada aqui como um exemplo paradigmático do espírito pessimista, vale dizer, da negação da existência que caracteriza fundamentalmente o pensamento pessimista. Escreve Nietzsche:



(...) Reza a antiga lenda que o rei Midas perseguiu na floresta, durante longo tempo, sem conseguir capturá-lo, o sábio SILENO, o companheiro de Dionísio. Quando, por fim, ele veio a cair em suas mãos, perguntou-lhe o rei qual dentre as coisas era a melhor e a mais preferível para o homem. Obstinado e imóvel, o demônio calava-se; até que, forçado pelo rei, prorrompeu finalmente, por entre um riso amarelo, nestas palavras: - “Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer”. (Nietzsche, 2007, p. 33).


       
             2. A influência de Schopenhauer na formação do pensamento de Nietzsche


Escapa à alçada desta exposição discorrer em pormenores sobre a influência que a filosofia de Schopenhauer exerceu sobre o pensamento de Nietzsche. Nosso intento é mais modesto: queremos apenas assinalá-la de tal modo, que se torne possível o conhecimento da dívida que o pensamento de Nietzsche tem, sobretudo nos anos de juventude desse autor, para com a filosofia de Schopenhauer. A influência da filosofia de Schopenhauer sobre a formação do pensamento nietzschiano não deve ser interpretada de modo reducionista como a presença de marcas, de “pegadas” schopenhauerianas que sinalizam uma reapropriação e ressignificação pelo pensamento de Nietzsche de domínios de significado do pensamento de Schopenhauer. A influência se deixa ver também nos pontos claros de desacordo entre esses dois filósofos, na insistência com que Nietzsche cita Schopenhauer para censurá-lo, para marcar os pontos de discordância entre seu pensamento (de Nietzsche) e o pensamento desse filósofo pessimista.  Assim, a marca de influência de um pensador e/ou autor sobre outro se deixa ver não apenas nos rastros de continuidade que podemos identificar, mas também nos rastos de ruptura, de dissensão entre os dois pensamentos.
A descoberta da filosofia de Schopenhauer por Nietzsche se dá quando da leitura que este faz do livro O Mundo como Vontade e Representação. Àquela altura, Nietzsche frequentava os cursos de filologia do professor Ritschl, mestre a quem acompanha ingressando na universidade de Leipzig, em 1865.
Na leitura de O Mundo (publicado em 1819), Nietzsche se dá conta do sentido filosófico da tragédia. Ele não deixa de se admirar da concepção schopenhaueriana de mundo como manifestação de uma Vontade cega, sem finalidade e irracional. Em grande medida, é na filosofia schopenhaueriana que Nietzsche encontrará a matriz de sua metafísica trágica[5]. Consoante Rosset (1989), essa visão trágica já se deixa ver no pensamento schopenhaueriano. Recorde-se que a Vontade em Schopenhauer é o fundamento sem fundamento da existência. Essa “verdade trágica” será radicalizada por Nietzsche na elaboração de sua experiência dionisíaca de mundo, “cuja descoberta não suportaríamos sem o socorro da arte e das aparências”. (Rocha, 2003, p. 46).
O leitor familiarizado com o pensamento nietzschiano pode discordar – não sem razão – de que haja uma metafísica em Nietzsche. É verdade que um pensamento que toma o mundo como destituído de ser é ele mesmo antimetafísico. Não resta dúvida, portanto, de que “[a] concepção de existência como desprovida de ser atravessa toda a obra de Nietzsche”. (Rocha, 2003, p. 45). Não obstante, em O Nascimento da Tragédia, obra que se situa entre os escritos de juventude de Nietzsche e onde é mais flagrante a influência de Schopenhauer sobre Nietzsche, há uma concepção metafísica que se expressa na admissão de uma essência dionisíaca subjacente às aparências. Todavia, nota Rocha (ibid.), essa essência não deve ser tomada como fundamento do mundo, “mas, ao contrário, é uma instância privada de toda medida e inteligibilidade”. Se a filosofia do jovem Nietzsche pode ser considerada “metafísica”, isso se deve à preservação do horizonte de interpretação do mundo à luz do qual este é explicado a partir da postulação de uma instância subjacente às aparências. Não obstante, a metafísica que aí se afigura é “intrinsecamente paradoxal, já que esta instância é desprovida de todos os atributos que se supõem caracterizarem uma essência”. (p. 46). Paradoxal ou não essa metafísica, deixando de lado as sutilezas semânticas envolvidas nos termos linguísticos que entram a fazer parte da discussão, acreditamos que, sob a influência schopenhaueriana, a esta altura do desenvolvimento do pensamento de Nietzsche, ainda está presente o dualismo ‘aparência x essência’ que caracteriza o modo de pensar metafísico (dualismo que Nietzsche tratará de superar ao longo da produção posterior de sua obra).
A influência de Schopenhauer sobre o pensamento de Nietzsche não se reduz à apropriação que este faz do termo Vontade, cujo conceito divergirá, no entanto, completamente do conceito schopenhaueriano de Vontade. Nietzsche admirou Schopenhauer por ter este produzido um pensamento superior, que nada devia às influências de poder. A admiração nietzschiana por Schopenhauer é de tal vulto que a este um texto é dedicado. A terceira consideração intempestiva, que recebe o título Schopenhauer Educador, é um elogio ao filósofo de Dantzig, reputado por Nietzsche como um filósofo exemplar, que representou o modelo de homem lúcido, altivo e idealista, capaz de subverter as convenções e de lançar por terra as ilusões ao abrigo das quais a maioria dos homens vive. O trecho a seguir nos dá testemunho do tom elogioso com que Nietzsche fala de Schopenhauer:



O que eu relato é somente a primeira impressão, de algum modo fisiológica, que sobre mim produz Schopenhauer (...). Ele é probo porque fala e escreve para si mesmo; é alegre porque conquistou pelo pensamento a mais difícil das vitórias; é constante porque não pode não sê-lo. Sua força cresce vigorosamente e sem esforço, como uma chama no ar calmo, segura de si, sem tremular, sem inquietude”. (Nietzsche, 2008, p. 29-30).


Outro ponto de aproximação entre Nietzsche e Schopenhauer reside no reconhecimento de que ambos os filósofos conceberam a Vontade como constitutiva tanto do homem quanto da existência em geral, fora de uma perspectiva espiritualista. Ainda que sejam inegáveis as diferenças que se deixam ver quando cotejamos entre si os pensamentos desses dois filósofos, é igualmente inegável que ambos se notabilizaram como grandes perscrutadores da existência, “do fundo sombrio e doloroso da vida”. (Brum, 1998, p. 18).




2.1. Diferenças fundamentais entre a filosofia de Nietzsche e a de Schopenhauer


O pensamento de Nietzsche se pretende afirmador de uma única verdade: a verdade trágica, a qual, por sua vez, esteia-se na afirmação da inexistência do Ser. A afirmação da inexistência do Ser faz da filosofia de Nietzsche uma negação da metafísica, a saber, uma antimetafísica que ensina a inexistência de um fundamento que confere sentido e finalidade à existência.
O pessimismo de Schopenhauer, considerando como absurdo o mundo, que é espelho de uma Vontade obscura e inconsciente, oferece como saída para uma existência intrinsecamente dolorosa - a negação da vontade. Nietzsche, ao contrário, embora também considere o sofrimento como o fundo da existência, oferece a possibilidade de uma afirmação da vida no tempo. Nietzsche é aqui o antípoda de Schopenhauer. Para Nietzsche, “o homem trágico diz “sim” em face até do sofrimento mais duro: é bastante forte, bastante abundante, bastante divinizador para tanto”. (Nietzsche, 2011a, § 483).
Ainda que Schopenhauer explique o sofrimento, a dinâmica dolorosa da vida como um efeito necessário da afirmação do querer-viver, ele continua vinculado ao horizonte de compreensão cristã do mundo, à luz do qual o sofrimento torna a vida indesejável, uma experiência da qual devemos querer escapar, uma experiência que, maculada pela dor e sofrimento, a vontade deve recusar. A filosofia experimental de Nietzsche, por outro lado, “quer antes penetrar até o contrário, até o dionisíaco sim do mundo, tal qual é, sem desfalque, sem exceção e sem escolha, quer o eterno movimento circular: as mesmas coisas, a mesma lógica e o mesmo ilogicismo do encadeamento”. (Nietzsche, 2011a, § 476).
Contra o pessimismo schopenhaueriano, que vê a vida como uma catástrofe, um erro que não deveria ser, Nietzsche oferece seu dionisíaco sim à existência: “Estado superior que o filósofo pode atingir: ser dionisíaco em face da existência. Minha fórmula para tanto é o amor fati”. (ib.id.).
Nietzsche não se limita, como faz Schopenhauer, a admitir o caráter doloroso da existência como uma necessidade (Schopenhauer, aliás, o admite para, em seguida, oferecer uma fuga). Nietzsche o considera não só necessário, como também desejável, “como o lado mais potente, o mais fértil, o mais verdadeiro da existência” (ibid.). Schopenhauer ainda se movimenta num horizonte hermenêutico de justificação do mal, do sofrimento. Nietzsche, ao contrário, afirma o “pessimismo da força”, segundo o qual “o homem agora não tem mais necessidade de justificação do mal”; ele “condena precisamente a justificação: usufrui do mal puro e cru, acha o mal sem razão mais interessante”. (Nietzsche, 2011, § 461).  Nietzsche ousa ainda mostrar a radicalidade de sua transvaloração: é o bem que precisa ser justificado, que “precisa possuir um fundo mau e perigoso” (ibid.), sob pena de ser “uma grande tolice”.
Schopenhauer se movimenta ainda num horizonte de compreensão metafísica do mundo: ele busca o incondicional em face do condicional, a saber, seu pensamento opera segundo a crença em que o que é relativo (o mundo fenomênico) deve repousar sobre o absoluto (a Vontade como coisa-em-si). Schopenhauer é um herdeiro da tradição metafísica ocidental, na medida em que explica o devir, a impermanência, recorrendo à coisa-em-si, ao Ser.
Nada mais estranho ao pensamento de Nietzsche do que esse modo de pensar o real. Para Nietzsche, o mundo carece de substancialidade; o mundo é um fluxo de forças agonístico. Só existe o mundo do devir, caracterizado pela dinâmica agonística das vontades de poder: “o mundo – escreve Nietzsche – não é absolutamente um organismo; é o caos”. (ibid., § 316).
A filosofia de Nietzsche pode ser entendida como uma ontologia negativa[6], porquanto pensa o mundo como desprovido de Ser.  Na tradição, o ser se diz daquilo que é necessário em contraste com o que é apenas contingente; o ser se diz também daquilo que permanece idêntico a si mesmo e que, por isso, serve de suporte ao devir (o ser se diz substrato do devir); finalmente, o ser designa o que é em si mesmo e para si mesmo, independentemente do aparecer dos entes. Ora, a metafísica baseia-se no mecanismo de duplicação do real, o qual consiste em superpor ao mundo sensível, deveniente, o mundo inteligível, da necessidade e da permanência. Assim, em toda metafísica, a aparência só “é” na medida em que é suportada por uma essência da qual toma seu ser e a qual lhe dá consistência ontológica.
É precisamente essa duplicação do real em mundo sensível e mundo do Ser que Nietzsche rejeita. O pensamento de Nietzsche é, nesse sentido, antiplatônico, antimetafísico. Nietzsche recusa um tal desdobramento metafísico do mundo. Mesmo quando ele fala em “essência”, ela se esgota no seu aparecer. Em suma, como metafísica negativa, o pensamento de Nietzsche nega:

1)       A hipótese de que há um mundo sensível e que esse mundo é expressão de uma essência;
2)       O fluxo do devir como manifestação do Ser;
3)       O mundo sensível como uma duplicação do mundo suprassensível;
4)       Que as interpretações sejam a representação de um mundo previamente constituído.

Cumpre acrescentar que, se Nietzsche rejeita a existência do mundo suprassensível – chamado por ele de mundo-verdade -, o faz não por uma razão teórica, visto que a inexistência desse mundo não pode ser demonstrada, mas por razões práticas. Nietzsche rejeita a existência do mundo verdade (mundo das Essências imutáveis) pelas consequências que a crença nesse mundo acarreta: o niilismo e a condenação da vida, a qual é desvalorizada em favor da vida além-mundo, em favor do mundo suprassensível, o qual realizaria a verdadeira vida (como creem, por exemplo, os cristãos). A crítica nietzschiana à metafísica açambarca uma crítica à moral, à religião e ao racionalismo, os quais são entendidos como expressão da crença em um mundo-verdade. Aqui é oportuno lembrar que Nietzsche também criticará o que chama de “vontade de verdade” que está na raiz da crença de que o mundo tem um sentido já dado, que cabe ao homem tão-só descobrir.



