A
ingenuidade do amor-próprio
Não raro,
topo com frases como “Devemos ter amor-próprio em
primeiro lugar”, “Antes de querer que alguém me ame, tenho de me amar primeiro”, em redes sociais de relacionamentos da
internet. Basta-nos dar uma olhada no conjunto de postagens do facebook para
nos certificar da farta frequência com que frases como aquelas se estampam
nesse ambiente de relacionamentos virtuais.
Hoje, uma
lamparina me acendeu na alma. Suspeitei (não desde o princípio) de que há algo
que precisa ser revelado aí. Será que uma frase como “Devemos ter amor próprio
em primeiro lugar” encerra uma crença verdadeira, em algum sentido? Estou
falando em verdade aqui e peço que o leitor não escute Nietzsche (aliás, sempre
que emprego a palavra “verdade” já não é mais Sócrates, através de Platão, que
se me afigura ao espírito, ou melhor, o discurso deles, mas Nietzsche, a
sussurrar-me que a verdade é uma ficção, ou mesmo Foucault, que me lembra que a
verdade é construção de um trabalho histórico). É por isso que eu não descurei
do uso de em algum sentido. Assim,
suponho que uma crença é verdadeira se tiver alguma utilidade para quem a
sustenta. Claro, isso não exclui a possibilidade do engano, do erro. Não quero me
concentrar na questão da verdade. Para os meus propósitos, basta-me assumir que
a verdade é uma espécie de caleidoscópio. Tem muitas regiões, muitas faces. A
verdade é multifaceta. No entanto, ela não se reduz a cada uma de suas partes.
A verdade, com Hegel, é o todo. É possível que nos apropriemos de parcelas da
verdade, sem que estejamos de posse da
verdade.
Prossigo.
O que me
chama atenção nesses enunciados? Em primeiro lugar, a pessoa que os produz
supõe que a experiência do amor próprio (tentarei defini-la mais adiante)
antecede à experiência de amar ao outro e de ser por ele amado. Nada mais longe
da verdade, conforme tentarei mostrar. Vou, contudo, protelar, por ora, o
desenvolvimento dessa questão. Em segundo lugar, consigo ver aí a ignorância do
eu sobre sua própria constituição. Quero dizer que a pessoa que produz “Devo me
amar em primeiro lugar” ignora o fato de que o próprio sentimento que tem de
seu eu, a imagem que tem de si é produzido ou é construída na relação com o
outro. Vou-me esforçar por desenvolver essa concepção, de agora em diante.
Posteriormente, retorno ao problema do amor próprio, ocasião em que procurarei
avaliar o seu significado, a sua função e consequências para o eu. Não deixarei
de definir os conceitos, que cuido importantes para a compreensão das questões suscitadas
e discutidas aqui – certamente, um deles é o de imagem.
Cismando,
identifico algo de fascinante na experiência do eu. É dela que passarei a
tratar doravante. O que acho fascinante é que, se, de um lado, temos, a partir
da sensação e percepção de nosso corpo, um sentimento bastante concreto do
nosso eu; por outro lado, basta que alguém nos inste a nos descrever a nós
mesmos, a falar sobre quem somos e como somos, que nos vemos em face do
desconhecido. Alguns de nós sentem dificuldade para falar sobre si mesmos. Essa
experiência é corroborada pela psicanálise. Lacan, por exemplo, dizia ser o eu
“o lugar do desconhecimento”. No momento em que tenho a certeza de ser eu mesmo
na experiência de meu corpo sentido e vivido, essa certeza mascara a minha ignorância
sobre o que eu sou e de onde eu venho. Mas ponho freio no comboio de
pensamentos que avança depressa. Vamos com calma. É o “eu”, ou melhor, o que é
o “eu” a questão sobre a qual me debruço agora. Entra em cena o conceito de experiência. Não farei rodeios. A
experiência é forma de conhecimento imediato e vivido. Podemos ter experiências
externas, que envolvem nossa relação com o mundo, e experiências internas de
nossos estados mentais, de nossas emoções e sentimentos. Implicadas na
experiência estão as sensações e as percepções. É porque
estão englobadas nas experiências que preciso defini-las. Na verdade, sensações
e percepções são formas de experiência. Então, por sensação deve-se entender a
experiência de perceber pela aplicação dos sentidos. Não vou descer a
pormenores sobre sua dimensão fisiológica. Basta-nos entender que a sensação
nos fornece as qualidades exteriores e interiores, a saber, as qualidades das
coisas e os efeitos que essas qualidades exercem em nós. Na sensação, sentimos,
ouvimos, degustamos, etc. O organismo reage aos estímulos exteriores, sem que
consiga distinguir com clareza os estímulos exteriores do sentimento interior
que eles provocam. Há na sensação, em suma, a interação do físico e do psíquico.
