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segunda-feira, 27 de agosto de 2012

"A experiência da eternidade é a experiência do próprio presente" (BAR)


                                        


                                      O eterno presente


Não resisto à vontade de varrer para fora do domínio conceitual de uma palavra, que tenha valor teórico em algum campo do conhecimento, todos os vestígios do senso-comum de que ela fica impregnada, porque largamente usada na linguagem corrente. Assim, se não evito, cinjo ao máximo o espaço simbólico em que o lugar-comum possa encontrar ensejo.
Começarei, então, dando a conhecer ao leitor o propósito que persigo na produção deste texto. Ontem, importunado por um sentimento1 que me deslocava do agora, tornando-me desejoso do que ainda não existe, tomei a decisão de me ocupar com a leitura de um livro que respondesse àquele sentimento, de modo a fazer com que desistisse de me ocupar a alma. Não hesitei em escolher um livro de André Comte-Sponville. Escolhi A vida humana (2007) e li o último capítulo – o único, aliás, que ainda não tinha visitado. O título, desde logo, me fora bastante atraente – Eternidade. Considerando-se o sentimento como ‘disposição complexa’ e disposição – no sentido que lhe dá Jung – como certa propensão da psique para agir ou reagir numa dada direção (não importando, para tanto, a representação do objeto na consciência), precisei dar a esse sentimento outro sentido (destino), porque ele me afastava demais do instante, do presente – único tempo em que a existência é possível. O capítulo do livro de Sponville, conforme veremos, respondeu satisfatoriamente àquele sentimento, tornando-me conciliado com o presente.

1.
Sentimento: disposição complexa da pessoa, predominantemente inata e afetiva com referência a um dado objeto (outra pessoa, coisa ou idéia abstrata), a qual converte esse objeto naquilo que é para a pessoa. O sentimento é simultaneamente identificado pelo objeto e por certas relações entre a pessoa e esse objeto.

(Dicionário Técnico de Psicologia, p. 310)


O leitor talvez esteja supondo que o tema é sobremodo abstrato, por encerrar uma ideia que representa algo cuja existência será tomada de modo independente do ser (no caso, o homem) com que ela se relaciona. É este o conceito de substantivo abstrato, de que eternidade é um exemplo. Um substantivo se diz abstrato quando designa um estado, uma ação ou uma qualidade que são tomados como independentes do ser ou coisa a que se relacionam, como, por exemplo, bondade, felicidade e aspereza.
Consoante veremos, a eternidade se revestirá de concretude, nas especulações de Sponville. Impregnado de valor místico-religioso, o conceito de eternidade não se confundirá, no espaço discursivo instaurado pelo autor, com ‘duração ilimitada’ ou ‘negação total da temporalidade’, ou ainda ‘estado de vida transcendente’. Em Sponville, tomamos conhecimento da imanência da eternidade – ou seja, não é ela uma experiência desejada e transcendente. Não é ela transcendente, porque não é exterior a nós, não vai além do real. Ela é imanente ao real. Vamos, então, acompanhar a argumentação do autor, doravante. Creio ser possível essa experiência de eternidade sempre que nossa consciência está toda ela imersa no presente; sempre que nos damos conta de que não há futuro e de que o passado não é mais. Há tão-só o presente.
Antes de nos aventurarmos pelos caminhos especulativos abertos por Sponville, convém reter a seguinte lição, que colhi de Ferry e que gostaria de compartilhar aqui:

Para interrogar-se, é necessário quem interroga e o objeto interrogado. Só pode interrogar aquele que é capaz de distanciar-se da realidade que pretende interrogar.

Por isso, os animais são incapazes de interrogar, já que eles e a natureza (o real) formam um só. Não é dado a eles distanciar-se da natureza. Os animais e a natureza se confundem. Por outro lado, os homens e a natureza são dois.

Voltemos a Sponville. No limiar de seu texto, o autor explicita o princípio da cosmologia da filosofia de Heráclito de Éfeso, “tudo muda, tudo flui, tudo passa” (p. 99). O que é constante, imutável, no entanto, ensinará Sponville, evocando Marcel Conche, é o próprio princípio do devir (tudo flui, tudo se transforma). O devir identifica-se com a eternidade. Assim, dirá Sponville que não precisamos escolher entre Heráclito e Parmênides (este que pensava o Ser como uno e imutável), porque também tem razão este último no tocante à unicidade da verdade. É verdadeiro que tudo muda, que tudo passa.
Antes que o leitor fique confuso – porque pode ter-se dado conta de que Sponville não pensa a eternidade como negação da mudança (por isso o identificá-la com o devir), é preciso levar em conta que Sponville é ateu e, como tal, não poderá compreender a eternidade como transcendente ao real, ao presente. Para ele, a experiência da eternidade é possível, mas quando pensada na sua constitutividade do real, do presente. A eternidade não está apartada do mundo, do real, do presente. Sem pretender fazer incursão na sua perspectiva ateísta, limitar-me-ei a citar a passagem em que ele define um ateu:

“Não é que não creia em nada. Crê apenas no que existe – crê apenas no todo”.
(p 100)

