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sábado, 20 de abril de 2013

Eu sou o outro


                             
                          

                              Eu e o Outro em mim

Ela não me telefona; tampouco eu lhe telefono. E este sábado, em que o coração, se acostumando à ausência e resignando-se ao destino ingrato de todo amante que se precipita ao amor, sem que sequer lhe vislumbre a profundidade, vai, aos poucos, devolvendo-me à alma as feições desgostosas da desilusão. Quiçá, a ordem dos acontecimentos subsequentes não seja a que tão infelizmente pressinto ou suponho. Talvez, esta noite me pareça mais amena e o sol de amanhã, mais tolerável. Não quero, contudo, dar a este texto uma fisionomia lírica, que traga à cena discursiva fantasmas românticos que expulsei da ópera de minha alma, porque insistiam em desafinar quando ousavam cantar o amor exagerando seus contornos, alargando seu território, expandindo seus limites, já há algum tempo reconhecidos por mim como frágeis e quebradiços. Silencio o lirismo do coração, conquanto eu reconheça, desde já, que silenciá-lo totalmente, durante o curso destas palavras, me é impossível – e até indesejável. O coração, essa metáfora para o ventre dos sentimentos, das emoções, dos calores da alma, dos cantos divinizados dos versos, ocupará um lugar de coadjuvante neste palco discursivo onde as palavras são os atores e atrizes. Mas não lhe nego a importância do papel que desempenha na representação discursiva: ele bombeia o ânimo para a alma e mantém o corpo ativamente envolvido nessa prática laboriosa de expressão verbal.
Certa feita, declarei a uma amiga que, malgrado nossa paixão pela leitura, nosso gosto irresistível pelos livros (eu diria nosso apego a eles), os livros não nos salvam. De que exatamente? De nós mesmos. Uma pessoa minimamente informada sobre psicologia e psicanálise não terá dificuldade de entender o que quero dizer com “salvar-nos de nós”. Nós, homens e mulheres, então adultos, trazemos em nós uma herança de conflitos, de traumas, de dores, decepções, medos. Acreditamos na soberania do nosso próprio ‘eu’, acreditamos na sua unidade, ao mesmo tempo em que vivemos a mentira sobre nossa própria condição humana. É verdade que não escapamos ao recalcamento (posteriormente definirei esse termo), e de sua adequada realização depende a normalidade de nossa vida psíquica. O viver humano depende, aliás, de que operemos uma repressão básica, qual seja, a do terror da morte. A percepção da verdade de nossa condição – animais conscientes do seu destino mortal – é fonte de angústia. A percepção da verdade de nossa condição é lucidamente descrita por Becker, em seu A Negação da Morte (2012), no que se segue:

“Este é o horror: ter surgido do nada, ter um nome, consciência de si mesmo, profundos sentimentos íntimos, uma torturante ânsia íntima pela vida e pela auto-expressão – e, apesar de tudo isso, morrer (p. 115-116)”.