No tocante à
percepção, consiste ela no processo
ou resultado dele em que tomamos consciência de objetos, de relacionamentos e eventos
por meio dos sentidos. A percepção envolve atividades cognitivas tais como reconhecer,
observar, discernir, identificar, etc. Há na percepção – e isto é importante! – uma interpretação
e organização dos estímulos recebidos que, durante o processo mesmo de
perceber, se transformam em conhecimento dotado de significado. Reitero: perceber é interpretar. Se digo
“percebo que você não me ama”, faço uma interpretação, com base em minhas
experiências (em que estão envolvidas sensações), sobre como me sinto em
relação ao outro e como vejo o outro na sua relação comigo. No caso, percebo
(interpreto) a ausência de amor dele por mim. Percebo uma lacuna, atribuo um
sentido àquela experiência, àquela relação: trata-se para mim de uma relação
marcada pela carência de amor, pelo vazio que experimento na alma pela falta do
amor correspondido.
Tenho de
lembrar, contudo, que as sensações não são experienciadas isoladamente. São
muitas as sensações que experienciamos e elas nos afetam em conjunto
simultaneamente. Cabe à percepção reuni-las. É a percepção, que envolve
interpretação, que constitui a síntese das sensações simultâneas. Assim,
sentimos o quente (que embora seja uma propriedade da coisa, não existe sem que
antes tenhamos contato com uma coisa quente; o quente existe quando o
sentimos), mas percebemos que a água é quente. Nesse caso, elaboramos um juízo
(associamos um predicado a um sujeito pela cópula “ser”) com base numa
experiência sensitiva. Percebemos então que a qualidade ‘quente’ está contida
na água, ou está associada a ela. É na experiência perceptual que os conceitos
de “água”, “é” e “quente” nos são dados. Não me parece difícil concluir que
temos sensações na forma de percepções, já que aquelas surgem na experiência
reunidas num dado momento.
Agora
podemos avançar. Vou me deter a meditar sobre o que é o “eu”. Para tanto, sigo
a trilha do psicanalista e psiquiatra J. D. Nasio, em seu livro Meu corpo e suas imagens (2009).
Defini a
experiência justamente porque intento levar o meu leitor a compreender que a
maneira como experienciamos o mundo é determinante do modo como pensamos. Nossos
pensamentos, ideias, concepções, visões de mundo são determinados por nossas
vivências.
A primeira
observação fundamental que deve ser feita sobre a natureza do eu é que é produto de uma
interpretação. Eu sou como eu mesmo me interpreto. O eu é uma entidade
imaginária. O eu é uma imagem. Isso não é tudo que podemos dizer do eu,
evidentemente. Mas, antes de prosseguir, preciso definir o conceito de imagem
com que eu estou desenvolvendo estas reflexões. O primeiro campo experiencial
que a ideia de imagem sugere é o da visão. De fato, há imagens visuais, mas
também há imagens auditivas, olfativas, há imagens sensoriais (que resultam de
uma transposição psíquica da percepção de um objeto exterior). Imagem, então,
não se reduz ao campo visual.
Para Nasio,
que se situa no domínio da psicanálise, não há imagem sem um investimento afetivo.
Dentre os diferentes conceitos de imagem que o autor nos apresenta, destaco o
de duplo que se imprime na consciência quando temos uma sensação afetiva
importante para nós (produz-se aqui uma imagem mental consciente). Chamo
atenção para a expressão sensação
afetiva. Veremos que a construção das imagens do eu e do outro envolve
sensações, sentimentos, afetividade, não só crenças, julgamentos e opiniões.
