Sobre o
meu lugar no mundo
A sala de aula é o lugar onde me
encontro. Para lá quero voltar.
Os consultórios
de psiquiatria estão repletos de gente como eu – pedintes de socorro
de seu sofrimento e de suas neuroses de caráter.
Os consultórios
de psiquiatria são como UTIS para onde confluem os pacientes
psiquicamente graves e onde eles são conduzidos para o
confrontar com a realidade verdadeira do seu eu mesmo, a qual não se desvela sem uma grande dose de dor, inquietação
e perplexidade, para alguns, e de recusa, no caso de outros.
A sala de aula é o lugar de encontros
com a diversidade, lugar onde raramente estou exclusivamente ocupado de mim.
O eu, em nossa vida cotidiana, veste
muitas máscaras, atua de modos vários
e compulsivos; articula estratégias de autodefesa, adota comportamentos que
repetem experiências traumáticas de um passado do qual ele é uma manifestação
presente; comportamentos em cujo cerne se encontram impulsos inconscientes.
Tamanho é o encargo do ser eu que, para uma grande maioria, é melhor evitar o
confronto na intimidade de seu domínio constantemente usurpado
por forças sobre as quais ele, o eu, não exerce controle.
Os consultórios
de psiquiatria estão, portanto, repletos de pessoas que não
conseguiram mais resistir às exigências da normalidade que se supõe
haver de modo definitivo e a qual é tomada, sem o devido questionamento, como
critério para o ajustamento cultural de cada indivíduo.
O eu é, essencialmente, conflito e angústia.
A psicanálise é uma área do saber humano que, com
a filosofia, exerce sobre mim grande fascínio. E estudá-la
possibilita-me um autoconhecimento indispensável à sustentação
do eu-existo. No entanto, o debruçarmo-nos
sobre a literatura psicanalítica só não
basta para que logremos sobreviver a nós mesmos. A ajuda de um
especialista me parece indispensável.
No entanto, é na sala de aula e não
no consultório de tratamento da alma que encontro meu lugar no
mundo. Naquele, na verdade, sou levado continuamente a questionar esse meu
lugar no mundo, sou levado a suspeitar de que tenho mesmo algum lugar
previamente fixado neste mundo; sou levado a ver que esse lugar deve ser
construído, deve ser produto de uma tarefa –a tarefa que
consiste, com Kierkegaard, em existir. É na sala de aula onde minha
vida se faz dotada de algum propósito, ainda que esse estado de crença num propósito
para a existência seja definitivamente ilusório. É
verdade que me vejo à volta com a idealização ao tomar a sala de aula
como esse lugar de encontro. As salas de aula são também espaços onde se
reproduzem os conflitos e as contradições que impregnam tanto o domínio
social quanto o domínio individual. Não obstante, é lá
que reconheço uma espécie de hábitat. É lá onde não estou interessado apenas
em mim mesmo e alargo meu interesse para o outro tendo em vista seu benefício.
É lá onde flerto, costumeiramente, com um ideal, sem o
qual a vida seria intoleravelmente dolorosa.
Quero, agora, gestar esta última
ideia – na verdade, uma convicção cuja validade deixo ao leitor mensurar segundo os
seus filtros de interpretação constituídos de todo um repertório
de saberes, pressupostos, crenças, valores e afetos previamente formado em suas
experiências em sociedade.
Trata-se esta ideia de ver a poesia também
como um lugar onde me encontro e onde dou a conhecer ao olhar/sentir
especializado o desconhecido de mim. Estou convencido – se bem que não
consiga demonstrá-lo claramente – de que alguém treinado em algumas
das disciplinas da alma (particularmente, em psicanálise)
não teria dificuldade para reconhecer a dimensão
de processos inconscientes que determinam a minha escrita poética e a
atravessam em sua materialidade linguística, e que dão
coloração afetiva à minha personalidade. É
como se os meus poemas dissessem algo muito mais profundo, algo escuso, inacessível
a uma leitura linear, sobre a dimensão de
meu caráter que o eu-lírico
parcialmente encoberta; é como se eles permitissem o acesso, se bem que nunca
direto, ao inconsciente que determina a totalidade da vida consciente. Em
parte, esse potencial que tem a poesia para permitir o acesso ao inconsciente
parece dever-se ao fato de ela não se fazer com uma lógica racional,
estruturalmente argumentativa; a sua estrutura é a do afeto.
A poesia é composta à proporção
que sentimentos, desejos, pulsões vão tomando a forma de representações
na alma. No entanto, dessas representações o eu-lírico
não está de todo consciente; melhor seria, não
está de todo consciente da profundidade simbólica
dessas representações. Elas são portadoras de impulsos
inconscientes.
Cabe, finalmente, a questão
de saber quem é esse sujeito da poesia, quem é esse eu-lírico.
Se não é o autor de carne e osso, dotado de uma identidade
pessoal, é ele então uma entidade do discurso? Sim, responderemos respaldados
nos estudos da Análise do Discurso. É ele uma persona discursivamente cnstituída. É
ele um lugar atravessado pela ideologia e pelo inconsciente; é uma imagem. Mas esta entidade
discursivamente construída não seria também uma manifestação
de uma região da subjetividade do produtor do texto? A questão
é complexa e demanda reflexões cuidadosas que convocam a contribuição
interdisciplinar entre psicanálise, sociologia, história,
linguística e linguísticas do discurso. Mas ela
aponta para a complexidade desse sentimento
de eu – eu que não
é uma substância, que não é uma coisa que existe sem um corpo; eu que é uma
imagem, uma ficção em torno da qual a vida psíquica
busca equilibrar-se em meio ao turbilhão de conflitos que de suas
profundezas emergem.
Não estou
a supor que a leitura e a escrita sejam formas de me salvar do fardo do ser eu.
Essa foi uma suposição que
acalentei durante vários
anos e que submeti a um processo de desmitificação durante o período em que decidi buscar ajuda psiquiátrica. Da minha relação com a
escrita e com a leitura, sobra-me, no entanto, um esforço por me tolerar, por
me fazer mais fortalecido em face das armadilhas de minhas neuroses. No
entanto, também resisto à ideia de que escrever e ler sejam minhas atividades
de fuga ao confronto comigo mesmo e com as frustrações e decepções
pelas quais sou, em grande parte, responsável. Quem
assim pensa esquece o fato de que o texto é um espaço, necessariamente,
interacional-dialógico. Por anos, a escrita
serviu-me como um lugar de confronto incessante com meus medos, com minhas angústias, com minhas inquietações viscerais.
A palavra é o único meio de contato entre a consciência, constituída de palavras, e o mundo exterior, onde circulam
palavras. A palavra é o espaço dialógico
onde a interioridade da consciência se relaciona dialeticamente com a
exterioridade do mundo sensível. E
nenhuma concatenação de palavras, de signos
consegue suprimir o silêncio, e o sentido que todo silêncio comporta e faz
dizer.