Não quero me delongar sobre esse tema e se o retomei aqui foi para tentar elucidar a crença que acalento na ineficácia salvífica dos livros. Ainda que os cuidemos âncoras por meio das quais não vivemos à deriva, eles não nos livram de nos haver com nós mesmos e de nos confrontar com o ser-aí, ou seja, o mundo empírico, o ser absurdo. Nós, então bebês, quando arrancados do conforto e da segurança da condição da vida intra-uterina, fomos arremessados à existência, condição esta em que deixamos nua nossa fragilidade e nossa impotência para a sobrevivência por nossa própria conta. Sem o amparo e os cuidados dispensados por nossos pais (ou outros significativos responsáveis), morreríamos prematuramente. Se os livros não nos salvam de nossa conflituosa condição humana, ao menos eles nos ajudam a examiná-la, compreendê-la, fornecendo-nos as ferramentas necessárias para suportá-la.
São exatamente 16h 10 da tarde e não há sinal algum de que uma reconciliação entre nossos desejos de ventura amorosa será possível, pelo menos hoje.
Cuido-me uma pessoa ansiosa. Sofro tanto de ânsia quanto de ansiedade. Acho que devo discernir os dois conceitos. A ânsia pode ser definida tanto como desejo ardente quanto como um tormento espiritual causado por um sentimento de expectativa e incerteza. Muito embora confundida, quase sempre, no senso-comum, com a ânsia, a ansiedade, por sua vez, é, em psicanálise, definida como um estado de tensão emocional, que compreende sentimentos irrealistas de apreensão, angústia e medo. A ansiedade está na base da neurose. Convém acrescentar, sob pena de pecar na exatidão, que a ansiedade pode também incluir a percepção de um perigo real. Nesse caso, a ansiedade se chama ansiedade realista. Se, contudo, no estado de ansiedade, os perigos são desconhecidos pelo indivíduo, temos a ansiedade neurótica. Freud discrimina, tendo em conta cada fase da vida de uma pessoa, fatores que a determinam: a) o medo do nascimento; b) o medo de separação da mãe (que está na origem da histeria); c) o medo de castração (que dá origem a fobias); d) o medo do superego (que causa as neuroses obsessivas); e, finalmente, e) o medo da morte.
Antes de fazer incursão no terreno da neurose, circunstância em que eu me reconhecerei como uma pessoa neurótica (na verdade, todos somos, em alguma medida, neuróticos, mas desenvolverei essa discussão mais adiante), gostaria de referir e definir um tipo de ansiedade, que Freud chama ansiedade primordial, visto que me parece adequada para explicar a ansiedade inerente às minhas vivências enquanto adulto. A ansiedade primordial ocorre no bebê quando é separado de sua mãe ao nascer. Segundo Freud, esse evento primordial constitui a causa da repressão. Essa ansiedade, tal como definida por ele, parece acometer todos os bebês, mas, no meu caso, quiçá, ela possa ter sido mais dramática ou traumática. A essa altura, gostaria de que o leitor retivesse a ideia, que me parece bem estabelecida em psicanálise, de que viver é acumular traumas; ou, dito de outro modo, é impossível viver sem que nossa personalidade não seja afetada por traumas.  
Quando se deu a separação entre mim e minha mãe, por ocasião de meu nascimento, tive de ser conduzido urgentemente a uma mesa de cirurgia. Durante os primeiros seis anos de vida, várias separações se sucederam, dada a necessidade de realização de várias cirurgias e internações.
Um dos princípios previstos pela teoria psicanalítica de Freud consiste na ideia de que nosso passado exerce influência decisiva na formação de nosso psiquismo. Postula o pai da psicanálise que as experiências da primeira infância (que vai do 0 aos 3 anos de vida) vão ser determinantes da forma de nossas experiências psíquicas na fase adulta. Grosso modo, aquilo que nos tornamos, na fase adulta, será definido em nossas experiências primevas da primeira infância. Freud, aliás, resumiu bem essa condição, ao nos legar a frase: “A criança é pai do homem”.
Do exposto acima, se depreende que a criança sobrevive no indivíduo adulto. O adulto não deixa de “hospedar”, nas suas profundezas psíquicas, por assim dizer, a criança que um dia foi. De minha parte, as sessões de psicanálise que frequentei, em algumas ocasiões num passado não muito longínquo, contribuíram para amenizar os traumas da infância de minha alma. Reconheço, na verdade, que elas contribuíram fundamentalmente para me libertar de um estado aterrador de depressão, que eu arrastava na alma durante anos. A depressão é uma síndrome, já que reúne vários sintomas, entre os quais abatimento físico (tristeza, fadiga), ideias ou tentativas de suicídio, perda de interesse, de amor-próprio e desolação.
Observei, mais acima, que todos somos neuróticos em alguma medida. E Teles (2004) vem em socorro dessa ideia, ao nos ensinar:

“(...) todos nós temos nossos traços neuróticos, todos temos momentos ilógicos, por menores e mais invisíveis que sejam. Todos temos medos, inseguranças, conflitos, ansiedades, sentimentos de culpa. Todos usamos os recursos dos mecanismos de defesa para proteger o nosso ego, a nossa auto-estima (p. 21)”.


A autora, logo em seguida, nos chamará atenção sobre o confronto necessário de nossa condição com a realidade dura do mundo:

“A verdade é que temos que crescer e enfrentar a realidade e a hostilidade do mundo, mas, no fundo de nós, habitará sempre a criança impotente diante de um mundo, de uma natureza e de um infinito que não compreende. Habitará sempre em nós a consciência de que nada é permanente, de que tudo morre, deteriora-se e passa, até mesmo nós (ib.id.)”.