[1] Por afetos, entende Espinosa (2011, p. 98) “as afecções do corpo, pelas quais a sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções”.  O afeto se distingue da paixão pela possibilidade de podermos, no caso do afeto, nos conceber como a causa de uma afecção.
[2] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Edson Bini. Bauru: SP, 2013, p. 74.
[3] CABRAL, Álvaro; NICK, Eva. Dicionário Técnico de Psicologia. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 87.
[4] Nada obsta a que a disposição possa ser pensada à luz do registro do ser espinosista como recoberto pela dinâmica dos encontros, pelas relações entre os corpos, pela dinâmica relacional caracterizada por encontros potencializadores ou despontencializadores de meu corpo com outros corpos. Nessa perspectiva teórica, a disposição afetiva poderia ser pensada como uma espécie de ‘marca’ piscofisiológica resultante da forma como se dão aqueles encontros.
[5] Conforme ficará claro adiante, a “metafísica trágica” caracteriza um momento do desenvolvimento do pensamento de Nietzsche: em uma palavra, o período em que vem a lume O Nascimento da Tragédia, obra onde a influência schopenhaueriana é flagrante. A esse respeito, Rocha (ibid.) faz uma observação que suprime qualquer margem de dúvida quanto ao domínio de referência a que se aplica o emprego do termo metafísica quando se fala de Nietzsche: “(...) podemos considerar que o termo metafísica deve ser entendido aqui de um modo muito particular: se o que o define é a concepção de uma essência subjacente às aparências, então a obra do jovem Nietzsche é efetivamente metafísica. Mas se o que define é a crença em um fundamento ou uma razão para a existência, então a filosofia de Nietzsche é desde o início rigorosamente antimetafísica”.
[6] Seguindo aqui a interpretação de Rocha (ibid., p. 44).




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           REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS




             CABRAL, Álvaro; NICK, Eva. Dicionário Técnico de Psicologia. São Paulo: Cultrix, 2006.


            NIETZSCHE, Friedrich. Schopenhauer Educador. São Paulo: Escala, 2008.

___________________. Vontade de Potência. Trad. Mario Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011a.

___________________. Além do Bem e do Mal. Trad. Mario Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

___________________. Assim Falou Zaratustra. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011b.



___________________. Ecce Homo. Trad. Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2013b.

ROCHA, Silvia. P.V. Os abismos da suspeita: Nietzsche e o perspectivismo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.

ROSSET, Clément. Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.

SPINOZA, Ética. Belo Horizonte: Autêntica Ed., 2011.

domingo, 12 de agosto de 2018

"Se um Deus fez este mundo, eu não gostaria de ser este Deus: a miséria do mundo esfacelar-me-ia o coração" (Schopenhauer)


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                      O mundo como Vontade

No livro II de O Mundo como Vontade e Representação, Schopenhauer apresenta e desenvolve o segundo ponto de vista sob o qual o mundo é considerado: o mundo como Vontade Ao longo de todo esse segundo livro, Schopenhauer se dedicará, especialmente, a esclarecer o significado do termo Vontade.
É, sobretudo, na concepção do mundo como Vontade que se pode descortinar o caráter absurdo da existência. É também por força da categoria da Vontade, como coisa-em-si, impulso cego e sem finalidade, à luz da qual o mundo é interpretado, que a filosofia schopenhaueriana se constitui como uma filosofia do absurdo.
Faz-se mister reter o seguinte: o conceito de Vontade constitui o elemento nuclear da filosofia pessimista schopenhaueriana. Rosset (1989, p. 21) chega, inclusive, a dizer que a Vontade é o único pensamento que Schopenhauer se dá a pensar para compreender o mundo. O absurdo que a filosofia de Schopenhauer põe a descoberto não repousa apenas, segundo acredita Rosset, na concepção de Vontade, como fundamento sem fundamento, finalidade sem fim, como impulso cego; mas também - e sobretudo - no fato de que a Vontade se apresenta como um acontecimento necessário para que Schopenhauer explique a existência de um mundo ordenado – ordem esta, no entanto, que se desvela, à luz do pensamento schopenhaueriano, absurda, sem sentido.
O que é, pois, a Vontade de que fala Schopenhauer? Num primeiro momento, não devemos tomá-la como a vontade individual, aquilo que chamamos de nossa vontade. A Vontade é a coisa-em-si kantiana, é a essência íntima do mundo, a substância do fenômeno. A Vontade é eterna e infinita; é atemporal, ou seja, escapa às condições de tempo e espaço, e ao princípio da causalidade. Ademais, somente a Vontade é livre. Ela é o ser em si comum a todos os fenômenos e o fundamento de todo o mundo fenomênico. A Vontade é o fundamento metafísico do mundo; é a causa sem causa e sem finalidade do mundo fenomênico.
Como coisa-em-si, a Vontade é absolutamente diferente do seu fenômeno (o mundo) e das formas fenomênicas em que se manifesta e em relação às quais é independente. Nas palavras de Schopenhauer,


A Vontade, como coisa em si, está, como dissemos, fora do domínio do princípio de razão, sob todas as suas formas; ela é, por consequência, sem fundamento, ainda que cada um dos fenômenos esteja completamente submetido ao princípio de razão. (ibid., p. 122).


A Vontade é totalmente independente da pluralidade, conquanto suas manifestações no tempo e no espaço sejam infinitas. A Vontade, portanto, é a coisa-em-si, a essência íntima do mundo e, embora seja de ordem metafísica, independente das condições do tempo e do espaço, se manifesta nas diferentes formas do mundo inorgânico e orgânico. Schopenhauer chama objetivação da Vontade a manifestação da Vontade nas diversas formas fenomênicas do mundo.
Ainda que a concepção de Vontade como coisa-em-si inspire-se no conceito kantiano de coisa-em-si, Schopenhauer, ao contrário de Kant, confere um caráter cognoscível à coisa-em-si. É claro, conforme veremos, que a cognoscibilidade da coisa-em-si schopenhaueriana é relativa, porque a conhecemos relativamente à experiência que temos do nosso corpo – o meu corpo, sob esse segundo ponto de vista em que o mundo é considerado, é a minha vontade. Em seguida, a inteligência nos leva a apreender a Vontade no conjunto dos fenômenos do mundo inorgânico e orgânico. Tudo que existe existe como objetivação da Vontade. Destarte, escreve Schopenhauer: “o que é em si Vontade aparece como representação, isto é, fenômeno”. (ibid.). O absurdo da existência, que se deixa ver na compreensão da objetidade da Vontade, ganha a espessura de um drama existencial cujo desenvolvimento vai revelando, à proporção que o leitor nele se aprofunda, no livro IV, o caráter trágico do destinar-se do mundo e da existência humana. É no livro IV que Schopenhauer descerá a pormenores sobre a dinâmica inerentemente dolorosa da vida. Destinaremos seções específicas para a abordagem da relação entre a Vontade e o sofrimento, ou entre a Vontade e a dor de viver. Por ora, cumpre-nos lançar algumas luzes sobre os aspectos formais do campo conceitual em que se inscreve o conceito de Vontade no pensamento de Schopenhauer. Esses aspectos formais (isto é, estruturais) compreende outras noções que entram a fazer parte da composição do referido campo, entre as quais estão o princípio de individuação, ideia, corpo e vida. Trataremos destas noções em duas subseções: na primeira das quais, serão contemplados em conjunto o princípio de individuação e ideia; na segunda, ocupar-nos-emos das noções de corpo e vida. A razão por que decidimos dar realce ao tratamento destas noções repousa no interesse de, por um lado, pôr em evidência a importância dos conceitos de princípio de individuação e ideia nessa etapa da constituição da doutrina de Schopenhauer; por outro lado, de facultar a intelecção das diferenças entre a compreensão schopenhaueriana e nietzschiana de corpo e vida. Esperamos que a consideração dessas duas noções em uma subseção específica facilite o acesso cognitivo do leitor à significação dos referentes textuais ‘corpo’ e ‘vida’.



                1. O princípio de individuação


Se, conforme vimos, tempo e espaço são reunidos sob a jurisdição do princípio de razão suficiente, quando o mundo se nos apresenta sob o ponto de vista da representação, agora, do ponto de vista do mundo como Vontade, tempo e espaço constituem o princípio de individuação. Temos, pois, o princípio de individuação suprimindo do princípio de razão a causalidade e conservando o tempo e o espaço.
Pelo princípio de individuação, a saber, o tempo e o espaço, “aquilo que é um só e semelhante na sua essência e no seu conceito nos aparece como diferente, como vários, tanto na ordem da coexistência, como na da sucessão”. (Schopenhauer, ibid., p. 122).
Schopenhauer, seguindo de perto Platão, tomará deste o conceito de ideia para designar os graus determinados e fixos da objetivação da Vontade. A “ideia” designa cada grau de objetivação da Vontade. Esses graus ou ideias se manifestam nos objetos particulares, em cada fenômeno, como suas formas eternas (essências), como os seus protótipos. (ibid., p. 138).
Schopenhauer propõe que se discriminem diversos graus (ideias) da objetivação da Vontade. Daí se segue que as forças gerais da natureza aparecem como o grau mais baixo da objetivação da vontade. Essas forças gerais se manifestam em toda a matéria: a gravidade, a impenetrabilidade são exemplos de graus inferiores de objetivação da Vontade.
A escala de objetivação da Vontade vai-se tornando mais complexa e significativa à medida que a Vontade se manifesta em fenômenos mais complexos. Assim, segundo Schopenhauer, “é nos graus da objetidade da Vontade que vemos a individualidade produzir-se de uma maneira significativa, nomeadamente no homem, como a grande diferença de caracteres individuais, isto é, como personalidade”. (ibid., p. 139).
No trecho acima referido, Schopenhauer quer nos fazer entender que o grau do princípio de individuação é sensível à escalada da objetivação da Vontade. Assim, objetivada nos animais, a Vontade deixa mais nítido e acentuado um grau de individualidade que falta nos vegetais, ainda que a individualidade nos animais não atinja seu grau mais elevado. É somente no homem que a individualidade atingirá seu grau mais elevado; nele ela “exprime-se já no exterior através de uma fisionomia fortemente acentuada, que afeta toda a forma do corpo”. (ibid., ênfase nossa).
Portanto, a objetivação da Vontade no mundo fenomênico se faz numa escalada de graus. No grau mais baixo de sua objetivação, quando se manifesta nas forças naturais e no reino dos vegetais, a Vontade é um impulso cego, um esforço misterioso, estranho a qualquer consciência. A Vontade também se manifesta na parte vegetativa dos animais, na geração e desenvolvimento de cada animal. Também aí ela não é mais que um impulso absolutamente inconsciente, “semelhante a uma força obscura”. (ibid., p. 158).
Quando a Vontade atinge graus de objetivação maior, nomeadamente nos animais, acarreta a diversidade de fenômenos individuais que, crescendo até chegar a uma multidão, se perturbarão mutuamente. Teremos a oportunidade de compreender de que modo a Vontade servirá a Schopenhauer como um dispositivo explicativo da luta pela sobrevivência que, no mundo natural, assume a forma de uma cadeia de carnificina.


              

               1.2. O corpo é minha vontade e a vida é esforço contínuo

Já vimos como Schopenhauer compreende o corpo sob o ponto de vista do mundo como representação. Vale lembrar que, no mundo como representação, o corpo é um objeto entre outros, é representação que constitui o ponto de partida de todo conhecimento.
Doravante, será necessário dilucidar o que é o corpo à luz da perspectiva do mundo como Vontade. Schopenhauer, à página 112 de O Mundo como Vontade e Representação, assevera: “o meu corpo e a minha vontade são apenas um”. Dizer que o meu corpo é a minha vontade é apontar para outro modo de experienciá-lo. Esse outro modo de experienciar o corpo é, segundo Schopenhauer, “absolutamente diferente” (ibid., p. 113). Em que consiste essa diferença é justamente o que trataremos de esclarecer.
Em primeiro lugar, o corpo é a objetivação da Vontade, ou “a minha vontade tornada visível” (ibid., p. 117), de modo que “todo ato de meu corpo é fenômeno de um ato da minha vontade” (ibid., p. 116). Schopenhauer mantém que a Vontade é o conhecimento a priori do meu corpo; e meu corpo, o conhecimento a posteriori da Vontade. Na medida em que meu corpo é minha vontade, a Vontade é vista agora como a essência de meu corpo; ela é o meu próprio corpo, quando este não é objeto de intuição. Ela se manifesta nos movimentos voluntários do corpo, visto que esses atos são apenas atos visíveis da minha vontade. Os atos da minha vontade encontram nos motivos seu fundamento; todavia, “eles [os motivos] determinam sempre apenas o que eu quero em tal momento, em tal lugar, em tal circunstância; e não o meu querer em geral, isto é, a regra que caracteriza todo o meu querer”. (ibid., p. 116, ênfase nossa). Ora, esse excerto ilustra bem a medida da influência que exerceu Schopenhauer sobre a formulação do conceito freudiano de inconsciente. O que Schopenhauer advoga é que não tenho consciência da essência do meu querer. Os motivos não me dão a saber o que a Vontade em mim quer essencialmente. Os motivos “apenas determinam as suas manifestações [a do querer] em um dado momento”. (ibid.).
Todo ato do meu corpo é fenômeno de um ato da Vontade. Nesse ato, exprime-se, por força dos motivos, a minha vontade, a qual constituirá o meu caráter. Mas é o corpo a condição necessária e prévia da manifestação da Vontade, que é, então, a minha vontade, que é meu corpo.
Por fim, deve-se enfatizar que cada ato particular de meu corpo tem uma finalidade, mas a Vontade em si não a tem. A Vontade em si é um impulso cego, inconsciente, incausado. Consoante Schopenhauer, “a única consciência geral de si mesma que a Vontade tem é a representação total, o conjunto do mundo que ela percebe; ele é a sua objetidade, a sua manifestação e o seu espelho; e o que ele exprime sob este aspecto (...)”. (ibid., p. 173).
O meu corpo, subjetivamente experienciado, revela-se para mim como corpo essencialmente volitivo. Essa experiência do corpo como corpo volitivo leva-nos a concluir, por analogia, que, nos demais corpos, essa mesma essência volitiva se faz presente. Portanto, a Vontade como coisa-em-si se manifesta na fisiologia do corpo humano, o qual serve de locus privilegiado a partir do qual é possível decifrar a essência íntima do mundo: a Vontade ou o querer-viver cego e sem finalidade.
No que toca à concepção schopenhaueriana de vida, devemos assinalar que o significado que o conceito de vida tem no pensamento de Schopenhauer apresenta certas tonalidades que se deixam rastrear ao longo dos livros II e IV. Essas tonalidades, no entanto, estão articuladas à concepção geral de vida como fenômeno, espelho da Vontade. Mas, como a Vontade é um querer viver incessante e sem finalidade e como querer viver é fazer esforço, a vida é esforço. Todavia, a vida, observará Schopenhauer, é também expansão livre, espontânea e irresistível dos seres; é crescimento, abundância – concepção esta que o aproxima de Nietzsche. Mas essa aproximação não chega a redundar num acordo; pois que, para Schopenhauer, viver é fazer esforço, e esforço envolve dor; logo, viver é sofrer; a vida é essencialmente dor.
Expusemos, aqui, os traços semânticos fundamentais do significado de vida em Schopenhauer; mas tornaremos a considerar como o conceito de vida vai-se construindo semanticamente na doutrina desse filósofo no decorrer desta etapa de nossa exposição. Basta, por ora, que o leitor retenha a ideia de que a vida é a manifestação pura da Vontade e, consequentemente, que a Vontade é Vontade de viver (Schopenhauer, aliás, diz ser redundante dizer que Vontade é Vontade de viver, já que Vontade e Vontade de viver são a mesma coisa. (v. ibid., p. 289)).