Na
perspectiva de Nasio, não há imagem que não seja deformada. E aqui lembro que,
em psicanálise, toda interpretação é uma forma de distorção. A imagem que o eu constrói de si na relação com outro
será permeada de distorções e de enganos.
Voltarei à
perspectiva de Nasio, um pouco mais adiante. Creio ser necessário agora
precisar, sob a perspectiva da psicologia cognitiva, o que se deve entender por
imagem.
O que
precisa ficar claro é que a imagem é uma representação de uma experiência
sensorial exterior produzida por e em nossa mente. Ela é recordada, sem a
necessidade de alguma estimulação externa. Chama-se mentalização ao processo pelo qual se vão produzindo cognitivamente
informações sensoriais provenientes dos cinco sentidos, de modo individual ou
coletivo. Essas informações são os materiais de que são feitas as imagens
mentais. Pode-se falar também em uma mentalização
visual, caso em que a imaginação envolve a sensação de termos na mente
“retratos”. Esses “retratos” (imagens) podem ter origem na memória de
experiências visuais anteriores ou de sínteses produzidas pela imaginação.
Finalmente,
temos também a imagem corporal. Esse
tipo de imagem é uma pintura mental ou um quadro mental que uma pessoa faz de
seu próprio corpo em sua totalidade, nela incluídas características físicas e
funcionais, bem como suas próprias atitudes com relação a essas características.
Voltarei,
como disse, à concepção de Nasio de imagem. Ela supõe uma relação do eu com o
próprio corpo. Aliás, a experiência que o eu tem de si envolve a imagem que
constrói de seu próprio corpo. Nasio vai escrever: “considero a imagem do corpo
a própria substância do nosso eu” (p. 54).
De minha
parte, penso que a imagem, sem deixar de ter um aspecto simbólico e psíquico, é
uma representação, para a qual concorrem crenças, julgamentos, opiniões,
sensações, sentimentos, com base em nossa experiência sensório-perceptiva (que
envolve sensações em forma de percepções). Mas também, na medida em que não
penso o eu como, por exemplo, pensara Descartes - uma entidade abstrata, um
pensamento, uma certeza de si – senão como um “eu” simbolicamente ancorado num
corpo (é uma imagem que se constrói supondo uma relação com a imagem do corpo),
a produção da imagem supõe um corpo dotado de um cérebro estruturalmente
adequado para tanto.
Não percamos
de vista a questão do eu. Estamos nos interrogando sobre o que é este eu e como
ele se constitui, ou seja, como ele é percebido pela consciência do sujeito.
Espero tenha ficado claro que o eu é uma criação resultante da interpretação
que nós fazemos de nós mesmos. Essa interpretação implica uma auto-reflexão.
Quando nossos pensamentos se voltam sobre nós mesmos, vamos construindo uma
imagem do nosso eu.
Um eu
pré-consciente não nos é acessível. O eu não constitui a totalidade da
consciência, não se identifica com ela. Sartre via no eu um objeto da
consciência e, provavelmente, inspirado em Freud, disse que o eu não é
proprietário da consciência. Se não é proprietário, o que é então? Para o
filósofo existencialista francês, o eu é um objeto da consciência e, como tal,
pode ser reinventado. Essa concepção acena, em outros termos, com a ideia de
que o homem é um projeto, de que é livre e de que pode reinventar-se
continuamente.
Uma ideia
que já foi bastante repisada por mim, mas que se me demonstra fundamental para
a compreensão do que é o “eu” é a de que o eu só se reconhece na relação com o
outro. Só há eu quando colocado diante do outro. O outro dá ao eu o sentimento
de si, uma autoconsciência. Nessa relação, observa-se uma constituição
recíproca do eu e do outro, num jogo interativo de produção de imagens: imagem
que o eu tem de si na relação com o outro; imagem que o outro constrói do eu
com que se defronta; imagem que o outro tem de si mesmo; e imagem que o eu
constrói do outro. É possível haver sobreposição de imagens: posso construir
uma imagem da imagem que o outro faz de mim; ou construo uma imagem sobre a
imagem que o outro faz de si.
