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quinta-feira, 21 de julho de 2011

"Quero apenas pensar para poder viver" (BAR)

               
                           Um convite à reflexão


   Aos meus pais sou grato por muitas razões e, principalmente, pelo esforço deles por me manter vivo. Mas não bastava que se empenhassem em minha sobrevivência; eles precisavam me dar amor. E assim o bem mais valioso que recebi de meus pais foi o AMOR abundante e incondicional. Ao AMOR dispensado, somaram-se os valores morais, a educação, a formação, em suma, do caráter. Não menos importante foi a herança do estudo. Lembro-me das conversas que entabulava com meu pai, no tempo em que ainda era garoto. A lição que nelas aprendia é que o estudo era a maior herança que ele poderia deixar a mim e ao meu irmão.
Recentemente, minha mãe disse-me ter orgulho de mim. Qual foi minha satisfação! Principalmente, após as notas máximas alcançadas nas últimas disciplinas que cursei no doutorado. AMOR e CONHECIMENTO são, portanto, os maiores valores que herdei graças aos meus pais e já lhes manifestei muitas vezes minha gratidão e reconhecimento por seus cuidados e esforços.
Também herdei de meus pais o convívio com o catolicismo e a religiosidade, que sobrevivera em mim durante muitos anos. Fui batizado, como qualquer criança de pais cristãos, fiz comunhão e até crisma. Por muitos anos, frequentei missas. Mas, chegada a maioridade, eu comecei a sentir um desconforto. Latejava em meu espírito um sentimento de profunda rejeição àquelas preleções cansativas proferidas pelo padre e ideologicamente orientadas para alienar, entorpecer, regredir a consciência dos que a elas davam ouvidos.  E me inquietava ver aquele bando de gente com sua mente imersa naquelas fantasias e farsas, sucumbindo em lágrimas à culpa do pecado, esse flagelo psíquico com que a Igreja, instituição historicamente influente e poderosa, que outrora fora aliada dos poderosos e tiranos, os açoita.
Do fundo de meu ser, das entranhas de minha alma, bradou uma voz libertadora! Era a voz do CONHECIMENTO. Um homem de Letras, como eu, amante da linguagem, da beleza da poesia, da alma dos grandes poetas, da arte, em suma, não podia silenciar em face do abismo que havia entre o deus representado e venerado pelos religiosos e a dureza, a crueldade, a maldade tão intrínsecas à vida. A evidência da grande medida de sofrimento e a insustentabilidade da crença na existência de um deus infinitamente bondoso e poderoso comprometido com a vida dos homens constituíram, sem dúvida, uma forte razão para que eu, ao menos, inicialmente, suspeitasse de que eu estava vivendo, durante anos, imerso numa grande ilusão, da qual era imperioso que eu acordasse.
Todavia, até que eu aceitasse as evidências e rejeitasse os argumentos pífios com que os homens de religião (e incluo aqui os próprios autores bíblicos) buscavam dar conta do problema do sofrimento, foi preciso que eu me afundasse, por outras razões, durante anos, no abismo da depressão – uma doença grave, a que muitos, por ignorância, atribuem pouca importância. Não obstante, o CONHECIMENTO, de que não abro mão, muito embora por ele eu possa viver apartado do convívio com pessoas mais conservadoras ou mesmo resistentes ao seu valor (houve um momento em que acreditava que havia sempre um livro entre mim e o outro), foi a razão pela qual eu me senti impelido a compreender o funcionamento ideológico e histórico da religião, mas não só, evidentemente. O CONHECIMENTO é a luz da alma e é o motivo por que eu me abandono às leituras diárias e me debruço sobre os livros.
Meus pais me beneficiaram com o acesso ao CONHECIMENTO, sem, evidentemente, deixar de reconhecer o meu mérito, a minha dedicação e as privações que me impus para percorrer os caminhos não menos árduos que me levassem a ele. É esta herança que me permitiu, hoje, libertar-me de outra herança: a religiosa.
Minha amiga Zélia, certamente a mais dedicada à leitura das páginas de minha alma, e a quem muito estimo e agradeço sempre, escreveu-me que eu, ultimamente, tenho escrito com certa sofreguidão. Compreenda, amiga, que tenho vivido, nestas férias, muito entediado e o ócio tem-me fertilizado o espírito. Cuidei que melhor seria escrever mais, porque me lembrei de que não bebo.
Outro livro que faz parte da minha ruma de livros é Ateísmo e Revolta: os manuscritos do padre Jean Meslier (2006), de Paulo Jonas de L. Pina. Meslier foi um padre, materialista e ateu que, revoltado com a opressão sofrida pelo povo pelo governo de reis tirânicos, cujo poder era apoiado pela Igreja (católica apostólica romana) e alicerçado no dogma da divindade do rei, desenvolveu um pensamento crítico mordaz que denunciava a relação perniciosa entre religião e política e o consequente jugo do povo.
Na contracapa, lemos o seguinte:

“Numa pequena aldeia francesa, por volta de 1720, sem dispor de uma biblioteca, uma singular figura foi capaz de elaborar um pensamento notável, fazer críticas contundentes à religião cristã e antecipar uma série de ideias que o Iluminismo e o materialismo marxista viriam, posteriormente, a desenvolver com maior brilho e refinamento. Seu nome era Jean Meslier (1664-1729), padre, materialista e ateu. Ao longo de sua vida, o padre cuidadosamente ocultou seus pensamentos de todos, revelando-os somente nas suas Memórias, que seriam publicadas postumamente por Voltaire. Embora original e importante, Jean Meslier foi pouco estudado e, infelizmente, permaneceu desconhecido entre nós (...)”.

O seu livro Memórias, além de uma seção Apresentação, inclui as oito provas (no sentido de razões) com que o padre e ateu busca lançar por terra todo edifício ideológico e doutrinário do cristianismo, bem como suas pretensões ao controle da consciência dos homens ignorantes.
A situação sócio-política de sua época era, como sabemos, marcada pela aliança perniciosa entre o poder regente e o poder eclesiástico. Assim, à página 140, escreve o autor:

“(...) os eclesiásticos e nobres, papas e reis, tornam-se sócios na exploração da boa-fé e da submissão dos humildes. Utilizando o bem comum e a necessidade pública como pretextos, os reis tornam-se truculentos tiranos. Alegando vontade divina e prometendo a garantia de felicidade eterna numa outra vida, padres, bispos e o papa apropriam-se dos escassos bens temporais dos seus fiéis na forma de dízimos e de outras dissimuladas usurpações, recursos estes que poderiam ser melhor desfrutados em vida pelos seus sofridos possuidores. Nobreza e clero, política e religião, portanto, irmanar-se-iam na espoliação dos povos”.
(pp. 140-141)

Eu gostaria de poder resenhar sobre as teses de Meslier, mas não disponho de tempo para tanto. Além disso, o cansaço cai-me pesadamente no espírito. Todavia, vale notar como Meslier define religião.

“Na terceira e última parte da “Apresentação”, as religiões são definidas por Meslier como erros, ilusões, abusos e imposturas. Tanto os deuses pagãos quanto o deus com “d” minúsculo do cristianismo, juntamente com todos os seus rituais, cultos, explicações, leis e ordenações seriam, no seu entender, “invenções humanas” com finalidade puramente políticas (...) tais divindades são interpretadas pelo padre como falsidades, artifícios oriundos de raciocínios tolos que são apropriados pelos tiranos para dominar e espoliar facilmente os povos”
(p. 148)

Como materialista, a morte, para Meslier, não é senão a extinção da vida consciente e corpórea. Para o padre, ideias como a de inferno, paraíso não passam de fábulas ou “fantasmagorias de fanáticos” (p. 148).
Precisamos entender que o modo como o padre ateu define a religião é decorrente das avaliações que ele fará, especialmente, na primeira de suas provas. Nesta, ele vai se preocupar em refletir como a religião se serve da política para oprimir o povo. Essa opressão se dá por meio da transformação de instituições humanas em leis divinais e em instituições sobrenaturais. E ele observa ainda que, dada a pluralidade de religiões que disputam entre si o valor de verdade para o seu sistema de dogmas e que, ao fazê-lo, fornecem argumentos inconsistentes e contrários à razão, nenhuma delas pode ser verdadeira. Ele nota ainda que os católicos reivindicam o valor de verdade para a sua religião e consideram falsas todas as demais, sem que possam sustentar com argumentos sólidos e convincentes tal reivindicação.
Ele também atacará os supostos milagres e as revelações divinas a homens tolos e iletrados, como Moisés. A esse respeito, lemos:

“Ora, indaga Meslier, se o deus dos judeus e dos cristãos é capaz de conversar pessoalmente com os homens, por que ele não transmite diretamente suas leis e os seus ensinamentos a todos os seres humanos em conjunto e não isoladamente a um só deles? Por que apenas alguns deles teriam esse privilégio e a outros caberia simplesmente acreditar? Por que as aparições seriam às escondidas e nas situações mais inusitadas? Deus não saberia ou não poderia se fazer entender pelas suas criaturas? Assim sendo, que espécie de deus impotente e destituído de saber é este?”
(p. 152)

Certamente, o leitor não deixará as páginas de Ateísmo e Revolta sem sinais de profunda suspeita de que, durante anos de sua vida, agarrou-se a um densa e entorpecente ilusão. Aos mais resistentes, não faltarão questionamentos.
Vale a pena o empreendimento intelectual!