1.3. A Vontade e a Dor de Viver

Cite-se o seguinte excerto de Schopenhauer:

(...) o homem tem sempre uma finalidade e motivos que regulam suas ações: pode sempre dar conta de sua conduta em cada caso. Mas perguntem-lhe por que é que ele quer, ou por que é que ele quer ser, de uma maneira geral: não saberá o que responder, a questão lhe parecerá mesmo absurda. (ibid., p. 172).


Esse trecho encaminhará nossa reflexão sobre o significado do conceito de Vontade para outro horizonte de sentido, à luz do qual a Vontade é vontade de viver. O homem não sabe dizer por que se agarra à vida de modo tão tenaz e irresistível. Esse querer ser, esse querer existir é irracional. Em Nos cumes do desespero (2011, p. 49), Cioran alude a esse nosso apego irracional à vida: “(...) não sei por que vivo e por que não cesso de viver. A chave, provavelmente reside no fenômeno da irracionalidade da vida, que faz com que ela se mantenha sem motivo”. Para Schopenhauer, a chave do mistério é a Vontade: nosso apego à vida, que resiste a uma justificação racional, é um efeito do querer viver, do impulso cego, que é a Vontade, em nós.
De que modo essa vontade de viver produz como consequência inevitável e necessária a dor, o sofrimento? Esta e as seções subsequentes serão destinadas a responder a esta questão.
Principiemos por observar que todas as formas fenomênicas que são manifestações das ideias eternas se ligam a uma matéria, que é constante e a mesma para todos os fenômenos. Justamente por ser a matéria única e constante, todas as manifestações da Vontade, suas formas fenomênicas, entram em disputa, em conflito entre si para apoderar-se dessa matéria. Do conflito entre as formas fenomênicas origina-se uma forma superior que sobrepuja todos os outros fenômenos mais imperfeitos que existiam antes. A forma fenomênica mais perfeita (ou ideia mais perfeita) que logra sucesso nesse combate adquire um novo caráter, já que subtrai às ideias vencidas um grau análogo a um poder superior. Assim, segundo Schopenhauer,

A Vontade objetiva-se de um modo mais compreensível; e, então, formam-se, primeiro, por geração equívoca, e, em seguida, por assimilação ao germe existente, a seiva orgânica, a planta, o animal, o homem. Assim, da luta dos fenômenos inferiores resulta o fenômeno superior, que os absorve todos, mas que, ao mesmo tempo, realiza a aspiração constante deles, em direção a um estado mais elevado (...). (ibid., p. 154).


A objetivação da Vontade no mundo, quer orgânico, quer inorgânico, se dá, pois, por um combate sem tréguas, por uma luta incessante das manifestações da Vontade, as quais se esforçam por apoderar-se da matéria. Esta luta voraz e incessante que se deixa ver por toda a natureza é a manifestação do “divórcio essencial da vontade com ela mesma”. (ibid., p. 155).

Assim, em toda parte na natureza, nós vemos luta, combate, e alternativa de vitória, e deste modo chegamos a compreender mais claramente o divórcio essencial da vontade com ela mesma. Cada grau de objetivação da Vontade disputa ao outro a matéria, o espaço e o tempo. A matéria deve mudar constantemente de forma, atendendo a que os fenômenos mecânicos, físicos, químicos e orgânicos, segundo o fio condutor da causalidade, e apressados para aparecerem, disputam-na entre si obstinadamente para manifestar cada qual a sua ideia. (ibid., grifo nosso).


A expressão divórcio essencial da vontade com ela mesma, embora dotada de efeitos estéticos, expressa de modo eufêmico o que está em jogo nessa luta sem trégua pela vida. Quando contemplamos a natureza com suas formas orgânicas travando lutas umas com as outras, o que vemos é uma vontade de viver esfomeada, que tem de devorar sua própria carne, para lembrar aqui uma impressionante imagem utilizada por Schopenhauer. O sofrimento do mundo animal só pode ser justificado pelo reconhecimento do fato de que é a Vontade, como impulso cego de vida, que devora a si mesma, o que não significa que a Vontade em si mesma se destrua. A Vontade, como coisa-em-si, é indestrutível, eterna. São as formas fenomênicas nas quais se objetiva a Vontade que se destroem disputando a matéria umas com as outras.
No mundo animal, a luta que se trava pela vontade de viver se encontra em toda parte: num lugar, vemos um animal comendo plantas, noutro, um leão atacando e devorando uma gazela, “e cada indivíduo serve de alimento e de presa para outro”. (ibid.).
Se tomarmos a chamada cadeia alimentar como uma vasta e ininterrupta cadeia de carnificinas, estaremos ainda distante da inconsciência subjacente ao caráter conflitual da objetivação da Vontade; pois, para a Vontade, a existência do indivíduo nada vale. Assim, o espetáculo terrível de carnificina que nos oferece o mundo natural é descrito por Schopenhauer com termos que buscam dar conta da dinâmica absurda do espetáculo. Senão, vejamos:


(...) Cada animal deve abandonar a matéria pela qual se representava a sua ideia, para que um outro se possa manifestar, visto que uma criatura viva só pode manter sua vida à custa de uma outra, de modo que a vontade de viver se refaz constantemente com sua própria substância, e sob as diversas formas que reveste, constitui o seu próprio alimento. (ibid., p. 155-156).



Esse excerto deve nos tornar cônscios do seguinte fato: a morte é um acontecimento integrante da dinâmica da vida. A morte não se relaciona com a vida como um polo externo contrário ao outro. A vontade de viver se sustenta à custa da morte de outros organismos. Além disso, a morte de um animal não é mais que uma necessidade determinada pela Vontade – necessidade que consiste em que uma ideia deve abandonar a matéria em que se manifestava. A Vontade que se devora a si mesma mediante a sucessiva destruição de suas formas fenomênicas nunca se destrói. Ao contrário, ela continua afirmando-se nas formas fenomênicas triunfantes.
Vamos desenvolver mais um pouco a ideia de que a Vontade, a coisa-em-si, é impulso cego ou desejo cego sem finalidade e sem qualquer limite.
Schopenhauer reconhecerá que, conquanto o esforço da matéria possa ser contínuo, ele nunca encontra um termo e nunca é satisfeito. Tome-se o exemplo da planta, referido pelo próprio Schopenhauer (ibid., p. 172). A planta desenvolve-se: o bubo primitivo dá origem à haste, às folhas, às flores, aos frutos (e quando pensamos que o processo para aí); acontece que o próprio fruto dá origem a outro bulbo, e o velho caminho é percorrido eternamente.
Com o animal se passa o mesmo. O curso de sua vida encontra na procriação o seu mais alto estágio. Cumprindo esse ato, o indivíduo genitor morre num espaço de tempo mais ou menos longo. O indivíduo gerado assegurará à natureza a sobrevivência da espécie, e esse processo se reinicia eternamente.
Schopenhauer mostra que também os esforços e desejos humanos, quando contemplados à luz da Vontade, nunca são terminantemente satisfeitos. Sempre que um desejo é, num momento, satisfeito, outro logo toma o lugar do primeiro e assim sucessivamente.
A Vontade pode saber o que quer em algum momento e lugar, quando o conhecimento a esclarece; mas o que ela quer em geral, ela ignora. Assim, “todo ato particular tem uma finalidade; a própria Vontade não a tem”. (ibid., p. 173, ênfase nossa). Os fenômenos naturais, que aparecem em tal ou qual lugar, têm sua causa; mas a Vontade em si mesma não a tem, já que a causa é apenas um grau da manifestação da coisa-em-si.



1.4. A Vontade é desejo cego

Na seção 54, do livro IV, Schopenhauer revisa, a título de síntese, o que foi tratado nos três primeiros livros. É oportuno dar a saber essa síntese, dispondo em ordem vertical as ideias pertinentes que ela faz recordar:

1.     O mundo, como representação, é, para a Vontade, um espelho em que ela toma consciência de si mesma;
2.     A perfeição e clareza com que a Vontade vê a si mesma decrescem por grau;
3.     No homem, reside o grau superior de objetivação e perfeição da Vontade.

Segundo Schopenhauer,

A Vontade sem inteligência (em si não é outra), desejo cego, irresistível, tal como a vemos, mostra-se no mundo bruto, na natureza vegetal, e nas suas leis, assim como na parte vegetativa de nosso corpo, essa Vontade, digo, graças ao mundo representado, que se vem oferecer a ela e que se desenvolve para servi-la chega a saber que quer, isto é, o que quer: é este mesmo mundo, é a vida, justamente, tal como se realiza. (ibid., p. 288-289).


Há neste excerto duas ideias que devemos destacar: a primeira ideia é que a Vontade é desejo cego quando não iluminada pela inteligência; a segunda é que a Vontade quer o mundo mesmo, a vida mesma “justamente tal como se realiza”. Schopenhauer prossegue advertindo que, como a Vontade quer sempre a vida, como é a vida a manifestação pura da Vontade, resta redundante dizer que Vontade é vontade de viver. Vontade e Vontade de viver são a mesma coisa. (ibid., p. 289).
Uma vez que a Vontade é a coisa-em-si, o fundo íntimo, a essência do universo, a vida e o mundo fenomênico são “apenas o espelho da Vontade” (ibid.). Schopenhauer lança mão da imagem da sombra e do corpo para sublinhar a indissociabilidade entre Vontade e vida. O vínculo existente entre a Vontade e a vida é, no entanto, mais necessário que o vínculo entre a sombra e o corpo (“a sombra não segue mais necessariamente o corpo”). Onde quer que encontremos Vontade haverá vida, mundo.
O indivíduo é apenas aparência. Ele nasce e morre, quando visto à luz do intelecto submetido ao princípio de razão e ao princípio de individuação. Consoante sublinha Schopenhauer, “nesse sentido, sim, ele recebe a vida a título de pura dádiva, que o faz sair do nada e para ele a morte é a perda dessa dádiva, é a nova queda no nada”. (ibid., p. 289).
No entanto, a filosofia, ao se debruçar sobre a vida para meditar nela, tem em mira a ideia, isto é, a forma eterna e imutável, segundo Schopenhauer. E o que a filosofia desvela, ao contemplar a ideia, é que nascimento e morte só dizem respeito ao fenômeno, nunca à coisa-em-si. A Vontade, a coisa-em-si, o sujeito como espectador dos fenômenos, não são afetados por esses acidentes, que são o nascimento e a morte.
Nascimento e morte se prendem às aparências assumidas pela Vontade; são acidentes que tocam à vida. A Vontade nada tem a ver com eles. Por conseguinte, Schopenhauer começa a nos mostrar a insignificância do indivíduo em face da Vontade. A primeira passagem em que essa insignificância se torna patente é a seguinte:

(...) a própria essência da vontade é produzir-se nos indivíduos, que, sendo fenômenos passageiros, submetidos na sua forma à lei do tempo, nascem e morrem: mas mesmo então eles são os fenômenos daquilo que, em si, ignora o tempo mas que não tem outro meio de dar à sua essência íntima uma existência objetiva (...). (ibid., p. 289, grifo nosso).


Nascimento e morte são acontecimentos integrantes da dinâmica da vida: “são mutuamente a condição um do outro” (ibid.). Schopenhauer vem em socorro da validade de nossa interpretação:

Duvidamos ainda que a geração e a morte devem ser apenas aos nossos olhos um acidente da vida, acidente próprio desta manifestação da vontade, apenas dela? Eis uma nova prova: é que uma e outra são simplesmente o próprio movimento de que a vida é feita, mas elevado a uma potência superior. (ibid., p. 291, grifo nosso).


