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quarta-feira, 21 de outubro de 2015

"Mermo quano falamo assim sabemo falá" (BAR)

            
                      

          A influência de aspectos fonéticos na ortografia


Aspectos fonológicos e fonéticos do português brasileiro e ortografia este foi o tema de uma prova do processo de admissão de professores de língua portuguesa da UFF. Os pleiteantes à vaga deveriam, pois, dissertar sobre esse vasto tema, sem que lhes fosse dada qualquer indicação sobre quais  critérios seriam utilizados pela banca na avaliação dos textos. Como se pode ver, tal como se apresenta o enunciado do assunto ao qual os candidatos deveriam dispensar sua atenção, as possibilidades de abordagem são inumeráveis. Quais os aspectos deveriam ser privilegiados? De que modo se deveria considerar a questão ortográfica? De minha parte, a ortografia só poderia ser abordada pontuando as influências de certos fenômenos fonéticos na produção escrita dos usuários da língua. O candidato que decidisse tratar das regras do Novo Acordo Ortográfico não conseguiria estabelecer a unidade de sentido pressuposta pelo tema. Se o tema da ortografia se apresenta coordenado ao tema dos aspectos fonéticos e fonológicos, é lícito supor que se está esperando que o candidato correlacione os dois temas.
Há muitos fenômenos fonéticos que influenciam na produção escrita dos usuários do português brasileiro. Em outros termos, há muitos fenômenos fonéticos que explicam por que os usuários do português, mormente nas fases iniciais de alfabetização, tendem a grafar erroneamente certas palavras. É preciso, pois, ter em conta o fato de que tais erros são, em última instância, decorrentes de fenômenos regulares que se dão na fala dos usuários do português brasileiro. Esses fenômenos podem ser divididos, a título metodológico, em dois grupos: 1) os que pertencem ao grupo dos mais estigmatizados; 2) os que pertencem ao vernáculo geral brasileiro, a saber, que ocorrem na língua falada por todos os brasileiros. Vejamos alguns exemplos de fenômenos em cada grupo.
Comecemos por examinar os fenômenos fonéticos inclusos no grupo 1. O fenômeno do rotacismo carreia, sem dúvida, um alto grau de estigmatização social. O rotacismo consiste na permuta do fonema /l/ por /r/ nos encontros consonantais /bl/, /cl/, /fl/. Os pares bloco > broco; claro > craro; flauta > frauta são exemplos de rotacismo. O rotacismo, nesse ambiente fonológico – em encontro consonantal – é estigmatizado em todo o Brasil. Pode ocorrer também o rotacismo em final de sílaba, como no par tal-co > tar-co. Essa forma de rotacismo é característica de algumas regiões onde se usa o vulgarmente chamado “dialeto caipira” (interior de São Paulo, Sul de Minas Gerais, etc.). Os falantes dessa variedade linguística usam uma consoante retroflexa em sílabas travadas, como em “porta” (o /r/ retroflexo é pronunciado com o levantamento e o encurvamento da ponta da língua em direção ao palato duro).
Outro fenômeno bastante estigmatizado é o da monotongação de ditongos átonos crescentes em posição final. Palavras como notícia, paciência, imundície são, por força desse fenômeno, pronunciadas como notiça, paciença, imundice. Um personagem de televisão ficou conhecido por usar, de forma caricatural, a variante poliça por polícia. Sucede, contudo, que os usuários da língua que se utilizam dessas formas monotonganizadas seguem uma deriva histórica da língua. Na história do português, há muitos exemplos da mesma tendência. A forma latina prigritia deu origem à forma portuguesa “preguiça”; “pretiu”  deu origem à forma “preço”, etc.
Passemos a considerar alguns fenômenos que se situam no grupo 2. Eles caracterizam usos linguísticos comuns a todos os brasileiros. Por exemplo, todos nós, falantes nativos de português brasileiro, independentemente de classe socioeconômica, grau de escolarização, faixa etária, sexo, etc., apagamos o /r/ em final de palavra, sobretudo em final de verbos no infinitivo. Assim, pronunciamos “cantar”, “falar”, “vender” como “cantá”, “falá” e “vendê”. Também alguns substantivos perdem o /r/ final, como “professô”, “dotô” (cf. “doutor”), etc. No caso de “dotô”, ocorre ainda a redução do ditongo /ow/. Casos como este são gerais na fala do brasileiro. A monotongação dos ditongos /ey/ e /ay/ são, particularmente, gerais diante de consoantes palatais ou da vibrante simples (/r/). Vejam-se os exemplos “chêro”, “bêjo”, “pêxe” e “caxa” correspondentes às formas grafadas “cheiro”, “beijo”, “peixe” e “caixa”. Esse fenômeno interfere no processo de alfabetização, dado que a tendência do aprendiz é escrever a vogal simples e não o ditongo. Portanto, não nos devemos surpreender se uma criança, nessa fase de escolarização, escrever “bêjo” em vez de “beijo”, o que não significa dizer que não se deve ensiná-la a grafia correta. O mesmo fenômeno está na origem das formas escritas “carangueijo”, “bandeija” e “prazeiroso”, por exemplo, as quais indicam uma hipercorreção por influência do processo de monotongação na fala. Nesse caso, o falante, por analogia, escreve com ditongo as formas que não têm ditongo. Por um processo de indução, julga que também aquelas palavras têm grafia diferente do modo como se pronunciam, tal como sucede com as formas “cheiro”, “beijo”, “peixe”. A hipercorreção se realiza como processo inverso da monotongação: usa-se ditongo onde não há, nem na fala, nem na escrita, ditongo.
Por fim, veja-se outro caso típico de variação linguística no domínio fonético que influencia na forma como se grafam as palavras. A consoante lateral /l/, quando em final de sílaba ou de palavra, é pronunciada, na maior parte do território brasileiro, como a semivogal [w] (é o nosso “u” de “incauto”). Daí resultam certas dificuldades de escrita, como a grafia das palavras “mal” e “mau”, que se pronunciam de modo indistinto. A vocalização da lateral, comum em formas como “Brasil” (Brasiu), “barril” (barriu), “alto” (auto), “esbelto” (“esbeuto”), leva o falante a produzir, na escrita, frases em que “mau” aparece no lugar de “mal” e vice-versa. Assim, é comum grafar “mau” em “ele se veste mau” e “mal” em “Ele é mal”, malgrado o esforço despendido pelo professor de português na insistência com que diz que “mau” corresponde a “bom” e “mal” corresponde a “bem”, o que significa dizer que “mau” é adjetivo, portanto, que se usa para modificar substantivo, e “mal” é advérbio e que, portanto, se usa para modificar verbo (cf. Ele se veste mal/ Ele canta mal).
No tocante ao apagamento do /r/ em final de palavra, que vimos anteriormente, é importante lembrar, nas formas infinitivas, esse fenômeno nos permite explicar por que são possíveis grafias como “você estar em casa” e “ele dar um bom partido”. Esses casos patenteiam a hipercorreção por influência da tendência geral de apagamento do /r/ em final de palavra, na língua falada.
De tudo que foi exposto, depreende-se facilmente que vários erros de ortografia se elucidam quando compreendemos a influência de certos fenômenos fonéticos na produção escrita dos usuários da língua. Tais fenômenos podem ser gerais, caracterizando o vernáculo brasileiro, ou podem ser característicos de variedades linguísticas bastante estigmatizadas. Mais uma vez, tais fenômenos dão testemunho de um aspecto geral e inerente a todas às línguas conhecidas: a variação e mudança das formas como são usadas pelos seus falantes.