O filósofo nos convida a repensar o como compreendemos o tempo. O tempo existe para a consciência de modo segmentado. Mas, na realidade, só há um tempo que é uno, totalizado num presente que permanece presente (o ser). Assim, o que chamamos de passado não é nada (porque deixou de ser); e o que chamamos de futuro também não é nada (porque ainda não é). Só há o presente. Só há “apenas o presente do mundo” (p. 99). O tempo para a consciência é tempo abstrato, que segmentamos em um antes, um agora e um depois. Mas só o agora é real. Ou melhor, só o presente é real.
Como pensar o ser de Parmênides na relação com a eternidade? O ser é “o presente que permanece presente” (p. 100). O ser não sofre mudança, se a sofresse não restaria mais nada. O ser é tudo que há, é “a presença de tudo” (id.ibid.). O ser, assim, identifica-se com a eternidade, que, por sua vez, é o silêncio. De que silêncio se trata? Leiamos este passo de Sponville, decerto intrigante:

“...O homem é um animal religioso, pelo menos espiritual: não se concentra em conhecer a verdade ou em buscá-la; de fato, precisa amá-la, contemplá-la, recolher-se nela, mesmo que nela se perca ou se salve; e é bom que assim seja. Rezar? Não é mais que pôr palavras no silêncio. Mas o silêncio, aquele que contém todas as palavras e que elas não contêm, permanece”
(p. 101)
(grifo meu)

Vou deixar, por ora, em suspenso, o que o autor entende por verdade e que relação tem ela com o ser, o devir e a eternidade. Isso ficará claro mais adiante. Quero chamar atenção do leitor para o trecho em negrito. De que silêncio se trata? Qual é o silêncio que contém todas as palavras, mas que elas não o contêm? A resposta salta aos olhos: o silêncio é a eternidade, ou, se preferirmos, o presente, que, embora contenha a linguagem com que o pensamos, não pode ser plenamente compreendido com ela. É importante perceber que a eternidade de Sponville exclui de seu domínio conceitual o tempo abstrato, ou melhor, exclui o passado e o futuro. O silêncio e a eternidade são o mesmo,

“(...) já que o tempo (a soma intotalizável de um passado que já não é e um futuro que ainda não é) só existe para o pensamento, já que só ganha verdadeiramente consistência – e olhe lá! – por meio das palavras que servem para hipostasiá-lo ou medi-lo.”.
(p. 101)

Cotejada ao real, a verdade se caracteriza por ser una e eterna; o real, ao contrário, é mutável. Assim, segundo o filósofo, “(...) esse pássaro que alça vôo: não voará para sempre, não viverá para sempre e nunca retornará ao seu vôo” (id.ibid.). O real, contudo, se impõe à verdade. Por isso, lembra o autor:

“Não é porque era verdade desde sempre que ele alçaria vôo neste instante que esse pássaro o faz; ao contrário, é porque ele o faz, aqui e agora, que era verdade desde todo o sempre”.
(pp. 101-102)

Insisto em que a verdade é eterna – “se alguém uma vez se banhou num rio, isso continuará sendo verdade eternamente” (id.ibid.). Vimos que o presente identifica-se com a eternidade. Se só o presente é real, então o real é a eternidade. A mudança que ocorre no real só ocorre no presente. Não há uma mudança no tempo, de um antes para um depois. Vimos que o passado não é mais; e o futuro ainda não é.

“Ontem nunca existiu (quando ontem existia, não era um ontem: era um hoje). Amanhã nunca existiu (quando existir, não será mais um amanhã: será um hoje). Eternidade do presente. É sempre agora. É sempre hoje. É o que chamo o sempre-presente do real, que é o próprio real”.
(p. 102)

Se o presente é eterno, bem como o é a verdade, então toda verdade é presente. Portanto, uma proposição como ‘era verdade’ é absurda, segundo o filósofo. “Se foi verdade, continua sendo; se já não é, não era” (id.ibid.). Não há uma verdade futura. O mesmo raciocínio vale para uma proposição como “será verdade”: “se for verdade um dia, já o é; se ainda não é, não será jamais” (id.ibid.).
A verdade e o real se encontram no presente: “o presente é, pois, o ponto de tangência entre o real e o verdadeiro”. É preciso insistir que a eternidade não se define como uma vida transcendente, em que a temporalidade é negada. A eternidade é a verdade desta vida. O autor não admite a distinção entre eternidade e tempo, conforme se lê abaixo:

“Enquanto você diferenciar entre a eternidade e o tempo, você estará no tempo. Paremos de sonhar com a salvação, a sabedoria, a libertação. A eternidade não é uma outra vida, mas a verdade desta. Existe algo mais absurdo que esperar a eternidade? Algo mais triste do que esperar a felicidade? Mas isso indica mais o caminho do que o ponto de chegada, onde já estamos.”.
(p.103)

Como o autor concebe a vida e, em particular, a vida humana? Sponville, nesse tocante, não poderia ser mais direto e claro: “(...) uma vida nada mais é que um processo contínuo de mudança” (p. 104). A vida humana, a seu turno, é frágil, fugaz, integrada ao todo, relacionada às demais formas de vida que com ela co-existem; é uma vida do presente, sempre comovente e impregnada de solidão. Nós somos dotados de uma coragem comovente.
Finalmente, alcançar a sabedoria, tornar-se sábio é aceitar a vida com serenidade, é regozijar-se dela, sem, contudo, esquivar-se de mudá-la, “pois toda mudança faz parte dela” (id.ibid.).