A imagem da morte (e também da geração, evidentemente) como o próprio movimento constitutivo da dinâmica da vida extirpa toda sombra de dúvida quanto à relação intrínseca da morte com a vida. Para fins de nossa argumentação, é imprescindível assinalar mais uma variante da compreensão que Schopenhauer tem de vida. Recorde-se que dissemos que o conceito de vida, em Schopenhauer, exibe algumas tonalidades, que ganham investimentos semânticos tais como esforço, dor, sofrimento, abundância, etc. Uma dessas tonalidades assume a forma do seguinte enunciado schopenhaueriano: a vida é “um fluxo perpétuo da matéria através de uma forma que permanece invariável” . (ibid., p. 291, ênfase nossa). A forma que permanece invariável é a Vontade. A Vontade é eterna e indestrutível. O indivíduo, ao contrário, é a aparência; a espécie, a forma. Esta é imortal; aquele morre necessariamente.
Essa definição schopenhaueriana de vida pode ser desmembrada, de modo que possamos nos aperceber da insignificância de tudo que existe. A vida é devir: todas as suas formas fenomênicas estão submetidas ao fluxo incessante cujo modus operandi é o da luta, do conflito, da disputa interminável que arrasta os malogrados para o nada. Por outro lado, a vida é a manifestação da Vontade cega e indiferente à sorte dos fenômenos nos quais ela se produz.


               1.5. A Vontade e a insignificância do indivíduo

Esta seção e as subsequentes serão destinadas à análise da insignificância radical do indivíduo à luz da visão do mundo como Vontade. Vimos que a Vontade é eterna e imutável, ao passo que os indivíduos são mortais; não são mais que aparência. Como Schopenhauer explica então a necessidade que tem o indivíduo de morrer? Segundo Schopenhauer, a razão por que o indivíduo tem de morrer deve ser buscada no fato de que a forma da objetivação da Vontade é o tempo, o espaço e a causalidade, e, por conseguinte, a individuação. Assim, o indivíduo tem de morrer porque ele é fenômeno apenas da Vontade e porque está submetido ao devir, à impermanência de todas as coisas. Mas a necessidade do perecimento do indivíduo deixa incólume a Vontade. A insignificância radical do indivíduo é patente neste trecho tomado a Schopenhauer:

(...) em comparação com a vontade, o indivíduo é apenas uma das manifestações, um exemplar, uma amostra; quando um indivíduo morre, a natureza no seu conjunto não fica mais doente; a vontade também não. Não é ele, em suma, é só a espécie que interessa à natureza (...). (ibid., p. 290).


O mundo como Vontade é um mundo sombrio e atravessado por uma indiferença radical com relação ao viventes, em particular, às necessidades e anseios mais profundos que inspiram o coração do homem. E Schopenhauer dispara mais um tiro que atinge em cheio a elevada autoestima humana. Segundo o filósofo de Dantzig, à natureza só interessa a conservação da espécie:

(...) é pois por ela, pela sua conservação que a natureza vela com tanta solicitude, com tantos cuidados, desperdiçando sem contar os germes, ateando em todos os lugares o desejo de reprodução (...). Quanto ao indivíduo, para ela não conta, não pode contar: não tem ela diante de si essa tripla infinidade, o tempo, o espaço, o número dos indivíduos possíveis? Assim, ela não hesita nada em deixar desaparecer o indivíduo; não só os mil perigos da vida corrente, os acidentes mais ínfimas, que o ameaçam de morte; está-lhe destinada desde a origem e a natureza para lá o conduz ela mesma, uma vez que ele serviu para a conservação da espécie. (ibid.).


O fragmento acima citado não dá margem à dúvida: o indivíduo não é mais que um instrumento a serviço da afirmação da Vontade, sempre esmerada em perpetuar-se no mundo fenomênico pela conservação da espécie. Uma vez garantida a conservação da espécie, o indivíduo é descartado. Como explicar a docilidade com que os indivíduos se prestam a conservar a espécie em detrimento de sua própria conservação? Por que eles não se revoltam contra o regime tirânico da vontade de viver? A resposta reside na consideração do instinto sexual chamado por Schopenhauer de Eros. Eros é o ardil com que a Vontade, incitando os indivíduos à reprodução, garante a conservação da espécie e, portanto, a perpetuação de si mesma no mundo fenomênico.


               1.6. Eros e a afirmação da vontade de viver

Convém não perder de vista que é a insignificância radical do indivíduo que está sob foco de nossas considerações. A mais enérgica, imperiosa e irresistível forma pela qual o homem e o animal afirmam a vontade de viver repousa na satisfação do instinto sexual. A compreensão da maneira como funciona esse instinto desvela, mais uma vez, a insignificância radical do indivíduo.
Partindo-se da premissa segundo a qual a natureza tem por essência a vontade de viver (e considerando-se que o homem é um ser integrante da natureza), segue-se que o objetivo primeiro do homem é a sua conservação. É importante que não percamos de vista essa inclinação premente da Vontade em Schopenhauer, já que se trata de uma característica que não encontrará acolhida na concepção nietzschiana de “vontade de poder”: a vontade no homem e nos animais não humanos é esforço para a conservação.  Segundo Schopenhauer, uma vez que o homem tenha garantido sua subsistência, sua conservação, ele quererá apenas garantir a propagação da espécie. Deve-se, no entanto, fazer aqui uma ressalva: na verdade, não é o homem que quer conscientemente a conservação da espécie, mas a vontade nele que a quer. Portanto, escreve Schopenhauer “(...) a natureza, que tem por essência a vontade de viver, impulsiona com todas as suas forças quer o animal, quer o homem a perpetuarem-se”. (ibid., p. 346).
Reencontramos expressa aí a insignificância radical do indivíduo: este não é mais do que um meio a serviço da Vontade para a satisfação de seu desígnio. A Vontade é completamente indiferente ao indivíduo.

Portanto, a natureza que tem por essência a vontade de viver, impulsiona com todas as suas forças quer o animal quer o homem a perpetuarem-se. Feito isso, ela tirou do indivíduo o que queria e fica bastante indiferente a sua morte, visto que para ela – que, semelhante à vontade de viver, apenas se ocupa com a conservação da espécie – o indivíduo é como nada. (ibid.).


Para Schopenhauer, os órgãos sexuais são a verdadeira sede da vontade de viver; nenhum outro órgão está tão submetido ao império da Vontade. Essa submissão à Vontade exclui toda a influência da inteligência. Por isso, os órgãos sexuais

(...) são o verdadeiro foco da vontade, o polo oposto ao cérebro, que representa a inteligência, a outra face do mundo, o mundo como representação. Eles são o princípio conservador da vida e que lhe assegura a infinitude do tempo; é por causa desta propriedade que eles eram adorados pelos gregos no falo, e pelos hindus na linga: símbolo duplo da afirmação da vontade, vemo-lo agora. Pelo contrário, a inteligência torna possível a supressão da vontade, a salvação pela liberdade, o triunfo sobre o mundo, o aniquilamento universal. (ibid., p. 346-347).



Schopenhauer atribui à inteligência um papel fundamental na libertação do homem da tirania do querer viver. Devemos, no entanto, protelar a consideração desse aspecto da doutrina schopenhaueriana, que será examinado quando nos ocuparmos da negação da vontade de viver.
A sexualidade é vista por Schopenhauer como uma ilusão vital, tese esta longamente desenvolvida em sua Metafísica do Amor. Ela é uma ilusão vital porque procura ardentemente, à revelia dos amantes, os atributos físicos indispensáveis à geração da criança, a qual deve reproduzir o modelo de espécie mais resistente e adequado à perpetuação da Vontade. Em outras palavras, os amantes creem que escolhem cuidadosamente seu amado, que é o amor apaixonado, desinteressado que os impulsiona nessa busca, mas, na verdade, Eros está a serviço da Vontade; é uma espécie de ardil desta, pelo qual ela quer realizar, através dos amantes, seu desígnio, qual seja, a perpetuação da espécie. Assim, para Schopenhauer, o homem é essencialmente instinto sexual que, tomando corpo, se esforçará, movido pelo apetite sexual, que é a própria essência do homem, para conservar a espécie.
O profundo pessimismo do qual a filosofia schopenhaueriana é um sintoma vigoroso calca-se sobre a convicção de que a essência íntima do universo é uma Vontade cega, absurda e irracional de viver, vontade esta que impulsiona todo o mundo e cada ser vivo a desejar incessantemente a vida. A vida do ser humano, especialmente, é um contínuo e incessante movimento de alternância de desejos que jamais logram satisfação plena e duradoura, do que resulta que a vida seja experienciada pelo homem como uma trama marcada por luta sem trégua, esforços inúteis, dores intermináveis, pálidas satisfações intermitentes e tédio profundo.
À tirania da Vontade, impulso cego sempre diligente em perpetuar a vida, nem mesmo Eros escapa. O amor é, para Schopenhauer, portanto, essencialmente instinto sexual, e dele a Vontade se serve como um estratagema para perpetuar a si própria (já que a Vontade é vontade de viver). Os protagonistas da relação amorosa acreditam estar vivendo livremente essa relação, à qual eles associam toda sorte de significados, anseios, valores, sem saberem que a natureza os usa como meros instrumentos para atingir seu fim fundamental: a conservação da espécie pela reprodução. Assim, o amor, tanto quanto o casamento, é um simples artifício empregado para um fim. Nem um nem outro comporta qualquer valor sagrado. Que o amor esteja submetido à Vontade cega, absurda e irracional o prova a loucura de que está impregnada a experiência amorosa. Assim, Schopenhauer manterá que o amor é realmente poderoso e astuto, pois sabe iludir o ser humano com promessa de felicidade duradoura, que jamais pode ser realizada.
O próprio prazer sexual é efêmero e insatisfatório, porquanto a união sexual não visa nunca a tornar felizes os amantes, mas tão só a possibilitar a geração de novas vidas, e com esta geração garantir a preservação da espécie. Schopenhauer, portanto, opera uma radical desmitificação do amor. Toda pessoa apaixonada é vítima de uma ilusão, por mais que creia no caráter sublime, etéreo, celeste, transcendente do amor, vive-o na ignorância a respeito de sua realidade: ele é instinto sexual a serviço da perpetuação da espécie. É através dele que se afirma de maneira mais enérgica e imperiosa a vontade de viver. Quando um indivíduo é tomado do instinto amoroso, é a vontade que expressa ardentemente seu desejo de se perpetuar num ser novo e distinto. Em A Vontade de Amar (2008, p. 16-17), assinala Schopenhauer:

O instinto do amor é meramente subjetivo, mas sabe iludi-los, ocultando-se sob a máscara de uma admiração objetiva. Por mais que haja o amor perfeito e desinteressado a alguém, o supremo fim é a geração de um novo ser. É prova disso não se satisfazer o amor com sua reciprocidade sentimental, mas ter necessidade da posse do gozo físico.


Conclui, pois, o filósofo  de modo severo e desalentado:


As almas nobres, os espíritos sentimentais, ternamente apaixonados, protestarão em vão contra o realismo rude de minha teoria; seus protestos carecem de razão. A constituição e o caráter da geração futura é uma finalidade do amor muito mais elevada que os sentimentos fantásticos e seus sonhos de idealismo. (ibid., p. 17, grifo nosso).


O frenesi de que é tomado um homem que encontra numa mulher o modelo vivo de seu ideal de beleza é tão só a forma pela qual se agita a índole da espécie, sempre ávida de perpetuar-se. Eis então, no excerto seguinte, como se nos apresenta outro aspecto da constante e insuperável ilusão a que estão destinados os amantes. Note-se que o amante nutre a crença ilusória de que a natureza trabalha para preservar a união dele com o/a amado/a; mas, na verdade, não é isso que acontece, segundo Schopenhauer:

É também uma ilusão a sua crença [do homem apaixonado] de que unicamente a posse de uma mulher, entre todas do mundo, lhe assegura uma ventura infinita. Entretanto, imaginando embora que seus esforços e trabalhos visam apenas lograr um gozo, na realidade trabalha só para perpetuar o tipo integral da espécie, criando um indivíduo determinado, que carece dessa união para existir. (ibid., 2008, p. 21).


O exame levado a efeito por Schopenhauer sobre a natureza do amor se inscreve num horizonte de desconstrução do ideal do amor romântico, ideal cujas raízes remontam ao cristianismo. Há, na crítica schopenhaueriana do amor, um verdadeiro desencantamento de Eros. Esse desencantamento pode ser interpretado como uma verdadeira dessacralização do amor, cujo resultado é devolver a Eros sua natureza instintiva, grosseira, que, ao longo de dois mil anos, foi encoberta por ideais que o imaginário coletivo não fez mais do que reproduzir. Mas, na verdade, a experiência não cansa de nos mostrar que tais ideais, que foram decisivos na construção imaginária do amor ocidental, são incompatíveis com a sua verdadeira natureza: a de ser instinto de reprodução, de procriação, e nada mais.
No passo a seguir, Schopenhauer nos faz ver que o destino de todo amante é a decepção, o desencanto. O amante se engana ao pretender colher do gozo amoroso as mais excelsas alegrias.


Todo amante experimenta, uma vez satisfeito o desejo, uma decepção singular. Surpreende-se de que sua paixão só lhe proporciona um prazer efêmero seguido de um rápido desencanto. (...) [Ele] não tem consciência de que a espécie é quem unicamente lucra com a satisfação de seu desejo; todos os sacrifícios que realizou voluntariamente, impelido pelo gênio da espécie, serviram para obter uma finalidade que não era sua. (ibid., p. 22).


Se nos for permitido empregar um vocábulo que, embora estranho ao pensamento schopenhaueriano, caracteriza bem a condição do amante, esse vocábulo é o adjetivo “alienado”. O amante, ao viver seu amor, o vive na inconsciência de ser um alienado, isto é, na ignorância do fato de que jamais é ele quem se realiza no amor, de que não é ele, amante, que realmente se beneficia do amor. Todo amante é, portanto, um ser alienado na medida em que não tem consciência de que não é sobre ele que recai a vantagem do amor, mas sobre a espécie, que garante, no ato da reprodução, sua perenidade.