A esta
altura, acredito tenha ficado clara a ideia de que o “eu” não é um ser, não é
uma coisa dentro da nossa cabeça. É, sem dúvida, um sentimento de si, um
sentimento subjetivo de existir (Nasio, 2009, p. 55). Mas esse sentimento está
longe de nos ser transparente à consciência. Lembro Lacan: “o eu é o lugar do
desconhecimento”.
Mas voltemos
a Sartre. Se, como pensava esse filósofo, o eu é o lugar da ausência, do nada,
um lugar do silêncio do significante, disso se segue que sou o que os outros
pensam a meu respeito. Isso é uma parte do que parece ser verdadeiro. A outra
parte é que sou aquilo que penso que sou também.
Concluindo:
é apenas na relação, na troca e na comparação com o outro que eu me descubro
(venho à tona), que me apresento a mim (ainda que não com total clareza). Não
há, ao contrário do que insiste o senso-comum, como escapar à comparação com o
outro, já que dela depende, em parte, a constituição de nosso eu.
O eu é,
então, uma imagem, ou um lugar simbólico que se constrói dialeticamente na
relação com o outro. O eu é um lugar de uma dialética significante já que supõe a
relação com o outro com base na diferença, num universo estruturalmente
significativo. Entendamos o que quero dizer com dialética entre o eu e o outro.
Pensar dialeticamente é (desde Hegel) discernir por relações de contradição,
visando a superá-las por sucessivas sínteses. Um objeto se define numa relação
de contradição com outro objeto. Assim, o senhor é o não-escravo, ou seja, na
relação com o escravo, o senhor se define pelo que não é: o senhor é o
não-escravo. O mesmo raciocínio se aplica ao escravo. Ele se define na relação
de contradição com o senhor: o escravo é o não-senhor. A contradição, diga-se
de passagem, se distingue da oposição, por consistir numa negação interna de um
dos termos da relação. Ao definir o senhor nega-se internamente a condição de
escravo.
Tendo em
conta o exposto, eu me defino por aquilo que não sou ou pelo modo como não sou.
Eu sou com base naquilo que não sou. Eu me defino numa relação de contradição –
se bem que entendo não ser sempre necessário negar o outro nessa relação;
portanto, reformulando minha compreensão, eu me defino numa relação de
contradição ou de diferença em relação ao outro. Estou consciente de que a
contradição implicaria negar completamente o outro em mim, o que não parece ser
sempre possível ou desejável. No caso ilustrado do senhor e do escravo, quando
o senhor se define nega a humanidade ao escravo. Torna-o objeto de sua (do
senhor) consciência subjetiva. Claro é que, embora seja superior ao escravo, o
senhor precisa dele para se definir como tal. Dada a relação que se estabelece
com base num poder opressor, que reduz o outro à servilidade, arrancando-lhe a
humanidade, é mais correto falar em contradição e não de diferença ou oposição.
Não
pretendendo avançar nesse terreno, o fato é que quando se diz “eu sou diferente
de você”, o eu se apropria do espaço da diferença em relação ao outro para
nesse espaço se definir. Nesse lugar da diferença, ele fabricará suas próprias
significações, suas imagens; o eu significará a si mesmo.
Disse que
não há possibilidade de evitar a comparação com os outros. Por conseguinte,
observar significa observar (saber) que estamos sendo observados. Precht, em Amor – um sentimento desordenado
(2012), nos ensina sobre a formação da consciência de si pelo eu:
“(...) Nosso si mesmo e nosso sentimento de autoestima alimenta-se da autoconfirmação. As características com as quais nos definimos, as forças, as fraquezas, as expectativas de nossa atratividade, nosso charme, e a impressão que produzimos vêm do xadrez social que jogamos com nosso ambiente (...) Observamos os outros e, nessa hora, observamos como somos observados” (p. 168, grifo meu).
Saliente-se
neste trecho a importância da percepção sensorial, do olhar que nos é fonte de
significados e objeto de interpretação. Ao olhar o outro e ao ser olhado por
ele, interpretamos (produzimos sentidos) o modo como esse outro nos situa na
posição de objeto-do-olhar. Há um jogo especular na relação do eu e do outro
que se entreolham: o eu que olha e é olhado percebe-se, ao mesmo tempo, como
observador (fonte da percepção óptica) e observado (objeto dessa percepção). No
olhar do outro me vejo como num espelho. Quando interpreto o modo como o outro
me olha, produzo uma imagem do meu eu a partir do modo de olhar do outro. Em
outras palavras, observar o modo como o outro me olha é fazer uma interpretação
cujo resultado é a produção de uma imagem de meu próprio eu.
