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quarta-feira, 12 de junho de 2013

O retorno do artigo

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O artigo em sala de aula
Algumas considerações sobre seu funcionamento discursivo


O tema deste texto toca a um capítulo das aulas de língua portuguesa que não costuma ser bem explorado pelo professor, qual seja, o artigo. Creio não incorrer em erro ao afirmar que, nas aulas, de um modo geral, muito pouco se ensina sobre a função textual ou discursiva desempenhada pelo artigo. Nas séries iniciais, o aluno é levado a identificar os artigos em frases soltas e a classificá-los em definido ou indefinido. Por vezes, há uma preocupação em ensinar a distinção semântica entre a forma “um” (uma) do artigo e a forma “um” (uma) do numeral. No capítulo da sintaxe, os artigos assumem uma função sintática no interior do sintagma nominal que o aluno deve saber reconhecer. No entanto, em nenhum dos casos mencionados, procura-se tratar o artigo como um recurso importante de coesão textual.
Este texto, portanto, é dedicado ao tratamento do artigo como uma unidade linguística implicada nos mecanismos de coesão referencial. Para elaboração deste trabalho, entendo por coesão referencial o fenômeno pelo qual um elemento da superfície textual faz remissão a outro(s) elemento(s) presente(s) no texto ou dele inferível(is). A coesão textual é parte do fenômeno global da referenciação. A referenciação é uma atividade discursiva de construção sociocognitiva-interacional de referentes que vão emergindo na própria prática discursiva e formando redes referenciais. Os referentes são considerados “objetos-de-discurso”, que são construídos, mantidos e modificados pelo/no discurso. Subjacente à noção de referenciação está a visão de que a linguagem não espelha a realidade; esta, ao contrário, é construída num complexo processo de interação entre percepção-cognição, cultura e linguagem. A realidade é construída segundo os modos como interagimos com o entorno físico, social e cultural.
Os referentes, não sendo objetos do mundo, são unidades culturais construídas no/pelo discurso. A fabricação dos referentes, ou dos objetos-de-discurso, se dá na dimensão da percepção-cognição via discurso. A construção dos referentes é sempre um processo sociocognitivo-interacional. Nas palavras de Marcuschi & Koch (1998: 5),

“Isto não significa negar a existência da realidade extra-mente, nem estabelecer a subjetividade como parâmetro do real. Nosso cérebro não opera como um sistema fotográfico do mundo, nem como um sistema de  espelhamento, ou seja, nossa maneira de ver e dizer o real não coincide com o real. Ele reelabora os dados sensoriais para fins de apreensão e compreensão. E essa reelaboração se dá essencialmente no discurso. Também não se postula uma reelaboração subjetiva, individual: a reelaboração deve obedecer a restrições impostas pelas condições culturais, sociais, históricas e, finalmente, pelas condições de processamento decorrentes do uso da língua”.


Portanto, não dizemos o mundo tal como ele é, mas construímos versões públicas do mundo (Marcuschi, 2005, P. 71). O mundo textualizado não se identifica com um mundo real ou extralingüístico, tomado como “verdadeiro”. Não há uma relação especular entre linguagem e real: a linguagem não espelha o real. Há sempre um trabalho da percepção-cognição e da linguagem, culturalmente determinado, sobre o real. A estrutura do real não é senão resultado do trabalho da interpretação humana. O real é produto da práxis, que é ação humana na história e que envolve um aparelho perceptual-cognitivo, práticas discursivas e culturais. É nas práticas culturais, que geram redes de estereótipos, que a realidade é fabricada. Esses estereótipos ganham materialidade na linguagem e são por ela reforçados.
Os objetos-de-discurso - é preciso frisar - não devem ser entendidos como produtos de uma transformação de objetos do mundo. Os objetos-de-discurso existem no discurso e não supõem um correlato no mundo extralingüístico. Eles são construídos no discurso e delimitados na dimensão perceptivo-cognitiva. Destarte, segundo Roncarati (2010),

