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sábado, 11 de agosto de 2018

"Quando se diz algo, alguém o diz de algum lugar da sociedade para outro alguém também de algum lugar da sociedade e isso faz parte da significação" (Orlandi).






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Fundamentos teóricos para a  formação do leitor à luz da Análise do Discurso



1. Análise do Discurso e suas rupturas


Em primeiro lugar, o que se pretende, na confecção deste texto, é lançar luzes sobre as condições indispensáveis à abertura de um horizonte problematizador da leitura que permita um contínuo exercício crítico da posição de todos nós, leitores e estudiosos de textos filosóficos, no momento mesmo em que nos debruçamos sobre esses textos com vistas  a alcançar a compreensão. De resto, uma enunciação sobre o acontecimento sócio-histórico de produção da leitura está plenamente justificado, quando levamos em conta que não é possível filosofar sem produção de discursos e que todo o trato com a filosofia é caracterizado pela produção e compreensão de textos. No que diz respeito ao contexto pedagógico em que a lida com textos filosóficos é fundamental para a formação do estudante de filosofia, temos notado que ainda persiste a crença famigerada entre professores (com algumas exceções) de que existe um único sentido para o texto, que é justamente aquele pretendido pelo filósofo que o produziu. De acordo com essa crença, durante a leitura, caberia ao aluno apreender esse sentido a fim de que alcance uma compreensão verdadeira do texto. Essa crença ilusória na existência de um único sentido para um texto tem como correlata a crença num sentido “correto” ou “verdadeiro” para o texto, o que, filosoficamente falando, é totalmente inconsistente com os postulados teóricos da Análise do Discurso. Não só não há um único sentido para um texto como também não cabe falar em “sentido verdadeiro” como aquele sentido pretendido pelo autor do texto,  quer porque todo dizer é atravessado por sentidos outros, que remetem a outros tantos dizeres dos quais o autor do texto em questão sequer está consciente, quer porque não há uma relação termo-a-termo entre linguagem, pensamento e mundo. Não há uma relação especular entre a linguagem e o mundo; o discurso não diz o mundo tal como ele é em si mesmo; mas constrói interativamente uma versão pública (mundo textual) do mundo.
Em segundo lugar, todas as elaborações teóricas que darei a conhecer aqui são indispensáveis à formação do leitor em geral. Espero que este texto seja, especialmente, proveitoso para os professores de português que, ao se ocuparem do ensino da leitura, sentem-se incomodados com a persistência com que o trabalho de leitura em sala de aula fracassa quando o consideramos como o estágio mais importante para a formação de um leitor crítico. Nossa hipótese para explicar esse fracasso calca-se no reconhecimento de que toda uma sorte de noções equivocadas e preconceitos, na medida em que ainda persistem no imaginário dos atores sociais envolvidos no processo de ensino-aprendizagem, acabam por tornar turvo e nebuloso o caminho que os conduziriam à clareza no tocante ao que significa ser um leitor efetivamente competente.
As considerações que aqui se seguirão se inscrevem e encontram ressonância teórica no contexto do que se convencionou chamar Análise do Discurso – termo, aliás, que, embora correntemente usado no singular, não deve mascarar o fato de que existem diversas Análises de Discurso, as quais, por sua vez, só tenham talvez em comum não só o interesse pelos modos de funcionamento do discurso, mas também uma característica epistemológica importante, a saber, a de ruptura. A ruptura - marca essencial da constituição da Análise do Discurso - se faz, basicamente, como um corte epistemológico relativamente a uma teoria científica, filosófica ou linguística. Pode-se dizer, em suma, que a Análise do Discurso formula uma teoria da leitura que se institui em ruptura com a análise de conteúdo, com a filologia (e a hermenêutica), com os modelos formalistas em linguagem (estruturalismo e gerativismo), com as sociologias da linguagem, com a psicologia, sobretudo em sua versão cognitivista (que implica uma concepção de sujeito uno e consciente e que ignora a intervenção do inconsciente na atividade humana, mormente nas atividades linguísticas) e com a pragmática, cujo principal problema é supor que o sentido é produto da atualização das intenções de um falante. Nesse tocante, ao contrário da Pragmática, a Análise do Discurso não se interessa pelo contexto enquanto cenários institucionalizados. Ela não está preocupada em dar realce às regras que governam as relações entre os participantes de uma atividade numa situação de interação verbal, nem se preocupa com os scripts a serem seguidos por eles a fim de que sejam bem-sucedidos interacionalmente. Sabe-se que a Pragmática mantém que os interlocutores conhecem e seguem regras convencionais que organizam as relações entre eles numa dada situação sócio-interacional. A Análise do Discurso, por outro lado, não se interessa por tais contextos, por tais regras que, supostamente, são conhecidas dos participantes de uma interação verbal. Ela está preocupada com aquilo que justamente escapa ao conhecimento dos sujeitos quando eles falam: o fato de que cada um enuncia a partir de posições que são historicamente constituídas (fala-se como deputado de um partido, de uma frente, de situação ou de oposição, e diz-se o que se deve e se pode dizer, nessa condição). Assim, para a Análise do Discurso, o que confere sentido ao que um enunciador diz não é o contexto imediato ou os implícitos de um enunciado, mas as posições ideológicas a que está submetido e as relações entre o que diz e o que já foi dito da mesma posição, considerando-se, em geral, que ela se opõe a uma que lhe seja contrária. O que é posto em destaque, portanto, é o que se repete, eventualmente durante décadas.
De fato, é a maneira como a Análise do Discurso conceberá e problematizará o sujeito que constitui o ponto fulcral da radicalidade da ruptura que ela estabelecerá com relação às disciplinas mencionadas.
A Análise do Discurso surge na França, pelos idos dos anos de 1960. Seu principal expoente e fundador é Michel Pêcheux. Como seja um campo de estudos transdisciplinar, a Análise do Discurso se constitui teoricamente em constante e produtivo diálogo com outros campos do saber, entre os quais se destacam a Linguística, a Filosofia, a História e a Psicanálise. Quando levamos em conta a constituição da Análise do Discurso como um domínio teórico polêmico, dialogicamente entrelaçado com o campo de estudos da linguagem, três macrocampos de saber se apresentam como partes formadoras do que podemos chamar de a “coluna vertebral” da Análise do Discurso: o materialismo histórico, entendido como teoria das formações e transformações sociais; a Linguística, tomada como a teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação; e a teoria do discurso, que se ocupa da determinação histórica da produção dos sentidos.  O materialismo histórico, que constitui o método de interpretação histórica do marxismo, afirma a não transparência da História. A Psicanálise afirma a não transparência do sujeito. Finalmente, a Linguística afirma a não transparência da língua. Assim, a Análise do Discurso trabalha com dois deslocamentos paralelos: o de sentido e da própria língua em sua relação com a História. A Análise do Discurso trabalha com três modos de opacidade: a do sujeito, a da língua e a da História. O sujeito e o sentido se constituem ao mesmo tempo na articulação da língua com a História, na qual intervêm o imaginário e a ideologia.
Não cabe, no presente estudo, evidentemente, empreender um levantamento cuidadoso das consequências teórico-metológicas daquela série de rupturas que entram a fazer parte da dinâmica de formação da Análise do Discurso. O que pretendo é lançar alguma luz sobre o modo como a Análise do Discurso elabora uma teoria do discurso que problematiza tanto o lugar do autor quanto o lugar do leitor, ao mesmo tempo em que abre um novo campo de reflexões sobre a prática de leitura. Ao se instituir como campo de conhecimento em total ruptura com outras áreas epistêmicas que se ocupam da questão do texto e da leitura, a Análise do Discurso buscará definir os conceitos de texto, discurso, sujeito e autor, articulando-os a uma teoria da leitura/interpretação inegavelmente filiada ao trabalho da desconstrução.  Esses e outros conceitos serão discutidos ao longo desta minha exposição. Escusa dizer que o que se seguirá se alinha com a vertente francesa da Análise do Discurso.

2. A leitura na visão da Análise do Discurso

A Análise do Discurso toma o texto como unidade constitutiva da materialidade do discurso. O texto é enfocado em sua discursividade, isto é, enfocado tendo em vista o modo como ele, em seu funcionamento, produz sentido. A análise do discurso preocupa-se em compreender como o texto se constitui em discurso e como o discurso se produz em função das formações discursivas, as quais, por seu turno, se constituem em função da formação ideológica que as determina. Todas as formações discursivas são constituídas de formações ideológicas que as governam. A formação ideológica constitui um conjunto complexo de atividades e representações, que não são nem individuais nem universais, mas que estão ligadas às posições de classes em conflito (Pêcheux & Fuchs 1990, p. 166. apud. Fernandes, 2013, p. 65). Os sentidos dependem do modo como as posições de sujeitos se inscrevem nas formações ideológicas.
O conceito de formação discursiva foi cunhado por Foucault, em Arqueologia do Saber (1969), para designar o domínio que, numa dada formação ideológica, a partir de uma posição social numa conjuntura histórica dada, determina o que se pode e deve-se dizer. É da formação discursiva que as palavras e os enunciados recebem seus sentidos. A formação discursiva refere-se ao que se pode dizer somente em determinada época e espaço social, ao que tem lugar e realização a partir de condições de produção específicas, historicamente definidas. A formação discursiva permite explicitar como cada enunciado tem seu lugar e sua regra de aparição, e como as estratégias que presidem à sua produção derivam de um mesmo jogo de relações; em suma, como um dizer encontra espaço num determinado lugar e época.
Foucault ensina que a formação discursiva torna possível a descrição, tendo em vista certo número de enunciados, de um sistema de dispersão. Além disso, ela permite definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições, funcionamentos, transformações) relativamente a objetos, tipos de enunciação, conceitos e escolhas temáticas. Uma formação discursiva não se limita a uma época apenas. No seu interior, se acham elementos que existiram em diferentes espaços sociais, e em outros momentos históricos, e que reaparecem sob novas condições de produção, tornando-se parte constitutiva de um novo contexto histórico e, consequentemente, possibilitando outros efeitos de sentido.
 O texto interessa à Análise do Discurso somente em função de ser uma parte de um arquivo (corpus). É sumamente importante ter em conta o seguinte: o texto não se confunde com o discurso. Enquanto o discurso é um acontecimento sócio-histórico, é um processo em aberto, o texto constitui uma superfície discursiva, uma manifestação aqui e agora de um processo discursivo específico. O texto é uma peça de linguagem, “uma peça que representa uma unidade significativa”. (Orlandi, 2007, p. 52). O texto é, para a Análise do Discurso, um objeto histórico, ou melhor, um objeto linguístico-histórico, de modo que todo texto é caracterizado por sua historicidade. Embora ele possa ser, para efeito de análise, considerado como um objeto com começo, meio e fim, não se pode perder de vista o fato de que todo texto tem relação com outros textos existentes, possíveis ou imaginários, com suas condições de produção, com sua exterioridade constitutiva (interdiscurso ou memória discursiva). O texto, portanto, não é o objeto final da explicação da Análise do Discurso; é tão só a unidade que lhe permite ter acesso ao discurso. A ordem do discurso se materializa no texto. Segundo Orlandi (ibid., p. 60-61),



O texto é, para o analista do discurso, o lugar da relação com a representação física da linguagem: onde ela é som, letra, espaço, dimensão direcionada, tamanho. É o material bruto. Mas é também espaço significante.