                 1.7.  A essência da vida é dor

A vida é, essencialmente, dor, sofrimento. De inspiração budista, essa proposição constitui a tese fulcral de todo o pensamento filosófico schopenhaueriano. Nesta subseção, continuaremos a enfocar a insignificância radical do indivíduo, nomeadamente do ser humano individual, mas à luz de um horizonte de compreensão da vida como um esforço incessante que se constitui essencialmente como dor e sofrimento.
No livro II de O Mundo como Vontade e Representação, num certo momento da crítica da moral estoica, levada a efeito por Schopenhauer, o filósofo assevera: “Existe uma contradição notória em querer viver sem sofrer” (p. 100). Esse enunciado foi por nós escolhido dentre outros que afirmam ser a dor ou o sofrimento inseparável da vida, porque é preciso esclarecer em que consiste essa contradição, a qual não é de natureza lógica. Evidentemente, “querer viver sem sofrer” contraria nossa mais originária e intuitiva experiência de mundo e só pode ser um sintoma enunciativo do desejo, contra o qual protesta a razão.
Em outros lugares, vamos encontrar Schopenhauer afirmando que “o sofrimento é o fundo de toda a vida” (ibid., p.326),  “a dor é natural ao ser vivo” (ibid., p.331) , “sofrer é a própria essência da vida” (ibid., p. 334), “a dor está essencial e indissoluvelmente unida à vida” (ibid., p. 394). Chegamos à certeza de que, como nos ensina a tradição budista, que, juntamente do hinduísmo, muito influenciou o pensamento schopenhaueriano, viver é sofrer, por uma intuição imediata, que dispensa o labor argumentativo. Mas, em vários momentos da vida, a questão por que sofremos ou, numa forma variante, por que existir implica necessariamente sofrer não nos deixa de causar perplexidade ou terror.
Desconhecemos outro filósofo que tenha se debruçado sobre essa questão com tamanho esmero, obstinação e acuidade intelectual e que tenha fornecido uma resposta tão original quanto elegante, teoricamente, além de Schopenhauer. Decerto, esse filósofo alemão foi, sobretudo nessa matéria, um mestre insuperável.
Cabe-nos aqui dar testemunho do que tem a nos ensinar  Schopenhauer sobre a indissociabilidade entre viver e sofrer, cientes das limitações que nos podem perturbar uma interpretação, uma reescrita que jamais poderão devolver ao leitor, com o devido rigor, a densidade afetiva que animou as meditações do filósofo alemão, tampouco poderá nossa interpretação exibir a mesma elegância e precisão de estilo que o consagraram como um mestre da literatura filosófica.
Começo, pois, por notar que Schopenhauer, antes de definir o sofrimento, pede ao seu leitor que se recorde do que foi exposto no fim do livro II (ibid., p. 324). Ora, àquela altura, Schopenhauer havia negado à Vontade qualquer finalidade ou escopo. A Vontade, em todos os graus de sua objetivação, deseja sempre. O desejo é o ser mesmo da Vontade (ser aí, quer dizer, “essência”). A Vontade deseja, e esse desejar, sem o qual a Vontade deixa de ser o que é, é desejo que nunca termina; é desejo que não alcança uma satisfação última. Ora, para Schopenhauer, como para Platão, antes dele, desejo é carência; logo, quem tem desejo está privado da posse do objeto desejado, ou seja, quem deseja encontra-se num estado de carência ou privação. E a Vontade, que quer incessantemente, que é essencialmente desejo, “é incapaz de uma satisfação última”.  (ibid.).
Sem perder de vista a necessidade de elucidar o que Schopenhauer entende por sofrimento, cuidamos imprescindível à compreensão exata da indissociabilidade entre vida e dor, a que o filósofo, com semelhante precisão cirúrgica, nos expôs, tornar cristalinos alguns pontos de sua doutrina que, quiçá, possam ainda encontrar-se sob algumas sombras de incompreensão.
Recorde-se o leitor que a Vontade, a coisa-em-si, se manifesta em cada ser como um querer viver. A Vontade não quer outra coisa senão a vida. Cada ser da natureza constitui, assim, uma manifestação visível do querer viver universal. Eis agora o que deve se tornar claro: querer viver é fazer esforço. Lembremos que, segundo Schopenhauer, em toda parte na natureza, encontramos as diversas forças naturais e formas vivas disputando a matéria. Ora, esse querer apoderar-se da matéria, numa luta incessante e encarniçada, implica esforço. Segue-se daí que a vida é esforço.
A vida é esforço; e o esforço, para Schopenhauer, envolve dor. No entanto, pode objetar o otimista que nem todo esforço culmina com a dor, apenas aquele esforço que excede às forças do organismo. Além disso, poderia prosseguir o otimista, a natureza assinala o limite em face do qual o esforço deve se deter. Esse limite é a fadiga. Esta, por sua vez, quando experienciada, demanda repouso, descanso, de tal sorte que a vida, nomeadamente a vida humana, obedece a um ritmo cujas fases são o esforço, a fadiga e o repouso. Assim, contrariamente ao que não admite Schopenhauer, existe um esforço saudável, não excedente, mensurável, que busca alívio no repouso e que se acompanha do prazer no descanso. Por outro lado, é certo que existe o esforço malsão, superexcitado pelas paixões, que se precipita no sofrimento e no esgotamento. Em todo caso, fica demonstrado que a pretensa universalidade da relação de implicação entre esforço e dor não é outra coisa do que um sintoma do temperamento schopenhaueriano que o fez fixar seu olhar na miséria do mundo, querendo, assim, convencer-nos de que o mundo miserável compreende a totalidade do mundo existente.
Fica aqui essa objeção que se pode fazer a Schopenhauer; mas ela não pode nos incitar a viver amparado num otimismo grosseiro e ingênuo. Devemos, não obstante, reconhecer, com Schopenhauer, que a miséria da vida, que a experiência da dor e do sofrimento é inerente à dinâmica do devir, que não é possível viver sem sofrer em alguma medida, que existir implica necessariamente expor-se às tribulações de um destinar-se do mundo que se nos afigura não raro sem sentido e que nos escapa ao controle.
Volvemos nossa atenção para a ideia de esforço. O esforço é a essência de cada ser existente. Esse esforço não é senão a Vontade, que, à luz da consciência, se manifesta com a máxima clareza. No excerto abaixo, Schopenhauer busca articular a ideia da vida como esforço à luta pela sobrevivência. Essa luta incessante pela sobrevivência é uma consequência inevitável do esforço contínuo despendido pelas formas vivas para apoderar-se da matéria.

É ainda preciso recordarmos uma teoria do segundo livro: é que em todo lugar, as diversas forças da natureza e as formas vivas disputam a matéria; todas tendem a usurpá-la; cada um possui justamente o que arrancou às outras; assim se mantém uma guerra eterna, em que se trata de vida ou de morte. Daí resultam resistências que de todos os lados opõem obstáculos a esse esforço, essência íntima de todas as coisas, reduzem-no a um desejo mal satisfeito, sem que, contudo, ele possa abandonar aquilo que constitui todo o seu ser, e o forçam assim a torturar-se, até que o fenômeno desapareça, deixando o seu lugar e a sua matéria açambarcadas por outras. (ibid., p. 324, grifo nosso).


A Vontade é esforço, e esse esforço é uma tendência, um impulso que leva toda coisa a afirmar a vida, a querer irresistivelmente a vida. Mas não faltam, na luta pela sobrevivência, travada pelas formas vitais, resistências, obstáculos de toda sorte. Disso resulta que o esforço é sempre frustrado, reduzindo-se “a um desejo mal satisfeito” (ib.id.). Tal é então a dinâmica da vida:  um querer incessante que se realiza por um número infindável de esforços que se chocam com um sem número de obstáculos, que reduzem todo esforço a um desejo malogrado, até que o vivente em que o esforço afirmava o querer-viver desapareça com a morte.
Podemos, agora, tendo lançado alguma luz sobre as regiões da doutrina schopenhaueriana, que, quiçá, tenham ainda permanecido nebulosas, referir, nas palavras do próprio Schopenhauer, como o sofrimento é definido. Escreve o autor: “Se ela [a Vontade] é travada por qualquer obstáculo requerido entre ela e o seu objeto do momento, eis o sofrimento” (ibid., p. 325, ênfase no original).
O sofrimento é, portanto, para Schopenhauer, a condição resultante do aparecimento de um obstáculo que se interpõe entre a Vontade e o seu escopo momentâneo. Em outras palavras, o sofrimento é privação, insatisfação, pois ele é o que advém quando um obstáculo impede que a Vontade atinja seu escopo momentâneo. Há sofrimento sempre que a Vontade é impedida de satisfazer sua tendência, seu impulso; sempre que ela é privada de apoderar-se daquilo para o qual ela tende.
Por outro lado, Schopenhauer chama de felicidade ou bem-estar o estado em que a Vontade atinge seu alvo, ou seja, quando ela encontra satisfação ao apoderar-se daquilo para o qual ela tende. Mas a felicidade, quando contemplada como um estado da vida humana, jamais pode ser um estado positivo, ou seja, alguma condição que se alcança positivamente. O tema da felicidade em Schopenhauer será escopo de nossas considerações alhures. Por ora, basta dizer que, para o filósofo de Dantzig, a felicidade perdurável é impossível, quer a consideremos relativamente ao homem, quer relativamente aos animais sencientes. Todo desejo, enquanto permanece desejo, é uma falta e, portanto, é sofrimento: “todo desejo nasce de uma falta, de um estado que não nos satisfaz, portanto, é sofrimento, enquanto não é satisfeito”. (ibid.).
Desejo, para Schopenhauer, é falta, carência, privação; e quem se encontra desejoso, encontra-se em privação, carente daquilo para o qual tende o desejo; portanto, esse estado é fonte de insatisfação; é sofrimento. Quando satisfeito o desejo, a satisfação que daí resulta é, no entanto, débil, temporária e, tão logo, dará lugar a novo desejo e, portanto, a novo sofrimento. É que a Vontade, que deseja incessantemente, nunca atinge um estado de satisfação plena, durável ou definitiva. Logo, nenhuma satisfação que possamos obter está destinada a durar por muito tempo; toda satisfação é temporária: “é apenas o ponto de partida de um novo desejo” (ib.id.).
Podemos, pois, sumariar o que vimos até aqui sobre a conaturalidade do desejo ao sofrimento, referindo as seguintes palavras de Schopenhauer: “vemos o desejo em toda parte em luta, portanto sempre no estado de sofrimento: não existe fim último para o esforço, portanto não existe medida, termo para o sofrimento”. (ibid.).
O sofrimento se torna mais evidente à medida que ascendemos na escala de objetivação da Vontade, até chegarmos às formas fenomênicas entre as quais estão os animais vertebrados com seu sistema nervoso mais desenvolvido. Nesse grupo, a intensidade do sofrimento aumenta à proporção da inteligência. Segue-se daí que:

(...) conforme o conhecimento se ilumina, a consciência se eleva, a desgraça também vai crescendo; é no homem que ela atinge o seu mais alto grau, e aí também se eleva tanto mais quanto o indivíduo tem uma visão mais clara, é mais inteligente: é aquele em que o gênio reside que mais sofre. É neste sentido, interpretando-o como grau de inteligência, não como puro saber abstrato, que compreendo e admito a palavra do Eclesiastes: quem aumenta a sua ciência, aumenta também a sua dor”. (ibid., ênfase no original).



            1.8. As variações da dor na existência humana


Vamo-nos debruçar sobre o exame das formas como a experiência da dor e/ou do sofrimento, que constitui a essência da vida, trama a malha da existência humana.
Vimos que o esforço constitui a essência íntima de todos os fenômenos da Vontade e que, por isso, a vida é fazer esforço contínuo, sem alvo, sem repouso; esse esforço, nós o apreendemos já na natureza bruta. Mas no animal e no homem, esse esforço se manifesta “muito mais evidentemente”. ( ibid., p. 327). No homem, o esforço “é como uma sede inextinguível” (ibid.).
Dado que todo querer tem origem numa necessidade, numa carência, numa falta, segue-se que ele se acompanha de dor. A dor é, então, esse estado de privação, de falta suposto em todo querer. Se, por algum momento, a Vontade encontra-se em posse do objeto que antes lhe faltava, se, como escreve Schopenhauer, “uma pronta satisfação lhe vier roubar todo motivo para desejar” (ibid.), não restará senão aos homens a queda “num vazio terrível, no tédio: a sua natureza, a sua existência pesa-lhes com um peso intolerável”. (ibid.).
Destarte, a vida humana é, em essência, um movimento contínuo entre o sofrimento e o tédio. O filósofo utiliza-se, de modo muito perspicaz, da conhecida metáfora do pêndulo para descrever essa alternância entre dois estados que cingem, de ponta a ponta, o drama da existência humana:

A vida do homem oscila, como um pêndulo, entre a dor e o tédio, tais são na realidade os seus dois últimos elementos. Os homens tiveram de exprimir essa ideia de um modo muito singular; depois de terem feito do inferno o lugar de todos os tormentos e de todos os sofrimentos, que ficou para o céu? Justamente o aborrecimento. (Schopenhauer, 2014, p. 35, grifo nosso).