Ao enfocar, doravante, a neurose, terei sempre em conta a forma como me envolvo nas experiências afetivo-amorosas. São muitas as teorias sobre neurose (Teles, 2004, p. 22). Karen Horney, por exemplo, entende que os conflitos neuróticos seriam produtos da repressão da agressividade infantil, fato este que desencadearia a ansiedade básica, que persistiria e impregnaria a personalidade do indivíduo adulto. Por ansiedade básica, a psicóloga culturalista entende o sentimento de impotência e de solidão, que se origina na infância, em face de um mundo considerado hostil. A criança, impotente e solitária, confronta-se com o mundo que considera hostil.
Para Teles, há, na neurose, um desacordo, uma discrepância entre o “eu real” e o “eu ideal”. A autora refere várias características do comportamento neurótico, entre as quais estão: sentimentos de insatisfação difusa, insegurança, inadequação, inferioridade, inibições exageradas, tensão, conflitos sem solução, dependência constante da aprovação e do afeto de outrem e excessiva proteção contra todos e contra tudo (p. 28).
O comportamento neurótico é desencadeado sempre que, irrompendo um desacordo entre o eu e o mundo, o indivíduo não é bem sucedido na busca por recursos que restaurem a conciliação entre ambos. A neurose pressupõe um comportamento em descompasso com a dinâmica dos comportamentos aceitos ou bem avaliados com base nos padrões culturais de uma sociedade. A pessoa neurótica, observa Horney, buscará solucionar seus conflitos, mas ao fazê-lo, as medidas tomadas serão menos satisfatórias do que as dos demais indivíduos. Essa busca é feita à custa de muito dispêndio de energia e de grandes sacrifícios para a personalidade. Horney, em A personalidade neurótica de nosso tempo (p. 22), define a neurose como um distúrbio psíquico decorrente de medos e defesas empregadas contra esses medos, distúrbio que se caracteriza por tentativas de buscar soluções para os conflitos.
Uma constante nas neuroses são os conflitos. Eles se dão no interior do eu do indivíduo, em grande parte inconscientemente. Os conflitos incluem o medo e a agressividade, os sentimentos de culpa e a necessidade de amor (que pode tornar a pulsão sexual em obsessão). Desses conflitos resulta um estado constante de ansiedade, que se acompanha de perturbações físicas ou mesmo de entorpecimento emocional, caso da depressão. O doente neurótico ignora os desejos recalcados. Por recalcamento, entende-se um tipo de repressão completa, isto é, a proibição à representação de uma pulsão (em geral, sexual ou agressivo) na consciência. Os conteúdos recalcados, ou seja, afastados completamente da consciência (por serem causa potencial de desprazer ou punição) permanecem inconscientes.
É possível também pensar a neurose, como o faz Freud, como uma doença da libido. Nesse caso, ela surge como consequência da ruptura do equilíbrio entre a libido e o eu. A neurose é, assim, um fracasso do recalcamento. Ainda que eu pudesse me esforçar por desenvolver um pouco mais essa ideia, tal me levaria muito longe. Há vários tipos de neurose e eu não suponho padecer de vários tipos, evidentemente. Um tipo, entretanto, me despertou a atenção; trata-se da neurose objetiva. Nela o conflito psíquico se exprime por sintomas considerados compulsivos (ideias obsessivas, compulsão à realização de atos penosos, ritos, etc.), mas também por um pensamento submetido à ruminação mental, à dúvida e a inibições de toda sorte. Por vezes, me apercebo de que fico a ruminar ideais que provocam muita ansiedade, a alimentar dúvidas que engendram muita insegurança e medo. Essas ideias estão quase todas ligadas às experiências sexuais-afetivas ou amorosas.
Neste instante mesmo, em que o silêncio entre mim e ela permanece intocável, esforço-me, na elaboração deste texto, por domesticar minha ansiedade, por defender-me contra o medo que ela envolve. Há dúvidas que me fustigam a alma, nesse momento; e receio saber a verdade sobre a condição de nosso relacionamento de amor promitente.
A relação que a criança estabelece com seus pais, nos primeiros anos de vida, exercerá um papel importante também nas escolhas amorosas em sua fase adulta. O indivíduo, portanto, então adulto, buscará nas suas escolhas amorosas a forma da relação amorosa experienciada com seu pai e sua mãe. Essa relação amorosa acabará por ser um modelo para as suas experiências amorosas futuras com outrem.
Ainda implicada na questão da neurose, há que se destacar a importância da tendência neurótica. Ela diz respeito à organização de tendências que visam à segurança máxima do eu, quer no sentido de aproximar-se das pessoas, quer no sentido de afastar-se delas, quer ainda no sentido de opor-se a elas.
Decerto, os livros não nos salvam. Não nos livram de nossas tendências neuróticas. Eles não impedem a nossa infelicidade, as nossas decepções, não evitam nossos embaraços, tampouco nossos medos. Pelo menos, no entanto, eles nos munem do conhecimento indispensável para manter-nos conciliados com o mundo ou com nossa libido.