Em suma, como peça de linguagem, como objeto simbólico, o texto é objeto de interpretação. Mas ele é um momento do processo de discursividade. Nem é o ponto de partida, nem é o ponto de chegada da análise. O discurso, por seu turno, não tem origem e não tem unidade definitiva. É sobre o discurso de que o analista se ocupará: ele estará interessado em examinar o processo discursivo, que é o que faz o texto significar. Um texto é uma peça de linguagem e, como tal, é uma peça de um processo discursivo muito mais abrangente; por isso, quando se chega ao processo discursivo, o texto particular analisado deixa de ser uma referência específica para dar lugar à compreensão de todo um processo discursivo do qual o texto em análise e outros tantos desconhecidos são partes.
Mas o que é leitura à luz da Análise do Discurso? Resumidamente, podemos dizer que ela é um trabalho sócio-histórico que tem de levar em conta a incompletude da linguagem. Da noção de incompletude deduz-se duas outras: o implícito e a intertextualidade. Destarte, ler não é apenas levar em conta o que é dito, mas também, principalmente, o que está implícito, o que não está dito, mas está significando.
O leitor, assim, precisa compreender que o que não está dito pode estar sustentando o que está sendo dito; ele precisa ser capaz de apreender o suposto para entender o que está dito; ele precisa reconhecer aquilo a que o dito se opõe. Destarte, há relações de sentidos que se estabelecem entre o que um texto diz e o que ele não diz, mas poderia dizer, e entre o que ele diz e o que outros textos dizem. Essas relações de sentido evidenciam a intertextualidade.
Saber ler envolve a capacidade de perceber que os sentidos em um texto não estão necessariamente nele, mas resultam da relação desse texto com outros textos. Segundo Orlandi (2012, p. 13), “saber ler é saber o que o texto diz e o que ele não diz, mas o constitui significativamente”. A leitura deve evidenciar o modo como um objeto simbólico produz sentidos. Isso implica a compreensão de que o sentido sempre pode ser outro. Portanto, ler não é atribuir sentido, muito embora o sujeito, em face de um objeto simbólico, seja sempre instado a interpretar, a “dar” sentido. Sucede, contudo, que, ao falar ou escrever, o sujeito atribui sentido às suas próprias palavras em condições sócio-históricas específicas. Um dos efeitos da ideologia é assegurar a crença de que o sentido já está dado nas palavras – e não na inscrição das palavras em formações discursivas. É a própria historicidade dos sentidos e as condições de sua produção que se apagam, fazendo desaparecer a exterioridade que os constitui.
O sentido é produzido na relação do histórico (memória discursiva) com o simbólico, e a leitura deve evidenciar a materialidade linguística e histórica do sentido. Os sentidos são partes de um processo; realizam-se num contexto, embora não sejam limitados a ele. Eles têm uma historicidade, têm um passado e se projetam num futuro. Os sentidos são muitos – é verdade -, mas há sempre um sentido enunciável, legível, a partir do qual se produz um gesto de interpretação.
O termo gesto de interpretação constitui um termo técnico cunhado pela linguista e analista do discurso Eni P. Orlandi para designar o fato de que toda interpretação é um ato simbólico caracterizado pela inscrição do sujeito (e de seu dizer) em uma posição ideológica, que delimita uma região particular no interdiscurso, na memória do dizer. Acrescente-se que ideologia, nesse contexto teórico, não é ocultamento do real, mas um mecanismo de produção de uma interpretação necessária que atribui sentidos fixos às palavras. Por isso, o mecanismo ideológico não envolve uma falta, mas um excesso (Orlandi, 2007, p. 66). A ideologia é responsável pelo efeito de evidência do sentido. Por isso “(...) a evidência, em linguagem, é construção da ideologia. É a ideologia que passa por evidente aquilo que é objeto de interpretação: ou seja, só é assim, para aquele sujeito, naquela situação, com aquela memória, tomado pelos efeitos do imaginário que o convoca”. (ibid., p. 150).


2.1. Leitura e interpretação

Para a Análise do Discurso, interpretar não é atribuir sentido, mas expor-se, na lida com o texto, à opacidade da linguagem e do texto, ou melhor, é “explicitar o modo como um objeto simbólico produz sentidos, o que resulta em saber que o sentido sempre pode ser outro” (Orlandi, 2007, p. 64). Ler é, portanto, saber que o sentido sempre pode ser outro. Não há sentido sem interpretação. E o sujeito é sempre sujeito da interpretação e sujeito (estar assujeitado) à interpretação.
Orlandi distingue, entretanto, entre leitura e interpretação. Para a autora, a interpretação é uma noção mais ampla. A leitura, por sua vez, é função da interpretação. Os gestos de interpretação são constitutivos tanto da leitura quanto da produção do sujeito falante, já que, quando fala, o sujeito também interpreta. Para dizer, ele tem de inscrever-se no interdiscurso, tem de filiar-se a um saber discursivo (memória discursiva). Em vista do exposto, o objetivo do analista é determinar que gestos de interpretação estão constituindo os sentidos e os sujeitos em suas posições.




2.2. O sentido, a historicidade do texto e a exterioridade constitutiva

Os sentidos são produzidos na relação do histórico (memória discursiva) com o simbólico, e a leitura deve evidenciar a materialidade linguística e histórica do sentido. Os sentidos são partes de um processo; realizam-se num contexto, embora não sejam limitados a ele. Eles têm uma historicidade, têm um passado e se projetam num futuro. Os sentidos são muitos – é verdade -, mas há sempre um sentido enunciável, legível, a partir do qual se produz um gesto de interpretação.
O sentido de uma palavra ou expressão equivalente é efeito da substituibilidade das expressões cujo conjunto produz ou pode produzir um efeito de referência, isto é, pode produzir a identificação de objetos do mundo a partir de uma perspectiva que, no entanto, jamais é objetiva. O efeito de sentido nunca é o significado de uma palavra; mas o sentido de uma família de palavras que se relacionam entre si metaforicamente. O sentido é, portanto, função de uma dupla de significante/palavra em relação mútua de substituibilidade, mas apenas em cada discurso historicamente dado. Quando considerado no nível do enunciado, o sentido obedece ao mesmo princípio de substituibilidade: o sentido de um enunciado decorre de sua substituibilidade por enunciados equivalentes na mesma formação discursiva. As palavras não tem sentido em si mesmas; seus sentidos derivam das formações discursivas em que elas figuram. A produção de sentido está intimamente ligada à relação parafrástica entre sequências tais, que a família parafrástica dessas sequências constitui uma matriz do sentido. Assim, dado um enunciado como O Brasil precisa voltar a crescer, seu sentido está ligado à relação parafrástica que esse enunciado estabelece com outros equivalentes como O Brasil precisa voltar a gerar renda, O Brasil precisa voltar a gerar empregos, etc.
Creio estar suficientemente claro que, na Análise do Discurso, o discurso não se identifica com a fala, nem com a língua. O discurso, tal como definido pela Análise do Discurso, é um acontecimento sócio-histórico; é, segundo Orlandi (2007), efeito de sentidos entre interlocutores. Tanto o locutor quanto o interlocutor, participantes da atividade discursiva, estão sempre afetados pelo simbólico. Aqueles efeitos de sentidos são consequência das relações entre sujeitos simbólicos que participam do discurso, em condições sócio-históricas dadas. Os efeitos de sentidos se realizam como consequência do fato de esses sujeitos serem situados sócio-historicamente e de serem afetados pelas suas memórias discursivas, as quais, por sua vez, são memórias sociais. As memórias discursivas fundam um espaço que se apresenta como condição de possibilidade do funcionamento do discurso. Esse espaço constitui um corpo sócio-histórico-cultural. (Fernandes, 2007, p. 59-60). O conceito de memória discursiva será definido quando eu me debruçar sobre o conceito de interdiscurso. Desde já, noto que memória discursiva e interdiscurso são conceitos correlatos, sinônimos.
língua não é meramente um código entre outros. Não há separação entre emissor e receptor, como postula uma clássica Teoria da Comunicação. Tampouco a língua é mero instrumento de comunicação. Ao usarmos a língua, não só comunicamos, como também não comunicamos. A língua é, fundamentalmente, uma prática social, e os participantes dessa prática social atuam interacionalmente na produção de significados. O que eles fazem, quando envolvidos nas práticas linguísticas, é produzir discurso. Portanto, o funcionamento da linguagem põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela História, num complexo processo de constituição desses sujeitos e de produção de sentidos.
O texto é caracterizado por sua historicidade. Falar em historicidade do texto é apreender seu acontecimento como discurso, seu funcionamento, o trabalho de sentidos que ocorre nele. Trata-se de pensar a temporalidade interna do texto, ou seja, sua relação com a exterioridade constitutiva, segundo o modo como ela se inscreve no texto. Essa exterioridade não é a exterioridade histórica da qual o texto é um produto; essa exterioridade determina o texto internamente. Não é algo que está lá fora e que se reflete no texto. Não se vai da História (acontecimentos, eventos) para analisar o texto, mas se parte do texto enquanto materialidade histórica, com suas marcas. Destarte, compreender a materialidade do texto é compreender como a matéria textual (historicidade do texto) produz sentidos.
Não se está negando que há uma relação entre a História fora do texto e a historicidade do texto, que é a trama de sentidos nele, mas essa relação não é direta, nem imediata, nem de causa e efeito. Essa relação é complexa e demanda, a fim de que possa ser explorada, a compreensão do funcionamento do texto.


2.3. A história de leituras do leitor e a história de leituras do texto

Segundo Orlandi (2008, p. 42), “em geral, (...) há vários fenômenos de variação que podem estar contidos na afirmação de que a leitura tem uma história”. Ainda segundo a autora, “(...) há leituras previstas para um texto, embora essa previsão não seja absoluta, uma vez que sempre são possíveis novas leituras dele”. (ibid.). Orlandi refere-se a dois entre os elementos que podem determinar a previsibilidade das leituras de um texto:

1) Os sentidos têm a sua história, isto é, há sedimentação de sentidos, segundo as condições de produção da linguagem;

2) um texto tem relação com outros textos.


A consequência mais importante que se pode depreender de 1) é que as leituras já feitas de um texto “dirigem, isto é, podem alargar ou restringir a compreensão de texto de um dado leitor”. (ibid., p. 43). A previsibilidade da história da leitura é recoberta pelas leituras historicamente produzidas para um texto e repertório de leituras de sujeito-leitor sócio-historicamente situado.
Mas é também a história ou o contexto sócio-histórico que, se, por um lado, responde pela previsibilidade de sentidos, por outro lado, constitui o próprio horizonte de pluralidade de leituras possível. O histórico é marcado, portanto, por essa ambiguidade: “porque é histórico, muda, porque é histórico, permanece. (ibid., p. 46). Se há uma relação dinâmica entre as leituras previstas para um texto – domínio de relativa coerção sobre o leitor - e as novas leituras possíveis, como fixar o limite, inegavelmente difícil, entre “aquilo que o leitor não chegou a compreender, o mínimo que se espera que seja compreendido (limite mínimo) e aquilo que ele atribui indevidamente ao texto, ou seja, aquilo que já ultrapassa o que se pode compreender (limite máximo)”? (ibid.).
O que está em questão aqui é a determinação do limite entre uma leitura parafrástica, a saber, aquela que se caracteriza pela reprodução do sentido dado pelo autor e uma leitura polissêmica, a qual se define como produção de múltiplos sentidos para o texto. O critério adotado por Orlandi consiste “na observação da história” (ibid., p. 44), ou seja, na observação da relação da leitura com as suas histórias: a história de leituras do leitor e a história de leituras sedimentadas de um texto. Assim, “uma leitura não é possível e/ou razoável em si mas em relação as suas histórias”.(ibid.). A consequência teórica que se segue daí é, segundo Orlandi (ibid., p.45), a polissemia, “ou seja, [o fato] de ser próprio da natureza da linguagem a possibilidade da multiplicidade de sentidos”. 


