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quinta-feira, 29 de maio de 2014

“Se nossa condição fosse verdadeiramente feliz, não seria necessário desviarmos dela nossos pensamentos” (Blaise Pascal)

                                    
                                    
                                      Fragmentos trágicos

Escrever é, para mim, um exercício de existência. O que se seguirá são rascunhos, rasuras, esboços, rabiscos de fragmentos de um filosofar que me atrai, que me seduz, que me revela verdades atemporais e que convém ter presentes no espírito. Por isso, tenciono tão-somente referir passos de alguns livros que li, que leio e releio, de fragmentos que destaquei, que reproduzi num caderno e que, agora, dou a conhecer, a fim de que, através da leitura deles, possa eu mesmo reconhecer-me. Não deixarei de comentá-los, mas só me cingirei a fazê-lo; não pretendo submetê-los a uma análise rigorosa. O trabalho do leitor consistirá não tanto em ler os fragmentos que cito, com vistas a compreendê-los; há que fazer um ultrapassamento, que é próprio da filosofia. Necessário será ler o que não está neles, o que está para além deles, num lugar outro mais denso e profundo, num escuro iluminado que se revela. Ao cabo, espero que se perceba que é o escuro de todos nós, porquanto todos os registros que aqui dou a conhecer dizem respeito à condição humana. Não espero, no entanto, que a consciência desta condição esteja tão avivada no leitor quanto  está em mim. Talvez, seja isso, leitor, que nos distancia; decerto, devo a ela meu interesse pela filosofia, meu abandono gratuito ao filosofar, meu convívio aturado com os livros.
Comecemos, pois, referindo dois trechos de Gilvan Fogel, em seu O que é filosofia? – filosofia como exercício da finitude (2009). Escreve o autor a respeito da filosofia o seguinte:

“A filosofia não é “coisa” nenhuma. Não é uma disciplina de um curso ou de um currículo acadêmico; não é um acervo, uma reserva de informações, sobretudo não é um domínio da “cultura” (...)”.
(p. 86)


O saber filosófico não é um saber de que nos apropriamos na academia (o que não significa negar a importância do diálogo com a tradição, com a apropriação do já pensado, trabalho de que depende o desenvolvimento desse saber). Mas a filosofia não é uma disciplina acadêmica; a filosofia é um saber-ação para exercitar a existência. Contra o acadecismo filosófico, pondera Gilvan:

“Não. Dispor-se, pré-dispor-se para a filosofia significa, na verdade, abrir-se para a conquista de um modo próprio de ser do homem, da vida”.
(p. ib.id., grifo meu)


Há pressuposta, neste trecho, a existência de um modo próprio de ser do homem e da vida que precisa ser conquistado. Mas a conquista deste modo de ser do homem depende do predispor-se à filosofia. Nem todos se apropriam desse modo de ser, visto que nem todos se predispõem à filosofia. E Fichte nos lembra que “filosofar não é propriamente viver; viver não é propriamente filosofar”. Não, leitor, não se está afirmando um divórcio entre viver e filosofar; está-se afirmando que, para filosofar, necessário é um distanciamento relativamente ao viver, que é viver chapado (Gilvan), um viver preenchido de preocupações, de ocupações, um viver que nos habitua à azáfama do cotidiano, que reúne todos os seres humanos numa massa que está sempre a caminho, sempre em movimento ininterrupto. Distanciamento e isolamento, que permitem-nos sentir a vida, sentir e auscultar o fundo da vida (Gilvan), que é Dor - Dor “que é evidência de nada ser de antemão (p. 96)”, são duas condições para o filosofar. São as vozes de Kierkegaard e de Sartre que ecoam mais nitidamente aqui. Gilvan é mais inquietante e interessante do que deixam sugerir esses esboços interpretativos. Não me interessa explicar a filosofia, nem elucidar o modo como Gilvan no-la explica. Tomem-se outros passos e prossigamos.