Retendo
ainda a ideia de que não é possível deixar de fazer comparação na relação com o
outro, cabe dizer que o que sabemos sobre nós, ou seja, a nossa autoimagem se
constitui com base na percepção da diferença existente entre nossos talentos,
nossas capacidades, nossos valores, nosso caráter, e os talentos, capacidades, valores
e caráter dos outros. Pode acontecer que na percepção dessa diferença nossas
características sobressaiam às do outro; pode suceder também que tenhamos
certas características que estão ausentes no outro.
A imagem
especular que sugeri para explicar a relação entre observador e observado,
indispensável à constituição do eu, redunda em que nossa autoimagem nada mais é
do que reflexo, por vezes, resultante de uma espécie de filtragem da imagem que
os outros constroem de nós. Nossa autoimagem vai sendo moldada, com o
aproveitamento e o descarte de significados que compõem a imagem que o outro
tem de nós. Em suma, minha autoimagem se molda a partir da imagem que o outro
constrói de mim.
Evidentemente,
essa imagem (representação) que o outro constrói de mim depende de seus
julgamentos, de suas crenças sobre meu comportamento, minhas atitudes, minha
fala, sentimentos, emoções, etc. A imagem que as pessoas afins tem de nós é,
certamente, mais importante que a imagem que estranhos tenham de nós (dizemos,
normalmente, pouco nos importar com o que pensam de nós aqueles com quem não
temos qualquer proximidade). Claro que nos enganamos a nós mesmos ao declarar
nossa indiferença ao que os estranhos a nós pensam a nosso respeito; e isso se
deve, em parte, porque é com base no que os outros pensam de nós que definimos
o nosso eu.
Por outro
lado, é no pensamento que temos sobre o que somos que o eu se forja. O eu se
reconhece como aquele que pensa ser. Ao colocar o pensamento na origem do
surgimento do eu, estamos dizendo que o eu é representação, para cujo processo
desempenha papel fundamental a imaginação.
Acima, fiz
referência ao fato de que a representação da imagem do eu conta com sentimentos
e emoções. A isso quero acrescentar que a atenção que os outros dispensam a nós
é uma fonte de autoestima. Aqui, chamo atenção para o delineamento da questão
principal desse estudo: o amor próprio. Uma verdade sobre a experiência amorosa
que passa despercebida por homens e mulheres não familiarizados com a teoria
psicanalítica nem com a filosofia, quando se ocupa do tema, é que, na
experiência de amor, amamos no outro nossa própria imagem refletida nele (nesse
caso, temos a componente narcísica do amor objetal). Também amamos uma imagem
do outro que construímos (isso parece ser reconhecido pelas pessoas), mas o que
não é tão evidente é o fato de que o amante ama a si mesmo na imagem que o
amado constrói dele, amante. Segue-se daí que a autoestima dependa da atenção
dispensada pelo outro; e mais – segue-se daí que o amor próprio depende de que
sejamos objeto de estima pelo outro. Quero dizer que essa experiência de amor
próprio não é algo que nos é dado desde que nascemos. Precisamos ser primeiramente
amados para então, tendo experienciado o amor tanto na condição de fonte
irradiadora quanto na condição de objeto desse amor, desenvolver o amor
próprio. Estou ciente de que não defini ainda o que entendo por amor próprio.
Por ora, estou supondo que o leitor sabe, com base no senso comum, o que
significa o amor próprio.
“É
nossa imagem no olhar do outro que nos empresta nossos próprios contornos. E a
imagem mais importante entre todas é aquela refletida por uma pessoa que nos é
mais importante que todas as outras, aquela que amamos e nos ama (Precht, 2012,
p. 169)
O trecho nos
leva a entender a importância do amor dirigido ao outro como condição para que
possamos amar a nós mesmos. É interessante notar que a experiência do amor
próprio supõe que o eu seja, ao mesmo tempo, fonte e objeto do amor. O eu se
desdobra num outro que se identifica com o si. É um eu outro de si mesmo.