2.4. O Sujeito em Análise do Discurso


Desde já, é necessário rechaçar um possível equívoco: o sujeito de que trata a Análise do Discurso não é o sujeito cartesiano, ou seja, como uma consciência unitária e transparente a si mesma, e suposta como existente independentemente do corpo. Esse sujeito cartesiano é um “eu” a-histórico, senhor de si, cuja existência é postulado pelo pensamento. O sujeito de que trata a Análise do Discurso é um sujeito sócio-histórico. Este sujeito não se confunde nem com o autor nem com o indivíduo empírico que produz um texto. Trata-se de uma posição-sujeito ou forma-sujeito  constituída na relação com o simbólico na História. O sujeito é discursivo e descentrado (não é a origem do seu dizer), porquanto afetado pelo real da língua e pelo real da História. Ele não exerce controle sobre o modo como língua e História o afetam. Por isso, o sujeito funciona pelo inconsciente e pela ideologia.
Portanto, não há falante, nem locutor, nem emissor para a Análise do Discurso. Há sujeito, mas o sujeito é clivado, isto é, não é uno; o sujeito é assujeitado, isto é, não é livre e não está na origem do seu discurso. O sujeito são sujeitos na história. Não há sujeitos da história. Não há Sujeito Transcendental, não há Ego Cogito. Segundo Althusser, não há sujeito que seja livre e constituinte da história. Pêcheux dirá que os sujeitos acreditam que utilizam os discursos, quando, na verdade, são seus “servos”, assujeitados, seus “suportes”.
A Análise do Discurso – serei enfático – rompe com a concepção de sujeito uno, livre, caracterizado pela consciência, ou seja, sem inconsciente, sem ideologia. O sujeito não é a origem do que diz.
O assujeitamento do sujeito não é quantificável. Ele diz respeito à natureza da subjetividade, à qualificação do sujeito pela sua relação constitutiva com o simbólico – se é sujeito pelo assujeitamento à língua, na história. Não se pode dizer senão na condição de ser afetado pelo simbólico, pelo sistema significante. Não há nem sentido nem sujeito, se não houver assujeitamento à língua. Para dizer, o sujeito submete-se à língua. Sem esse assujeitamento, ele não pode subjetivar-se. Portanto, com Althusser, devemos dizer que o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia. Na interpelação do sujeito pela ideologia, critica-se a constituição do sujeito e do sentido. Não há sujeito como origem ou causa de si e o sentido literal é uma ilusão (a ilusão da literalidade).
O sujeito deve sua instituição à interpelação ideológica (Althusser). O sujeito não é o centro do seu dizer, de modo que ele se caracteriza por duas formas de esquecimento: 1oesquecimento – o sujeito se constitui pelo esquecimento da formação discursiva que o determina. Só há sujeito pela sua inscrição na formação discursiva. É devido a esse esquecimento que o sujeito tem a ilusão de ser a origem do que diz; 2o esquecimento – o sujeito esquece que há outros sentidos possíveis. Nesse caso, ao formular o seu dizer, vão-se construindo cadeias parafrásticas de tudo aquilo que ele poderia dizer, mas não disse. Quanto mais operamos formulações tanto mais silenciamentos se deixam vazar de nossas palavras. Esses silenciamentos compreendem o domínio do formulável (eles também dizem). Esse esquecimento segundo acarreta a ilusão da relação termo a termo entre o dizer, o pensar e a realidade.
A linguagem é lugar do equívoco, isto é, o equívoco é a falha da linguagem na história. A possibilidade de falha é constitutiva da ordem simbólica. O equívoco é o fato de discurso, pois que o discurso é que articula entre si sujeito, língua e História. A ordem do discurso é resultado da articulação entre a ordem da língua, a ordem da história e seu funcionamento.
O que se chama de “equívoco”, em Análise do Discurso, não é um acontecimento da ordem do formulável, da ordem da relação entre as palavras e as coisas, mas equívoco enquanto constitutivo da relação entre o sujeito e o simbólico, ou seja, sua relação com a ideologia e com o inconsciente. Nesse sentido, o equívoco é que faz com que alguém que fale acredite separar aquilo que é sujeito à interpretação daquilo que não o é. Na verdade, há sempre interpretação. Reitero, pois: há sempre interpretação e faz parte da ilusão imaginária do sujeito crer-se como a origem do sentido, projetando-se sobre a literalidade e imaginando que só alguns sentidos são sujeitos à interpretação, enquanto outros seriam evidentes, literais.  Todo gesto de interpretação é um ato simbólico de intervenção no mundo (Orlandi, ibid., p. 84). É uma prática discursiva, linguística-histórica e ideológica.  Todos os gestos de interpretação são constitutivos tanto da leitura quanto da produção de um sujeito falante. Sempre que fala, o sujeito também interpreta. Sempre que diz, ele tem de inscrever-se no interdiscurso, tem de filiar-se a uma memória discursiva. Em suma, a interpretação é o espaço do possível, da falha, do equívoco, do efeito metafórico, do trabalho da história, do significante, enfim, é trabalho do sujeito.
Retomando-se a contribuição do materialismo histórico para a constituição do campo de estudos da Análise do Discurso, deve-se reter que há o real da História, de sorte que o homem faz história, mas ela não lhe é transparente. Conjugando a língua com a História na produção de sentidos (os sentidos são produto do trabalho de uma relação determinada do sujeito com a História), os estudos do discurso se ocupam com a dinâmica da forma material, que é a forma encarnada na história para produzir sentidos. Essa forma é de natureza linguístico-histórica. Esclarecendo os elementos que estão em jogo no trabalho do analista do discurso, cumpre sublinhar: a) o sentido não é o conteúdo semântico das palavras; b) a História não é um contexto, um enquadramento de acontecimentos; c) o sujeito não é a origem de si e nem está na origem do que diz. A Análise do Discurso está, portanto, preocupada com a ordem do discurso, na qual o sujeito se define por meio de sua relação com o sistema significante dotado de sentidos, sua corporeidade, sua historicidade (Orlandi, 2007, p. 49). O sujeito é, assim, sujeito significante (que significa), é sujeito histórico (ou seja, material). Esse sujeito, conforme mostrei, é uma posição-sujeito, isto é, ele se define como “posição”, porque é um sujeito atravessado por diferentes “vozes”, por diferentes discursos, numa relação, submetida a regras, com a memória discursiva (o interdiscurso). Esse sujeito só existe por sua relação com uma formação discursiva, a qual, por sua vez, mantém relação com as demais formações discursivas. Portanto, o sujeito de que se ocupa a Análise do Discurso é um lugar de significação que se constitui historicamente, vale dizer, pelo interdiscurso: “o discurso não é um conjunto de textos, é uma prática. Para se encontrar sua regularidade não se analisam seus produtos, mas os processos de sua produção” (Orlandi, 2008, p. 55).
Uma vez que não se separam forma e conteúdo, a Análise do Discurso visa a compreender a língua não só como estrutura, mas, sobretudo, como um acontecimento. Da reunião da estrutura e acontecimento, resulta que a forma material (linguístico-histórica) é considerada como o acontecimento do significante (língua) num sujeito afetado pela História. É importante destacar que as palavras que usamos no trato cotidiano com a língua já nos chegam carregadas de sentidos, dos quais ignoramos a origem de constituição. Não obstante, elas significam em nós e para nós.


2.4.1. As representações imaginárias

Quem enuncia A, tem de responder a perguntas implícitas como “quem sou eu para lhe falar assim?”, “quem é ele para eu lhe falar assim?”. Ao enunciar A, o enunciador constrói uma imagem de seu enunciatário, e este, por sua vez, constrói uma imagem do enunciador, e ambos constroem uma imagem daquilo sobre o qual falam. O quadro, no entanto, é mais complexo, porquanto o enunciador faz uma imagem da imagem que o enunciatário faz do próprio enunciador, e o enunciatário faz uma imagem da imagem que o enunciador faz do enunciatário. Essas imagens, para Pêcheux, devem ser tomadas como representações imaginárias, ou seja, os lugares do enunciador e do enunciatário tais como são representados nos processos discursivos em que são colocados em jogo. Se um professor, por exemplo, se dirige a seus alunos, não se deve considerá-los como indivíduos concretos, pessoas, mas como posições historicamente constituídas em sociedades em que essas funções se circunscrevem a certas regras e às quais se chega através de um conjunto de procedimentos. As representações imaginárias resultam de um processo social, ideológico, e não são simplesmente imagens que um locutor faz do outro.


2.5. As formas do silêncio, a incompletude e a opacidade da linguagem

Todo dizer é expressão de uma relação necessária com o não-dizer. Há uma dimensão de silêncio que remete ao caráter da incompletude da linguagem. A incompletude da linguagem se prende ao reconhecimento:

a) da errância dos sentidos (a sua migração);
b) da vontade de um (da unidade, do sentido fixo); do lugar do non sense, o equívoco.
incompletude da linguagem é o lugar dos muitos sentidos, do fugaz, do não-apreensível. Portanto, a errância dos sentidos, a vontade de unidade, do sentido fixo, o lugar do non sense, o equívoco e a própria incompletude da linguagem (para a qual voltarei olhares mais adiante, a fim defini-la melhor) estão no cerne do funcionamento da linguagem.
Em seu As formas do silêncio (2007), Orlandi escreve: “As palavras transpiram silêncio” (p. 12). Há, pois, silêncio nas palavras. O silêncio é fundante: ele funda a possibilidade de sentido. O silêncio é um lugar de recuo onde se pode significar, a partir do qual o sentido faz sentido. Novamente, ouçamos Orlandi:

“O silêncio como horizonte, como imanência do sentido (...) aponta-nos que o fora da linguagem não é o nada mas ainda sentido” (p. 13).


O silêncio, pensado em sua historicidade constitutiva, não é ausência de som, mas é um acontecimento que atravessa as palavras, que existe entre elas, que indica que o sentido pode ser sempre outro. As palavras produzem silêncio; o silêncio “fala”; as palavras silenciam (p. 14).
O silêncio garante o movimento de sentidos. Dizemos sempre a partir do silêncio. Cada palavra enunciada “apaga” necessariamente outras palavras. Isso se dá porque o silêncio também é constitutivo do dizer. Assim, observa Orlandi



“O homem está “condenado” a significar. Com ou sem palavras, diante do mundo, há uma injunção à interpretação: tudo tem de fazer sentido (qualquer que ele seja). O homem está irremediavelmente constituído pela sua relação com o simbólico” (p. 29-30).


Portanto, o silêncio não é falta. A linguagem é excesso. O silêncio não fala simplesmente; ele significa. No silêncio, o sentido é. (p. 32).


“A linguagem é conjunção significante da existência e é produzida pelo homem para domesticar a significação” (ib.id.).


O silêncio é disperso, e a fala o segmenta, o estrutura. O silêncio é o que torna possível a significação, todo dizer. O silêncio é presença. O sentido do silêncio não deriva do sentido das palavras. Nem o sentido, nem a linguagem são transparentes.
Não se pode não significar. O silêncio se relaciona, necessariamente, com a significação, e a linguagem é o movimento incessante das palavras para o silêncio e do silêncio para as palavras. É necessário insistir em que as palavras estão carregadas de silêncio. Por um lado, não podemos suprimir das palavras o silêncio; por outro lado, não podemos recuperar o silêncio só pela verbalização.
Por fim, retomando-se a noção de incompletude da linguagem, reitere-se que a incompletude é uma característica fundamental da linguagem. O fenômeno da incompletude da linguagem recobre a) o fato de serem diversas as formas de manifestação da linguagem; b) o fato de que o sentido está sempre em aberto; c) o fato de que o texto é multifuncional enquanto objeto simbólico. A incompletude repousa no fato de que o dizer é aberto. A crença numa “palavra final” é efeito de uma ilusão. O dizer não tem um início verificável; e o sentido toma múltiplas direções; está sempre em curso. A incompletude da linguagem decorre, portanto, do fato de que a própria linguagem é categorização dos sentidos do silêncio; é um modo de domesticá-los.
A linguagem também é opaca. A opacidade da linguagem se explica pelo fato de que o sentido não existe em si mesmo, não se acha nas palavras, mas é sempre um efeito da interatividade do discurso no qual intervêm, necessariamente, gestos de interpretação. Não há sentido sem interpretação. A opacidade ou não-transparência da linguagem consiste também na propriedade de o sentido poder ser sempre outro.

2.6. Ideologia

Desde já, deve-se frisar que a ideologia, no contexto teórico da Análise do Discurso, não é uma forma de ocultamento de conteúdos, mas um mecanismo de produção de uma interpretação necessária que atribui sentidos fixos às palavras. Por isso, o mecanismo ideológico não envolve uma falta, mas um excesso (Orlandi, 2007, p. 66). A ideologia representa a saturação do sentido, o efeito de completude, o qual, por sua vez, é responsável pelo efeito de evidência (do sentido).
A ideologia funciona pelo equívoco e se estrutura sob o modo da contradição. Quanto mais centrado o sujeito, mais cegamente ele está preso a sua ilusão de autonomia ideologicamente constituída. É que o sujeito é descentrado, disperso; o sujeito é uma posição-sujeito; muitos dizeres o atravessam, sem que ele tenha consciência disso. Quanto mais certezas acredita ter, menos possibilidade de falhas. A ideologia não afeta o sujeito no conteúdo; ela o afeta na estrutura pela qual o sujeito e o sentido funcionam. Isso significa dizer que a ideologia não é X, mas reside no mecanismo imaginário de produção de X, sendo X um objeto simbólico. Isso decorre do fato de que não há sentido se a língua não se inscrever na História. A ideologia não é, portanto, ocultação; ela é produção de evidências.
Pêcheux propõe uma teoria materialista dos processos discursivos, na qual se articulam três noções:

a) a de discursividade;
b) a de subjetividade;
c) a da descontinuidade ciência/ideologia.

Destarte, ele propõe: a) uma teoria do discurso como teoria da determinação histórica dos processos de significação; b) uma teoria não subjetivista da subjetividade/ c) uma teoria da prática política como prática de produção de conhecimento que reflita sobre as diferentes formas pelas quais a necessidade cega se torna necessidade pensada e modelada como necessidade.
Pela ideologia, afetado pelo simbólico, o indivíduo é interpelado em sujeito. É assim que podemos dizer que o sujeito é ao mesmo tempo despossuído e mestre do que diz. Uma teoria da materialidade do sentido deve mostrar que o sujeito se constitui afetado pelo simbólico na história. Essa constituição do sujeito pelo simbólico na história se dá sob o modo da ilusão que tem o sujeito de ser senhor de si e de seu dizer, de ser fonte de seu dizer. A relação do sujeito com a língua é parte de sua relação com o mundo. Essa relação é social e política. Por conseguinte, é o Estado com suas instituições e relações materializadas na formação social que lhe corresponde, que individualiza a forma-sujeito histórica e produz diferentes efeitos nos processos de individuação do sujeito na produção dos sentidos. É assim que o sujeito não é a unidade de origem, mas o resultado de um processo, um constructo, que tem no Estado sua instância produtora. Consoante ensina Orlandi (2012, p. 107),

Uma vez interpelado em sujeito, pela ideologia, em um processo simbólico, o indivíduo, agora enquanto sujeito, determina-se pelo modo como, na história, terá sua forma individualizada concreta: no caso do capitalismo, que é o caso presente, a forma de um indivíduo livre de coerções e responsável, que deve assim responder, como sujeito jurídico (sujeito de direitos e deveres), frente ao Estado e aos outros homens. Nesse passo, resta pouco visível sua constituição pelo simbólico, pela ideologia. Temos o sujeito individualizado, caracterizado pelo percurso bio-psico-social. O que fica de fora quando se pensa só o sujeito, já individualizado, é justamente o simbólico, o histórico, o ideológico que torna possível a interpelação do indivíduo em sujeito.