“Filosofar consiste em uma ação na qual o mundo do trabalho é ultrapassado”.
(p.8)


“O mundo do trabalho é o mundo do cotidiano do trabalho, o mundo da utilização, da serventia a fins, do rendimento de exercício de funções; trata-se do mundo da necessidade e da renda, o mundo da fome e do modo de saciá-la. O mundo do trabalho é dominado pelo objetivo de realização da “utilidade comum”.
(ib.id.)


Estes passos foram tomados a Josef Pieper, em O que é filosofar? (2007). Já antecipo uma provável interpretação, equivocada, e que deve, por isso, ser rechaçada. O autor não pretende menosprezar o trabalho; mas sustentar que o exercício do filosofar supõe o ultrapassamento desse mundo utilitário, da produção, no qual os indivíduos são avaliados segundo sua eficiência e produtividade. O lugar da filosofia foi, desde seu começo com os antigos gregos, o do ócio, não o do negócio. O mundo do trabalho é o mundo da necessidade de subsistência: trabalha-se para sobreviver. O viver chapado de que nos fala Gilvan é, em parte, também esse viver destinado a produzir a subsistência. Viver comum do homem comum. Lugar comum do homem comum. Mas o lugar do filósofo é onde reside o distanciamento e o isolamento. Pois enquanto se vive chapado ao viver dificilmente se pode filosofar. Todo ato de filosofia supõe e exige um distanciamento relativamente ao viver, como condição para pensar o viver e a condição humana. Viver não é o mesmo que existir. O leitor chegaria a essa conclusão, caso se detivesse na leitura do texto de Gilvan – conclusão que, a mim, se impõe, na verdade, como pressuposto do filosofar. Viver e existir não se confundem. Consideremos, agora, os trechos que tomei a Luc Ferry, em seu Aprender a viver – filosofia para os novos tempos (2010):

“O que desejamos, de fato, acima de tudo? Não queremos ficar sozinhos, queremos ser compreendidos, amados, não queremos ficar separados dos próximos, em resumo, não queremos morrer, nem que eles morram. Ora, a existência real, um dia ou outro, frustra todas essas expectativas (...)”.
(p. 22)


Observe-se, de início, que o locutor nos interpela sobre o que mais valorizamos, o que mais desejamos. Trata-se, agora, de nos chamar a atenção para nossos medos básicos: o da solidão, o do desprezo e indiferença e o da morte. Prossigamos com Ferry:

“Pois a verdade é que a morte, ao contrário do que sugere o adágio antigo, possui faces diferentes cuja presença é, paradoxalmente, perceptível no próprio coração da vida mais viva”.
(p. 23)


“Ora, é exatamente isso o que, num momento ou noutro, atormenta esse infeliz ser finito que é o homem, já que apenas ele tem consciência de que o tempo lhe é contado, que o irreparável não é uma ilusão, e que é preciso que ele reflita bem sobre o que deve fazer de sua curta vida”.


“Filosofar, mais que acreditar, é, no fundo – pelo menos do ponto de vista dos filósofos, já que o dos crentes é, com certeza diferente -, preferir a lucidez ao conforto, a liberdade à fé. Trata-se, em certo sentido, é verdade, de “salvar a pele”, mas não a qualquer preço”.
(p.31)