Tornamos a encontrar a importância que tem o corpo na metafísica schopenhaueriana da Vontade. O corpo vivo, nomeadamente o corpo humano, carece de ser alimentado; por isso, esse corpo é a própria vontade de viver encarnada.

Eis por que o homem, a mais perfeita das formas objetivas dessa vontade, é também, e como consequência, de todos os seres o mais assediado por necessidades: ele é inteiramente apenas vontade, esforço; necessidades aos milhares, eis a própria substância de que é constituído. (Schopenhauer, 2001, ibid., grifo nosso).



É assim, segundo Schopenhauer, que se encontra o homem sobre a terra: “abandonado a si mesmo, indeciso a respeito de tudo, exceto das suas necessidades e da sua escravidão” (ibid.). O homem vive continuamente ocupado de satisfazer necessidades que, no entanto, se lhe apresentam como exigências difíceis de serem satisfeitas, e que se renovam todos os dias.
As descrições que Schopenhauer nos dá das formas como a essência da existência humana se manifesta, das formas como a vida humana é vivida no seu destinar-se absurdo no tempo poderiam muito bem inspirar um pintor que quisesse pôr em telas imagens de uma tragédia encenada em três atos: 1. Nascimento; 2. Ciclo interminável de necessidades, privações, dores; 3. Morte ou retorno ao nada. E assim, como um espectador diante de uma tela pintada por um artista, contemplando, atônitos, a representação imagética de nossa existência, somos afetados pela conclusão, a cujo caráter irreprochável Schopenhauer quer nossa adesão:

Entre os desejos e as suas realizações decorre toda a vida humana. O desejo, pela sua natureza, é sofrimento; a satisfação engendra bem depressa a saciedade. O alvo era ilusório, a posse rouba-lhe o seu atrativo; o desejo renasce sob uma forma nova, e com ele a necessidade; senão é o fastio, o vazio, o tédio, inimigos mais violentos ainda do que a necessidade. (ibid., p. 329, grifo nosso).


A vida de todos os homens não é senão um ciclo interminável no qual se alternam numa cadência regular e monótona desejo (dor), satisfação (temporária, impermanente) e tédio. O homem continuamente é perturbado por desejos, cuja satisfação ele acossa irrefletidamente. E a cada desejo que, com esforço, é satisfeito, sobrevém outro desejo a reclamar satisfação. E esta satisfação não tarda em converter-se em saciedade, que, por sua vez, se transforma em tédio, só superado por um novo desejo que reinicia o ciclo interminável. A conclusão de Schopenhauer só pode ser esta: “a dor é, portanto, inevitável; os sofrimentos banem-se uns aos outros: este apenas vem para tomar o lugar do precedente”. (ibid., p. 331).
Existir é estar lançado num ciclo de esforços contínuos e necessidades, e dores que não cessam de se renovar, sob formas diversas. É o que nos patenteia Schopenhauer no passo a seguir:

Os esforços incessantes do homem para banir a dor apenas conseguem fazê-la mudar de face. Na origem, ela é privação, necessidade, preocupação com a conservação da vida. Se conseguirem (difícil tarefa) evitar a dor sob esta forma, ela regressa sob mil outros aspectos, mudando, com a idade e as circunstâncias: ela faz-se desejo carnal, amor apaixonado, e tantos outros males, tantos outros!. (ibid., p. 330).


As expressões “desejo carnal” e “amor apaixonado” designam exemplos de variação da dor, ou seja, formas pelas quais ela se manifesta. Note-se o tom lamentoso, marcado pelo sinal de exclamação na expressão “tantos outros males, tantos outros!”. Com essa expressão e sua entonação característica, Schopenhauer enfatiza o caráter doloroso da existência, ao mesmo tempo que projeta seu lamento na constatação dessa verdade. São inúteis, portanto, as defesas empregadas pelos homens para escapar às dores, aos sofrimentos que lhes tornam a existência um fardo pesado, pois que elas acabam por assumir “o aspecto triste, lúgubre do fastio, do aborrecimento [tédio]”. (ibid., p. 330).
“Entre a dor e o aborrecimento [tédio] – escreve Schopenhauer – a vida oscila sem cessar”. (ibid., p. 331). Não obstante, os homens, em sua maioria, vivem acalentados na crença de que muitos males que os acometem são acidentais, e assim, não se perturba o cuidado com que perseguem sua felicidade pessoal. Toda a sua vida é empregada para a conquista dessa felicidade, a qual, no entanto, lhes escapa por entre os dedos e por todos os lados. Se, ao menos, compreendessem que a dor é conatural a todo ser vivente, que é inevitável, que ela nada deve ao acaso, que ela, enfim, é a forma sob a qual a vida se manifesta, talvez limitassem drasticamente suas pretensões de felicidade, alcançando a compreensão de que saber viver consiste em querer ser menos infeliz possível.


                1.9. A tirania do querer: a tragédia schopenhaueriana de Sísifo

Nesta subseção, tornamos a realçar a insignificância radical da vida humana, de cada indivíduo. Além disso, dilucidaremos o que significa a tirania do querer, termo com que designamos a forma da vontade de viver.
Em As Dores do Mundo (2014), livro em que se compilam diversos excertos da obra schopenhaueriana, topa-se o seguinte passo que reúne, numa síntese, de modo bem articulado e claro, os aspectos essenciais da teoria da Vontade como querer-viver:

Querer é essencialmente sofrer, e, como viver é querer, toda a existência é essencialmente dor. Quanto mais elevado é o ser, mais sofre... A vida do homem não é mais do que uma luta pela existência com a certeza de ser vencida... A vida é uma caçada incessante onde, ora como caçadores, ora como caça, os entes disputam entre si os restos de uma horrível carnificina; uma história natural da dor que se resume assim: querer sem motivo, sofrer sempre, depois morrer e assim sucessivamente, pelos séculos dos séculos, até que o nosso planeta se faça em bocados. (ibid., p. 39, grifos nossos).


Se procedermos atenta e novamente à leitura, não encontraremos dificuldades de concluir que o referido excerto encerra as lições fundamentais do pessimismo schopenhaueriano. Querer, ou seja, desejar é  essencialmente sofrer, porque, ao desejar, o homem, cuja essência reside nesse querer, encontra-se em estado de carência, de privação; por conseguinte, ele, ao querer, sofre. Como a vida é manifestação da Vontade, isto é, manifestação desse querer incessante, a vida é essencialmente dor, sofrimento.
O homem é o fenômeno mais elevado e perfeito da Vontade. Como seja um ente dotado de conhecimento, de uma consciência superior, a dor de viver se lhe afigura mais intensa; ele é, por isso, o ente que mais sofre. Atentemos para as imagens usadas por Schopenhauer na constituição de sua concepção de vida. Pondera o autor que “a vida do homem não é mais do que uma luta...”, da qual o homem está certo de que sairá derrotado. Todos os seus esforços, mobilizados para essa luta, são inúteis. Não importa quanto o homem faça, o que faça: a vida é uma experiência da qual ele será, mais cedo ou mais tarde, necessariamente privado. O destino do homem o reduzirá inapelavelmente ao nada. A vida do homem, escreve Schopenhauer, “é uma luta pela existência com a certeza de ser vencida”. Eis encenado aqui o destino de Sísifo, destino comum a todo ser humano: o homem luta sempre, quer sempre e sempre, mas, se for inquerido sobre a razão por que faz o que faz, não sabe bem responder. Ele sabe que precisa fazer o que faz; seu trabalho consiste em ser um combatente que morrerá necessariamente com as armas nas mãos. Carregar pedra e recomeçar esse trabalho árduo diariamente – trabalho que é a própria vida de que ele, homem, se encarrega na mais profunda ignorância sobre a causa (se houver alguma ) por que se encontra a ele obrigado e a finalidade (se houver alguma) com que o realiza, até que a morte, credor implacável, venha-lhe tomar aquilo que a ela pertence, é o que torna nossa condição semelhante à de Sísifo.
Essa “história natural da dor”, que é a vida mesma, é reiniciada toda vez que vem ao mundo uma nova criança. O instinto sexual garante, portanto, que essa história de dor seja incessantemente repetida. Dar à luz uma criança não é mais, segundo Schopenhauer, do que recomeçar a marcha da história humana, cuja insignificância não escapou ao escrutínio descritivo do autor. No trecho a seguir, Schopenhauer compara os homens a um relógio que, “uma vez montados, funcionam sem saber por quê”. O absurdo atinge aí, talvez, seu mais alto tom de irracionalidade, fazendo retumbar no âmago do ser humano a perplexidade esmagadora em face de sua trágica condição:


(...) custa a crer a que ponto é insignificante, vazio de sentido, aos olhos do espectador estranho, a que ponto é estúpida e irrefletida, para o próprio ator, a existência que a maior parte dos homens leva: uma espera tola, sofrimentos estúpidos, uma marcha titubeante através das quatro idades da vida, até esse termo, na companhia de uma procissão de ideias triviais. Eis os homens: relógios; uma vez montados, funcionam sem saber por quê. A cada concepção, a cada geração, é o relógio da vida humana que reanima para retomar o seu estribilho, já repetido uma infinidade de vezes, frase por frase, medida por medida, com variações insignificantes. – Um indivíduo, um rosto humano, uma vida humana, isso é apenas um sonho muito curto de espírito infinito que anima a natureza dessa obstinada vontade de viver, mais uma imagem fugidia que a brincar ela esboça na tela sem fim, o espaço e o tempo, para aí a deixar por um momento – momento que, em comparação com essas duas imensidões, é um zero -, depois apagá-la e dar assim lugar a outras. Contudo, e é isto que na vida dá para refletir, cada um destes esboços de um momento, cada um desses ímpetos paga-se: furor, sofrimentos sem número, sem medida, depois, no fim, um desenlace durante muito tempo receado, finalmente inevitável, essa coisa amarga, a morte, eis o que eles custam. E é por isso que a visão de um cadáver nos torna bruscamente tão sérios. (Schopenhauer, 2001, p. 338).


O que chamamos de tirania do querer é – deve-se esclarecer – a forma mesma da vontade de viver. Já estudamos seu mecanismo, mas não custa aqui recordá-lo. O homem é, essencialmente, vontade, desejo insaciável. Porque é essencialmente desejo, o homem sofre. O objeto desejado, uma vez possuído, jamais consegue cumprir as promessas sobre ele projetadas quando era objeto do desejo. Nunca atingimos uma satisfação final. A vontade em nós, a vontade que, essencialmente, somos permanece insatisfeita. Mas, quando um desejo é satisfeito em algum momento, ele muda de forma e nos torna a torturar. Para Schopenhauer, portanto, não há escapatória a essa forma de tirania: ainda que todas as formas possíveis de desejo fossem satisfeitas, a necessidade do querer sem motivo, sem alvo, permaneceria, e nos veríamos inundados de um sentimento de vazio, paralisados pelo sentimento de perda de significado de tudo; em uma palavra, seríamos absorvidos num tédio insuportável.
A insignificância de tudo, o sentimento de vanidade de todos os esforços humanos, aos quais Cioran soube bem dar voz em seus textos, ganha carne, crueza, espessura trágica no relato que Schopenhauer nos faz do enviar-se da vida cotidiana e comum. O excerto seguinte constitui um exemplo de como o viver cotidiano, quando seus eventos são submetidos à análise, apresenta-se desbotado de qualquer sentido e importância. Segundo Schopenhauer, tomada na totalidade, a vida de cada indivíduo, realçados os acontecimentos danosos, é uma tragédia; todavia, quando a contemplamos em seus pormenores, “ela toma uma aparência de uma comédia”. (ibid.).

(...) Cada dia traz o seu trabalho, a sua preocupação; cada instante, o seu novo engano, cada semana, o seu desejo, o seu temor; cada hora, os seus desapontamentos, visto que o acaso está lá, sempre à espreita, para fazer qualquer maldade: tudo isto são puras cenas cômicas. Mas os desejos nunca atendidos, a dor sempre gasta em vão, as esperanças quebradas por um destino impiedoso, os desenganos cruéis que compõem a vida inteira, o sofrimento que vai aumentando, e, na extremidade de tudo, a morte, eis o bastante para fazer uma tragédia”. (ibid.).


Para Schopenhauer, a vida de cada indivíduo é uma patografia (ibid., p. 340). Como “viver é esgotar uma série de grandes e pequenas infelicidades” (ibid.), longe de causar comiseração nos outros, o sofrimento de um indivíduo só pode causar a satisfação daquele que desse sofrimento foi poupado. Qual não é o contentamento daqueles que se dão conta dos males que não os acometeram?! Schopenhauer só pode daí concluir, contrariamente à doutrina do Eterno Retorno, que “no fundo, talvez, não encontrássemos um homem no fim de sua vida, e ao mesmo tempo refletido e sincero, que desejasse recomeçá-la e não preferisse antes um absoluto nada”. (ibid.). Esse retrato trágico da condição humana oferecido por Schopenhauer pode ser completado pelo espanto de Becker, em seu A negação da morte (2012, p. 228), com o fato de as pessoas suportarem fazer o que fazem.