A discursividade deve ser, pois, compreendida como efeito material da língua na história – língua, ipso facto, sujeita ao equívoco. A conversão do discurso em texto representa a correlação do sujeito com a função-autor.

2.7 A função-autor

Está claro que o que interessa à Análise do Discurso é compreender como as posições-sujeito se constituem e constituem sentidos na sua relação necessária com o simbólico e a História. O autor é apenas uma função assumida pela sujeito sob o modo da ilusão de ser a origem do que diz. Segundo Foucault (2008, p. 26, grifos meus): “o autor, não entendido, é claro, como o indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência”. Para Orlandi (ibid., p. 69), “ o autor já é uma função da noção de sujeito”. O autor é uma função-autor que se realiza toda vez que o sujeito se representa na origem do que diz, produzindo um texto com unidade, coerência, progressão, não-contradição e fim. Em suma,



“o que caracteriza a autoria é a produção de um gesto de interpretação, ou seja, na função-autor o sujeito é responsável pelo sentido do que diz, em outras palavras, ele é responsável por uma formulação que faz sentido” (Orlandi, 2007, p. 97).



2.8. Interdiscurso (memória discursiva)

interdiscursividade recobre o entrecruzamento de diferentes discursos, produzidos em diferentes momentos na História e a partir de diferentes lugares sociais. Todo discurso é constituído de diferentes enunciados que o antecedem e o sucedem, e que integram outros discursos. Correlato ao fenômeno da interdiscursividade, o interdiscurso ou memória discursiva é a instância da repetição histórica, porque inscreve o dizer no repetível (interpretável) enquanto memória constitutiva (interdiscurso). Esta memória é uma rede de filiações de dizeres que faz a língua significar. Destarte, sentido, memória e História se entrecruzam no interdiscurso.
O interdiscurso é aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente da formulação de um discurso dado. É a memória discursiva, o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma de pré-construído, o já-dito que está na base do dizível e que dá suporte a toda tomada da palavra. O pré-construído supõe uma oposição entre algo anteriormente estabelecido com o que está sendo construído por ocasião do discurso. O pré-construído é, portanto, a marca num enunciado de um discurso que o antecede. Nesse sentido, o pré-construído se prende inextricavelmente à noção de interdiscurso (o já dito). Há duas coisas importantes que devemos ter em conta nessa noção: a) ela sugere uma imbricação (sobreposição parcial) entre discursos e entre formações discursivas exteriores e anteriores; b) ela também sugere a instabilidade da oposição entre o interior e o exterior de uma formação discursiva.
O interdiscurso põe em movimento dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada. O interdiscurso, em suma, é o conjunto de dizeres já ditos e esquecidos que determina o que dizemos. Para que nossos enunciados tenham sentido, é necessário que já tenham sentido (em outros lugares, em outras formações discursivas).
Tendo ficado claro que o interdiscurso é o próprio espaço de inscrição da memória de dizeres, que a memória discursiva expressa a inscrição da língua na História, levo a termo este texto, referindo as palavras de Orlandi (2010, p.18), que definindo o interdiscurso, sublinha a relação deste com a formação discursiva:



O interdiscurso determina a formação discursiva. E o próprio da formação discursiva é dissimular na transparência do sentido, a objetividade material contraditória do interdiscurso que a determina. Essa objetividade material contraditória reside no fato de que algo fala sempre antes em outro lugar e independentemente. O interdiscurso é irrepresentávelEle é constituído de todo dizer já-dito. Ele é o saber, a memória discursiva. Aquilo que preside todo dizer. É ele que fornece a cada sujeito sua realidade enquanto sistema de evidências e de significações percebidas, experimentadas. E é pelo funcionamento do interdiscurso que o sujeito não pode reconhecer sua subordinação-assujeitamento ao Outro, pois, pelo efeito de transparência, esse assujeitamento aparece sob a forma de autonomia. (grifos meus).






REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2008.


ORLANDI, E. P. Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Campinas, SP: Pontes, 2007.
________________. Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas, SP: Pontes, 2012.

PÊCHEUX, Michel. Análise do discurso. (org) Eni P. Orlandi. Campinas, SP: Pontes, 2011.











quinta-feira, 25 de abril de 2013

O sujeito emerge da linguagem


                                 

                                        O sujeito
            Entre o esquecimento e a ilusão de autonomia


Em Vontade de Potência (2011), deparou-se-me a frase, que destaco de seu co-texto, e a cito aqui para ilustrar um sentimento que, por vezes, se abate sobre minha constituição psicofísica: “O homem cansa-se da vida quando não a vive plenamente”. Por muitas vezes, me cansei da vida. Por muitas vezes, a vida me pesou como um piano que temos que carregar sobre as costas para levá-lo ao andar de cima. Mas convém reinseri-la no seu co-texto de origem, para que o potencial de sentido seja restaurado:

“O homem cansa-se da vida quando não a vive plenamente. Viver plenamente não significa o conceito de plenitude do objetivo que quer plenitude objetivada. Plenitude é objetividade e subjetividade, é Apolo e Dioniso, é consciente e inconsciente” (p. 59).


Como todo enunciado reclama interpretação, não poderia ser indiferente a este trecho. Alguns conhecimentos prévios precisam ser ativados na memória do leitor. A filosofia de Nietzsche é uma filosofia que enaltece o espírito dionisíaco, que representa o “sim” à vida, que representa a emoção, o sentimento, a ação. É afirmação da vida. A Dioniso, Nietzsche opõe Apolo, que, para ele, representa a razão, a ordem, a harmonia, tão bem representados no espírito da racionalidade grega. Racionalidade emblematicamente encarnada por Sócrates, de quem Nietzsche dizia ser expressão da decadência, porque sua filosofia, pelas mãos de Platão, negava a vida mesma em favor de uma vida transcendente, irreal. Dioniso representa as forças ativas dos instintos, das pulsões, ao que se opõe Apolo, que representa a razão, guiada pela vontade de verdade. Dioniso, lembro aqui, era o deus, entre os antigos gregos, da conduta violenta, dos excessos, das bebedeiras. Quiçá esse espírito festivo, até desordenado, caracterizado pelos excessos, pela intensidade de existir, tenha levado Nietzsche a concluir que Dioniso sintetiza tudo que há de afirmativo da vida. Creio não será custoso ao leitor, tendo volvido novamente o olhar para o excerto referido, associar Apolo ao consciente e Dioniso ao inconsciente. Nietzsche não via no inconsciente, ao contrário de Freud, as forças monstruosas que podiam levar o homem à ruína, por isso pôde insistir em que a plenitude depende de que a vida seja experienciada pela conjunção daquelas duas esferas da natureza humana. Mais subjetividade para a consciência, mais sonho, mais fantasia, a fim de evitar que ela funcione à semelhança de uma máquina, é o que desejava Nietzsche. O homem é consciente e inconsciente; nele os polos positivo e negativo são indissociáveis. Viver plenamente para o homem significa, portanto, segundo Nietzsche, viver a conciliação de sua dimensão consciente com sua dimensão inconsciente, de seu polo positivo com seu polo negativo.
É preciso, contudo, fazer avançar este texto, para o que tenho de deixar para trás a filosofia de Nietzsche. Se lhe evoquei, ao menos a sombra, é para incitar-me o corpo a prosseguir neste trabalho com a linguagem.
O tema deste texto é o sujeito do discurso. Algumas questões que procurarei responder serão: como se constitui o sujeito? É ele sobredeterminado pelo social? É ele completamente consciente de seus atos? Pode ele existir independentemente da linguagem? Em suma, quero mostrar o que tem a nos ensinar sobre o sujeito a Análise do Discurso (doravante, AD) da vertente francesa e a Psicanálise de orientação lacaniana. Primeiramente, discorrerei sobre o sujeito à luz da abordagem da AD, me detendo na contribuição de Charaudeau. Não deixarei, portanto, de oferecer uma visão geral do conceito de sujeito na AD, muito embora seu desenvolvimento se apóie na lição de Charaudeau. Num segundo momento, analisarei um trecho do texto Dando a volta por cima, de Cybele Ruas, a fim de ilustrar de que modo a teoria de sujeito proposta por Charaudeau pode enriquecer o trabalho de interpretação/compreensão textual. Ao cabo deste longo trajeto, discutirei, não exaustivamente, a visão lacaniana de sujeito.
Tenho consciência de que não escrevo para especialistas na área, ainda que haja entre os meus leitores pessoas que já estudaram o assunto ou estão suficientemente familiarizadas com ele. Ciente disso, começo notado o que não é o sujeito. O sujeito não é o indivíduo de carne e osso, ou seja, o ser humano empírico falante; também não é o autor (no caso do texto escrito). Na compreensão da dinâmica interacional dos sujeitos, importa mais entender o papel desempenhado pelo imaginário, ou seja, como os sujeitos se constituem interacionalmente, na linguagem, numa dinâmica de produção de imagens recíprocas. A construção dessas imagens depende da elaboração de hipóteses pelos sujeitos em interação. É preciso fazer, portanto, uma transposição do pensamento do domínio da materialidade empírica do indivíduo, da pessoa humana de carne e osso para o domínio do ser do discurso, cuja existência e materialidade é discursiva. Pode haver marcas linguísticas desse ser no discurso, como veremos. Na constituição do sujeito, o simbólico (linguagem) e o imaginário atuam reciprocamente. Mas não vou me apressar.
Disse que os sujeitos “se constituem interacionalmente na linguagem”. Outra lição importante é esta: não há sujeito fora da linguagem. Tanto na AD (e isso vale para a Linguística de um modo geral) quanto para a psicanálise o sujeito emerge para a existência apenas no domínio da linguagem. Não existe sujeito antes que ele se aproprie da linguagem ou antes que ele seja afetado pelo simbólico (como veremos no caso da psicanálise). De passagem, noto que, no tangente à noção de autor, terei algumas palavras a dizer. A função autor é, no senso-comum, superestimada. Na escola, quando o professor trabalha com a leitura, o faz quase sempre supondo o autor (pensado como o ser humano empírico) e pensando-o como o único responsável pelo seu discurso. Durante o ensino de leitura, os alunos são instados a compreender o que o autor quis dizer (pressuposta, nesse caso, a crença equivocada em que o sentido já está dado, cabendo ao leitor apenas “pescá-lo”). À medida que formos compreendendo como se dá a constituição dos sujeitos, veremos – e nisso acompanho Charaudeau – que a noção de autor é operacionalmente dispensável.
Quem quer que se dedique a ensinar sobre a constituição do sujeito não se pode escusar de levar em conta e definir conceitos tais como ideologia e/ou formação ideológica, formação discursiva, pré-construído e discursivização. Outros conceitos, intimamente ligados à noção de sujeito, poderão ser considerados, segundo a orientação teórica e objetivos de quem queira ensinar sobre esse tema, é claro. Para os meus propósitos, levarei em conta e definirei, no momento adequado, os conceitos de discursivização, ideologia, formação discursiva e pré-construído. Comecemos, sem mais delongas, a compreender a noção de sujeito.
A noção de sujeito envolve: a) as relações do sujeito com a situação de comunicação em que se acha; b) os procedimentos de discursivização; c) os saberes, opiniões e crenças que supõem partilhados com outros sujeitos (parceiros da comunicação); d) suas competências comunicativa, discursiva e linguística.
No tocante à situação de comunicação – e não pretendendo aqui fazer incursão em sua problemática – deve-se ter em conta que ela não pode reduzir-se à situação de comunicação imediata, ao ambiente físico e social ( objetos presentes no campo experiencial dos interactantes, papéis sociais assumidos por eles, instituições, etc.) em que se encontram os interactantes. Ela deve envolver um “ambiente cognitivo partilhado”, um contexto sociocognitivo, ou seja, ao considerarmos a situação de comunicação, devemos levar em conta o conjunto de crenças, saberes, opiniões, valores (background) armazenado na memória dos sujeitos, por força das experiências socioculturais vivenciadas. Esse “ambiente cognitivo partilhado” será determinante para a produção e compreensão do discurso.
No que diz respeito à discursivização, basta saber que se trata do mecanismo discursivo pelo qual se tornam evidentes no texto as instâncias dos atores (pessoas do discurso – eu/tu), do tempo (agora) e do espaço (aqui). A instanciação dos atores se chama actorialização; a do tempo, temporalização; a do espaço, espacialização.
É em Pêcheux, analista do discurso francês, que a influência do sujeito lacaniano se faz marcante. Para Pêcheux, o sujeito do discurso se constitui pelo esquecimento daquilo que o determina. O sujeito se esquece de que, na sua voz, falam outras vozes; se esquece de que o que diz é determinado por um pré-construído (definirei adiante essa noção). Como sujeito de linguagem e, portanto, sujeito social, por trás do sujeito fala uma comunidade discursiva; em sua voz ecoa, sem que ele esteja disso necessariamente consciente, um coro de atores sociais que encarnam as crenças, os valores, as ideologias, os conhecimentos da sociedade ou grupo social a que ele, sujeito, pertence. Em Pêcheux, o sujeito se constitui na ilusão de ser o senhor do que diz. Trata-se do fenômeno da interpelação (Althusser) do indivíduo em sujeito do discurso. O sujeito, então interpelado pela ideologia (não há sujeito sem ideologia), é convocado a se pronunciar, a falar e, ao fazê-lo, esquece-se das determinações ideológicas que lhes preexistem à fala a determinam. Ele não é, repito, a origem do seu discurso, não é o senhor do que diz. Clara está a influência da psicanálise, desde Freud, encontrando em Lacan um teórico empenhado, na compreensão do sujeito: o sujeito não é senhor do que diz, tal como o eu não é o senhor em sua própria casa.
Noto, de passagem, que, na AD francesa dos anos 60-70, de que são expoentes Pêcheux e Charaudeau, a ideologia é um conceito central. Considerarei, então, a ideologia, em dois sentidos, que me parecem encontrar abrigo nos trabalhos da AD. O primeiro sentido do termo que parece ser comum entre os teóricos que se ocuparam do problema, quer sejam eles filiados a AD, quer sejam filósofos, sociólogos, etc. é o de “sistema global de interpretação do mundo social” (DAD, 2006, p. 267). Esse sistema coerente de interpretação do universo social desempenha um papel histórico no seio de uma sociedade determinada. A AD se baseia no princípio segundo o qual não há discurso sem ideologia, todo discurso é atravessado por uma ou mais formações ideológicas. Ideologia não tem, aqui, um sentido negativo em si (tal como tem na tradição marxista), muito embora possa servir ao estabelecimento e reprodução de relações de dominação de classes, muito embora possa servir para a conservação do status quo, muito embora possa servir para falsificar a realidade social e histórica, naturalizando-a, por exemplo.
O segundo sentido do termo ideologia remonta à compreensão de Althusser. Esse filósofo francês entendia a ideologia como relação imaginária dos sujeitos com sua existência real, que se concretizava em aparelhos e práticas materiais. Evitando faltar com o rigor na exposição do modo como ele entendia a ideologia, precisarei que a ideologia, em Althusser, é a forma de os homens representarem a si mesmos, de modo imaginário, as suas condições reais de existência. Na ideologia, os homens representam a si o modo como imaginam ser essas relações, e não as relações tais como realmente são. Isso explica, por exemplo, que eles possam acreditar que, por serem assalariados, estão numa relação de não-opressão e justiça com o seu patrão (muito embora saibamos com Marx que essa relação, no modo de produção capitalista, é injusta, porque marcada pela espoliação do proletário com a apropriação da mais-valia pelo capitalista).
Destarte, a ideologia está vinculada ao inconsciente por meio da interpelação dos indivíduos em sujeitos. Sob o efeito da ideologia, o sujeito a) crê na transparência da linguagem (ou seja, que os sentidos estão nas palavras, se deixam ver claramente nelas, nos textos) b) crê, portanto, que uma palavra designa uma coisa, que ela tem um significado imanente, c) e não se preocupa em problematizar o estatuto dos sujeitos. Nesse último caso, como se constituam pelo esquecimento daquilo que os determina, os sujeitos não estão em condição de problematizar sua posição de sujeito. Aliás, o sujeito, na prática textual em AD, é entendido como forma sujeito, já que ele se caracteriza por ser afetado pela ideologia; quando o sujeito do discurso se identifica com a formação discursiva que o determina ele assume a forma sujeito (um sujeito “assujeitado”). Esse sujeito não é uno, mas clivado; transita por diferentes formações discursivas; o sujeito são muitos.
Disse anteriormente que a fala do sujeito é predeterminada por um pré-construído. O termo supõe uma oposição entre algo anteriormente estabelecido com o que está sendo construído por ocasião do discurso. O pré-construído é, portanto, a marca num enunciado de um discurso que o antecede. Nesse sentido, o pré-construído se prende inextricavelmente à noção de interdiscurso (o já dito). Há duas coisas importantes que devemos ter em conta nessa noção: a) ela sugere uma imbricação (sobreposição parcial) entre discursos e entre formações discursivas exteriores e anteriores; b) ela também sugere a instabilidade da oposição entre o interior e o exterior de uma formação discursiva.
O termo formação discursiva foi, como se pôde ver, recorrente até aqui. Imponho-me a tarefa de expor algumas palavras sobre ele. Foi Foucault, em A arqueologia do saber (2008), que cunhou o termo. A seguir, dou a saber o trecho em que Foucault define o conceito de formação discursiva, a fim de que não percamos de vista, na compreensão, o sentido pretendido pelo seu criador:


“No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade, uma ordem, correlações, posições, funcionamentos, transformações, diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva (p. 43)”.



Em negrito, destaquei duas expressões que me parecem fundamentais na compreensão do conceito. Em primeiro lugar, é preciso compreender de que “sistema de dispersão” se trata. Na verdade, se trata da compreensão por Foucault de que não é possível – e nem necessário – pretender estabelecer uma unidade de temas, conceitos, objetos com base na qual os enunciados poderiam se filiar a totalidades a que poderíamos aplicar rótulos como “a medicina”, “a psicologia”, “a gramática”, etc. Em outras palavras, Foucault observou que a análise não poderia partir da suposição da existência de uma unidade que permitiria tratar os discursos em um conjunto coerente. Pouco a pouco, ele se deu conta de que o importante é que se estudem “formas de repartição” e que se busque descrever as regras, as condições que tornam possível a existência dos enunciados. Se pôde Foucault falar em formação (discursiva), é porque ele foi capaz de inferir uma ordem em face do “caos” (aparente) em que pareciam habitar os enunciados ou os textos. Essa ordem se encontra no sistema de regras. A formação discursiva recobre, então, uma dispersão, uma unidade dividida (porque sistemas de repartição cujos elementos – “objetos”, modalidade de enunciação, conceitos, escolhas temáticas – não aparecem unificados compondo uma totalidade imediatamente apreensível) e um sistema de regras que torna possível o aparecimento de certo número de enunciados.
É com Pêuchex que a noção de formação discursiva, entretanto, passaria a ser útil a AD. Lembro que Pêuchex desenvolve seus estudos no quadro teórico do marxismo de Althusser. Assumindo que toda “formação social” se caracteriza por relações antagônicas entre classes e por posições políticas e ideológicas organizadas em formações que incluem relações de antagonismo, dominação e aliança, defenderá que uma formação discursiva determina o que se pode e deve dizer a partir de um dado lugar social numa dada conjuntura sócio-histórica. Com Pêuchex, o conceito de formação discursiva se reveste de um sentido normativo do dizer-fazer.
Sua compreensão de formação discursiva terá importantes implicações para a AD, duas delas são: a) o princípio segundo o qual as palavras mudam de sentido segundo a formação discursiva em que apareçam; b) e a ideia de que é nas formações discursivas que se dá o “assujeitamento”, a “interpelação”, ou seja, que emerge o sujeito ideológico.
Posteriormente (no fim dos anos 70), Pêuchex revisará sua compreensão do conceito e passará a entendê-lo na relação necessária com o interdiscurso, de tal sorte que a formação discursiva não será vista como um espaço estrutural fechado, mas aberto, sempre suscetível de ser invadida por outras formações discursivas. Saliente-se, de passagem, que desde os anos 80, o termo não tem tido a mesma acolhida nos trabalhos dos teóricos franceses da AD. Isso tem a ver, em parte, pela obscuridade de sua definição.  Todavia, ainda hoje pode demonstrar-se útil ao empreendimento analítico no interior da AD.


O sujeito em Charaudeu

Creio que, doravante, a noção de sujeito começará a ganhar mais concretude semântica e se tornará operacional no processo de interpretação e compreensão textual. Vou-me esforçar para que essa crença se verifique verdadeira, ao termo desta seção.
Antes de iniciar nosso percurso pelos caminhos teóricos abertos por Charaudeu na tentativa de apreender a questão do sujeito, deve-se ter em conta três outras características do sujeito do discurso:
1) Como ele seja atravessado por muitas vozes, que dizem a partir de lugares sociais  diferentes, o sujeito é polifônico. Outras vozes falam através dele;

2) O sujeito se constitui, constituindo sentido;

3) O sujeito é clivado, a saber, dividido, porquanto traz consigo vários tipos de saberes, de alguns dos quais está consciente, de outros quase consciente, e de outros ainda não está consciente.

Charaudeau propõe um desdobramento do sujeito. Assim, o autor diferenciará, no domínio da produção, o sujeito comunicante (EUc) de um sujeito enunciador (EUe); e no domínio da interpretação, um sujeito interpretante (EUi) de um sujeito destinatário (EUd). O EUc está para o EUi assim como o EUe está para o EUd. Há, portanto, ao menos, quatro sujeitos:

Sujeito comunicante (EUc) relacionado ao Sujeito interpretante (EUi)
Sujeito enunciador (EUe) relacionado ao Sujeito destinatário (EUd).

Tratarei de expor, em subseções separadas, cada uma das formas sujeito, situando-as no domínio que lhes é correspondente. Antes, porém, é necessário enfatizar que, para Charaudeau, “toda interpretação é suposição de intenção” (p. 32). Ao entrarem em interação, os sujeitos necessariamente elaborarão um trabalho contínuo e recíproco de hipóteses. A interação intersubjetiva instaurada pela linguagem pressupõem como condição necessária a elaboração de hipóteses pelos sujeitos na busca por produzir sentidos e se compreenderem. Há alguns conceitos importantes que precisam ser previamente definidos para que possamos compreender adequadamente a dinâmica do trabalho empreendido pelos sujeitos na produção e compreensão do discurso e na constituição recíproca deles mesmos.

1) Condições de Produção

Mencionei já o fato de a noção de sujeito recobrir as relações dos sujeitos com a situação de comunicação; destaquei também que essa situação precisa ser interpretada como um “ambiente cognitivo partilhado”. As condições de produção ou circunstâncias do discurso, em Charaudeau, constitui o conjunto de saberes supostos como partilhados pelos sujeitos e que são ativados por eles por ocasião do processo de interação. Mas o autor enfatizará que a situação extralingüística não está excluída de seu domínio semântico, mas faz parte das condições de produção.
As condições de produção abrigam: a) saberes a respeito do mundo (práticas sociais partilhadas; b) saberes supostos sobre os pontos de vista recíprocos dos sujeitos do discurso (p. 32).

2) A noção de contrato

Também entendido como contrato de comunicação, o contrato designa a condição para que os interactantes se compreendam minimamente. Ele supõe que todo ato de linguagem para funcionar precisa se estabelecer numa espécie de consenso entre os interactantes. Esse consenso envolve: a) o reconhecimento pelos interactantes de traços identitários uns nos outros, traços estes que os definem como sujeitos; b) o reconhecimento do objetivo desse ato de linguagem; c) o reconhecimento mútuo do tema envolvido no ato; d) o reconhecimento da relevância das coerções e normas socioculturais que determinam esse ato. Assim, por exemplo, numa situação em que pai e filho interajam, eles se reconhecem como sujeitos portadores de uma identidade social (que se define tanto pelo viés da biologia quanto pelo viés da lei) e se reconhecem como sujeitos que ocupam cada qual um lugar social (na verdade, seus lugares serão reforçados, demarcados no discurso). Essa identidade social é um pré-construído, porque é definida anteriormente à prática discursiva. Durante a prática discursiva, no entanto, os interactantes construirão identidades discursivas. Identidade social e identidade discursiva são indissociáveis. A identidade social é reforçada, recriada ou mesmo ocultada no discurso. E a identidade discursiva só pode estabelecer-se sobre a identidade social, que se lhe constitui a base.  Assim, um pai (identidade social) pode assumir, durante a prática discursiva, outras formas de identidade de pai, tais como a de um pai autoritário, protetor, compreensivo, castrador, indiferente, etc.
Sem pretender levar adiante a questão das identidades, tal como a esboço aqui, vale notar, de passagem, que a identidade discursiva, construída pelos sujeitos nas práticas discursivas de que participam, servem para responder à questão básica: “Estou aqui para falar como?”. Há que acrescentar que, embora a identidade social seja já-construída, não redunda daí que tanto ela quanto a identidade discursiva não devam ser consideradas dentro da situação de comunicação. Ao contrário, ambas devem ser consideradas dentro dessa situação. Outro ponto importante é que a identidade discursiva se constrói pelos modos como os sujeitos se apropriam da palavra, pela forma como constroem a organização enunciativa do discurso (por exemplo, se falam como “eu” ou em nome de um “nós”) e na mobilização dos imaginários sócio-culturais e discursivos. Oportunas são as palavras de Charaudeau, quando nos chama a atenção para a importância de reconhecer um jogo interacional entre a identidade social e a identidade discursiva e para as formas de escamoteação do ser pelo dizer ou mesmo identificação entre ambos:

“É neste jogo de vai-vem entre identidade social e identidade discursiva que se realiza a influência discursiva. Segundo as intenções do sujeito comunicante ou do sujeito interpretante, a identidade discursiva adere à identidade social formando uma identidade única “essencialista” (“eu sou o que eu digo” / “ele é o que ele diz”), ou se diferencia formando uma identidade dupla de “ser” e de “dizer” (“eu não sou o que eu digo”/ “ele não é o que ele diz”). No último caso, ou se pensa que é o “dizer” que mascara o ser (mentira, ironia, provocação), ou se pensa que o “dizer” revela um “ser” que ignora a si mesmo (denegação, revelação involuntária: “sua voz o traiu”) (2009, p. 5)



De certo modo, essa questão estava já na agenda dos antigos gregos, que supunham ser o logos (palavra, discurso, razão) capaz de revelar o ser das coisas. Ou seja, até que ponto a linguagem permite-nos acesso ao ser da realidade foi uma questão que ocupou o pensamento dos filósofos clássicos.
Além de reconhecer traços identitários um no outro, pai e filho também reconhecerão o objetivo envolvido no ato de comunicação, bem como o tema que o sustenta. Ainda que se encontrem numa esfera social não diretamente afetada por coerções sociais válidas em outras esferas (por exemplo, válidas nas esferas públicas), o pai encarna valores e padrões de moralidade que obrigam o filho a se comportar de tal e qual modo em face do pai. Dependendo da identidade discursiva assumida por este, o filho poderá exibir um comportamento – também discursivo – que sinalize mais ou menos intimidade, distanciamento, admiração, respeito, confiança, etc. ou pode ainda, em face de um pai autoritário, mostrar profunda reverência e medo; e essas emoções, esses modos de ser vão repercutir no modo como ele se comportará discursivamente. Na verdade, os modos como o filho sentir-se na presença do pai, tendo em conta também o tipo de identidade que este construirá na prática discursiva, serão determinantes do seu comportamento discursivo.
Sumariando esta seção, a noção de contrato recobre, então, a existência de pelo menos dois sujeitos em interação, a existência de convenções, normas e acordos que regulamentam as trocas linguísticas entre eles, bem como a existência de saberes comuns graças aos quais a intercompreensão é possível, e toda a situação de comunicação. Também devemos incluir no contrato comunicativo as estratégias discursivas e os tipos e gêneros textuais.