“O referente se torna, portanto, um objeto construído no/pelo discurso. O mundo real é aquele que sentimos, lemos, interpretamos e sobre o qual falamos com base em crenças, pressupostos, ideias e inferências construídos e reconstruídos a partir de condições de produção transitórias, arbitrárias, históricas e passíveis de negociação. Mas também temos interditos, implícitos, ironias, intencionalidades, mentiras e más intenções: quantas vezes falamos de um referente X, em verdade ocultando e velando um referente Y?”
(p. 44)

Antes de considerar a função discursiva desempenhada pelo artigo, necessário se faz definir a noção de contexto. Não pretendo fazer incursão nessa problemática; por isso, cinjo-me a dizer que, ao me referir ao contexto, levo em conta o conceito de contexto sociocognitivo. Os estudiosos que se situam na esteira das abordagens sociocognitivas da linguagem têm insistido em que o contexto físico não determina diretamente a produção e compreensão dos enunciados, mas só o faz por meio de conhecimentos representados na memória dos interlocutores. O contexto sociocognitivo compreende, então, o conjunto de conhecimentos (enciclopédico, sociointeracional, linguístico, procedural, etc.) armazenados na memória dos interlocutores, que são mobilizados para a produção/compreensão dos enunciados por ocasião do intercâmbio verbal. Trata-se, portanto, da bagagem cognitiva que cada parceiro de comunicação já traz para o evento de interação verbal. Constituem partes do contexto sociocognitivo as seguintes formas de conhecimento: o conhecimento linguístico, o conhecimento enciclopédico (ou de mundo), quer declarativo, quer episódico (frames, scripts), o conhecimento da situação comunicativa e suas “regras”, o conhecimento superestrutural (tipos textuais), o conhecimento estilístico (registros e variedades da língua e sua adequação à situação de comunicação), conhecimento sobre gêneros textuais e conhecimento sobre outros textos (intertextualidade) (Koch, 2006, p. 24).
Intimamente ligado à noção de contexto sociocognitivo está o conceito de modelos cognitivos ou experienciais. Esses modelos se constituem de estruturas complexas de conhecimentos, que representam as experiências que vivenciamos em sociedade e que servem de base para a produção de conceitos. Os modelos constituem conjuntos de conhecimentos social e culturalmente determinados e adquiridos em nossas vivências.  (Koch, 2006, p. 44).
Os modelos cognitivos ou experienciais constituem blocos de conhecimentos que representam as nossas experiências de mundo. Eles podem ser tipificados de modo vário, mas, para os meus propósitos, basta me referir a um tipo apenas, chamado frames. Frames são um tipo de modelo cognitivo que compreende conhecimentos organizados na memória sob um dado rótulo (p. ex., conhecimentos relativos a “Natal”, conhecimentos sobre “Carnaval” restaurante”, etc.). Como há autores que não distinguem entre frames e outros tipos de modelos cognitivos (esquemas, scripts, planos), frames serão definidos aqui como todo conjunto de conhecimentos armazenados na memória dos interlocutores indispensáveis à intercompreensão.

1. O artigo definido

O artigo definido ocorre em sintagmas nominais que inclui informações conhecidas dos interlocutores. Em outras palavras, o referente de expressões nominais em que se acha o artigo definido é conhecido pelos interlocutores. É a intenção do falante que determinará o uso do artigo definido, bem como o modo como ele pretende comunicar uma dada experiência. O uso do artigo está intrinsecamente ligado às circunstâncias, linguísticas ou não, da enunciação.
O artigo definido atualiza uma referência direta quando o falante se refere a algo presente na situação de comunicação. Assim, em (1),

(1) A piscina está vazia hoje.

o enunciador usa o artigo definido para indicar que se trata de uma piscina identificada na situação de comunicação.
A referencia é indireta, sempre que o uso do artigo definido for extremamente dependente do conhecimento de mundo compartilhado pelos interlocutores. Nesse caso, eles sabem a que entidade se faz referência, mesmo que ela não esteja disponível na situação de fala. No exemplo (2), abaixo, ilustra-se a referência indireta:

(2)
A – Olha, virá uma senhora aqui pegar os alimentos que doarei. Atende ela pra mim.