Houve época em que eu ficava imaginando como é que as pessoas aguentavam trabalhar em torno daqueles infernais fogões em cozinhas de hotéis, o frenético torvelinho de servir uma dúzia de mesas ao mesmo tempo, a loucura do escritório de um agente de viagens no auge da temporada de turismo, ou a tortura de trabalhar o dia inteiro na rua com uma perfuratriz peneumática, num verão calorento. A resposta é tão simples, que nem a percebemos: a loucura dessas atividades é exatamente a da condição humanaElas estão “certas” para nós, porque a alternativa é o desespero natural. A loucura diária desses empregos é uma repetida vacina contra a loucura de hospício. Veja a alegria e a disposição com que os trabalhadores voltam das férias para suas rotinas compulsivas. Mergulham no seu trabalho com tranquilidade e alegria, porque o trabalho abafa algo mais sinistro. Os homens têm que ficar protegidos contra a realidade. Tudo isso levanta outro gigantesco problema para um marxismo sofisticado, ou seja: qual é a natureza das obsessivas negações da realidade que uma sociedade utópica irá proporcionar, para evitar que os homens enlouqueçam. (grifo nosso).

Como se poder ver, o autor descreve o mundo fático da ocupação humana. E categoriza as atividades que nesse mundo se realizam como “a loucura da condição humana”. Mas essa “loucura”, que é própria da condição humana, não é, no entanto, percebida como tal pelo homem comum[1]. Ao contrário, o homem comum identifica essas atividades rotineiras, nas quais se envolve por necessidade de sobrevivência, com o próprio viver. Quem negaria que viver, em grande medida, é isto: empregar diariamente o corpo e a alma num trabalho que nos consome quase o dia inteiro? Ocupação” é, aqui, a palavra-chave para compreender o modo originário de existir no mundo (modo originário tal como pensado por Heidegger). A ocupação nos previne contra “o desespero total”. Tanto quanto na descrição trágica de Schopenhauer, podemos ver, na referência que Becker faz ao modo como os homens se engajam em suas atividades cotidianas, a imagem, como se projetada num espelho intemporal, do forçoso trabalho de Sísifo.
Retomando o fio discursivo, cuidamos estar claro que, em consonância com a lição de Schopenhauer, o sofrimento é a matéria-prima de que se constitui a vida. Todavia, parece-nos oportuno elucidar aqui como o sofrimento pode ser justificado na filosofia schopenhaueriana.
Schopenhauer argumentará que o mundo é como é porque a Vontade da qual ele é a manifestação “é o que é e quer o que quer”. (ibid., p. 347). O sofrimento é, portanto, a consequência inescapável, inevitável da essência da Vontade. Segundo Schopenhauer, “a Vontade afirma-se mesmo por ocasião deste fenômeno [o sofrimento]”. (ibid.). Disso se retira uma conclusão imperiosa: o sofrimento se justifica como uma consequência necessária da afirmação da Vontade. Esta é a razão por que a ética schopenhaueriana assumirá o princípio da negação da Vontade como meio de, senão eliminar totalmente a dor de viver, aliviá-la significativamente. Do reconhecimento de que o sofrimento é como um sintoma inevitável da afirmação da Vontade, Schopenhauer conclui haver uma Justiça Eterna.
A Justiça Eterna reside na essência do universo. Mas poderíamos protestar, perplexos: é justo que os seres vivos sofram? Schopenhauer responderia: da perspectiva da Vontade, certamente é justo, porque “o tribunal do universo é o próprio universo”. ( ibid., p. 369).
Acompanhemos, nesse tocante, o raciocínio de Schopenhauer, que tem como compromisso revelar a verdade sobre o mundo e não interpretar o mundo tal como desejamos que ele fosse. O mundo é, insiste Schopenhauer, a expressão objetivada da Vontade de viver universal. A Vontade é o primeiro princípio (arkhé) do qual se origina o mundo com todas as suas formas de ser. Essa Vontade absolutamente livre é todo-poderosa. A Vontade se objetiva em cada coisa, segundo a determinação que dá a si mesma. Conquanto se objetive nos fenômenos do mundo, a Vontade é atemporal. O mundo – dirá Schopenhauer – “é apenas seu espelho”, de sorte que “todas as limitações, todos os sofrimentos, todas as dores que ele encerra são apenas uma tradução daquilo que ela quer, são apenas aquilo que ela quer” (ibid.). Lembre-se novamente que o mundo é como é porque a Vontade assim o quer.
Sucede que a existência é tanto a existência da espécie quanto a do indivíduo, tal como se apresentam ambas em circunstâncias dadas no mundo governado pelo acaso e pelo erro, mundo este “submetido à lei do tempo, transitório e sofredor” (ibid.). Os obstáculos que cada ser topa em seu caminho estão aí “com justa razão”, porque o modo como o mundo se constitui é determinado pelo querer da própria Vontade. Somente a essa Vontade devemos atribuir a razão pela existência do mundo tal como é. A Vontade não faz julgamento moral. Considerado em sua totalidade, o destino dos homens nada vale para ela. Esse destino é marcado, essencialmente, de “necessidade, miséria, lamento, dor e morte”. (ibid., p. 369). A Vontade iguala todos os seres em insignificância. Resulta daí a conclusão, terrível, decerto, para as sensibilidades de uma época ainda marcada pela crença numa Providência divina, mas inegavelmente e racionalmente afinada com a crueza do real, tal como ele é: “se fosse possível colocar numa balança, num dos pratos, todos os sofrimentos do mundo, e no outro, todas as faltas do mundo, a agulha da balança ficaria perpendicular, fixamente”. (ibid., p. 370).
Cumpre ainda dizer que Schopenhauer não deixou de enfrentar o seguinte problema: se há uma Justiça Eterna que distribui equitativamente o sofrimento, por que vemos aquele que pratica o mal, a despeito de sua maldade, viver na alegria, gozar de prazeres, ao passo que a vítima de violência, o oprimido, tem de suportar uma vida dolorosa, sem encontrar um justiceiro?
Schopenhauer considera uma ilusão esse modo de ver as coisas. Esse modo ilusório de ver o mundo resulta da submissão dos indivíduos ao princípio de razão. A visão deles, encoberta pelo véu de Maya, não alcança a essência íntima do mundo. O indivíduo comum “vê o mal, vê a maldade no mundo, mas como está longe de ver que isso são as duas faces diferentes, e nada mais, nas quais a Vontade universal de viver aparece”. (ibid., p. 370).
Esse indivíduo cuja vida está submetida ao princípio de individuação é incapaz de ver que “o carrasco e a vítima são apenas um”. (ibid., p. 372). Na medida em que a Vontade existe em todo fenômeno, o sofrimento seja o que se inflige, seja o que se suporta, prende-se ao mesmo ser, essência do mundo. Não importa que apareça em indivíduos diferentes. Veja-se, no trecho abaixo, com mais clareza, o que Schopenhauer entende por Justiça Eterna:

Aquele que sabe, vê que a distinção entre o indivíduo que faz o mal e aquele que o sofre é uma pura aparência que não atinge a coisa em si, que esta, a vontade, está ao mesmo tempo viva em ambos; apenas, enganada pelo entendimento, seu servidor natural, esta vontade desconhece-se a si mesma; num dos indivíduos a que manifestam, ela procura um acréscimo de seu bem-estar, e ao mesmo tempo, em outro, ela produz um sofrimento penetrante. Na sua violência, ela enterra os dentes em sua própria carne, sem ver que é ainda a si que se rasga; e, desta forma, graças à individuação, ela patenteia essa hostilidade interior que traz na sua essência. (ibid., p. 372, grifo nosso).


Para compreender o que Schopenhauer entende por Justiça Eterna, devemo-nos despir de nossos julgamentos morais (sobretudo, não devemos submeter a Vontade a qualquer julgamento moral) e  nos ater à lição, já referida, de Schopenhauer, segundo a qual a Vontade se afirma produzindo sofrimento como consequência inevitável dessa afirmação. Schopenhauer sustenta a indiferença da Vontade quanto ao destino dos seres vivos em que ela se manifesta, mas não endossa uma indiferença como princípio ético. É justamente porque do ponto de vista da Vontade é indiferente quem sofra e quem faz sofrer que devemos nos compadecer com o sofrimento do justo, do inocente, da vítima, do oprimido. O mundo não é criação de um Deus Providente, Sumo Bem; mas a objetivação da Vontade. E a Vontade é um querer-viver cego, irracional, por isso ela “enterra os dentes em sua própria carne, sem ver que é ainda a si que se rasga”. Ela não pode fazer distinção moral entre o criminoso e a vítima, entre quem pratica o mal e quem o sofre. Por isso, é sob esta nova luz que podemos compreender as palavras suplicantes e lamentosas de Jesus em Lucas 23: 34 – “Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem” – ao contemplarmos a obstinação com que os homens fazem sofrer uns aos outros. Eis, pois a lição de Schopenhauer: o homem que causa dor a seu semelhante o faz na ignorância do fato de que através dele afirma-se a vontade de viver, uma Vontade para quem ele é apenas um fenômeno através do qual ela busca perpetuar o mundo tal como é: mundo repleto de misérias, ao qual esse homem foi enviado sem compreender o porquê, sem ter consciência de tê-lo merecido.
No entanto, só chega a compreender a Justiça Eterna aquele que se desliga do princípio da razão suficiente, o qual liga o todo ao particular, e se eleva até a visão das ideias, escapando ao princípio da individuação, para, então, convencer-se de que as realidades consideradas em si mesmas não podem atrelar-se às formas fenomênicas.
Uma das principais fontes de sofrimento é o egoísmo. Segue-se daí que a superação do princípio de individuação é a condição necessária para que o homem se liberte do egoísmo. Ora, o egoísmo, observa Schopenhauer, é resultado da submissão da Vontade ao princípio de individuação, sem o qual ela não poderia objetivar-se no mundo. O egoísmo, ao se manifestar no mundo, assume uma forma determinada. Torna-se Eris: “a guerra entre todos os indivíduos”. (p. 349). É assim que a contradição da Vontade consigo mesma se expressa: a Vontade é dividida em duas partes inimigas entre si.



Quando se pretende evidenciá-la, em toda a sua clareza, sem intermediário, há um meio cruel para isso: são os combates de feras. Esta divisão, este rasgão, é como a inesgotável fonte dos sofrimentos; as barreiras que o homem imaginou para detê-la são inúteis (...). (ib.id.).



 2. A felicidade é negativa e a dor é real


É impossível ao homem fruir a felicidade positiva. A impossibilidade de atingir uma felicidade positiva significa que o homem jamais pode gozar a felicidade como um estado de bem-estar, pleno de prazeres, alegrias, que seja a satisfação duradoura de seus mais profundos anseios de viver confortavelmente sobre a terra. Uma felicidade assim pretendida não é mais do que uma quimera, sublinha Schopenhauer. Sempre que o homem estabelece como objetivo de sua vida a busca dessa felicidade positiva, algo que supõe passível de ser conquistada fora de si mesmo, ele se expõe ao perigo da infelicidade, da decepção, da dor que não deve ser ignorado. Resulta daí, consoante ensina Schopenhauer, que:


(...) o caminho da sabedoria de vida consiste em partir da convicção de que toda felicidade e todo prazer são de natureza apenas negativa, enquanto a dor e a indigência têm caráter real e positivo. Partindo-se desse pressuposto, todo projeto de vida direciona-se com a intenção de evitar a dor e de afastar a indigência; nesse sentido, pode-se obter algum resultado, mas isso só é possível com certa segurança se o projeto não sofre a interferência da aspiração à quimera da felicidade positiva”. (ibid., p. 62, grifo nosso).


Ao contrário do homem comum, que persegue obstinadamente a felicidade como um estado de bem-estar duradouro no qual pretende se instalar permanentemente e faz disso seu projeto de vida, o sábio evita os males, consistindo nesse esforço sua própria felicidade. Assim, viver feliz “somente pode ter o sentido de viver de maneira menos infeliz possível, ou, em poucas palavras, viver de maneira suportável”. (ibid., ênfase nossa).
Para Schopenhauer, o critério da medida de felicidade é a ausência de dor: sou tanto mais feliz quanto mais liberto estou da dor, quanto mais imperturbável me encontro. A única felicidade possível ao homem é a que se dá sob a forma da ataraxia – ausência de dor e perturbação da alma.
Que preço pagamos ao pretender fruir uma felicidade positiva? Na máxima 16, de A arte de viver (2001b, p. 46-47), que reproduzimos na íntegra, Schopenhauer no-lo revela:


Todos nós nascemos na Arcádia, todos viemos ao mundo cheios de pretensões de felicidade e de prazer, e conservamos a insensata esperança de fazê-las valer, até o momento em que o destino nos aferra bruscamente e nos mostra que nada é nosso, mas tudo é dele, uma vez que ele detém um direito incontestável não apenas sobre nossas posses e nossos ganhos, mas também sobre nossos braços e nossas pernas, nossos olhos e nossos ouvidos, e até sobre nosso nariz no centro do rosto. A experiência vem em seguida e nos ensina que a felicidade e o  prazer não passam de uma quimera, mostrada a distância por uma ilusão, enquanto o sofrimento e a dor são reais e manifestam-se diretamente per si só, sem a necessidade da ilusão e da espera. Se seu ensinamento se mostra frutífero, deixamos de buscar a felicidade e o prazer e passamos a nos preocupar apenas em fugir ao máximo do sofrimento e da dor [“o homem sábio não persegue o que é agradável, mas a ausência de dor”. Aristóteles, Ética a Nicômaco, VII, 12, 1152b 15-6]. Reconhecemos que o melhor que o mundo nos pode oferecer é um presente suportável, tranquilo e sem dor; se isso nos é concedido, sabemos apreciá-lo e cuidamos bem para não estragá-lo ansiando sem trégua alegrias imaginárias ou preocupando-nos temerosos com um futuro sempre incerto que, a despeito de nossos esforços, depende totalmente do destino”.