Logicamente, a fonte só pode irradiar amor sobre si mesma se produz uma imagem
de um outro de si, que é objeto do amor. A essa altura, o leitor poderia se
perguntar se a emergência desse outro como objeto no amor próprio não
instituiria uma diferença em relação ao eu. Eu diria que é isso mesmo, porque o
eu que ama a si mesmo ama uma imagem de si (um duplo de si). Para mim, nesse
amor, o que é colocado no altar do eu como objetos de seu amor são seus valores,
suas características mais caros; os traços desagradáveis acusados pelos outros
ou eventualmente reconhecidos pelo próprio eu não entram no escopo do seu amor.
A imagem do amor próprio é depurada de tudo quanto aos olhos do eu não é sequer
digno de sua própria estima. Uma imagem bastante sugestiva pode ajudar na
compreensão do que tento explicar. Imagine que o amor-próprio, à semelhança de
um holofote, ilumine para a consciência do eu apenas os traços positivos,
prestigiados, agradáveis de sua personalidade. É sobre o terreno dos tesouros
do eu que recai a luz do amor próprio. Em suma, no amor-próprio, surge uma
imagem-outro-de-mim depurada que passo a amar. A consciência do amor-próprio é
uma autoconsciência do amor a um eu ideal que é outro de si.
Ainda me
concentrando na relação entre eu e o outro, noto que Hurssel, dando-se conta da
capacidade de o ser humano observar o modo como é visto no olhar do outro,
cunhou a expressão “empatia dirigida”. Assim, “eu posso entender que o outro
entendeu que eu o entendi” (Precht, p. 168). Nesse sentido, importa ver que, no
momento em que eu reconheço que o outro reconheceu que eu o entendi ou o
compreendi, eu me coloco no lugar reservado a mim no reconhecimento pelo outro
da compreensão que tive dele. Daí a empatia dirigida: uma empatia (perceber
como uma pessoa sente), mas dirigida a si mesmo. Em outras palavras, no
reconhecimento pelo outro de que eu o entendi, há um lugar que posso ocupar
como imagem valorizada pelo outro; nesse lugar concentro minha estima, ou é
desse lugar que eu me estimo.
Agora, posso
lançar olhares novamente sobre a lição de Nasio. Para Nasio, a imagem do corpo
é a essência do eu (p. 54). Mas o autor adverte que não devemos identificar o
nosso eu com nosso corpo de carne e osso. Na verdade, o que somos resulta do
que sentimos e vemos de nosso corpo. O corpo é, assim, o centro para o qual se
dirigem nossos sentimentos e nosso olhar e é na base dessa experiência do corpo
que o eu se constitui. Nasio escreverá “sou o corpo que sinto e o corpo que
vejo” (p. 54).
O leitor
deve reter que Nasio introduz o papel da percepção do corpo na constituição do
eu. O eu não deixa de ser encarado, por exemplo, como “uma ideia íntima”, mas é
uma ideia íntima forjada do corpo. O eu é a representação mental de nossas
sensações corporais. Mas essa representação “é mutante e incessantemente
influenciada por nossa imagem do espelho” (ib.id.). Desse último enunciado
concluímos que para a construção da imagem do eu é determinante a imagem do
corpo percebida pelo eu defronte de um espelho (que não precisa ser a
superfície vítrea que temos em casa diante da qual vemos nossa imagem; esse
espelho que me dá a imagem de meu corpo pode ser e, por vezes, o é o “outro”
presente à minha consciência ou como presença simbólica em meu inconsciente).
Isso explica que pessoas obesas possam desenvolver uma subestima de si mesmas.
A imagem do seu eu poderá ser muito pouco atraente. Evidentemente, essa baixa
autoestima será influenciada e agravada pela insatisfação do eu em não atingir
os padrões de beleza que o Outro encarna. Ou seja, o seu desejo, ainda que
inconsciente, de atingir os padrões de beleza estabelecidos em sua cultura
moldará a imagem que o eu construirá de si. Por vezes, são os obstáculos
impostos por sua constituição genética que, inviabilizando a satisfação do
desejo interiorizado pelo eu por força daqueles padrões, motivam a construção
de uma imagem depreciativa do eu.