3) Representação social

Também designada de representação coletiva, a representação social envolve a relação entre a significação, a realidade e sua imagem. Vou-me demorar um pouco nessa questão, não só porque cuido-a fundamental para a correta compreensão da problemática do sujeito, mas também porque ela nos ensina muito sobre uma questão filosófica clássica: a realidade pré-existe ao pensamento e à linguagem? Em outras palavras, existe uma realidade independente do pensamento e da linguagem? Ou ainda temos acesso (cognitivo) direto à realidade? É possível conhecer a realidade mesma?
De um modo geral, os antigos supunham a possibilidade de o homem, pelo pensamento estruturado num discurso capaz de discernir entre a aparência e a essência das coisas, alcançar (conhecer), portanto, o ser (essência) das coisas ou da realidade. Ainda procurando a brevidade, na tradição filosófica ocidental, duas grandes visões podem ser distinguidas, no que diz respeito a essa questão: uma visão supunha a existência de uma realidade ontológica a que o pensamento poderia ter acesso (implicada aqui a concepção de que a linguagem espelha o pensamento) e que se opunha um mundo sensível de aparências (Platão é, sem dúvida, quem instaurou no pensamento ocidental essa cisão na forma de ver o mundo); a outra visão supõe que entre a realidade ontológica e o sujeito cognoscente, há uma espécie de “tela de construção do real” (DAD, p. 432). Em outras palavras, entre a realidade e o sujeito cognoscente há a significação.
É a esta última visão que me inclino. Estou convencido de que o mundo, para os seres humanos, é mundo significado. O real, para os seres humanos, é real semiotizado. Mesmo um elemento do mundo natural só existe para o homem quando dotado de um “investimento simbólico” (Azeredo, 2007, p. 17). Nomear é fazer os seres e as coisas ganharem existência, e não uma atividade de etiquetação de objetos num mundo previamente dado. Entendo que a existência para o homem é uma abertura do real ao simbólico – simbólico que constitui o ser mesmo do homem. Para o homem, a existência é mergulhada em significados e por eles é entretecida.
As palavras criam conceitos. Quando nomeamos uma coisa ou ser, inserimo-la num universo de significações de que ela toma parte em relações significativas com outras coisas e seres. A linguagem, assim, estrutura nossas experiências de mundo. Dá forma e sentido a essas experiências. É parte fundamental de um processo interacional ou intersubjetivo de fabricação do real, com o concurso de um aparelho perceptual-cognitivo adequado e de práticas culturais, em cuja base se acha um sistema gerador de significados. A linguagem é a base da cultura.
O exposto acima faz eco às palavras de Azeredo (2007), que darei a conhecer ao leitor em dois parágrafos, na íntegra. Convém ponderar sobre a lição do autor. Convém também atentar para o papel fundamental da cultura na relação do homem com o mundo:

“(...) o domínio simbólico e a cultura que deriva dele são uma espécie de ponte que liga o homem ao mundo. Podemos, no entanto, adotar outro ponto de vista: o mundo humano não é um mero conjunto de objetos, mas um sistema de significados; não se encontra “fora” do homem como uma coleção de coisas que ele possui, ganha, perde, deseja ou descarta: o que chamamos de “mundo humano” é o universo de valores e conceitos que interiorizamos ao longo da vida, no convívio com nossos semelhantes, muitas vezes estruturados dicotomicamente, como realidade/fantasia, remédio/veneno, normalidade/diferença, prazer/sofrimento, beleza/feiúra, direito/dever, prêmio/punição. É esta interiorização que nos “humaniza”, à medida que nos integra na “sociedade dos seres humanos” (p. 17).


Eis o que me parece ser a ideia fundamental no texto do autor: “o mundo humano é um sistema de significados”. Não se nega a existência do mundo das coisas fabricadas pelo homem e dos seres naturais (animais, plantas, montanhas, etc.); nega-se que esse mundo exista independentemente do homem, nega-se que esse mundo exista exteriormente ao homem. Graças à função de simbolização da linguagem, esse mundo é segmentado em categorias conceituais que constituem ‘dados’ de nossa consciência. Evidentemente, essa segmentação, esse recorte do mundo em categorias fornecidas pela linguagem se dá nas experiências socioculturais que supõem o mundo. À medida que os homens vão forjando os valores e os conceitos com os quais vão (re)construindo a realidade e a compreendendo, eles vão produzindo “o mundo humano”, que é, como eu disse, mundo entretecido de sentidos. Pensar a relação entre o real e a linguagem é pensar a oposição entre um mundo humano e um mundo natural. O surgimento do mundo humano instaura uma divisão no próprio real. O real deixa de ser, como se pensa o homem comum, um ‘dado’ a ser percebido pelos sentidos, mas como um sistema de significações construído pelos seres humanos em suas práticas culturais de existência. Não quero com isso dizer que a percepção-cognição não esteja envolvida na fabricação simbólica do real; quero apenas dizer que esse real não é uma coisa previamente existente e pronta para ser percebida pelos sentidos humanos.
Lacan, aliás, insistirá na ideia de que o bebê só se tornará sujeito, portanto, ser do mundo humano, quando, por assim dizer, afetado pela dimensão do simbólico. A linguagem nos humaniza e nos eleva à nossa condição natural. Por isso, dirá Lacan, que a vida biológica está fora da experiência do sujeito. Ele só se relacionará com ela por meio da linguagem, que a modifica e a fragmenta.
Voltemos a Azeredo. O trecho seguinte se segue ao anterior e nele a ideia central é a “transformação do mundo natural em história e cultura” pela ação do homem - ser simbólico -, portanto, com o concurso da linguagem:

“Uma pedra, uma árvore, um peixe existem como peças de um sistema ecológico no mundo natural, mas, no mundo humano, interiorizado como história e cultura, esses seres passam a existir como significados graças ao uso – ou, mais exatamente, ao investimento simbólico – que o homem faz deles. É esse uso e investimento que os inscreve no mundo humano, no qual se tornam conceitos e ganham sentido: a pedra, por exemplo, pode servir nas construções e no calçamento de ruas, ser usado como arma ou transformar-se em objetos de arte, a árvore pode fornecer alimentos, remédios, matéria-prima para móveis e abrigos; o peixe é essencialmente o alimento, mas preparado de diversas maneiras: assado, escaldado, frito, ou mesmo cru, mas em lâminas, como na culinária japonesa” (ib.id.)


Não devemos subestimar o papel da cultura na fabricação do real. Na verdade, cultura e linguagem são inseparáveis nesse processo. A cultura é uma dimensão que atravessa todos os aspectos da vida do homem em sociedade. É o modo de ser e de existir do próprio homem no mundo. É no interior das práticas culturais que os sistemas semióticos (artes, música, fotografia, etc.) , dos quais a linguagem verbal se destaca, são forjados e podem produzir sentidos. A cultura é um sistema de pensar, de sentir, de agir, de fazer e de relacionar-se com o mundo e com o Absoluto. Ela constitui uma teia de significados e valores que se tornam constitutivos da realidade e que orientam os homens em suas experiências uns com os outros e com o mundo.
Essas reflexões fazem-me retornar à lembrança a concepção que tenho de existência humana. No homem, a existência é a abertura do ser para o sentido ou significado. Se existir é estar em relação com, é “evadir-se de si”, é “sair de si”, “exteriorizar-se”, no homem e para ele, existir é lançar seu ser ao significado; eu acrescentaria: é lançar seu ser para o significado e nele aprisioná-lo. Reitero que os homens estão condenados a produzir sentidos. Sua existência é toda ela atraída irresistivelmente para (a produção de) o sentido.
Também é nesse terreno de reflexões que gostaria de situar um conjunto de ideias que, quiçá, auxilie o leitor na sua experiência de leitura. Espero que esse conjunto de ideias alicerce uma crítica textual desconstrutiva. Decerto, estas ideias não são novidade, mas não é menos verdade que elas não costumam ser imediatamente acessíveis à consciência do homem comum.
Quando nos preocupamos em buscar a verdade, em saber quem está com a razão, quase nunca estamos totalmente conscientes de que todas as ideias, as concepções, as crenças, as opiniões, as ideologias, visões de mundo, saberes, teorias, ilusões engendradas pelos discursos e por eles veiculadas remontam a uma fonte primária e única: o próprio ser humano. Mas não o homem abstrato, como se pairasse acima do universo sócio-histórico e cultural, por ele mesmo fabricado, mas o homem sócio-historicamente situado, influenciado, moldado, determinado, ainda que não totalmente (certa margem de liberdade não lhe pode ser negada), por toda uma comunidade de formações sociais estruturadas em crenças, valores, instituições, ideologias de sua época. Portanto, quem crê é o homem; quem pensa é o homem; quem diz é o homem; quem se ilude é o homem; quem oprime é o homem; quem engana e se engana é o homem.
Levar em conta as consequências dessas ideias é importante não só quando nos debruçamos sobre as religiões e nos perguntamos sobre a existência dos deuses, mas também quando nos deparamos com declarações que acenam com a naturalização de práticas sociais, que servem para sustentar relações de opressão, de dominação de certos grupos sobre outros. Estendendo ainda o alcance das consequências dessas ideias, elas nos ajudam a trilhar caminhos no sentido de uma compreensão mais profunda das formas como os homens representam para si suas relações com o mundo, das formas como eles instauram e reproduzem, justificam toda sorte de relações, de práticas que contrariam e ferem seus ideias mais caros, entre os quais os que nos foram legados pela Revolução Francesa.
Na prática, considerando-se a relação do leitor com o texto, especialmente em sala de aula, o caminho que aponto com as ideias referidas é o do desenvolvimento de uma consciência de suspeita no leitor em face do discurso que se vai emergindo quando da leitura do texto. O desenvolvimento da competência textual e discursiva do leitor significa desenraizá-lo de um estado de inocência em face do texto. O leitor inocente é um leitor que supõe poder achar uma verdade de que é portador o autor do texto; é, além disso, um leitor que supõe que o sentido está ali no texto boiando em sua superfície. É o leitor pouco eficiente no mergulho cognitivo necessário para alcançar uma compreensão profunda do texto. É também o leitor desatento para as outras vozes que ecoam no texto e para os outros textos que são evocados, ou com os quais o texto lido se relaciona. É o leitor que, produzindo uma leitura restritamente horizontal do texto, perde a oportunidade de fazer ligações entre elementos e porções de palavras que se acham em regiões diferentes e distantes do texto. É, em suma, o leitor que não é bem sucedido na atividade de produção de inferências que lhe permite recuperar os implícitos e raciocinar jogando com esses conteúdos em sucessivas relações entre eles e deles com conteúdos explícitos.
Voltemos à questão da representação social.
Para Wittgenstein, as representações não evidenciam o mundo, mas são o mundo. Segundo ele, é somente por elas que tomamos conhecimento do mundo. Bourdieu insiste, a seu turno, que é necessário “incluir no real a representação do mundo” (Bourdieu, 1982: 136).
Para efeito de compreensão do conceito de representação social ou coletiva, vou situá-lo em dois domínios do conhecimento humano: o primeiro é da psicologia social. Nesse domínio, a representação envolve um trabalho de interpretação da realidade pelas relações de simbolização que estabelecemos com ela e também um trabalho de produção de significados. Assim, as representações sociais se constituem de um conjunto de crenças, de conhecimentos, de valores e de opiniões que são produzidas pelos sujeitos sociais de um mesmo grupo ou sociedade e partilhadas entre eles. Evidentemente, esse conjunto diz respeito a um objeto social considerado. Também é no interior da psicologia social que se diferenciam níveis de construção da representação: há um nível profundo, concebido como um ‘núcleo duro’, a partir do qual as representações ‘não negociáveis’ se constroem e se relacionam por consenso, e constituirão a memória da identidade social; e um sistema periférico de representações, no interior do qual as categorizações são construídas e tornam possível a ancoragem das representações na realidade imediata do momento. Nesse caso, os sujeitos produzem modelos cognitivos de contexto, pelos quais eles representam e buscam compreender as situações sociais de que participam.
O segundo domínio é o da AD. Aqui se destacam as contribuições de Bakhtim e Charaudeau. Aquele por ter introduzido no pensamento da linguística moderna as noções de interdiscursividade e dialogismo, na base das quais toda uma teorização posterior das representações pôde ser desenvolvida.
É com base em Charaudeau que podemos compreender, para os meus propósitos, o conceito de representação social. O autor observa que, uma vez que as representações servem para organizar o real por meio de imagens mentais veiculadas no discurso, elas devem ser inseridas no real, ou mesmo fornecidas pelo próprio real. É importante entender que as representações se estruturam em discursos sociais que vão dar testemunho do saber sobre o mundo, do saber sobre as crenças que incluem sistemas de valores de que se servem os indivíduos para julgar essa realidade. Também esses discursos que testemunham conhecimentos e crenças vão viabilizar a construção de identidades pessoais (os membros de um grupo podem construir uma consciência de si), com base numa identidade coletiva.