(alguns instantes depois...)
A – E a moça pegou os alimentos?
B – pegou.

O uso do artigo “a” antes do substantivo “moça” no segundo turno da fala de A foi possível, porque A compartilha com B o conhecimento sobre a mulher que iria pegar os alimentos para doação. O referente de “moça” é reativado na memória do falante B, visto que já havia um endereço cognitivo para ele quando da produção da primeira fala de A, quando ele introduziu no discurso a expressão “uma senhora”.
O artigo definido, quando usado para referência textual ou endofórica, figura num sintagma que faz remissão a um constituinte anterior. Quando a remissão se dá para trás, chamamo-la anafórica. A anáfora é, portanto, o mecanismo pelo qual uma expressão nominal faz remissão a outro elemento que a precede. Em (3), temos um caso de referência anafórica pelo uso de uma expressão nominal com artigo definido:

(3) Um homem roubou a bolsa e fugiu. O delinquente está sendo procurado pela polícia.

Note-se que “o delinquente” faz remissão a “um homem”.

Particularmente interessante são os casos em que usamos o artigo definido em anáforas conhecidas como associativas. Anáfora associativa consiste no emprego de uma expressão definida, cuja compreensão não se ancora em algum referente explícito anteriormente anunciado, mas depende de uma inferência com base em algum elemento anterior que funciona como uma espécie de ‘gatilho’. O referente da expressão anafórica é introduzido como se fosse já conhecido. Há uma relação semântica de pertinência ou ingrediência entre a expressão anafórica e o elemento que permite a sua compreensão. No enunciado abaixo, de Pitágoras, o uso de “a amizade” (com artigo definido) foi possível em virtude da ocorrência de “amigos”.

(4) “Os amigos têm tudo em comum, e a amizade é a igualdade.

O constituinte “a amizade” não retoma “amigos”, ou seja, “amigos” não é o referente a que faz remissão “a amizade”, mas essa expressão ‘faz sentido’ porque podemos estabelecer uma relação semântica de pertinência entre ela e o elemento “amigos”. Vejam-se outros exemplos:

(5)  O carro enguiçou e o motorista esperou duas horas pelo reboque.
(6) O casamento foi um sucesso. A noiva estava linda; a decoração, impecável.
(7) Quando cheguei à bilheteria, os ingressos haviam acabado.

Todos os sintagmas grifados em negrito constituem exemplos de anáforas associativas. Em (5), a ocorrência de “o motorista” se explica porque é possível estabelecer uma relação de ingrediência com “o carro”. É claro que “o motorista” introduz um referente novo, mas ele se torna compreensível via “carro”. A expressão que torna possível a anáfora associativa ativa um frame no interior do qual esta faz sentido. Assim, “o carro” ativa um conhecimento sobre como chamamos a pessoa que o dirige. Em (6), é “casamento” que ativa um frame (um modelo cognitivo) no interior do qual “a noiva” e “a decoração” são interpretados. O frame é a representação na memória do falante de uma experiência que assume a forma de conhecimento que é ativado pela ocorrência de uma expressão linguística (no caso, “casamento”). Assim, “casamento” ativa um frame que inclui elementos como “noivo”, “noiva”, “igreja”, “padre”, “juiz”, etc. Novamente, cabe lembrar que “a noiva” e “a decoração” estabelecem uma relação anafórica por associação com “casamento”, mas não fazem remissão a um elemento anteriormente anunciado. Não há, nos casos de anáfora associativa, correferência. Finalmente, em (7), a expressão “a bilheteria” aciona um frame em que “os ingressos” se reveste de sentido. É parte de nosso conhecimento de mundo o fato de que bilheterias vendem ingressos (para shows, filmes, partidas de futebol, etc.).