Nasio
reconhece dois tipos de imagens de que se constitui o eu: imagens corporais e imagens
mentais. Esses dois tipos de imagens, embora diferentes, são indissociáveis. O
eu é tanto a “imagem mental de [suas] sensações corporais [quanto] a imagem
especular da aparência do [seu] corpo” (p. 55). Nasio destaca a importância de
considerar o sentir o corpo e reconhecer seus movimentos diante do espelho como
experiência inegável de ser um eu. Acompanhemos as palavras do autor no trecho
abaixo:
“O
que é o eu? O eu é um sentimento, o sentimento de existir, o sentimento de ser
você. Um sentimento eminentemente subjetivo porque fundado sobre o vivido
igualmente subjetivo de nossas imagens corporais. Considero, pois, o eu uma entidade essencialmente
imaginária cunhada por nossas ignorâncias, erros e miragens que confundem a
percepção que fazemos de nós mesmos (p. 55)”.
A percepção
de nosso eu, como se vê, é perturbada por uma nebulosa, de modo que se torna
extremamente difícil produzir uma percepção límpida e profunda do nosso eu.
Nasio nos leva a concluir que “não
existe um eu puro; o eu resulta sempre de uma interpretação pessoal e afetiva
do que sentimos e vemos de nosso corpo” (p. 56).
Já mencionei
que, na psicanálise, a interpretação é sempre uma atividade de distorção. Logo,
segundo Nasio, dizer que a imagem do corpo é a substância do eu é, na verdade,
dizer que é a substância deformante do
eu. Instáveis e afetivas, as imagens deformadas de nosso corpo acarretam
uma imagem distorcida de nosso eu.
Não
considerarei o papel da protoimagem
inconsciente no processo de constituição do sentimento do eu. Pretendo, assim,
evitar me delongar mais ainda.
O que é o
amor-próprio? Para definir o amor-próprio, devemos definir previamente o amor.
Não farei incursão nesse domínio, é claro. Basta entender o amor como uma
estima protetora. No caso do amor-próprio, trata-se de uma estima protetora
diante da qual o eu se coloca como objeto a ser protegido. Protegido contra
quê? Contra os efeitos danosos das frustrações, dos dissabores, das decepções,
dos traumas legados pelo amor objetal. O amor-próprio é um sentimento de defesa
de si mesmo erigido pelo eu contra as intempéries da vida. O amor-próprio não é
o amor-eros, ou seja, o amor paixão. Também não entendo ser o amor-próprio um
tipo de amor narcísico. Não vejo que haja nele um investimento libidinal. Não
entendo haver um regresso da libido ao eu. Simplesmente porque o amor-próprio
emerge num momento de crise do eu. Quem o afirma precisa dar testemunho de sua
autossuficiência (ilusória) em face do outro.
O amor-próprio
emerge de um lugar marcado pela solidão, pela frustração, pela decepção
decorrentes da carência de amor que supõe a presença imaginária do outro. Estou
de acordo com Precht quanto ao fato de que o amor é campo de desordens (tanto no sentido de que é impossível
explicá-lo com base numa única ordem de fatores quanto no sentido de que
provoca desorganização de nossas sensações e estados mentais). O amor é arena
de instabilidades, de conflitos, de insegurança, mas também é o palco de
necessidades, de anseios, desejos, projetos, de conforto, de segurança, etc. O
que me parece ser constante nas experiências amorosas, cujas feições podem
assumir contornos caricaturais, é a suposição de uma relação baseada na
reciprocidade afetiva com o outro. A condição primeira do amor é que nos
sintamos realmente amados pelo outro. Amor demanda amor. O leitor poderia
objetar que é possível que uma pessoa esteja enganada ao sentir que o outro a
ama. Como o sentimento envolve uma interpretação, uma percepção, essa percepção
poderia redundar ilusória. Todavia, não creio que esse amor não correspondido
perdure. O equívoco aqui me aponta outro caminho para pensar a condição do
amor: talvez, a primeira condição do amor é só podermos amar pessoas em que nos
vemos refletidos. Seja como for, penso que não há amor humano desinteressado; o
amor humano é fonte de demandas.