O fato sempre presente da morte; desse já-aí da morte, como presença enraizada em nosso âmago, como verdade de razão e de fato que recalcamos. A morte é – diz Ferry – “perceptível no coração da vida mais viva”, isto é, se faz pulsante numa consciência que sente em profundidade o que significa existir para o homem. É preciso considerar que uma grande medida de nossa infelicidade reside no fato de sermos seres finitos conscientes de nossa morte inevitável, que é esse domínio do “nunca mais”. Outra medida dessa infelicidade encontra raízes na consciência de que nossa existência é efêmera, de que cada dia vivido nos aproxima da morte inevitável. Mas a morte não está à nossa espera; ela nos espreita (eu posso morrer aqui e agora). Morre-se todos os dias, em qualquer hora. No entanto, ainda não alcançou uma consciência avivada da morte quem não a pensa como uma possibilidade já-aí que lhe é própria; trata-se de ouvir a Heidegger: trata-se de encarar a morte como minha morte, minha possibilidade real (e não como um fato que se estende aos outros).  A filosofia não nos salva da morte, é claro; porque nada, na verdade, nos salva dela. Por isso, é necessário filosofar.
Avivada a consciência desta terrível condição (o leitor poderia me dizer que ele sabe disso; mas trata-se de um saber recalcado, afastado da consciência, um saber que preferimos não vasculhar, não remexer, é um saber-sentir que silenciamos). Por isso, quando escrevo “avivada consciência” quero dizer um saber desperto que sente a verdade da morte na estrutura de nosso ser, que necessariamente perderá tudo que ama na vida. O destino do amor, em face da morte, é a perda inevitável. Triste destino o nosso: amamos os que nos faltarão inevitavelmente. Mas amor é desejo de possuir mais e mais; é desejo não só do que falta, mas do que faltará necessariamente. O homem amante é homem que vive a perda, que está no caminho incontornável da perda. É o que a vida nos ensina. Alguns preferirão acreditar num Deus; outros não se deixarão convencer-se da existência de tal ser, nem seduzir-se pelas promessas das religiões. Para estes, a filosofia se apresenta como uma necessidade urgente.
No entanto, a filosofia, enquanto exercício de existência, não se impõe apenas quando somos confrontados com o estar-aí da morte, mas também com o fato mesmo do existir, tão humano, por isso tão frágil, pleno de misérias, de dor e sofrimento. O sofrimento tece as malhas da existência. Trata-se de uma proposição irrefutável. Doravante, citarei passos tomados a Blaise Pascal, Schopenhauer e Luiz Gonzaga de Bem, que me contentam pela verdade trágica que revelam e pelo sentimento estético que provocam. Quem negará que do trágico pode nascer a beleza? Os antigos gregos o provam!

“De fato, a vida devotada ao saber se esvai silenciosamente e é muito vazia de acontecimentos. O mal existe. Todos os seres vivos sofrem, ora pelo corpo,ora pelo espírito. Padecemos pelas intempéries, pelas misérias, pelas doenças, pela ignorância, pelos vícios, pelas injustiças, pelas guerras, etc. Crianças há que nascem para sofrer e morrer. Homens existem de tal modo desgraçados que melhor lhes fora nunca haverem nascido. E há os que não deixam memória, que morrem como se jamais tivessem existido, e parece que sequer nasceram, e o mesmo ocorre com a sua prole. O mal existe, portanto – eis uma verdade insofismável”.
(p. 127, grifos meus)


Este excerto topa-se na obra Confissões de um filósofo desesperado (2009), de Luiz Gonzaga de Bem. A morte, o sofrimento e o mal existem e afirmá-lo é evidenciar a dureza de uma verdade que resiste às tentativas de refutação. O locutor representa uma realidade onde o mal e o sofrimento se manifestam sob várias formas. Uma dessas formas é a insignificância desse acontecer que, como costuma dizer o vulgo, “faz parte”, a falta de sentido da existência e do mal. Nem a existência nem o mal se justificam. A mim me espanta o fato terrível da morte dos que já nascem desgraçados, dos que existem num intervalo de tempo muito breve e morrem jovens demais para deixar seus rastros de dor suportável. A vanidade dessas vidas que já nascem seladas pela morte prematura é um acontecimento para o qual qualquer esforço de justificação é igualmente inútil ou mesmo ofensivo aos que sofrem pela perda de tais vidas tão desafortunadas. Por isso, insurjo-me contra os que, intentando salvaguardar a bondade de um Deus criador, empregam todo e qualquer estratagema e se dedicam a longas elucubrações para elaborar uma teodiceia repugnante às sensibilidades, escandalosa ao bom senso.
“Ser pai, disse Victor Hugo, é oferecer reféns ao destino”. Fazer nascer uma criança é transmitir-lhe o legado de nossa miséria. Tales permaneceu solteiro e adotou o filho de sua irmã. Negou-se a ter os seus próprios filhos, “por amor aos filhos”. Segue-se daí, forçosamente, que trazer ao mundo uma criança é condená-la às agruras, às dores, às angústias, às instabilidades da fortuna, à decrepitude de uma existência que se sabe finita. Esse pensamento trágico é libertador: quer elevar o homem ao poder de resistir aos apelos de seus genes, que o impelem a reproduzir-se para garantir a perpetuação da espécie. A morte de um indivíduo que não deixou descendentes é a impossibilidade de seus genes legarem a miséria da existência a outros que prolongariam gerações de inocentes entregues à fortuna. O homem, que é ser social também, dotado de consciência de sua real condição de existência e por profunda comiseração para com o sofrimento das crianças, cuidará, de bom grado, não condenar qualquer delas à amargura de uma vida a ser suportada em condições socioeconômicas precárias.
Acompanhemos outro trecho de Gonzaga de Bem:

“O homem, o mais valente dos animais e mais habituado ao sofrimento, não repudia o sofrimento em si; o homem o deseja, chega a buscá-lo, desde que reconheça no sofrimento um sentido, um propósito. A falta de sentido para o sofrimento, não o sofrimento em si, era o malefício que afligia a humanidade”.
(p. 136)


Um pensamento trágico afirma a falta de sentido no sofrimento, por isso é incompatível com um pensamento religioso, que tenta atribuir um sentido ao que se nega a ter um. O sofrimento de uma criança é o abismo do sem-sentido. Insanidade humana: procurar sofrer desde que suponha ter esse sofrimento algum significado! Isso não deixa de ser tragicômico, consoante nos lembra Schopenhauer.


“Efetivamente, em toda parte a vida humana é um estado em que há muito a sofrer e pouco a desfrutar. A vida humana não passa de um sonho. A vida é apenas um torpor no claro-escuro, uma inércia entre luzes e sombras, uma caricatura desse sol interior que nos faz crer ilegitimamente em nossa excelência sobre o resto da matéria. Nossa vida é curta e entediante, é uma sombra que passa, e depois do nosso fim não há retorno, pois está selado: homem algum haverá de retornar; para a morte não há remédio. A vida é a piedade da duração, o sentimento de uma eternidade dançarina, o tempo que se supera e rivaliza com o sol. Nada prova que sejamos mais que nada. Ontem, hoje, amanhã: categorias para uso de criados”.
(p. 126, grifo meu)


Nasce-se condenado e sem direito à apelação. Os que, após mensurar benefícios e custos, cuidam que os custos pesam mais, embora estejam assaz entediados para tirar a própria vida, vivem a piedade da duração. Que a existência não exceda os limites das forças que são dispensadas para suportá-la é o que esperam da piedade da duração!

“O que as pessoas não inventam por tédio! Elas estudam por tédio, jogam por tédio e finalmente morrem de tédio!” (George Büchner)


Leiamos estes passos de Blaise Pascal:


“Não tendo os homens podido curar a morte, a miséria, a ignorância, resolveram, para ficar felizes, não mais pensar nisso”.

“Se nossa condição fosse verdadeiramente feliz, não seria necessário desviarmos dela nossos pensamentos”

“É necessário conhecer-se a si mesmo. Ainda quando isso não servisse para encontrar a verdade, pelo menos serve para regrar a própria vida, e nada há de mais justo”.


“Condição humana: Inconstância, tédio, inquietação”.


“Quando se lê depressa demais ou devagar demais, não se entende nada”.


Não leia nem depressa, nem devagar, nem com demasiado escrutínio crítico, leitor; leia com o coração este rascunhado texto de quem se deleita com o desespero do filosofar: porque é não esperar nada além do que a alegria do pensar.


“A grandeza do homem é grande por ele conhecer-se miserável; uma árvore não se reconhece miserável. É então ser miserável se conhecer(-se) miserável, mas é ser grande conhecer que se é miserável”.