O Desdobramento do sujeito

No domínio da interpretação

a) Sujeito destinatário (TUd) e o Sujeito interpretante (TUi)

O sujeito destinatário (TUd) é o interlocutor construído (uma imagem), é um destinatário ideal fabricado pelo EUc. O EUc tem total domínio sobre esse interlocutor, já que lhe fixa um lugar onde supõe que sua intencionalidade lhe será totalmente transparente.
O sujeito interpretante (TUi), por sua vez, ao contrário do TUd, situa-se e atua fora do ato de linguagem produzido pelo EUc. Como todo ato de linguagem, uma vez produzido, reclama interpretação, claro é que o TUi intervém nesse ato. Os processos de produção e interpretação estão integrados. O TUi é, portanto, o sujeito a quem compete o processo de interpretação, cujos efeitos escapam, no entanto, ao domínio do EUc. Disso se segue, consoante nota Charaudeau (2010: 46)

“Assim sendo, se supomos que o TUd está em relação de transparência com a intencionalidade do EU, o TUi, ao contrário, se encontra em uma relação de opacidade com essa intencionalidade, já que não é uma criatura do EU. O TUi só depende dele mesmo e se institui no instante exato em que opera um processo de interpretação”.


A esta altura, duas observações são essenciais. A primeira diz respeito ao conceito de intencionalidade. Embora se encontre em seu texto o termo “intenção”, observa o autor que a opção pelo uso dele se deve a sua intenção de expressar a ideia de “um conjunto de intenções que podem ser mais ou menos conscientes, mas que são todas marcadas pelo selo de uma coerência psicossociolinguageira” (p. 48). Assim, pretende salientar o aspecto inconsciente envolvido no ato de linguagem, bem como os efeitos do contexto sócio-histórico sobre este ato. A segunda observação é ter em conta que o TUi situa-se na esfera externa do ato de linguagem. Ao contrário do TUd, ele não é uma imagem construída pelo EUc.



No domínio da produção

Sujeito comunicante (EUc) e o Sujeito enunciador (EUe)

Tanto quanto o TUi o EUc é um sujeito agente que se institui como locutor e ao qual compete construir um discurso. A ele cabe o poder de iniciar o processo de produção. Ele é também testemunha de um real, muito embora de um real construído no seu universo discursivo. Lembro que o real não tem uma existência prévia ao discurso. Charaudeau observa, a esse respeito, o seguinte: “(...) Não consideramos que haja em algum lugar uma realidade fixa, indiferente à linguagem e mais verdadeira que ela. Conferimos ao real um valor de estatuto imaginado pelo homem” (p. 51, ênfase no original). É preciso, contudo, frisar: não se trata de ver aí um real subjetivamente construído, como um mero produto de crenças, valores e saberes subjetivos. Na verdade, por trás do sujeito, há uma comunidade que encarna essas crenças, valores e saberes do qual ele é herdeiro. Disso se segue que o real é uma construção intersubjetiva que se dá na linguagem no interior de um dado sistema cultural.
No que diz respeito ao EUe, deve-se ter em conta que, da perspectiva da interpretação, ele é um sujeito construído pelo TUi. É uma imagem do ser do discurso construída pelo TUi. Quando nos situamos no domínio da produção, o EUe será uma imagem de enunciador construído pelo EUc e representará sua intencionalidade.


Observações

Tendo em vista o exposto acima, preciso fazer algumas considerações suplementares. Tendo em conta o EUc, urge entender que ele assume o papel de produtor de um ato de linguagem e, nesse momento, imagina como seria a reação do TUd. O TUi, a seu turno, ocupa o lugar de interpretante de um ato de linguagem em virtude do que ele pensa sobre o EUc. Ao produzir uma imagem do EUc, ele cria o EUe.
O EUe e o EUd são independentes, em parte, do EUc e do EUi. Aqueles são seres do discurso. É só no discurso que ganham um estatuto linguístico e passam a existir com relativa independência destes últimos.
Também preciso dizer que o EUe e o TUd são, em parte, transparentes, porquanto se inscrevem no ato de linguagem por meio da estruturação desse ato. Por outro lado, não há relação de transparência entre o EUe e o EUc (Charaudeau, p. 49). O Eue é tão-só uma representação linguística parcial do EUc, embora também seja uma representação construída pelo TUd. O Eue “é uma máscara de discurso usada pelo EUc” (ib.id.). Acrescente-se que, pode haver ocultamento graduado do Euc pelo EUe, ou mesmo um distanciamento igualmente graduado entre eles.
O que vimos apresentando e desenvolvendo até aqui leva-nos à conclusão, com Charaudeau, de que a noção de autor se demonstra pouco útil, do ponto de vista analítico. O autor, entendido, tradicionalmente, como uma função organizadora do discurso, recobre um sujeito duplo: o EUc e o EUe.
O EUc, conquanto se situe na esfera exterior ao ato de linguagem, não deixa de atuar na totalidade desse ato. Igualmente importante é considerar a intervenção, no processo interpretativo, do TUi, com base no conhecimento de que dispõe do EUc. Se o TUi intervém no processo de interpretação baseando-se no conhecimento que tem do EUc, segue-se daí que o EUc não é um ser único, já fixado de uma vez por todas. Ele será aquilo que o processo interpretativo dizer dele. O EUc depende do conhecimento que o TUi tem dele.
Cabe ainda referir os dois modos de proceder do EUc:

1o Ele constrói uma imagem do real como locus da verdade exterior a si mesmo (sujeito) e que se investe do poder de lei. Essa verdade situa-se além dele, independe dele, é algo que ele supõe, acredita descobrir e se encarrega de revelar, a-presentar no discurso. Nesse caso, o discurso para o sujeito comunicante não produz um efeito de verdade, mas, porque afetado pela ideologia, crer poder revelar a verdade;

2o Ele fabrica uma imagem de ficção que considera um lugar a partir do qual o sujeito se identifica com o outro. Essa imagem constituirá um lugar de onde se dá a projeção do imaginário desse sujeito.

Vale ainda considerar as duas apostas do sujeito falante: a) a primeira diz respeito a sua expectativa de que os contratos instituídos por ele por ocasião do evento interacional sejam aceitos e bem vistos pelo sujeito interpretante; b) a segunda aposta é atinente à expectativa que tem de que as estratégias empregadas surtam o efeito desejado.
É com a noção de estratégia, portanto, que encerro esta seção, após a qual iniciarei a análise de um trecho do texto do texto Dando a volta por cima, de Cybele Ruas. Em seguida, passo a considerar, com a brevidade exigida pela longa extensão deste texto, a esta altura, a questão do sujeito na psicanálise.
A noção de estratégia estriba-se na hipótese de que o sujeito comunicante (EUc) concebe, organiza e encena suas intenções de modo a produzir determinados efeitos – de persuasão ou sedução, sobre o sujeito interpretante (TUi). Seu objetivo é levá-lo a identificar-se , de modo consciente ou não, com o sujeito destinatário ideal (TUd), então, construído pelo EUc.


Uma proposta de análise

                             Dando a volta por cima

Cybele Ruas

[...] Algumas pessoas são resistentes, aparam os golpes da vida; outras simplesmente desabam. Não adianta ser duro como o aço: o impacto pode ser pior. É necessária alguma elasticidade, suficiente para absorver o golpe, mas é preciso recuperar o equilíbrio. Resiliência é o nome técnico para a capacidade de absorção do choque e recuperação da forma original.
Que golpes? Famílias disfuncionais, divórcio, viuvez, perda de filhos, desemprego, problemas financeiros, violências sofridas, mudança de cidade, ou de país – há muita coisa que pode nos atingir ou abalar. Não há como evitar os percalços da vida.
Nossa força pessoal é intimamente relacionada com a autoconfiança: quanto mais psicologicamente estáveis, mais resistentes seremos às tensões. [...]
A resiliência é como se fosse um músculo psíquico, que pode ser exercitado. Mas é melhor encará-lo como arte – de bem viver: as pessoas fortes não se deixam limitar pelas adversidades; estabelecem metas que vão sempre um pouco além, na certeza de que os tempos ruins são passageiros (...).
Há uma verdadeira indústria de vítimas, que tende a fazer que as pessoas se digladiem com traumas durante toda a vida: as fraquezas passam a ser nutridas a pão-de-ló. Na verdade, somos consideravelmente fortes, embora possamos não saber disto, e é esta força interior que devemos buscar.