Ninguém tem
necessidade de desenvolver sentimento de amor-próprio quando está amando e
sendo amado. A pessoa se satisfaz em ser objeto de amor do outro e ama a imagem
ideal construída do outro. Ama também a imagem de si ideal refletida no outro. Essa
atmosfera entretecidamente amorosa a satisfaz, a inebria. O amor correspondido
dispensa a necessidade de amor-próprio.
No
amor-próprio, o eu experimenta uma sensação ilusória de poder existir, de
satisfazer-se sem carecer do afeto, da afeição, da estima do outro. O eu vive
uma ilusão de satisfação, mas no silêncio do íntimo ruge-lhe a convicção de que
o amor-próprio que declara sentir é precário para lhe dar significado e prazer
– melhor ainda, para lhe dar potência de
existir. Seu amor-próprio é uma máscara para a sua infelicidade em face da
indiferença do outro. É uma couraça com que se protege da sua condição de ser
consciente da solidão, do abandono e do terror de seu destino derradeiro: a
morte inevitável.
O que me
parece claro, portanto, quando consideramos a ideia do amor-próprio e da
possibilidade de sua experiência é que só podemos amar a nós mesmos se um dia
tivermos sido amados (não por nossos próximos, mas por outros que não os
nossos). O fato de minha mãe me amar não é suficiente para que eu me ame.
Talvez, porque eu cuide que não é um mérito para mim ser amado por minha mãe; o
amor dela é, para mim, uma experiência a que ela está obrigada desde o meu
nascimento. Não há mérito envolvido aí. Todavia, quando somos objeto do amor de
um outro que não sentimos que deveria estar implicado numa condição de
obrigação de nos amar, despertar-lhe o amor dele por nós é visto como um mérito
nosso.
Insisto em
que a experiência de amor objetal, ou seja, que supõe a relação com o outro,
que implica o outro, precede a experiência de amor por si. Antes devemos amar
um outro e experienciar a satisfação aí envolvida, perdemo-nos no outro e nos
decepcionar com ele, perder o amor dele, para então erigir o altar do
amor-próprio. No amor recíproco não há lugar para o amor-próprio.
O bebê não
parece ser capaz de amor-próprio. Primeiro ele é amado; primeiro precisa ser
amado, precisa do amor de sua mãe para sobreviver – amor que demanda cuidados,
de que depende também sua subsistência material. É só depois, ao longo da vida,
nas incontáveis experiências como sujeito, na adolescência e na fase adulta, tomando
consciência de que o amor original, acalentado junto aos seios maternos, assume
outras feições, outras formas, por vezes, frágeis, fluidas, inconstantes,
repletas de adversidades, contrariedades, conflitos, e tomando consciência de
que aquele amor original não encontrará uma imagem exata de si nas relações com
os outros; enfim, é só depois que se dá conta de que o amor de sua primeira
infância, para ele fonte de segurança, dá lugar a uma forma de amor cheia de
riscos, potencialmente capaz de lhe trazer infelicidade, frustrações e traumas,
é que passará a acreditar na possibilidade de satisfazer-se com o único amor do
qual não se separará: o amor-próprio. Mas a esse amor não pode conferir mais
valor ou poder do que ele pode comportar. É bem verdade que pode ser útil em
ocasiões em que, sentindo-nos desprezados, rejeitados, só nos resta a solidão
do amor por si. Mas ele não deixa de ser ilusório, ele não deixa de reclamar o
amor do outro, o amor pela nossa imagem forjada no amor do outro. É só no amor
do outro que posso me amar realmente.
O
amor-próprio é a defesa, portanto, dos desditosos, dos infelizes, dos mal
amados contra a frieza e indiferença do mundo ao seu sofrimento real. É a
couraça de homens e mulheres encarcerados no egoísmo e no individualismo que se
assenhoreiam de si. É a única fortaleza (ilusória) de homens e mulheres que
vivem nas condições da liquidez do amor, em sociedades em que cada vez estão mais
conectados e cada vez menos dispostos a perseverar em seus relacionamentos
convencionais. O amor-próprio parece ser o único alimento disponível no mercado
para saciar a fome desses homens e mulheres desnutridos que dormem acalentados
pela crença de que suas conexões são suficientes para lhes fornecer, ao menos,
um débil estado de satisfação e felicidade.