Neste trecho, Pascal argumenta que a grandeza do homem reside na sua capacidade de conhecimento. Somente o homem é capaz de conhecer a sua miséria, ou seja, ter consciência dela. Mas também nesse (re)conhecimento de nossa condição miserável repousa nossa fraqueza. A inconsciência da fraqueza talvez seja preferível? Saber-se miserável é também fonte de dor, de um excruciante terror! Grandeza do homem e fraqueza reconhecida do homem: eis nossa inquietante condição!
O homem é um desconhecido de si mesmo. Freud desferiu um duro golpe sobre nossa auto-estima calcada sobre a crença no livre-arbítrio, na liberdade do eu racional. Ele sugeriu que há uma dimensão nos homens que põe em movimento forças à revelia deles próprios, há algo neles que age sem que eles saibam sobre o que fazem. Freud descobriu o inconsciente e asseverou “o eu não é o senhor nem mesmo em sua própria casa”. O homem foi descentrado de si. Antes dele, Copérnico retirou a Terra do centro do universo e Darwin lançou por terra a máscara e as vestes de nossa suposta superioridade no universo natural, revelando-nos nossa nudez animal. Desde então, o homem não era mais um ser especial no reino da natureza.

Ouçamos Schopenhauer, em Do mundo como vontade e representação:

“A vida de qualquer indivíduo, considerada no seu conjunto e na sua generalidade unicamente nos fatos mais silentes, é, em realidade, sempre uma tragédia, mas examinada nos pormenores, tem caráter duma comédia. Porquanto o andamento e os tormentos de cada dia, as incessantes amolações do momento, os desejos e os temores da semana, os aborrecimentos de toda hora que nos foram mandados pela sorte sem pausa ocupada em escarnecer-nos, tudo isto são deveras cenas de comédia. Mas as ambições sempre desiludidas, os esforços sempre inúteis, as esperanças esmagadas sem piedade pela fortuna, os erros fatais de toda vida, com a dor que vai aumentando e com a morte por conclusão, eis em verdade a tragédia. Deste modo, e como se à  desolação da existência, a sorte tivesse querido juntar ainda a ironia, a nossa vida deve compreender todas as dores da tragédia, sem que ao mesmo tempo nos seja possível conservar ao menos a dignidade das personagens trágicas; devemos, ao contrário, nas largas particularidades da vida, ser, forçosamente, vulgares caracteres cômicos”.
(p.93)


Estranha essa vizinhança entre tragédia e comédia tomados como domínios da existência humana; não obstante, o trágico é da ordem estrutural e geral; e a comédia se imiscui no domínio das vivências particulares. As limitações de espaço e o arrefecimento do espírito desencorajam-me a levar adiante um gesto de interpretação desse passo. Considere-se o passo seguinte também de Schopenhauer.

“(...) a base de cada querer é uma falta, é uma indigência, é a dor; pela sua origem, pela sua essência, o querer está, portanto, destinado a sofrer. Ainda que tivesse objetos a desejar, uma satisfação demasiado fácil de súbito lhos tolheria, e o homem sentir-se-ia invadido por um vácuo espantoso e pelo fastio, em outros termos, seu ser e sua existência se lhe tornariam um peso insuportável. A vida, portanto, oscila como um pêndulo entre a dor e o fastio que são, de feito, os elementos que a constituem. Fato estranho que deveis exprimir de maneira assaz estranha: depois de ter colocado no inferno todas as dores e todos os suplícios, o homem nada encontrou para colocar no paraíso, além do tédio”.
(p.79, grifos meus)


Não espanta que os que se deixam guiar irrefletidamente pelos padrões da cultura do otimismo, que nos inculca continuamente ilusões de prosperidade e que, tendo em sua base também o legado cristão, promessas de redenção (porque, numa cultura do otimismo cristão, é necessário supor que sejamos sempre culpados), sintam-se desconfortáveis ao ler Schopenhauer. Não raro, Schopenhauer conduz seu leitor a um beco sem saída, pouco apropriado ao trânsito dos pensamentos que se alimentam da esperança e da salvação. Pois não há salvação e esperança alguma em Schopenhauer. Cada vontade individual se funda numa carência, numa penúria, numa dor. Essa carência, essa penúria, essa dor em que repousa o querer são insuperáveis. O homem está destinado a sofrer. Ele jamais consegue conservar um estado de felicidade e de prazer, porque “a vida oscila entre a dor e o tédio (ou fastio)”. Schopenhauer exerceu sobre Freud marcante influência. Em seu mal-estar da civilização (2010), Freud mostrará que o homem, por força da estrutura de sua psique, jamais pode permanecer indefinidamente no estado de prazer, posto que o desejo seja essa permanência. Nessa obra, Freud nota que o homem está cercado de sofrimento por todos os lados; ele identifica três origens donde lhe advém o sofrimento: da fragilidade de seus corpos, que nos destina à ruína; das forças implacáveis da natureza e do convívio com os seus semelhantes. No tangente ao sofrimento oriundo desta última fonte, observa Freud: “(...) talvez seja sentido de modo mais doloroso que qualquer outro” (p. 64).
Volvemos nossos olhares para este outro trecho de Schopenhauer:

“Os esforços contínuos para alhear a dor não tem outro resultado senão o de transformá-la. Ela originariamente se manifesta como privação, necessidade, inquietação pela manutenção da vida. E quando se tem conseguido, o que aliás é bem difícil, afastar a dor sob tal forma, eis que se apresenta sob mil outras formas variantes com a idade e as circunstâncias: instinto sexual, amor apaixonado, ciúme, inveja, angústia, ambição, avareza, doença, etc., etc. E se por fim não encontrar outras maneiras para introduzir-se, virá sob a triste e sombria capa da saciedade e do tédio, contra os quais há de provar-se, então, todos os meios. Mas se lograrmos, finalmente, derrotá-la também sob tais formas,mui dificilmente se terá feito tal coisa sem lhe abrir acesso sob alguma das formas precedentes e então a dança recomeça: porquanto a vida de todo homem oscila entre a dor e o fastio”.
(pp. 83-84, grifos meus)


Vamo-nos debruçar sobre este trecho de Schopenhauer com vistas a lhe atribuir um sentido. Seu tópico discursivo é a dor e as formas como a dor invade a existência. Schopenhauer aponta-nos várias formas pelas quais a dor se manifesta. O enunciador aprisiona seu leitor num labirinto lógico: mesmo que nos esforcemos por afastar a dor, por nos curar dela, o que fazemos não é senão dar-lhe outras formas. Não há meios de escapar à dor. Todos os nossos esforços nesse sentido são vãos, risíveis. A dor resiste a todos os nossos esforços para impedir que ela penetre as entranhas de nossa existência. Até mesmo na saciedade, o homem há de experienciar uma forma de insatisfação, porquanto, como vimos antes, a base do querer é a falta. O homem é impulsionado pelo desejo que o condena à insatisfação permanente, que o condena à busca contínua de outras formas de satisfação, todas destinadas ao fracasso da saciedade do desejo. O desejo nos move, mas nos move para o abismo do “jamais satisfeito”. Eis o trágico escuro de nossa condição! A verdade do desejo é sua permanente insatisfação, é seu vácuo impreenchível. A dança existencial é dolorosa, pois, malgrado os esforços para cessá-la, uma vez preservando-se em seu ser, o homem é impotente para interromper-lhe seu contínuo oscilar. Schopenhauer nos oferece alguma alternativa? Há alguma forma de exercer domínio sobre a realidade positiva da dor? Em seu A arte de ser feliz, a influência que sobre o pensamento schopenhaueriano exerceu o budismo se deixa entrever. No passo seguinte, o enunciador schopenhaueriano ilumina-nos algum caminho:


“(...) o edifício da nossa felicidade comporta-se de modo inverso ao que se verifica em relação a quaisquer outros edifícios, que são tão mais estáveis quanto maior é a amplitude de seus alicerces. O modo mais seguro de evitar uma grande desventura é reduzir ao máximo as próprias pretensões em relação aos meios de todo tipo de que dispomos. Pois toda felicidade positiva é quimérica, enquanto a dor é real.” (pp.83-84, grifo meu)