Em primeiro lugar, situemos os lugares dos sujeitos, tendo em conta o discurso de que este texto é expressão. O Euc, externo ao discurso, é o produtor dos atos de linguagem que o constitui. É, em suma, o produtor do discurso. Esse EUc, ao longo do processo de construção do discurso, construirá uma imagem de si, denominada de Eue (sujeito enunciador). O Tud é a imagem do interlocutor (no caso do texto escrito, do leitor) construída pelo EUc. O Tud é, portanto, a imagem de leitor construída pelo EUc. O TUi é o ser exterior ao discurso, embora responsável pela interpretação do discurso. O TUi também construirá uma imagem do EUc, ou seja, também construirá um EUe, que pode ou não identificar-se com o EUe construído pelo EUc.
O texto em tela pertence ao gênero artigo, cuja publicação (penso eu) deve ter se dado num jornal de grande circulação. Trata-se de um texto escrito por uma especialista na área de psicologia com o objetivo de esclarecer um público leigo sobre o significado de um termo técnico próprio dessa área de conhecimento, qual seja, resiliência. De certo modo, o EUc supõe a ignorância de seu público sobre o que significa esse termo. Note-se a importância da elaboração de hipóteses: o EUc formula a hipótese inicial de que está escrevendo para um público não especializado na área e que, portanto, não detém o conhecimento do que significa resiliência. Logo, a imagem que o EUc constrói do leitor, que será seu TUd, é a imagem de quem “ignora o significado de um termo técnico importante em psicologia”. Evidentemente, essa hipótese inicial não totaliza a imagem do TUd. A essa hipótese, podem-se somar outras duas: “o Tud é alguém interessado em aprender sobre psicologia” e “o conhecimento do que significa resiliência pode ajudar as pessoas a compreender um fato importante a respeito do modo como elas se relacionam com o mundo”. Talvez, esta última hipótese pudesse ser reelaborada com outros termos, mas o que ela diz é que o EUc supõe que é importante saber o significado do termo, porque ele descreve tipos de personalidades que existem e que reagem às dificuldades da vida de um modo que foi identificado e descrito com o termo. É interessante ver aqui como as palavras, ao criar conceitos, permitem que a experiência representada passe a existir como um dado de consciência do homem. Claro é que a experiência de mundo das pessoas as ensina que certas pessoas exibem uma capacidade de superação de problemas que lhes impressiona. Todavia, antes que se criasse um termo, um conceito para representar essa experiência, ela não estava integrada num universo conceitual (embora a ela sentidos já pudessem estar associados, visto que nossas experiências são estruturadas na linguagem) com o qual interpretamos experiências semelhantes e as relacionamos com outras experiências análogas ou distintas. Resiliência descreve, assim, uma experiência que representada na forma de conceito se integra num universo simbólico. Ao ouvir a palavra resiliência, quem quer que conheça seu conceito ou significado ativa uma imagem mental dessa experiência. O signo é justamente isto: algo que está no lugar de. Não precisamos viver a experiência para saber do que se trata; uma vez sabendo o que significa a palavra resiliência, a experiência, assumindo a forma de conhecimento, de conceito, é ativada em nossa memória, é representada cognitivamente em nossa mente.
Tendo em conta as hipóteses iniciais do EUc, com as quais constroem o seu TUd (lembro que o leitor é o TUi), o EUc levará adiante o seu projeto de dizer. E ele o inicia com informações que supõe conhecidas do TUd. Em outras palavras, ele representa no discurso experiências com as quais – ele espera – o leitor venha a se identificar (“eu já vivi isso, pensará o leitor”). Trata-se de uma estratégia bastante eficaz para o seu propósito básico. Como o EUc quer introduzir no modelo textual do leitor um termo (uma informação nova) cujo significado supõe que ele, leitor, desconheça, conclui ser mais adequado iniciar seu texto representando experiências possivelmente já vividas pelo leitor, ou seja, representando um modelo de mundo reconhecido pelo leitor. Aqui está o efeito de verdade: o EUc, que também constrói uma imagem de si, supõe ser portador de uma verdade sobre o modo como o mundo funciona. Ou seja, nesse mundo textualizado pelo EUc, há pessoas que “são resistentes”, que “aparam os golpes da vida”, isto é, há pessoas que suportam com firmeza os problemas da vida, de tal modo que conseguem “dar a volta por cima”. No mundo proposto pelo EUc – melhor será dizer construído em seu discurso -, há pessoas que, tendo sido acometidas pelos problemas da vida, conseguem se recuperar após os traumas. Elas gozam de uma capacidade de superação de tais problemas que chama a atenção dos especialistas, a ponto de eles terem lhe destinado uma palavra que a descrevesse.
Noto, de passagem, tendo em conta a importância das hipóteses que o EUc vai produzindo sobre os saberes, as crenças, as expectativas do TUd, que, ainda no primeiro parágrafo, o EUc parece prever a conclusão, pelo leitor, após a leitura dos enunciados iniciais, segundo a qual “é preciso ser duro e resistente”. Opondo a essa conclusão justamente a ideia contrária (“Não adianta ser duro como o aço: o impacto pode ser pior”), o EUc poderá prosseguir argumentando no sentido contrário àquela conclusão, ou seja, entenderá que é preciso certa maleabilidade ou “elasticidade, suficiente para absorver (como uma esponja?) o golpe”. Em seguida, pela introdução do “mas”, o EUc encaminha a argumentação no sentido contrário a uma conclusão do leitor que ele mesmo EUc antecipa. A essa altura, o leitor poderia estar pensando: “se não devemos ser duros para agüentar o golpe, mas sermos maleáveis, não correríamos o alto risco de ser profundamente afetado?”. Ou seja, a conclusão do leitor poderia ser: “a falta de firmeza poderia me abalar profundamente”. Mas o EUc adverte, contrariamente, que é necessário ter a capacidade de se recuperar, de modo que a tal “elasticidade” precisa ter limites.
Claro é que o leitor pode não concordar com o EUc. Pode julgar que, baseando-se em suas experiências pessoais, o melhor a fazer é suportar com firmeza quase indestrutível os duros golpes da vida. Chamo atenção para o fato dos silenciamentos que atravessam as palavras. O EUc não diz tudo; a linguagem é insuficiente, ou melhor, é atravessada pela incompletude; os silêncios vazam das palavras. Há sempre uma lacuna ou lacunas que não são preenchidas pelo dizer. E nelas encontra o leitor a oportunidade de intervir, para o que se baseia no conjunto de suas crenças, conhecimentos, valores e experiências representados e armazenados em sua memória.
As questões que um pequeno parágrafo suscita são muitas, como se pode ver. Não pretendo me ocupar de todas aqui. Tampouco me seria possível fazê-lo.
O TUi, leitor, também constrói uma imagem do EUc. Também ele tem o seu EUe, que pode ou não identificar-se com o EUe fabricado pelo EUc. Os saberes, os valores, as crenças, as expectativas do TUi sobre o EUc constituirão a base sobre a qual construirá uma imagem deste. Não podemos subestimar a importância também das emoções e dos sentimentos do TUi em relação ao EUc. Por exemplo, esperando aprender mais sobre o conceito de resiliência – supondo-se aqui que o TUi já tivesse conhecimentos prévios sobre o assunto antes de ler o texto -, ele poderia se decepcionar com o EUc, caso este não contribuísse para alargar o terreno de seus conhecimentos sobre o assunto. Se o texto lhe parecesse redundante, porque repleto de informações já conhecidas, o TUi poderia construir uma imagem pouco favorável do EUc, isto é, o EUe do leitor (TUi) não se identificaria com o EUe do EUc.
Pode haver tensões nessa relação. O TUi, conquanto ao entrar no processo de interação, pela leitura (no caso), com o EUc aceite o contrato proposto, não está obrigado a concordar com o EUc totalmente. É claro que o TUd é projetado pelo EUc como um ser do discurso necessariamente suscetível ao convencimento ou à persuasão. Nesse sentido, o TUd é um ser do discurso suposto como concordante com a versão de mundo representada pelo EUc e com o modo como essa versão de mundo produz um efeito de verdade que será sustentado pela argumentação.
Não poderia levar adiante esta análise, visto que o tamanho do texto excedeu em muito os limites desejados para uma publicação em blog. Quero, contudo, insistir que as hipóteses são elaboradas tanto pelo EUc quanto pelo EUi. E elas não servem apenas para a construção das imagens dos sujeitos do discurso. No caso do sujeito interpretante, elas são movimentos linguístico-cognitivos constitutivos do próprio processo de interpretação. Portanto, o leitor está, a todo momento, ao longo do processo de leitura, elaborando hipóteses, lançando mão de estratégias que servem para a produção de um sentido para o texto (tendo em conta que os sentidos são muitos).
Igualmente importante é o papel das inferências durante a atividade de produção de leitura. O leitor, com base no seu conhecimento de mundo, estabelece, pelos processos de inferências, uma relação não explícita entre porções ou elementos textuais, ou ainda entre esses elementos e conhecimentos necessários para a compreensão.


O sujeito em Psicanálise: a contribuição de Lacan

Antes de atacar a questão do sujeito em psicanálise, é preciso dizer que, por meio dos trabalhos de Lacan, foi possível aproximar a psicanálise da AD, particularmente da vertente francesa. Foi a teoria do discurso proposta por Michel Pêcheux que deu origem a um percurso em que a AD e a psicanálise pôde-se integrar. Em Pêcheux, também houve espaço para o materialismo histórico, de influência althusseriana. A AD deste autor procura, então, articular a psicanálise ao materialismo histórico.
Nesta seção, enfocarei a contribuição da psicanálise com base nos estudos de Lacan. Particularmente, estarei interessado em apresentar e discutir os conceitos de sujeito, dentro da teoria psicanalítica proposta por ele, e os conceitos de “outro” e “Outro”. Com Lacan, via Pêcheux, a AD abriu espaço no palco do discurso para a voz do desejo inconsciente do sujeito. O sujeito, agora, é visto como sujeito do inconsciente, muito embora continue sendo sujeito de linguagem. Nesse tocante, a psicanálise só vem a confirmar aquilo no que os linguistas cujos trabalhos se desenvolvem na esteira da linguística da enunciação, da pragmática, da semântica argumentativa, aos quais se reúne, em coro, a AD, estão de acordo: o sujeito é sujeito de linguagem.
Começarei, então, reiterando: também em psicanálise, o sujeito deve ser estudado no âmbito da linguagem. Também nessa área do conhecimento humano não há sujeito sem linguagem; ele é construído na dimensão simbólica. Todavia, há uma outra dimensão do sujeito que a psicanálise se encarregará de desvelar: a sua dimensão inconsciente. Assim, na psicanálise, o sujeito é também sujeito do inconsciente. Vamos, então, compreender de que modo esse sujeito do inconsciente que só existe na linguagem se constitui. Desde já, informo que estou ciente de que não recobrirei todas as questões aí implicadas. Não tenho a intenção de fazê-lo. Darei apenas uma amostra da teorização psicanalítica sobre o sujeito.
Lacan, com vistas a desenvolver sua teoria do sujeito, parte da herança do pai da linguística moderna Ferdinand de Saussure. Tendo em conta a compreensão que o mestre genebrino tinha de signo linguístico – uma entidade dividida dicotomicamente em significante (imagem acústica) e significado (conceito) -, Lacan entende que o significante prevalece sobre o significado. Para ele, o significado resulta da articulação de significantes em cadeias. Só o significante é material e simbólico. Sua estruturação na cadeia de significantes é que produz o significado. Evidentemente, Saussure, embora pudesse endossar essa visão sistêmica da linguagem, não concordaria em dissociar o significante do significado no signo. O signo, em Saussure, não pode ser pensado e não existe sem a relação necessária entre o significante e o significado.
Claro é que a perspectiva teórica de Lacan é outra e as questões de que se ocupa, os objetivos para os quais suas reflexões se orientavam eram outros. Em suma, o universo de postulados e a metodologia de Lacan não era o mesmo proposto por Saussure. Prossigamos com Lacan.
Como a psicanálise, a partir daí, com Lacan pensará o sujeito? O sujeito será pensado como sujeito social. Lacan reconhece a raiz social do sujeito, reconhece que o ser humano toma parte numa ordem social, cuja unidade básica, que lhe serve de porta de entrada para essa ordem, é a família. De que modo, contudo, se constitui esse sujeito do inconsciente, sem o qual não haveria psicanálise?
Tendo em conta a importância do papel da família no processo de humanização do ser biológico que é o bebê, Lacan ensinará que ao nascimento desse ser preexiste uma ordem social, cultural e significante, a qual encerra valores, ideologias, significações. Essa ordem se estrutura material e simbolicamente assumindo a forma de um Outro. O Outro é essa estrutura significante que representa a ordem social. É a mãe, considerada aqui como um lugar de ser criador (não necessariamente a mulher que dá à luz uma criança , mas qualquer pessoa que venha a desempenhar esse papel para o bebê), que representará para o bebê o Outro. Atentemos para o trecho abaixo, em que Elia, em O conceito de sujeito (2007), nos ensina a respeito do papel da mãe:

“O que a mãe transmite é, primordialmente, uma estrutura significante e inconsciente para ela própria (ela não sabe o que transmite, para além do quê  ela pretende deliberadamente transmitir), e não poderia ser simplesmente o conjunto de valores  culturais (entendendo-se sob esse termo toda a complexidade de elementos significativos ordenados na família e na sociedade à qual pertence a mãe e  bebê)” (p. 40).


É importante reter esta ideia: a mãe, embora encarne o Outro, não está consciente da estrutura significante que ela está a transmitir ao bebê. A ordem significante (o Outro) é destacada da ordem de significados e valores, de tal modo que o que o bebê interioriza não é um conjunto de significados, mas “um conjunto de marcas materiais e simbólicas – significantes” (p. 41). Não obstante o fato de a mãe interiorizar no bebê esses significantes, não redunda daí que ele seja passivo. O bebê, na verdade, é um sujeito que produz um ato de resposta. Ele é agente, portanto.
Recapitulando, o sujeito se encontra com o Outro, em um dado momento. Num segundo momento, esse encontro ganha algum significado, que lhe permite atingir e reconhecer algum nível de constituição. Como o significante prevalece, consoante Lacan, sobre o significado no inconsciente (a estrutura do inconsciente é uma estrutura significante), em certo momento, o bebê tem um encontro com o significante. Nesse encontro, o sujeito é convocado a dar uma resposta. É nesse encontro que o sujeito iniciará o trabalho de sua constituição.
Certamente, esta síntese deixa muitas questões em aberto; quiçá suscite mais dúvidas do que esclarecimentos. Mas as dúvidas são importantes para nos manter ávidos por aprender mais, por buscar as respostas de que carecemos para uma compreensão mais satisfatória de um dado aspecto da realidade. As dúvidas movem o espírito, conduzem-no à aventura do pensamento.
Antes de por um ponto final neste texto e procurando ser o mais claro possível, não poderia deixar de dizer que a ideia de que o Outro preexiste ao sujeito é sensivelmente perturbada pela ideia, aparentemente contraditória, de que o Outro, na verdade, também surge no encontro com o sujeito. Até onde consegui entender, é preciso postular uma pré-história de um bebê que não é delimitável na história do Outro. Essa pré-história tem estatuto simbólico e não se confunde, por exemplo, com a experiência de gravidez. Um dos elementos dessa pré-história do Outro, entre os quais estão desejos, desígnios, demandas, que remonta a um ancestral do bebê, é o nome que ele receberá. Evidentemente, o nome é anterior ao encontro do bebê nascido com o Outro, no entanto, ele só existe no momento em que o bebê o recebe. Esse encontro do bebê com o seu nome atualiza o passado, traz o passado à existência. É nesse sentido que o Outro se constitui na relação com o sujeito. Os desígnios, desejos e demandas de que o Outro é portador são atualizados no encontro com o bebê. Nesse sentido, o Outro passa a existir ao mesmo tempo em que se dá a constituição do sujeito.