Eis um princípio básico da psicanálise, enunciado por Freud, e que o leitor não pode esquecer: o homem não é o senhor de si. Freud escreveu, na verdade, “O eu não é o senhor em sua própria casa”, visto que sua vida consciente é determinada por forças inconscientes que lhe são ignoradas e que lhe escapam ao controle. Ou seja, não somos senhores absolutos de nossos atos; uma grande parte das causas de nosso comportamento é desconhecida. Não estamos totalmente no controle de nossa vida psíquica. O eu não é o responsável por todos os seus pensamentos; há pensamentos que assomam à consciência que não são de responsabilidade do "eu".
Algumas palavras sobre o inconsciente se fazem necessárias, doravante. Para Freud, o inconsciente é a verdadeira realidade psíquica, é sua natureza mais íntima e mais estranha. Trata-se de uma realidade muito desconhecida de nós. Embora possamos pensar o inconsciente lançando mão da metáfora do iceberg, de modo que a parte maior, que fica submersa, corresponde ao inconsciente, ao passo que a parte menor, que fica à tona, é a consciência, importa entender o inconsciente como uma hipótese psicanalítica, pela qual se explica a estrutura da vida emocional do indivíduo. Por outro lado, o inconsciente é também um sistema lógico que opera na mente das pessoas. Ele é estruturado como uma linguagem (Lacan).
O inconsciente é o próprio psiquismo, é a base fundamental da vida psíquica; nele se encontra concentrada a totalidade da energia libidinal. Como é no inconsciente que se encontram as representações e desejos recalcados, ele é o próprio recalcado. Freud supunha que nossa vida psíquica consciente é inteiramente determinada pelo inconsciente. Duas ideias me parecem fundamentais para que compreendamos o inconsciente: a primeira é que ele é desconhecido de nós; o que foi recalcado não nos é acessível; as forças que atuam sobre o eu, forças inconscientes, nos são estranhas. A segunda ideia toca ao fato de que, no inconsciente, os conteúdos de nossas vivências pessoais jazem reprimidos e esquecidos. Como o inconsciente é responsável por determinar nossa vida psíquica consciente, o eu não pode ser senhor de sua casa, não pode estar no domínio pleno da estrutura psíquica. Toda a atividade do inconsciente tende para o prazer e busca evitar o desprazer. O inconsciente é regido pelo princípio do prazer.
E já são sete horas desta noite que segue arrastando minhas dúvidas e cozinhando-as na caldeira de meu coração. Receio não conseguir considerar a problemática do sujeito psicanalítico, questão cujo desenvolvimento seria indispensável à compreensão do sujeito como necessariamente cindido. Basta dizer que o sujeito não pode ser pensado e definido fora do âmbito da linguagem. Ele é um sujeito situado no domínio social e, como tal, se constitui na relação com o outro (pelo imaginário) e com o Outro no campo da linguagem. O “Outro” (com maiúscula) é uma categoria proposta por Lacan e compreende não só o adulto mais próximo, mas também a estrutura de significantes dessa ordem social e cultural que ele encarna – ordem estruturada por ideologias, valores, significações. Esse Outro pertence à ordem do simbólico. Esse Outro é a estrutura material e simbólica dessa ordem social e cultural (que, como disse, se constitui de valores, crenças, significações, ideologias, etc.). O outro (com minúscula), por sua vez, é o meu ego alterado, é um alter-ego, no qual projeto minha própria imagem. É nesse outro que o eu encontra uma imagem idealizada de si mesmo. O sujeito da psicanálise é sujeito do inconsciente. Ele se constitui numa relação simbólica com o Outro e imaginária com o outro. Esse Outro do inconsciente me determina como sujeito. Saliento que esse Outro que me determina como sujeito, que é o Outro do inconsciente e que encarna toda uma ordem social e/ou cultural, é desconhecido de mim como sujeito.
Agora, começarei a tatear uma questão que se me apresenta emaranhada. Eu não sou a pessoa suficientemente competente para avaliá-la, é claro. No entanto, em alguns lampejos de consciência, seus contornos me parecem nítidos. Trata-se da questão da sexualidade. Começo logo rechaçando o equívoco em reduzi-la ao coito. Também não pode compreender apenas zonas erógenas e órgãos sexuais. Não se reduz ao prazer do sexo. Em psicanálise, a sexualidade toca à totalidade dinâmica do ser humano, definindo-o tanto como organismo físico quanto como ser psíquico. A sexualidade penetra-lhe o ser mesmo.
A energia que está na base dos impulsos sexuais chama-se libido. Os sintomas neuróticos funcionam como formas de satisfação substitutivas dos desejos sexuais recalcados. Na sublimação, as pulsões sexuais são desviadas do objeto sexual e orientadas para atividades socialmente valorizadas (trabalho, arte, literatura...). Segundo Freud, toda sociedade exige de seus indivíduos sacrifício de seus instintos sexuais em favor do trabalho ou de outras atividades elevadas socialmente.
Sinto que recaiu um véu, neste instante, sobre o curso da história do desenvolvimento de minha sexualidade. Eu é que lanço este véu, quer porque esteja cansado, quer porque me custa me deter a pensar sobre ela. O leitor, quiçá, não esteja mais frustrado do que eu.