Considere-se com atenção este trecho. Em primeiro lugar, diz-nos Schopenhauer que quanto mais amplas são as pretensões de felicidade mais profundas e permanentes podem ser nossas desventuras. O excesso em nossas pretensões à felicidade é proporcional à desventura de um viver que se sabe decepcionante. Ora, se viver é sofrer, se a felicidade é uma quimera e apenas a dor é real, convém não instilar excesso em nossas aspirações à felicidade, pois que também excessivo pode ser o peso da dor que daí sobrevém. Schopenhauer considera a felicidade na modalidade do negativo, ou seja, a felicidade é um estado de ausência de perturbação, de inquietude. Ela é desprovida de realidade positiva. Nesse sentido, Schopenhauer foi influenciado pelo estoicismo. Devemos renunciar a uma felicidade positiva, porque ela é ilusória; nunca a alcançaremos, porque ela não tem realidade objetiva. Só nos resta uma pálida sensação de felicidade, que é o sentir-se impertubável, que é o encontrar-se num estado de ausência de perturbação, de dor, de inquietude. Retomemos a famosa imagem schopenhaueriana: “a vida é um pêndulo que oscila entre a dor e o fastio”.  Dor e fastio são extremos de descontentamento para o homem, são os domínios da desventura. Esse movimento entre um extremo e outro não cessa. Pois existir é estar em movimento. O pêndulo nunca cessa de oscilar, de ir-e-vir; o seu vaivém nos arremessa continuamente de um extremo ao outro; esse movimento incessante é a própria dança dolorosa que recomeça. Há momentos em que nos encontramos nem num extremo nem no outro, embora nunca estejamos em repouso, de resto, nunca atingimos o estado permanente de satisfação ou felicidade. Entre a dor e o tédio, há átimos de sensações de impertubabilidade, há instantes em que a vida nos é amena, suportável; talvez até nos sorria com algumas alegrias fugazes, com algum contentamento circunscrito a um momento de graça. Mas nada além disso nos é possível experienciar, segundo parece nos querer dizer Schopenhauer.
Outros trechos poderiam ser acrescidos aos que referi, de modo a compor um cenário trágico mais abrangente. Limitar-me-ei ao seguinte excerto, colhido de Dezoito brumário de Napoleão Bonaparte, de Karl Marx. Neste trecho, Marx patenteia-nos que os homens são, ao mesmo tempo, produtores e produtos da História. Os homens produzem as condições históricas que os dominam, que se tornam forças que se impõem independentemente de sua vontade e ação. Os homens ao fazer a história não se reconhecem mais como os agentes produtores das condições históricas. Experienciam no interior de si uma alienação, uma cisão entre a consciência e a prática.

“Os homens fazem sua história, mas não a fazem como querem, não a fazem sob circunstâncias escolhidas por eles próprios, mas sob circunstâncias com que se depararam diretamente, ligadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas pesa como um pesadelo sobre o cérebro dos vivos”.


Certa feita, entrei em desacordo com um amigo no tocante à importância da filosofia. Nossa motivação para a filosofia é bastante diversa. As necessidades que esperamos ela satisfaça de algum modo não são as mesmas entre os indivíduos. No entanto, de minha parte, é preciso ver que toda sorte de questões que ocupara os grandes filósofos ao longo dos séculos se atrela a uma questão fundamental e precedente a todas elas: a questão do bem viver. Mesmo um Kant, que se preocupou especialmente com as condições do conhecimento, que se debruçou sobre uma questão que, aparentemente, parece não dar espaço para algum pronunciamento sobre como devemos viver (sabemos, no entanto, que o Kant da Crítica da Razão Pura escreveu outras duas Críticas), não deixou de ter em conta o problema da condição humana e não deixou de oferecer sua perspectiva sobre como os homens devem viver. Toda a filosofia parte do homem, da condição humana e se debruça sobre ela. As perspectivas pelas quais ela é abordada variam, é claro. Mas pretender afastar da reflexão sobre o homem ou sobre a condição humana problemas como o do sofrimento, do sentimento do trágico, da morte, da dor, supondo haver questões mais urgentes, é sinal de uma grave miopia filosófica; em última instância, é não se ter ainda apropriado daquele modo de ser próprio do homem (de que nos fala Gilvan), que é condição para o exercício da filosofia, o qual não se confunde com erudição filosófica, embora passe por ela.