2. O artigo indefinido

Via de regra, as expressões nominais encetadas de artigo indefinido não servem para fazer remissão a referentes já introduzidos no texto. Não obstante, há alguns casos em que a remissão é possível: a) quando se seleciona um referente dentro de um conjunto já mencionado (p.ex. Um grupo de estudantes protestou contra a decisão do governo. Um colegial acabou agredido pelos policiais.); b) quando se nomeia uma parte de um referente previamente mencionado (p. ex. O telhado precisa de conserto. Uma telha está quebrada.); c) quando a expressão anafórica realça a informação que veicula (p. ex. Quando chegou em casa, não encontrou o pai vigoroso de sempre, mas um velho estafado).
Diferentemente do artigo definido, o artigo indefinido não é uma palavra fórica. Usa-se antes de substantivos quando não se pretende apontar ou indicar a pessoa ou coisa que se faz referência, nem na situação de comunicação, nem no texto. No sintagma com artigo indefinido, a referência incide sobre a classe particular a que uma coisa ou pessoa pertence. O artigo indefinido indica que o sintagma aplica-se a qualquer membro da classe ou grupo. Dizer que os artigos indefinidos são não-fóricos significa dizer que eles não permitem recuperar a informação semântica na situação ou no texto. Também não são descritivos, porque não fornecem informação sobre a natureza dos objetos; eles operam sobre um conjunto de objetos previamente delimitados em razão de suas propriedades.
Se, por um lado, o artigo definido se acha num sintagma nominal em que a referência é considerada como conhecida tanto pelo falante quanto pelo ouvinte; por outro lado, o artigo indefinido figura num sintagma indeterminado que pode ser de dois tipos:

a) indeterminado específico: quando o falante identifica um referente, mas o ouvinte não.
Ex. Eu pedi a um amigo que me emprestasse o celular.

“Eu” sei de que amigo se trata. O referente de “um amigo” é parte de meu conhecimento de mundo.

b) indeterminado não-específico: quando nem o falante nem o ouvinte identificam o referente.

Ex. Tenho de comprar um celular novo urgentemente.

Trata-se de “qualquer celular”; nesse caso, o referente não é conhecido nem do falante nem do ouvinte.

Por fim, vale dizer que o artigo indefinido enceta sintagmas que fazem remissão catafórica (movimento para frente). No exemplo “Eu só espero uma coisa de você: a sua amizade”, a expressão “uma coisa” faz remissão ao constituinte “a sua amizade”, posposto.
Segue-se, abaixo, o texto de Millôr Fernandes, intitulado de “a vaguidão específica”, que ilustra muito perspicazmente a função discursiva do artigo definido. Destaquei os sintagmas em que ocorre o artigo definido. O uso do artigo definido foi possível porque as interlocutoras compartilham parcelas de seus contextos sociocognitivos.

A Vaguidão Específica

“As mulheres têm uma maneira de falar que eu chamo de vago-específica”.
(Richard Gehman)

- Maria, ponha isso lá fora em qualquer parte.
- Junto com as outras?
- Não ponha junto com as outras, não. Senão pode vir alguém e querer fazer qualquer coisa com elas. Ponha no lugar do outro dia.
- Sim, senhora. Olha, o homem está aí.
- Aquele de quando choveu?
- Não, o que a senhora foi lá e falou com ele no domingo.
- Que é que você disse a ele?
- Eu disse para ele continuar.
- Ele já começou?
- Acho que já. Eu disse que podia principiar por onde quisesse.
- É bom?
- Mais ou menos. O outro parece mais capaz.
- Você trouxe tudo para mim?
- Não senhora, só trouxe as coisas.
- Mas traga, traga. Na ocasião, nós descemos tudo de novo. É melhor senão atravanca a entrada e ele reclama como na outra noite.
- Está bem, vou ver como.

(Millôr Fernandes)