A sabedoria de vida proposta por Schopenhaeur pauta-se pelo princípio segundo o qual a pretensão a uma felicidade positiva é ameaçada pelas vicissitudes da fortuna. Jamais podemos estar seguros de alcançá-la, porque o curso das coisas, as formas como se dá o destinar-se da vida escapam ao nosso controle, independem de nossa vontade. Além das flutuações de um destino indiferente às nossas aspirações de felicidade duradoura, a impossibilidade de fruí-la se prende à maneira como se constitui nosso aparelho psíquico, a qual inviabiliza o gozo da satisfação plena e duradoura do desejo. Escusa dizer que desejo é, para Schopenhauer, privação, carência; é a condição preliminar para o prazer, de modo que, satisfeito o desejo, o prazer cessa.

Portanto, a satisfação, o contentamento, poderiam ser apenas um alívio em relação a uma dor, a uma necessidade: sob este nome, não se deve entender, com efeito, apenas o sofrimento efetivo, visível, mas toda espécie de desejo que, pela sua importunação, perturba o nosso repouso, e (também o tédio, que mata, que faz da nossa existência um fardo. Mas, é uma empresa difícil de obter, conquistar um bem qualquer: não existe objeto que não esteja separado de nós por dificuldades, trabalhos sem fim; sobre o caminho, a cada passo, surgem obstáculos (...). ( Schopenhauer, op.cit., p. 335).


Levemos a cabo esta seção, insistindo, com Schopenhauer, que toda felicidade possível ao homem é tão-somente uma felicidade negativa, a saber, uma felicidade que se experiência na imperturbabilidade da alma e do corpo, na cessação da dor. Devemo-nos contentar com a lembrança do sofrimento passado que conseguimos afastar. Nossa felicidade encontra nessa recordação seu único nutriente. Somos tanto mais felizes quanto mais afastados estamos das dores, perturbações, preocupações, inquietudes e sofrimentos. O que Schopenhauer quer que compreendamos, em suma, é que a Vontade não tem qualquer interesse em garantir a nossa felicidade. A vida humana, sendo apenas uma manifestação de uma Vontade cega e irracional, reduz-se “a um esforço sem alvo, sem fim” (ibid., p. 337). Cientes de que estamos abandonados ao acaso num mundo em cuja origem está uma Vontade que quer a vida tal como ela é – repleta de misérias e de sofrimentos incontáveis -, é melhor para nós reduzir ao máximo nossas pretensões de felicidade; em suma, devemos nos esforçar por viver o menos infelizes possível.


               2.1. A negação da Vontade e o tipo asceta

Nesta última seção atinente à abordagem do pensamento schopenhaueriano, no presente estudo, cumpre-nos demonstrar de que modo a filosofia de Schopenhauer visa a realizar uma verdadeira conversão no modo de viver do homem. Intentamos patentear as características que fazem da filosofia schopenhaueriana um exemplo moderno de exercício espiritual destinado a cunhar um modo de ser e de viver. A conversão cuja realização se propõe a filosofia schopenhaueriana está prefigurada no que o filósofo chama negação da vontade, e o tipo vital humano que personifica o grau máximo da negação da vontade é o tipo asceta.
De passagem, ressalte-se que, nos capítulos seguintes, ao longo dos quais nos ocuparemos de examinar a filosofia de Nietzsche, à luz da concepção de filosofia como exercício espiritual, não descuraremos de realçar os aspectos contrastantes ou mesmo antagônicos entre o tipo asceta, cujo modo de vida tem em mira a filosofia schopenhaueriana, e o tipo dionisíaco, representado na figura do além-do-homem, em Nietzsche.
Duas observações devem aqui ser enunciadas, já que servirão para orientar a análise que se seguirá: 1) Schopenhauer considera o asceta “o fenômeno maior, o mais importante, o mais significativo que alguma vez se manifestou no mundo” . (ibid., p. 404-405); 2) à doutrina da negação da vontade articulam-se certos valores cristãos e essa doutrina se reapropria de certas categorias neotestamentárias como “salvação”, “conversão”, “redenção”, etc.
Tal é a proximidade de sua filosofia com a ética cristã, que o próprio Schopenhauer chega mesmo a dizer que sua doutrina pode ser considerada como uma verdadeira filosofia cristã. Para o filósofo de Dantzig, nos apóstolos cristãos, se acham os primeiros graus da ascese ou da negação da vontade.
Vamo-nos lançar ao exame do modo como a filosofia schopenhaueriana se propõe a realizar uma verdadeira conversão naquele que nela se exercita, principiando com a questão premente, cuja resposta constitui o escopo de nossas reflexões: o que é a negação da vontade, para Schopenhauer? A negação da vontade nada tem que ver com a prática do suicídio, que Schopenhauer condenará como inútil. A negação da vontade é a mortificação do querer; ela recobre um conjunto de práticas destinadas à renúncia de si, a acalmar a sede do desejo através da imolação da vontade. A realização máxima da negação da vontade é a ascese (ou ascetismo), que Schopenhauer define como se segue:


 Pela palavra ascetismo (...) entendo o aniquilamento refletido do querer que se obtém pela renúncia aos prazeres e pela procura do sofrimento; entendo uma penitência voluntária, uma espécie de punição que a pessoa se inflige para chegar à mortificação da vontade. (ibid., p. 410).


A ascese (ou o ascetismo) é o modo de vida do homem verdadeiramente livre, porque é o modo de viver do homem que alcançou o conhecimento da essência íntima do mundo; porque é o modo de viver do homem que compreendeu que essa essência é a Vontade. Tendo a consciência iluminada por esse conhecimento, o tipo humano asceta apazigua o querer-viver, faz calar todo desejo.
Embora a ascese, segundo Schopenhauer, seja um modo de vida apenas acessível a um pequeno número de homens, encontram-se nesse grupo até aqueles culpados dos piores crimes, que buscam uma expiação voluntária. Nesse grupo, se acham também “os infelizes que aprenderam a conhecer o amargor do sofrimento”. (p. 412), e, tendo perdido completamente a esperança, convertem-se a uma vida calcada sobre uma completa resignação. Destarte,

Eles amam os seus sofrimentos e a sua morte, visto que entraram na negação do querer-viver; muitas vezes recusam mesmo a salvação que se lhes oferecem e morrem voluntariamente, com tranquilidade e felicidade. Foi porque o último segredo da vida se lhes revelou, mesmo no excesso do sofrimento; compreenderam que a dor e o mal, o sofrimento e o ódio, o crime e o criminoso, que se distinguem tão profundamente no conhecimento submetido ao princípio de razão, são, no fundo, apenas uma só e mesma coisa, a manifestação dessa única vontade de viver, que objetiva a sua luta consigo mesma por meio do princípio de individuação. (ibid.).


Do excerto acima, depreende-se que a vida ascética pressupõe uma mudança de conhecimento (mudança que já estava prevista na vida ética). Mas o modo de vida ascético constitui um estágio superior ao modo de vida calcado na virtude da compaixão. É que o tipo asceta compreendeu como seus todos os sofrimentos de que são acometidos todos os viventes, já que esses sofrimentos decorrem da afirmação da mesma vontade de viver que permeia e anima todo o universo. O modo de vida ascético é o mais elevado também para o enfrentamento de uma vida trágica, da grande catástrofe que foi o nascimento. Aquele que chega à negação da vontade de viver compreende a futilidade da existência. Schopenhauer cita entre os que atingiram tal saber os monges e os anacoretas, bem como os diversos santos da tradição cristã.
A negação da vontade “não é outra coisa senão a resignação ou a santidade absoluta, [e] resulta sempre daquilo que acalma o querer”. (ibid., p. 415-416). Recorde-se aqui que o quer-viver, a Vontade, se afirma na forma de um conflito com ela mesma, do qual resulta um número infindável de dores e sofrimentos. Quanto mais violenta é essa luta da Vontade, sempre obstinada na afirmação da vida, tanto mais intensos são os sofrimentos, de sorte que quem chega à negação completa do querer-viver atinge a libertação efetiva da vida e, portanto, da dor.
Dissemos que a vida ascética constitui um modo de vida mais elevado, em cotejo com o modo de vida calcado sobre a virtude da compaixão. A isso acrescente-se que a negação da vontade é o estágio último da ética schopenhaueriana. Assim como a negação da vontade não deve realizar-se como suicídio, assim também não deve ser confundida com o nirvana dos budistas.
A negação da vontade, compreendida como renúncia de si, é o único meio possível de conversão do homem a uma vida liberta da tirania da Vontade. Por conseguinte, o tipo asceta personifica o ideal da negação máxima da vontade de viver. O grau máximo da negação da vontade chegará à niilização da vida, do próprio universo. Por conseguinte, “(...) para aqueles que se converteram e aboliram a Vontade, é o nosso mundo atual, este mundo tão real com todos os seus sóis e todas as suas vias lácteas, que é o nada”. (ibid., p. 431).
Schopenhauer não se esquiva a assumir as consequências de sua doutrina. Quando o homem chega à negação e ao sacrifício da Vontade, todos os fenômenos são extintos. Eis, então, a niilização da vida, que Nietzsche reprova ferrenhamente como o fim a que visa toda moral decadente de que a filosofia de Schopenhauer, pelo menos aos olhos do filósofo dionisíaco, não deixou de ser uma continuação:

(...) suprimidas tanto a impulsão como a evolução sem objetivo e sem termo que constituem o mundo em todos os graus de objetidade, suprimidas essas formas diversas que seguiam progressivamente. Da mesma forma que o querer, suprimida igualdade a totalidade do fenômeno, suprimida, enfim, as formas gerais do fenômeno, o tempo e o espaço; suprimida a forma suprema e fundamental da representação, a de sujeito e objeto, já não existe nem vontade, nem representação, nem o universo. (ibid. p. 430).

E ao termo dessa série de extinções, acrescenta Schopenhauer: “resta diante de nós apenas o nada”. Mas o nada de que fala Schopenhauer não é o estado de nulidade que sobrevém à morte, tampouco à morte voluntária pelo suicídio. Também não é esse nada a aniquilação do universo num Apocalipse. O nada de que fala Schopenhauer é o que resta quando se extingue o querer-viver, a contínua afirmação da Vontade. O nada aí supõe uma elevação da pessoa daqueles cuja vontade atingiu a mais alta consciência de si mesma. Neles, a vontade se reconhece em tudo que existe. Tais homens estão inundados de uma paz oceânica, de uma quietude abissal, de uma serenidade inquebrantável, de tal modo que nós “sentimos uma profunda e dolorosa melancolia quando comparamos este estado ao nosso”. (p. ibid.).
Consoante Schopenhauer, “aqueles que se elevaram acima do mundo” esperam imperturbavelmente o momento em que a aniquilação do próprio corpo acarretará a supressão da única marca da Vontade que ainda restava. É somente nesse aniquilamento total da Vontade pela morte do corpo em que ela se objetivava, do corpo que já nada mais quer, que o nada se investe de sua força máxima de niilização – niilização que só pode ser levada a efeito pelo grau máximo da negação da vontade personificado no tipo asceta, de quem devemos dizer que alcançou a verdadeira salvação: a libertação da tirania da vontade de viver.
À guisa de conclusão, reforcemos as características que compõem o tipo humano asceta, que constitui a personificação mais elevada do modo de vida para cuja realização se destina a filosofia schopenhaueriana na condição de exercício espiritual. O tipo asceta é aquele que experimenta uma repulsa pela vontade de viver, essência de um mundo repleto de penúria e sofrimentos. Esse tipo humano nega a Vontade, vive num estado contínuo e imperturbável de resignação e indiferença com relação a tudo; ele mortifica o corpo, rejeitando qualquer satisfação sexual.
O tipo humano asceta compreendeu que os sofrimentos de todos os viventes são também seus sofrimentos, em virtude do reconhecimento de que eles decorrem da afirmação da mesma Vontade que anima todo o mundo. Faz-se mister enfatizar, portanto, que a conversão de que a filosofia schopenhaueriana pretende ser um exercício vivido supõe ou envolve uma transformação radical da personalidade através de uma mudança de conhecimento; porquanto o tipo asceta é aquele que chegou ao conhecimento de que o mundo fenomênico é o espelho da Vontade, do querer-viver cego e insaciável, fonte donde jorra toda dor e sofrimento. Tendo a consciência iluminada por esse saber, o tipo asceta experimenta uma inabalável paz celestial.
O tipo asceta é, portanto, um tipo humano resignado, porquanto deixa de querer, aceita viver recusando todo ímpeto volitivo, abstendo-se de desejar o que quer que seja. Em suma, o tipo asceta é aquele cujo modo de viver é a própria realização da santidade: alforriado da desgraçada opressão da tirania da Vontade, ele experiencia o repouso e está preparado para absorver-se na paz do Nirvana.






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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BECKER, Ernest. A negação da morte: uma abordagem psicológica sobre a condição humana. Rio de Janeiro: Record, 2013.




SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001a.

_______________. A arte de ser feliz. São Paulo: Martins Fontes, 2001b.

________________. A vontade de amar. Hemus: Curitiba, 2008.

_________________. As dores do mundo.  São Paulo: Edipro, 2014.






[1] O que chamamos de “homem comum” é o gênero de homem que vive imerso na cotidianidade mediana, assumindo as crenças, os preconceitos, os comportamentos, os significados partilhados por todos os demais com quem convive num espaço sócio-político-cultural. Trata-se do tipo humano culturalmente bem ajustado, cuja vida, na maioria das vezes, é orientada pelos significados produzidos e disponibilizados pela cultura a que pertence, os quais, quase nunca, são questionados.